Psm-quatro

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  • Words: 5,744
  • Pages: 85
1

Título: PSM – QUATRO

Autor : carlos peres feio Capa: Chinesa do Norte – Produções sobre desenho de carlos peres feio

© carlos peres feio e chinesa do norte produções , Janeiro 2009 Composição, paginação, impressão: chinesa do norte – produções, lda Depósito nº : 0102806/09

2

é simples e reconfortante sentir que a luz do passado ilumina este meu anoitecer

carlos peres feio

3

anjos na praia

anjos na praia do coral submerso espera sem ponteiros tédio no verso asas sem voo ouço e converso rasto dos tempos eco de lamentos inesperada espera fogo na noite na maré cheia sinais nas algas sons nos rochedos afastem os medos anjos na praia 1998

4

chita

como todos os gatos o encanto tem dois pólos um olhar único – o movimento do corpo quando marcha como todas as crias trazem o encanto da vida desordem nos movimentos quando trepam pela Mãe como todos os seres precisam de ter sorte que no viver natural nunca se cruzem com o Homem na savana desta vida 2008

5

Raiz do Tempo

o que procuro esconde-se levo já de vida o tempo suficiente para ter vivido a realidade e poder agora procurar o que falta ser microchip em viagem pelo meu cérebro ou turista pasmado nas grutas do Dragão nas entranhas da montanha em busca de cristais nesta viagem pode-se estar no centro da Terra e continuar a ouvir um piano preto nas harmonias sugeridas por um afinador nas madeiras da estrutura e no metal das cordas a busca em liberdade tem sempre o limite da mente as grades da idade a fragilidade dos tecidos procuro hoje um sinal de fim os medos pressentidos de tudo ou nada encontrar quando me aproximo deste sol interior não há nuvens nem ventos a paz é total e sei que cheguei à Raiz do Tempo 2008

6

as coisas boas da vida

é na cabeça que tudo se passa logo acima dos olhos no córtex cerebral é o aroma que fica no ar o teu perfume de sempre as sombras do teu corpo sonhar contigo ausente a minha vida é meu fado e é fácil entender que à janela do mundo com o desgosto lá fora a água do duche ser tépida já é uma coisa boa respirar sem esforço comer na hora certa saber que os que partem vão por ordem natural conhecer gente de esperança quando em nós não mora perceber que entre os outros há pessoas de bem sentir a língua quente da cadela que lambe a mão olhar no boletim o sol que nos vai aquecer há ainda a felicidade do bico deste lápis resistir às minhas fúrias 2008

7

pintura

reinventar o mundo nas cores que tem nos contrastes apresentados mas filtrados pelo nosso ser condimentado pela filosofia que fomos construindo enquanto ele mundo se transformava e durante a nossa vida a isso assistíamos reinventar o mundo é a minha pintura 2008

8

A rapariga do pescoço doce

É isso, escrevo muito porque sou uma solitária! Escrever faz-me bem. Dizia isto a moça de uma escola nocturna qualquer, sentindo a verdadeira dimensão de parecer rapariga e ser mulher. 1990

9

a origem

o belo pode estar escondido no amarelo-índia pigmento feito com mijo de vaca sagrada alimentada em exclusivo com mangas o mundo lá fora mostra o horror violento no fundo os nossos resíduos felizmente também eles escondem alguma beleza a que resta 2008

10

sinais do tempo - sinais do corpo

a tentativa humana de originalidade falha o esboço de um estilo próprio está condenado levantar o canto esquerdo da boca ao rir retorcer as duas mãos face ao incómodo daquela maneira é a memória de uma era antes de nós são os avós a falar dentro do tempo e nada mais a fazer do que cumprir 2001

11

urso na jaula

quando era menino em visita ao zoológico intrigava-me ver as jaulas vazias num segundo olhar via o animal a um canto onde se enroscava quando entram em minha casa ouço vozes perguntarem por mim muitas vezes no meu canto ― escondido 2008

12

visão de amor

sou capaz de te descrever todas as visões que tenho e penso serem de amor (se não forem paciência) metralha-me com estrelas para que sinta teus abismos e no vislumbrar de teu rosto minha alma vibre em sismo profundo donde sai canto de Verdi em si libertador e a quimera do princípio seja mesmo Amor 1991

13

D. COXA

mulher a quem não davam crédito dizia que o mar podia ser metálico e ondulado as ondas junto à praia, flocos de neve reconheciam nela no entanto um dom era única a entender o canto das gaivotas 2008

14

quando

quando és levado a definir felicidade ficas sem saber se é pergunta sem resposta ou auto de fé qual a maior importância? versos de Mallarmé ou filme a preto e branco na cor da tua imaginação? perplexo imploras auxílio aos sábios de antigamente mas talvez apenas te responda um pc que fala contigo mesmo quando estás só. 1998

15

VISITA

em sonhos recebi a visita de mim próprio vinha de um passado distante onde o sofrimento me rodeava sabia dele não o conhecia falo do meu país português suave amassado por indiferenças por violências de violentos escrevo sobre o sistema brandos costumes aparentes a paz impossível o inferno dos torturadores o tormento da consciência o ter de actuar lembro-me que era incómoda a minha apatia decidi abandonar tudo Pátria Família quando a pressão apertou e foi necessário assim fazer dizem que tenho sorte (assim foi toda a vida) fui salvo de ser herói por um Abril luminoso 2008

16

ano lectivo

só agora começou quando da vida prática nos desligámos durámos até que um dia parámos de o fazer para aprender a viver foram muitas as tarefas cumpridas falhadas e hoje somos libertos de quase tudo sem qualquer aspiração a paz é total só agora começou o nosso ano lectivo 2008

17

Filha de Ryan

é preciso ver mais uma vez a filha de Ryan para sentir a doce agonia do amor que assalta toma rasga-nos a alma e mostra a seta no teu sentido 2001

18

magia

enorme ironia reconhecer que a magia não mora sempre ao lado pode estar na casa onde crescemos onde vemos crescer alguém cuidado não percas o endereço da magia por teres mudado para outro espaço crê pode escapar-te a menos que dela tenhas levado a semente que baixinho nas noites de agonia te diz não te abandono serena continuo aqui 2008

19

crime

no começo roubamos enciclopédias mais à frente dinheiro é a ordem dita natural das coisas e das loisas e das tragicomédias 1988

20

escolher o mar

vem, desejo de navegar da raiz do pensamento provoca a reunião de tudo o que recebi na arca dos avós levo o gato de menino representante dos bons olhos que tinha a perene vontade do regaço de minha mãe para minha desorientação a bússola cor de ouro comprada na rua do arsenal e para sem vergonha mostrar minha origem meu lastro de cultura a espada de cana que não fere não fende não mata vou para o mar água e céu com tubos de guache pastilhas de aguarela escolhidas as cores azul verde branco e na arca nada mais na cabeça a liberdade o cheiro dos teus cabelos a falta da tua mão 2008

21

mundo perfeito

é o da dominação dos demónios que convivem no nosso interior com o leite que bebemos o queijo de cabra comido e as vibrações dos nossos tímpanos quando Schubert nos entra na cabeça ainda fica a dúvida sobre a questão: dominados ou adormecidos? 2002

22

oferta de café

na vitrina o açúcar condenado prateleiras com guloseimas chocolate mal parado em suportes garrafas fortes de líquidos ainda mais fortes em travesti de sandes tostas mistas sandwichs na mesa oferecida cabelo curto fuma olha sonda a clientela ao lado no banco do bar siamesa colega na oferta e procura vida fácil vida dura passa a vida no café e eu ao pé 1994

23

Dedicatória

Foste ideia indefinida Com arestas Que não decifro. Surges Na noite renascida Tornas-te nítida e hesito. No fim A luz Um foco nu. Sinto-te Reconheço-te És tu. 1984

24

Cabelo ao vento

Cabelo ao vento, a liberdade. No pensamento, uma igualdade. Corre comigo, ave-surpresa. Conduz-me a ti, mãe-natureza. A ti cheguei, mas, crueldade, tu não és mais a felicidade. 1971

25

o ciúme

o ciúme é um cordão rastilho onde o final é explosivo o bem estar como é hoje entendido não é remédio é só adesivo 1988

26

T.

só porque há nuvens não há lua? só por te vestires não andas nua? só por não te ver te esqueci? cuidado! igual amor ao que te tenho e o desejo em si também um dia pode crescer em ti. 1989

27

zona fabril

zona fabril bem demarcada foto no peito já desbotada. fato macaco com zipes cara feia de porteiro com tiques. ar esverdeado poluição homem com pulmão na mão. ouve-se calão homens trabalham perto morre o número dez avança o onze, decerto. tu, homem de tasco, que o ar contamina, serás teu carrasco e tua guilhotina. 1980

28

Tchaikowsky

homem aparecido para a música com o condão de nos mostrar novo caminhar para um belo, já conhecido. vida torturada pelo desejo que o impelia para as relações que ele próprio achava serem notas dissonantes na partitura desses tempos. esqueçam os terrores e os amores por que passou e lembrem as melodias que do seu sofrimento brotaram belas, únicas, inesquecíveis. 2002

29

receber

ao dizer meus versos aos outros no dar minha escrita a quem passa não sou muito diferente do pedinte que nos aborda que nos diz que não tem fome mas insiste numa moeda para o cafezinho quando me ouvem me referem a leitura ao darem-me a palmada nas costas já me cheira a café se sinto o olhar atento então saboreio a bebida em chávena aquecida 2008

30

à estrada

aconteceu não ter dinheiro e as dores que vieram só tinham um nome paragem um magnífico automóvel negro feito para a estrada pedindo viagem mas com o tanque quase vazio para voltas ao quarteirão tinha o tédio dos marinheiros em terra Biarritz St Malo Bayeux esperem por mim ainda há esperança. 2002

31

negro mão de obra

chegada. o branco é branco o medo é preto o pé pisa pisa o pé é esqueleto coqueiro está longe mulher não tem rosto o mar está no meio voltar é o meu gosto mas há a aventura existe a procura mão de obra sou eu mão de obra gemeu -----------------eu gosto daqui (tem branca bem feita) eu gosto daqui (comigo não deita) 1972

32

alto da serra

ex pastor

volta para teu pastoreio e controla os teus desejos protege teus pensamentos dos lobos da inveja

alto da serra

prepara músculos para trabalho enche peito para subida eleva braços para recepção une os nervos num feixe concentra tudo num ponto sente frio nas narinas afasta instintos de guerra e chega ao alto da serra 2001

33

grande mentira

no princípio era o dia luminoso numa estrada sem fim não me prometeram nada a promessa era o que via nem sequer me apercebi que tinha o rio aos meus pés cedo aprendi a estar bem a encher os olhos da vista aérea das plantas alinhadas que faziam pela vida a minha azul existência quando descobri o mar fui por ele rodeado sei o que é o mar alto antes de conhecer a praia não chegou a ser dor mas somente uma marca a saudade na mão esquerda na direita o novo mundo novo 2008

34

mãos

quero ir de mãos dadas contigo por todos os palácios edifícios jardins e lugares esplêndidos deste mundo. a tua mão será a doce ligação ao mundo do irreal da pintura dos livros dos instrumentos musicais raros mas o tempo foge então como já vi muitos desses lugares sagrados museus, museus, museus e contigo já não irei a muitos resta-me a tua mão a tua imaginação para de mão dada fazer a viagem imaginada de dar a volta ao mundo sem limites e encontrar nas tuas veias o caminho para o sonho e conseguir levar-te a ligar o teu pensamento aos nervos dos meus olhos e transferir de mim antes que a memória esgote as viagens armazenadas para que delas desfrutes e sejas o meu duplicado em amor autenticado. 1998

35

se me lembro?

estremeceu e parou sentiu uma luz forte em cima ouviu perguntar lembras-te dela? deviam estar a gozar queriam o seu embaraço, por certo. cego pela luz atordoado pela questão repetiu se me lembro? e há algum minuto sem a ver dentro da minha cabeça? sua pele prometia sempre seus olhos eram risadas com o choro em fundo seu corpo em geral uma mistura de fêmea desejo e cor seu andar dramático ao afastar-se ondulante à vinda se me lembro? sufocou, tudo andou à roda e caiu, fulminado. 2001

36

E com a certeza, a dúvida

Pergunto. Quem me responde? Amplificação de meu cérebro Em agonia de fome? Estás comigo? Estás comigo? Escuto. Ritmos compassos silêncios Tempo de meditação Memórias sonoras em vão Estás comigo? Estás comigo? Digo. Tens de estar. Já te sinto. No espaço. Na falta de tuas notícias A certeza que caminhas para mim. E com a certeza, a dúvida: Estás comigo? Estás comigo? 1991

37

Carcavelos agora

ruas estreitas abstractas corredores na folhagem casas com jardim fora de época ou talvez não local resignado da calma em contra mão aceitar que assim é nada esperar do que já foi em sonhos descobrir restos de quintas já sem verdura paraísos condenados monumentos de amargura 2008

38

responsabilidade do poeta

escreve sempre só num acto único pensa que um dia alguém o ouve ou vê essa folha essa voz pode mudar a vida a outro por isso se escreve de impulso e depois se sofre quem se expõe mais que o poeta? só há uma poesia a que transporta uma verdade sem a impor ao poeta por vezes são dadas as ideias dentro da cabeça mas pode acontecer ter o palco por um minuto e a mensagem fluir daí a grande responsabilidade de ser poeta 2008

39

mensagem

quero dizer-te que compreendo a tua fúria que arrasta escolhos como eu e produz a espuma alva de um branco exasperado e manso ponho-me no teu lugar sofro o balanço de uma ira ora contida ora explodida de um vazio amargo que não satisfaz de uma azia de borrasca com cascos deixando passar águas envenenadas de fins insondáveis que nos surpreende no nosso próprio emissor por terem ódio quando devia haver amor pensa que visto a tua pele dez minutos na fase do tornado do vendaval dos resolutos acredita que me sinto placa de cobre onde o estilete do teu desagrado grava as marcas ditadas pelo momento e de seguida banhos ácidos me envolvem fica a garganta asfixiada a mente neutralizada e tudo porque nesse instante entendo o cristal do núcleo do teu descontentamento 1988

40

África na memória

a memória envolve e condena volta em manhãs de coração frio com feixes solares de luz que no imediato me cegam nos tornozelos o roçar das ervas das canas dos ardores nos olhos a confusão dos verdes nas narinas o cheiro das queimadas o interior da terra longe do mar longe de tudo deixa marcas africanas nos dias futuros na tristeza de um não voltar milagroso é o azul do Índico tinta passando para outros mares e nesta fronteira de Tejo Atlântico revejo sinais mato saudades 2001

41

Pedra

A pedra que cai, Sem o saber, Rola como eu, Sem querer. Sonha com o meteoro Donde se desprendeu Lembra o espaço sideral Onde se conheceu. A pedra, Essa, Sabe que se vai desintegrar. Eu, Que te amo, Sei que é esse amor O meu fim O meu destino O respirar O expirar. 1984

42

BEM-ME-QUER

odeio tratar-te mal e mal tratar-te pode ser não ter tempo para te dar neste vaivém de emoções vem sempre mais do que vai e voltamos aos maus tratos não precisamos mais da lua nem das ondas longe da praia para a condenação de um destino que não quis este é um poema de amor verdadeiro antídoto para ter junto à cancela parte iniciática do culto aos vegetais desta horta acolhedora onde desejo que a minha passagem deixe um rasto de alfazema 2002

43

locais

não é dividida a casa onde vivo a visita guiada organiza sem querer vários quartos diversos interiores e também um céu aberto o interior mais importante qual gás acabado de despressurizar ávido de expansão tudo contamina e chama-se imaginação percorrer a casa é trilhar escadas soalhos pisados pelos presentes é sentir que os ausentes a não abandonaram e nem as ideias deles 44

o céu aberto começa no céu desce à outra parte da casa a rua agora mais apetecível o mesmo progresso que a inundou de comboios autocarros carros determinou que as rotas do necessário se deslocassem quinhentos metros e a vila voltou a ser vila há ainda o armário da divisão habitada pelo sentimento de que o que assim é poderia ser diferente mas este sentir sabe que deve a sua existência ao que foi acontecendo assim e é numa das suas muitas prateleiras que quero arrumar-me de vez 2oo8

45

porque

no fundo considero catástrofe cada vez que te perco – sejas tu quem fores o desvario em que entro é a vertigem oposta das horas em máscara de segundos indo a bailes doutros mundos 1989

46

registo

fica aqui escrito

num local sem referências que tudo o que escrevo não tem mais que reticências o difícil é parar a corrente que não vem o fácil é conter o que a vida não tem registo no espaço curto o que não quero dizer pára a mente escreve a mão com a força por reter num repente de ilusão o que a mente mente à mão 1980

47

percentagem

quando estou no escuro vejo melhor as fracções de mim consigo detectar parte importante do passado arrumado em gavetas se uma toma a forma de álbum fotográfico outra a de objectos diversos há ainda o fragmento puro campo magnético entre um ente querido e um livro de infância para sempre encastrado na mente 48

que dizer daquela fatia mais ausente que presente responsável pelos filmes que só correm na cabeça feitos nos estúdios do meu espaço mental com filmagens exteriores em todas as ruas e estradas onde a mente se excede e muito do décor interior se passa em casas e hotéis projectados para a felicidade demolidos pela vida mais um espaço é criado pela vontade plena de viver e esse não deixa ver o conteúdo zonas há que adivinho importantes com rótulos indecifráveis mas sinto o seu peso no chamamento das palavras apagadas estas as partes encontradas ― no meio delas onde estou eu? 2002

49

tu e ela (Tuela)

apronta-te pela manhã e sobre o teu bonito eu coloca outra que não tu. tens o disfarce feito só que não podes estar a jeito porque aprontar pela manhã um outro eu que não o teu deve ser contrariar um génio-deus de grau três que em discurso de sapiência informou não querer ser incomodado outra vez. 1990

50

garantia

garanto-te que quando me vires passar no automóvel vermelho lá dentro, pomposo, não vou eu. juro-te que não. eu seguia a pé a olhar as folhas já caídas. viste mal não reparaste em mim desculpo-te não sou rancoroso. 1987

51

resumo

os clássicos não conheciam o rei mas amavam-no na idade média ninguém era só padeiro mas sim o padeiro da aldeia durante a renascença a mãe educava os filhos sem livro de instruções Napoleão abriu e fechou a época das guerras regionais os novecentistas descobriram que ligar os povos era bom para o bem criaram a máquina a vapor e o telégrafo nunca tanta gente junta foi tão feliz parecia possível a felicidade quando já eram vinte séculos pagou-se a factura o bendito desenvolvimento foi a morte de milhões de seres em guerras e depressões 52

para onde vamos? então onde estamos? na época da mentira da promessa feita e ouvida sem ninguém acreditar no tempo da eleição do líder para o nomear inimigo e o poder contestar substituto de deus e ideais agiganta-se novo mal o contrato guião apenas válido quando assinado entre pais e filhos clausulado no amor possível e nos direitos do homem cada indivíduo não pertence à sociedade só a si próprio pertence e é sem esperança que escrevo estas linhas individualmente 2008

53

motim na cadeia do meu corpo

tantos anos de prisão os nervos a obedecerem ao director cérebro este a comandar tudo as veias sem outra hipótese levando-lhe submissas o precioso sangue os membros garantindo que esse cérebro estivesse presente em reuniões mesmo em locais distantes para o comandante se encher de louros os olhos comprados a troco de umas lágrimas contando tudo o que vêem sem pestanejar e muitos outros com formas de cordões tubos e sacos na prisão de tantos anos dentro do meu corpo veio o dia da revolta provocada pelos dedos que deixaram de agarrar mas isso sem importância o grave é nunca mais uma carícia ser o que era foram os dedos que iniciaram o motim agora receia-se a turbulência a grande revolta está em marcha de mim para mim quem semeia o motim colhe o nada 2008

54

eu para escrever

eu para escrever não devia trabalhar no que dá trabalho eu para escrever devia concentrar todo o meu ser em ver eu para escrever como deve ser terei de esperar até morrer 1997

55

a ti que amo

deixa escrever expresso para ti o que toda a gente vê e eu sempre senti. paixão por ti que mesmo quando a sinto branda queima em fusão interior e então eu chamo-lhe amor, em estertor. 1989

56

ponte do Freixo

novinha em folha mais uma sobre o Douro perguntaram ao Rio se a queria? a ele que sonhava que em cada uma das próximas décadas lhe retirassem uma a uma todas as outras. as pontes normalmente são belas mas o Rio era mais belo e feliz sem elas. 1995

57



só posso fazer coisas que tenham hipótese de me agradar em pleno se forem coisas de que também me possa arrepender de as fazer que felicidade ouço jazz! 1989

58

NA MORTE DE UM POETA REVELADO - antónio reis -

nas rugas de um olhar preocupado recebo vibrações da não existência mas ao mesmo tempo do nascimento do poeta-irmão desconhecido. de filmes retenho imagens ar de outras paragens das letras arrumadas em poema vejo o véu em rodapé esvoaçar ainda esboço para se elevar como só acontece quando a poesia move mentes sentimentos e ao quotidiano ergue monumentos. 1991

59

sem título

prazer porque hoje visto sobretudo agonia pelo dia de ontem graça na surpresa do que virá inércia pelo que veio sorrir não custa o que diziam as rugas ocorreram de vez a viagem pode durar estaremos à chegada? 1997

60

sobre o perfume

venham os ventos do Norte as chuvas benéficas as noites de lua e pensamentos para que as flores em botão se abram de algumas é sina não morarem em grinalda botoeira ou bouquet mas serem colhidas para o supremo sacrifício esmagadas combinadas depuradas entram na grande roda do fabrico das essências pobres flores sem cor perdidas do esplendor em líquido convertidas mas a história direita nas tortas linhas escrita vai a um final feliz torna a ser bela a flor quando espalha seu perfume na pele de uma donzela 2008

61

TEATRO 90

sabes que existe, supões… pensas, ousas e, talvez, as ideias que tiveste uma vez em ti morram num pós-parto, então, surpresa da noite, no teatro tu encontras frente a frente a tua ideia com a fala do actor e noite fora ouves em bom som o que tinhas pensado numa tarde, mas agora noutro tom, vindo da voz doutro dono para te pôr sem sono Rei Lear em fim de Outono, muito feliz! 1990

62

para um dia leres

és a quinta dimensão numa vida de eixos dois mas levas contigo o senão de trazeres à vida o bafo de fresco quente que já tinha abandonado num dia de outros diferente ditaste a esperança desesperada e agora receio como quem está em terra e teme naufragar 1990

63

és fácil – és difícil

pelas letras te conheço nas imagens te completas enches-me a cabeça com o que me adoça a vida passaste a ser o molde do meu novo formato esqueci o que era dantes olho para mim através dos teus olhos sei que me proteges e em mim soltas o doce pássaro da juventude é difícil conter-te nos versos é fácil amar-te 2008

64

só a ti

amor é ter uma mulher que, de chofre, te diz passei as tuas calças a ferro e, olha, fui feliz é ter uma mulher que te roga uma praga mas por ti aspira, respira, e anda magra é ter uma mulher que, por chalaça, diz à amiga: o meu homem é quem me desgraça porém só a ti garanto que é o amor que está por trás do meu pranto, e que por ele sofro, e sofri, ah, mas isto só a ti digo 1990

65

luzes verdes

quem te enviou vinda de uma Atlântida já com o destino vector de teus versos esmeralda me acertarem? não bendigo nem amaldiçoo o destino arco de tensa corda que na volta do século disparou verdes preciosas pedras contra o meu sossegado desespero aceito sim esse acaso momento de pura luz no fulgor das tuas palavras suaves embatendo no realismo feroz das frases que eu sou. 2001

66

ARQUITECTO

não me falem de estruturas esqueçam as palas as torres ou então juntem tudo e façam outra cidade onde me sinta bem um banco de jardim um canteiro que promete paragem de autocarro para à noite sob a chuva miudinha regressar ao meu cartão de sem-abrigo arquitectura é tudo o que acontece entre um corpo e outro 2008

67

Hino

meu amor quando te vou comparar viras matriz sozinha és bela se risonha mais bela quando triste pois em ti o que deveras te ilumina é teres descoberto o amor e tarde a tempo, dirás tu! meu amor esforço-me por transformar o negro asfalto de todos os dias as horas escorridas a custo em tempo de repouso longa caminhada viagem de eternidade 1996

68

ainda

ainda existe a cidade entre nós onde a vida em rodagem continua poderia procurar aqui avós poderia procurar a verdade nua rostos de um igual diferente meu irmão meu igual faces afinal de gente onde parou o tradicional. 1971

69

aparição

tu és a inesperada aparição que tudo altera alivia revela medida da grandeza é a tua entrega tu pelo Amor tocada tudo ultrapassas eu fui agente infiltrado por querer mas sem saber que te despertava que te provocava a entrega e fusão e o teres-me reduzido a estado de Paixão 1991

70

de vez

de vez em quando sinto a necessidade de olhar um mapa, de ver em riscos o mundo posto em carta, de saber que já estive ali e gostava de ir aqui, de lembrar que neste lugar deve estar um amigo, recordar que ao lado assinala um ponto onde houve encontro antigo e, mais que tudo, saber que há sítios onde ir, onde voltar ou puro sonhar. voo, curvo ou navego frente a um café e em sossego. 1991

71

PAVILHÃO DE PORTUGAL

aqui há de tudo uma vala, comum muito negro zé ninguém bandos de mirones capacetes aturadas inspecções pouco muro muito murete uma ponte, que flutua em edifício que é barco e um barco que foi falua na rectaguarda, tanto barulho que silêncio na beira Tejo! pavilhão de Portugal um avião margem sul meu país bem escuro meu horizonte muito azul. 1997

72

crise com força, bate tuas pálpebras, range teu esqueleto na tempestade. emana do teu cérebro o veneno que paralisa revolta-te, vomita, descansa. a escolha é cíclica mas abate-se em ti, apontando o caminho − seguro, e tu sonhas contigo e sonhas com teus sonhos estimulado por um ideal que não existe, que sentes real. amaldiçoo a vida contabilizada amaldiçoo a vida morta amaldiçoo o esquema do dia a dia o objectivo rasga, amputa, dilacera mata. acredito que mais felizes serão chafurdando no sucesso que antevejo tento salvar a semente que antes de tudo está o fraterno beijo. compilada com amarguras de hoje − e já tão antigas, editada por um desejo de soprar publico hoje a sombra do meu estar e sobre o destino erijo um marco-pilar. 1972

73

ALTER-EGO contra AVATAR

foi um momento sublime aquele em que me libertei de Avatar e assisti ao nascimento de William

descobri dentro de mim esquecidas necessidades de viagem quando varria no chão restos de asas cortadas

mais razoável recorri então às minhas mãos torcidas cravadas na vara tentei elevar-me num salto em altura

tarde de mais nada a fazer foi então que tudo se iluminou só pude dizer William, toma o testemunho vai tu por mim. 2008

74

PÉS

Deixamos marcadas na areia pisadas de desencanto e, no entanto, é nessa maravilha do claro-escuro, agora bem escuro, que melhor apreciamos a luz que nos fez faz e fará vibrar, salpicando o vindouro tempo duro de lembranças dos pés na areia marcados. Tomara que essas pegadas não desapareçam nunca para, num qualquer crepúsculo, as poder comparar com as marcas em mim deixadas e que me tornaram tão diferente. 1990

75

Tomai nota

Quero contar-vos a odisseia de uma vontade súbita olhar pela janela esperar ver Berlim e, ai de mim, ser Badajoz. Mas, alegria suprema, lugar comum de nós os dois, seria tê-la, ainda, a sós, em Berlim e Badajoz. 1989

76

VENENO

veneno esperas por mim sob muitas formas és o trabalho que arrasta és a bicicleta que não tive veneno bem podes esperar disfarça-te de água ardente bebo-te e sobrevivo ébrio amaldiçoo-te veneno vejo-te como um touro que avança em força mas escondo-me no burladero de mim mesmo veneno quantas vezes tenho de errar até te convencer que a dose fatal sou eu próprio e sem antídoto veneno sai de teu covil enfrenta-me espera-me de frente faz de mim um herói veneno tentemos tudo de novo apaga rótulos risca-te dos letais e parte comigo à conquista do nada 2008

77

1986

Sou o poeta que jamais escreverá o que hoje pensou não escreveu, não registou. Paciência. Poesia arrasta a vida, e leva os anos. O caminho tem uma ida. Paciência. Não voltamos. Juro solenemente não escrever o que não sinto. Minto descaradamente ao jurar que nunca minto. 1986

78

Antilook dedico estas linhas tortas para direito te dizer que estares fora de moda é o teu maior encanto e que devia haver em cada freguesia uma estátua a quem como tu fosse autêntico genuíno simples até comecei já a recolher fundos para a tua pois sei que como toda a gente procuras a felicidade mas a uma velocidade sem pressa o que já não se usa quero-te garantir que vais ser muito feliz já és feliz e o que te ajuda nessa difícil arte é seres ingénua não te promoveres acreditares no Pai Natal emocionares-te seres fiel aos bons princípios desejo-te do coração o maior bem estar bastante paz na Terra sempre sempre a ver o mar 2000

79

Ter

pelo crivo da peneira passo minha vida inteira esgravato resíduos, resultas tu. talvez sejas destilação fraccionada de um percurso, o éter mais fino, um recurso. se amor é descoberta descobri-o em ti. se entrega é dependência dependo de ti. o que se chama ter, só te tenho a ti. 1996

80

tenta fazer hoje

cada boa acção vale por si ser notada ou vista não importa – é mais uma em algum local desta galáxia será registada como acto único enorme do tempo nada sabemos dos princípios e dos fins temos a magia do conforto na crença num bem maior uma cálida noção ― serve o teu semelhante pratica uma boa acção 2008

81

TÁBUA:

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anjos na praia chita Raiz do Tempo As coisas boas da vida pintura A rapariga do pescoço doce origem sinais do tempo – sinais do corpo urso na jaula visão de amor D. Coxa quando visita ano lectivo Filha de Rayan magia crime escolher o mar mundo perfeito oferta de café Dedicatória Cabelos ao vento o ciúme T. zona fabril Tchaikowsky receber á entrada negro mão de obra alto da serra grande mentira mãos se me lembro? E com a certeza, a dúvida Carcavelos agora responsabilidade do poeta mensagem África na memória Pedra BEM-ME-QUER locais porquê registo percentagem

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tu e ela (Tuela) garantia resumo motim na cadeia do meu corpo eu para escrever a ti que amo ponto do Freixo só NA MORTE DE UM POETA REVELADO sem título sobre o perfume TEATRO 90 para um dia leres és fácil – és difícil só a ti luzes verdes ARQUITECTO Hino ainda aparição de vez PAVILHÃO DE PORTUGAL crise ALTER-EGO contra AVATAR PÉS Tomai nota VENENO 1986 Antilook Ter tenta fazer hoje

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Nota da editora Com PSM-QUATRO, chega ao fim a organização dos versos de carlos peres feio, publicados durante um pouco mais de cinco anos, em http://podiamsermais.weblog.com.pt. O Poeta, como sempre nos habituou, usará a sua zenbenevolência e, perante as nossas eventuais falhas, sorrindo com bonomia, murmurará: é o Destino! Terminando, já prenhes de saudade, deu-nos vontade de reler a tradução de C.H.Quevedo para citar, deformando, o final de “Ítaca” de K. Kavafis PSM não nos enganou. Assim nos tornámos mais sábios, mais experientes, teremos porventura percebido o que os PSMs significam.

Até sempre.

Lisboa, 6 de Janeiro de 2009.

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