UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA INSTITUTO DE HUMANIDADES, ARTES E CIÊNCIAS PROFESSOR MILTON SANTOS PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CULTURA E SOCIEDADE
CÍNTIA GUEDES BRAGA
DESEJOS DESVIANTES E IMAGEM CINEMATOGRÁFICA
Salvador 2015
CÍNTIA GUEDES BRAGA
DESEJOS DESVIANTES E IMAGEM CINEMATOGRÁFICA
Dissertação de mestrado entregue à banca de avaliação como pré-requisito para obtenção do título de mestre pelo Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia. Linha de pesquisa: Cultura e Identidade. Orientador: Leandro Colling
Salvador 2015
[ficha catalográfica]
[folha de aprovação]
AGRADEÇO IMENSA, INTENSAMENTE...
A Leandro pela orientação, pela confiança, pela paciência, pela liberdade, pela amizade;
A Mauricio Matos, Mahomed Bamba, pelas contribuições que desde qualificação generosamente acrescentaram tanto ao trabalho;
Aos professores do programa multidisciplinar em Cultura e Sociedade, em especial à professora Marinyze Prates e ao professor Mauricio Mattos, pelas aulas inspiradoras;
Aos meus familiares: minha mãe Ericka, meu pai Cido, meu irmão Pedro e minhas avós Iracy, Alice, Tiana e Marlene pelo apoio e amor incondicional;
À Bri por se oferecer em (re)encontro como minha petite Madeleine;
Ao CuS pelos trabalhos realizados e pela formação diferenciada que me proporcionou, menciono em especial aqueles da primeira formação: João Araújo, Maycon Lopes, Matheus Santos, Tess Chamusca, Patrícia Conceição, Marcelo Oliveira, Rosa Heimer e Gilmaro Nogueira;
Às famílias de amigos com quem morei nas diversas mudanças desses dois anos: Mariana Terra e Glória Cecília, muita inspiração e muito orgulho invisto em vocês, pelas artes que fizemos juntas e pelas lutas nas quais somos companheiras;
A Alex Oliveira, Michelle Mattiuzzi e Patrícia Bssa, porque enfim entendi como o Caos pode ser criativo e potente;
Pedro Magalhães pela escuta atenta do meu processamento esquizo de dados durante as leituras realizadas no inverno buenairense;
Matheus Santos por me empurrar do precipício repetidas vezes, até eu aprender a voar. Ericka Rolim e Vanessa Lourena, pela generosidade de me “curar” a partir do empreendimento de sessões diárias de psicanálise selvagem durante os últimos meses de escrita, e também por me
deixarem dar o golpe da menina triste; A Fábio Allan, pela paciência em acompanhar e partilhar dos momentos mais angustiantes da escrita, pelas contribuições generosas e pelas referencias partilhadas, elas enriquecem não só o trabalho, mas a vida cotidiana; também pelo seu humor peculiar;
Aos muitos amigos que me inspiram com seus trabalhos e suas existências: Sara Panamby, Filipe Espindola e Raphi Soifer, sem vocês este texto seria cem vezes mais pobre. Iomana Rocha, Gustavo Rocha, Iramaya Rocha, Breno César, Gustavo Sousa, Frederico Feitosa, Nycolas Albuquerque, Lylian Rodrigues, Ravi e Iara: obrigada por me escolherem, amo-os! A tijucaranã: Sandra Carvalho, Juliana Neves e Luis Carlos, porque se operam por descrença, atuam em rizoma, tento lembrar de vocês quando estou prestes a perder as forças;
Aos realizadores de filmes dissidentes e, principalmente, as personagens que se expõe neles. Obrigado por devirem máquina-cinema e fazerem filmes inspiradores, escrevi para vocês.
Manoel de Barros
RESUMO
Esta dissertação se debruça sobre as dinâmicas discursivas (Michel Foucault) que circunscrevem as representações e as imagens de pessoas transsexuais, travestis e transgênero que se tornaram personagens retratados nos documentários brasileiros realizados durante a primeira década do século. A pesquisa analisa três filmes: Meu Amigo Cláudia (Dácio Pinheiro, 2009), Dzi Croquettes (Tatiana Issa e Raphael Alvarez, 2009) e Bombadeira (Luis Carlos de Alencar, 2007), ao qual se dedica especialmente. Iniciando com uma reflexão sobre o conceiro de representação (Stuart Hall, Paul Rabinow) e com uma breve contextualização das obras, conlocando-as em relação tanto ao cinema brasileiro contemporâneo que toca questões de diversidade sexual, bem como em relação aos filmes do chamado new queer cinema, realizado no começo dos anos 90 nos Estados Unidos, a pesquisa segue com uma breve aproximação ao conceito de humanidade, e na relação deste com a problemática da visibilidade e da invisibilidade dos corpos trans*. Por fim, o texto concentra-se no conceito de auto-mise-èn-scène (Jean Louis Comolli) para indicar uma certa potência estética agenciada pela imagem de corpos de desejos desviantes da norma sexual e de gênero no documentário brasileiro. Palavras-chave: representação, imagem, corpo, documentário, diversidade sexual.
ABSTRACT
In order to make a reflexion about the dynamics of discourse (Michel Foucault) that crosses some representations and some images of transsexual, transvestites and transgender people, that became characters in brazilian documentaries made during the first decade of this century, this research analysis three films: Meu Amigo Cláudia (Dácio Pinheiro, 2009), Dzi Croquettes (Tatiana Issa e Raphael Alvarez, 2009) and Bombadeira (Luis Carlos de Alencar, 2007), giving emphasis to the last one. The reflexion goes through the concept of representation (Stuart Hall, Paul Rabinow), and makes a brief approach of two scopes of films, showing how the objects are situated in relation of the brazilian contemporary movies that bring questions about sexuality and of the movies that where made in the beginning of 90's in the U.S, above the label called new queer cinema. In the second chapter, the reader will find a more philosophical approach of the concept of humanity, and how it works in relation to the visibility and the invisibility of the trans*body. In the end, it tries to thing the concept of auto-mise-en-scène (Jean Louis Comolli) to realizes how this images work in a aesthetic sense of politics. Keywords: representation, image, body, documentary cinema, sexual diversity.
LISTA DE FOTOGRAMAS
Fotogramas 1, 2, 3 e 4 - Dzi Croquettes (2009): Wagner Ribeiro; Lennie Dale; Ciro Barcelos; Tatiana Issa ............................................................................................................. 53 Fotogramas 5 e 6 - Dzi Croquettes (2009): Entrevista com Elke Maravilha e com Cláudio Tovar ....................................................................................................................... ................ 56 Fotogramas 7 e 8 - O sexo dos anormais (1984) ................................................................... 59 Fotograma 9 - Meu amigo Cláudia (2009) ............................................................................ 60 Fotogramas 10 e 11 - Bombadeira, a dor da beleza (2007) .................................................. 81 Fotogramas 12, 13, 14 e 15 - Bombadeira, a dor da beleza (2007) .................................. 119 Fotogramas 16 e 17 - Bombadeira, a dor da beleza (2007) ............................................... 120 Fotogramas 18 e 19 - Paris is burning (1990) .................................................................... 124 Fotogramas 20 e 21 - Hedwig and the angry inch (2001) .................................................. 125 Fotogramas 22 e 23 - Bombadeira, a dor da beleza (2007) ............................................... 125 Fotogramas 24 e 25 - Bombadeira, a dor da beleza (2007) ............................................... 126 Fotogramas 26 e 27 - Bombadeira, a dor da beleza (2007) ................................................ 127 Fotogramas 28 e 29 - Bombadeira, a dor da beleza (2007) ................................................ 129 Fotogramas 30 e 31 - Bombadeira, a dor da beleza (2007) ................................................ 132
LISTA DE FOTOGRAFIAS
Fotografia 1 - Intervenção mulher-banana, de Cíntia Guedes .............................................. 97 Fotografia 2 - Intervenção mulher-banana, de Cíntia Guedes ............................................. 98 Fotografia 3 - Ritual de Passagem/ Conclusão de Mestrado/ performance A Sagração de Urubutsin de Sara Panamby .................................................................................................. 100 Fotografias 4, 5 e 6 - Greta Garbo, Marlene Dietrich e Lillian Gish .................................. 123 Fotografias 7 e 8 - Brigitte Bardot e Marilyn Monroe ......................................................... 124 Fotografias 9 e 10 - Minha casa em Buenos Aires .............................................................. 137
SUMÁRIO
O TEMPO AGORA .............................................................................................................. 12 CAPÍTULO 1 – TRANSGREDIR A REPRESENTAÇÃO .............................................. 19 1.1 Entre o cinema, a política e os estudos queer ....................................................... 29 1.2 O abjeto e o subalterno no cinema brasileiro: que história é essa? ...................... 45 1.3 Por que escolhi estes filmes? Rasgando os discursos e escrevendo outras histórias ................................................................................................................................ 51 CAPÍTULO 2 – CECI N’EST PAS UN HOMME ............................................................... 65 2.1 Comentários sobre o humano e o inumano .......................................................... 67 2.2 A política do afeto em Bombadeira ...................................................................... 78 CAPÍTULO 3 – CECI N’EST PAS UNE FEMME ............................................................. 89 3.1 Devir banana-travesti-puta .................................................................................... 94 3.2 Perfomatividade, performance e vida ................................................................. 102 3.3 Imagem, imaginário heteronormativo e encenação ............................................ 112 3.4 Entre corpos-(re)feitos e máquinas-desejantes: o clichê e a potência da imagem da performatividade de gênero ....................................................................................... 117
UMA CARTA PARA ILO ................................................................................................. 136
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 143 Filmografia principal ................................................................................................. 148 Filmografia complementar ........................................................................................ 148
O TEMPO AGORA […] que estranho tempo para ser um artista. Neste tempo e espaço, o que significa ser transgressivo? O que é um comportamento radical quando os Tea Partymaticos1 são percebidos como defensores da liberdade de expressão, quando nossos mais inteligentes jornalistas são comediantes e Angeline Jolie é considerada uma ativista.2 Guillermo Gomez-Peña (2011)
Para introduzir este trabalho farei um movimento de defesa, pois todo resto será ataque. Escrevi em batalha, e a adrenalina da guerra é profundamente responsável pelos resultados alcançados. O campo é o da multidisciplinaridade, e nada poderia ter sido feito desta maneira se estivesse escrevendo a partir de/para, um campo estritamente disciplinar. O campo, também era o do senso comum, que pauta o crescimento da ofensiva neo-petencostal em todos os níveis de representação política, nos meios de comunicação e nas ruas, o recrudescimento dos debates nas redes sociais, onde amparados pelo anonimato e, no mínimo, pela distância física, homofóbicos manifestam-se sem limites ou constrangimentos, conferindo legitimidade a uma prática estatal homofóbica e excludente, onde questões relacionadas aos direitos humanos, não só das minorias relacionadas a sexualidade e gênero, tornam-se claramente moeda de troca dos governantes para promoção de suas governabilidades. Diante deste cenário, levanto aqui minhas barricadas, que dizem respeito ao percurso teórico metodológico deste trabalho, tento deixar mais claro como determinados autores e reflexões foram incorporados nas páginas que se seguem, e ainda que posição estas reflexões esperam tomar neste campo de batalhas. Diante da materialidade das vidas das personagens documentadas pelos filmes que abordo, diante de suas mortes, e da minha consciência da impotência deste trabalho em relação às mesmas, em qual instância este texto tem qualquer importância, afinal, a que ele serve? Certamente há uma disputa, e esta se dá no campo simbólico mas não é uma simples guerra de símbolos, tão pouco uma guerra por representação, nem mesmo pela verdade, é uma guerra pela possibilidade de existir e de se dar a ver, conhecer e, principalmente, sentir. 1
Tea Party é um movimento conservador norte americano que se manifesta em defesa da estrita aderência às leis constitucionais. 2 Tradução livre minha da fala Philosophical Tantrum, proferida por Gomez Peña no simpósio New WORLD Theater, em Nova Iorque, 2011. No original: “what a strange time to be an artist, in this time and place, what does it means to be transgressive? What does radical behavior mean when the Tea Partymatics are perceived as defenders of free speech, when are most intelligent news casters arte comedians and Angeline Jolie is considered an activist?”, disponível em: . Acesso em: 26 nov. 2015.
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No início da escrita desta dissertação, ordenada tal qual é apresentada em sua versão final, eu ainda acreditava na representação transgressiva e a busquei intensamente nas primeiras versões do texto. Logo percebi, com conversas e encontros dos mais diversos, que não deveria concentrar todos os esforços na observação da representação, e aqui ressalto a contribuição do professor Maurício Mattos, na ocasião da banca de qualificação, que atentou inclusive para mudança do título do primeiro capítulo, que de “Representar a transgressão”, passou a ser, “Transgredir a representação”. O movimento foi aceito, e o direcionamento tomado fica cada vez mais evidente ao longo dos dois capítulos que se seguem ao primeiro. Embora tenha estado, na maior parte do tempo, segura do corte epistemológico proposto e justificado no primeiro capítulo, devo dizer que em alguns momentos duvidei dos corpos escolhidos para as análises, especialmente quando assistia outros filmes e via neles a possibilidade de trazer a tona outras questões, sobre distintos pontos de vista e em abordagens que, de longe, me pareciam mais ricas. Ao fim da jornada percebi que era o cinema mesmo que me incomodava, e me incomodava porque eu não conseguia deixar de depositar nele o desejo de me agarrar um pouco mais à ideia de representação, tentava voltar a crer nela, não que houvesse qualquer esperança de encontrar nos filmes um esquema correto para apresentar os personagens que me interessavam, mas devo admitir que gostaria de encontrar uma porção representativa a qual pudesse argumentar mais justa e mais diversa. Foi também durante o processo de escrita que fui adquirindo segurança e percebendo a importância de lançar mão de outros corpos, acionei tantos quanto me foram possíveis durante o texto, no primeiro capítulo, alguns dos filmes que assisti para contextualizar aqueles que elejo para a primeira abordagem tomaram apenas partes pontuais da reflexão, no segundo, a leitura de Vargas Llosa dialogava tanto com as reflexões sobre “humanismo” e “humanidade” que não podia ficar de fora, já no terceiro, não podendo mais disfarçar a descrença e o cansaço, ganhei novo ânimo ao encontrar ou, melhor, ao inventar diversos laços entre as imagens dos filmes e as imagens da arte performance. Ao final do texto, percebo que posso parafrasear Barthes em A câmara clara e dizer que não tive um corpus, apenas, alguns corpos. Descubro também que, para além de três abordagens dos filmes, realizei três investidas sob o conceito de representação. No primeiro capítulo, parti da leitura de Stuart Hall e da genealogia de Michael Foucault e, inspirada neles, da conceituação construcionista de representação desenvolvida por Paul Rabinow, para alcançar, pela primeira vez, a possibilidade de observar que a importância dos filmes está na promoção do encontro entre o outro e o espectador, assumindo uma abordagem inspirada pelo trabalho de Jean-Louis 13
Comolli. No segundo capítulo, depois de uma breve explanação que, com Rancière e sua noção do “regime estético” – aquele que apresenta possibilidades de atravessar o universo das imagens já dadas no regime representativo, não tanto pelo fim da representação e mais pela sua multiplicação infinita-, as leituras convergem para uma abordagem da porção humana que cada imagem carrega, em maior ou menor quantidade, e está reflexão e realizada de forma articulada a noção de “norma visual” em Judith Butler. Já no terceiro capítulo, o pano de fundo do debate é a noção, também apropriada a partir do trabalho de Butler, de “performatividade de gênero”, e como tão conceito se oferece à visibilidade enquanto encenação das personagens, tal encenação, que por sua vez estruturada a partir dos teóricos do campo do cinema, como Comolli e Aumont, aparece no presente trabalho como o lugar de encontro entre o espectador e o outro, àquele mesmo solicitado no primeiro capítulo. Concluo então que a encenação, quando se oferece na imagem fílmica pela mise-en-scène, pode promover fissuras no imaginário heteronormativo. De início, estava consciente apenas que deveria traçar uma pequena genealogia dos filmes para, em seguida, concentrar-me nos seus rastros sombrios e em suas rachaduras, não sabia ao certo onde elas iam dar. Eis me surge a figura do rizoma, e o rizoma é uma antigenealogia. É uma memória curta ou uma antimemória. O rizoma procede por variação, expansão, conquista, captura, picada. Oposto ao grafismo, ao desenho ao à fotografia, oposto aos decalques, o rizoma se refere a um mapa que deve ser produzido, construído, sempre demonstrável, conectável, reversível, multiplicável, com múltiplas entradas e saídas, com suas linhas de fuga. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 33)
Dessa maneira, todo o esforço em mapear empreendido no primeiro capítulo, cuja tarefa árdua sempre soube impossível de oferecer em sua completude, acaba tendo outro uso, o de validar a crítica à própria representação, não a representação apresentada em cada filme, mas a representação enquanto conceito. Neste sentido, o primeiro capítulo, cuja escrita da primeira versão se deu a mais de doze meses atrás, incorporou as reflexões de Ella Shohat e Robert Stam para com eles adquirir velocidade suficiente para fugir, fundir e confundir algumas ideias que escrevem a ontologia dos corpos. Também tento proceder desta maneira em relação à ideia de homem no segundo capítulo, e à ideia de mulher no terceiro. Contudo, foi através do pequeno mapa traçado no capítulo um que entrevi a virada na abordagem, a partir de uma pergunta que já estava lá: como tais filmes são possíveis a partir 14
de seus contextos e como se ligam ao mesmo provocando-lhe rachaduras? O direcionamento da resposta que busquei na sequencia do texto foi um desafio em termos de abordagem, de fato a decisão mais difícil de ser tomada. Tratava-se de investir toda a energia, de uma vez por todas, sob a imperceptível ruptura, ao invés de identificar o lugar do corte significante, o que no máximo me permitiria sugerir outros cortes, quem sabe, novas nomeações: incrementar a sopa de letrinhas. Se pudesse fechar este trabalho como um esquema, tal qual fazem os publicitários na explanação dos “conceitos” que criam para suas marcas e campanhas, se pudesse dividi-lo em tópicos: contexto, objetivo e resultados esperados, diria que no primeiro capítulo tentei contextualizar, singularizar e ao mesmo tempo, encontrar pontos de ligação entre os filmes que abordo mais aprofundadamente. Uma vez encontrados os pontos de ligação, que dizem respeito exatamente aos contextos traçados, e por isso mesmo se demonstram mais facilmente na primeira abordagem dos filmes, se confirma a afirmação de Comolli de que somente nos filmes documentários podemos encontrar os personagens que me interessam: precisamente aqueles que produzem buracos ou borrões nos programas (sociais, escolares, médicos, e mesmo coloniais), que escapam tanto da norma majoritária como da norma-minoritária tal qual esta é cada vez mais bem roteirizada pelos poderes: contudo, eles vivem, não lhes faltando nem sofrimento, nem alegria, experimentando angústias, , dúvidas ou felicidades que não são, ou são muito pouco, as dos modelos circundantes. (COMOLLI, 2008, p. 173)
E se no primeiro capítulo detalhei um pouco alguns dos universos aos quais os filmes se ligam, foi para logo perceber que os tais “buracos e borrões” eram os espaços a serem explorados. Depois de identificado o objetivo principal, restava escolher o melhor percurso, mas ai, a ideia já havia se tornando mais clara. Ciente do desejo de não realizar uma análise aos modos fílmicos, tomei como desafio maior forjar uma metodologia. Mas isso somente consegui, parcialmente, nos últimos momentos da escrita. Antes, no segundo capítulo, me lancei à filosofia de Judith Butler, Michel Foucault e aos ensaios estéticos de Jaques Rancière, dentre outros, para reflexionar sobre a categoria hegemônica de homem, precisamente, sobre a ideia de humanidade. Aqui, o objetivo consistiu em observar como tal ideia, erguida e sustentada sob os pilares da modernidade, se lança hegemônica a partir da imagem, cuja circulação e funcionamento, abordados no conceito de “norma visual” desenvolvido por Butler, funcionam como uma das engrenagens de uma máquina de validar vida, e esta, por sua vez, trabalha na formação e consolidação de certa 15
comunidade sensível, tal como formulada por Rancière. É a certeza de que a existência desta sensibilidade comum não diz respeito a uma substância inerente ao ser humano, que os afetos não são nem a alma nem a essência da humanidade, que me lança de volta as questões de Butler sobre que imagens, afinal, são capazes de nos afetar e como elas operam. O segundo capítulo faz referência ao título do quadro de Rene Magritte, Ceci n’est pas um pipe, e mais ainda ao ensaio homônimo de Foucault sobre o tema do quadro. O capítulo retoma a reflexão sobre a representação e sua falência, ou melhor, sobre a mentira na qual consiste todo ato de nomeação/representação. Se, ao nomear a imagem que torna visível o desenho de um cachimbo como “isto não é o cachimbo” o artista estava realizando, claramente, uma indicação de que tal representação consiste em uma mentira, já era, afinal, o próprio pintor que atentava para o fato de que não se poderia encher de fumo o cachimbo dele; Foucault, por sua vez, se utiliza do exemplo para explorar as condições de funcionamento da própria linguagem. Neste sentido, no segundo capítulo, desejei transpassar a abordagem da representação e entrever em que dimensão ela é capaz de recolocar a nomeação e mesmo a linguagem em cheque. Tal movimento é concluído apenas na terceira abordagem, centrada no filme Bombadeira, (2007), quando tento demonstrar, pela observação da encenação no filme, como são operadas fissuras na comunidade de imagens que partilhamos hegemonicamente enquanto femininas. Para tanto, os conceitos de “performatividade” e “performatividade de gênero”, tal como formulados por Eve Sedgwick e Judith Butler, são forjados enquanto categoria de análise das imagens. Neste momento, leituras do campo do cinema retornam para alicerçar um debate diferente do apresentado no primeiro capítulo. Se em um primeiro momento busco as reflexões relacionadas à inscrição do outro (especialmente do outro que se diferencia pelas categorias identitárias de gênero e sexualidade) no cinema, e neste percurso identifico os pontos cegos das leituras que se restringem à apontar os esteótipos e seus malefícios, na terceira abordagem retomo os conceitos próprios do campo do cinema, especialmente em Jaques Aumont, Jean-Louis Comolli e, novamente, em Jaques Rancière para afirmar o cinema como máquina produtora de imaginário, e porque não, de inconsciente edipiano e de inconsciente máquina. Tal operação é realizada na expectativa de demonstrar como o cinema periférico, precário e dissidente contextualizado no primeiro capitulo, abordado no exemplo do filme Bombadeira (2007), pode gerar linhas de fuga da imagem colonizada pela linguagem dominante, nos 16
devolvendo a pergunta sobre o que, afinal, reconhecemos como mulher. Seria esse o fim do mapa deste trabalho, o desenho do percurso que tracei. Só isso? Bem esse pode ser o resumo, mas há nele uma força pessoal empreendida, uma paixão que foi me empurrando para dentro do texto, e uma certeza da impossibilidade de parar esse movimento, porque mais do que aumentar meu repertório de filmes e textos, mais do que me habilitar para um determinado grau acadêmico, este trabalho transformou e foi transformado pelos meus posicionamentos e pelas minhas maneiras de ver e estar no mundo, tomado daqui por diante como lugar de enfrentamento. O cenário da batalha tem como personagens o Estado e o capital de um lado, as minorias periféricas e dissidentes de outro, e para continuar o exercício de estranhamento das categorias binárias, um enorme espaço entre está povoado por novos e novíssimos atores políticos, que aos poucos vão se dando conta de que não há mais espaço de pensar fora da política, ela é micro, está fragmentada e espalhada por toda parte, especialmente no que julgamos a parte mais pessoal do homem, seus sentimentos, afetos e desejos. No Brasil dos últimos anos, o avanço da ofensiva conservadora, capitaneada pelos cristãos neopentencostais, em especial nos acontecimentos dos últimos meses, é assustadora não somente porque revela que estamos em guerra, acredito inclusive que já não era sem tempo de tomarmos conhecimento dela, mas também porque revela, e também disso já devíamos ter conhecimento, a falácia do jogo da representação política nas democracias ocidentais contemporâneas, que procedem por desterritorialização do voto, se sustentam em qualquer formação e bancam as mais esdrúxulas composições contanto que haja governabilidade. Tal modelo permite não somente a permanência de um pastor evangélico homofóbico em uma Comissão de Direitos Humanos como também coloca ex presidente Fernando Collor e a atual Dilma Russef no mesmo palanque.. É o escracho. Contudo, quando essa mesma presidenta afirma em entrevistas que não apoia o Kit Anti-Homofobia porque “não vai ser permitido a nenhum órgão do governo fazer propaganda de nenhuma opção sexual” (ROUSSEF, 2011), mesmo sem ter assistido aos filmes que veta, e que não responde a pergunta sobre ser lésbica porque é uma falta de respeito, afinal “meu querido, eu sou avó!” (ROUSSEF, 2013), afirmando por exclusão a possibilidade de uma lésbica fazer parte ou constituir uma família, ela demonstra como nesta guerra, algumas batalhas se dão no campo simbólico, e não disputam somente significado, pois há em cada gesto linguístico uma potencia performativa que procede por reiteração ou dissenso, e nestas direções podem operar suas forças no campo do imaginário heteronormativo. 17
Ao fim de tudo, seja onde se dê a batalha, ela converge pela disputa do real, pela possibilidade de existir, de ser uma vida digna de lamento, e é neste cenário que este trabalho deseja ter alguma relevância, se articular como ponto do rizoma e quem sabe servir de ferramenta, informativa, ilustrativa ou sensível, para os duros enfrentamentos que certamente se seguirão nestes tempos de agora.
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CAPÍTULO 1 - TRANSGREDIR A REPRESENTAÇÃO
Abertura, impressão, duração, passagem: o cinema é a paixão da figura humana. O que fazer dessa alteridade que, se filmada, é aquela que se oferece, e não mais aquela que se recusa? Outro que me reconhece, espectador, como “seu” outro. O que fazer da vinda do outro quando ela é chamada pelo movimento do cinema, trazida por ele, registrada por sua operação? Arte figurativa por excelência, e arte de colocar em jogo (em crise) o subjetivo pelo maquínico, o cinema não se dirige a nós em sua dimensão unicamente antropológica. Que a questão que o trabalha seja aquela do destino do corpo do outro tal qual é filmado; que esse corpo filmado entre em um sistema de projeções em que nós próprios somos tomados como corpos e destinos, e que, no mesmo lance, entre no hipersistema de atribuições e destinações sociais: eis o que coloca o cinema em um lugar político. Jean-Louis Comolli (2008)
O primeiro capítulo deste trabalho apresenta uma série de reflexões sobre os filmes escolhidos como base da pesquisa realizada, tendo como objetivo principal elucidar o leitor sobre como os recortei e como me posiciono em relação aos mesmos. Acredito que não poderia fazer um trabalho que não dissesse respeito ao meu encontro com estes filmes, apresento aqui as perguntas que me levaram até eles, ressaltando as particularidades das interpelações que os mesmos trazem em seus enunciados, e que os confere um lugar que julgo relevante para o meu interesse em repensar as questões de gênero e sexualidade a partir de uma operação de deslocamento dos discursos normatizantes. Empreendo, portanto, uma primeira abordagem, que diz respeito aos lugares que os filmes ocupam, ou seja, o desenho de seus contextos. Esse objetivo desdobra-se em pelo menos três percursos: um que situa os filmes escolhidos em um espaço de produção do cinema brasileiro, especialmente em relação à representação do outro neste cinema; um segundo no tocante ao conjunto de filmes que abordam a temática da diversidade sexual, no cinema nacional e internacional, e uma terceira que explora a relevância dessas produções para as reflexões sobre gênero e sexualidade focadas na crítica às representações binárias de gênero e sexualidade. A tripla contextualização das obras é uma tentativa de dar conta de dois aspectos referentes a economia dos discursos e das imagens que os filmes manejam, e que os tornam relevantes enquanto dispositivos capazes de operar um deslocamento do que chamarei, daqui por diante, de representação hegemônica das minorias sexuais no cinema brasileiro, denominação de um conjunto de filmes melhor explorado no o tópico. 19
Dessa maneira, verifico como as obras escolhidas solicitam, ao longo do percurso da pesquisa, uma série de novos aportes teóricos, os quais, na medida do possível, serão incorporados ao referencial dos estudos queer. Esses, por sua vez, serão abordados de maneira mais aprofundada no terceiro capítulo, ocasião em que tratarei das potências e deslocamentos presentes nas unidades dos filmes. A pergunta central aqui é, portanto, por que escolho os documentários Meu Amigo Cláudia (2009) de Dácio Pinheiro, Dzi Croquettes (2009) de Raphael Alvarez e Tatiana Issa, e, de maneira especial, Bombadeira (2007), de Luis Carlos de Alencar? Em um primeiro momento, a pesquisa estava centrada na vontade de realizar um panorama dos personagens não-heterossexuais no cinema brasileiro contemporâneo. A classificação enquanto não-heterossexuais deve ser encarada não como uma possível homogeneização dos personagens, mas ao contrário, como um esforço para não reduzi-los em citações identitárias que serão sempre incompletas e provisórias. A partir do panorama, seriam encontradas representações que embaralhassem as noções de normalidade e naturalidade em relação à sexualidade, que não poderiam ser facilmente diagnosticadas como positivas ou negativas e nas quais o binarismo fosse notadamente uma classificação redutora. De antemão, posso dizer que os filmes escolhidos atendem às expectativas de rompimento com o discurso binário, no qual consiste o entendimento hegemônico da construção de gênero e sexualidade. Contudo, o percurso pelo qual cheguei até os mesmos foi completamente diferente do imaginado. Para começar, nem de longe realizei a catalogação proposta inicialmente. Por conta de uma impossibilidade de tempo previsto para duração da pesquisa, e também pelo encontro com outras possibilidades de corte. Inicialmente, pretendo expor porque as obras podem ser compreendidas enquanto lugares de rupturas, lacunas de um discurso hegemônico sobre a diversidade sexual, e também pergunto: que discurso é esse, e como estes espaços são possíveis? Quais são as condições de aparecimento das obras e o que as torna singulares no contexto de produção documental brasileira contemporânea? Que evidências apresentam para solicitação de uma abordagem queer, no sentido amplo de sua conotação, ou seja, como estranhamento, que norteia a aproximação final ao filme Bombadeira (2007)? Desde já, cabe o esclarecimento que as abordagens empreendidas neste trabalho estão muito mais próximas à crítica, neste primeiro momento uma crítica própria da genealogia, e que no desenvolvimento do texto caminha em direção aos campos da filosofia e da estética,
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em detrimento à execução de uma análise fílmica que coubesse estritamente no campo do cinema e privilegiasse a observação semiológica. Por genealogia, entendo a análise das “instâncias de controle do discurso” e sua formação efetiva, “quer no interior dos limites do controle, quer no exterior, quer, a maior parte das vezes, de um lado e de outro da delimitação” (FOUCAULT, 2010a, p. 6). Faz-se necessário, portanto, esclarecer a partir de que referenciais manejarei alguns conceitos centrais, como discurso, identidade e representação. Para começar, Foucault e seu entendimento de “discurso”, que compreende uma aposta em [...] não mais tratar os discursos como conjunto de signos (elementos significantes que remetem a conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos que falam. Certamente os discursos são feitos de signos: mas o que fazem é mais que designar coisas. É esse mais que os torna irredutíveis a língua e ao ato da fala. É esse “mais” que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever (FOUCAULT, 2010b, p. 55).
A ampliação do conceito de discurso em Foucault destaca que seu objetivo não é realizar uma análise apenas dos signos linguísticos, mas entender como, a partir da linguagem, certas representações são possíveis, bem como realizar uma abordagem do discurso para além da linguagem, exatamente no que a ultrapassa. Como alguns discursos são autorizados, encorajados, repetidos, em detrimento de outros. O cinema é, portanto, a materialidade por onde os discursos observados se anunciam, o lugar que lhes dá forma, forma que, obviamente, é também um campo de disputa de poder. Para o autor, o discurso não é propriedade ou criação de quem o enuncia, e para definir seu regime não podemos observar o sujeito que o enuncia enquanto entidade psicológica ou transcendente. Foucault atenta que a produção de discurso em nossa sociedade, embora seja veloz e abundante, direciona-se na busca de verdades hegemônicas, sendo observada enquanto processos evolutivos, como se hoje fossemos enfim capazes de falar sobre sexo e sobre sexualidade de maneira mais “correta” do que antigamente, mas quem pode dizer o que? Para ele, as operações de controle dos discursos, ou seja, as operações disciplinares dos mesmos, demonstram uma: […] profunda logofobia, uma espécie de temor surdo desses acontecimentos, dessa massa de coisas ditas, do surgir de todos esses enunciados, de tudo que possa haver ai de violento, de descontínuo, de combativo, de desordem, também, e de perigoso, desse grande zumbido incessante e desordenado do discurso. E se quisermos, não digo apagar esse temor, mas analisá-lo em suas condições, seu jogo e seus efeitos, é preciso [...]: questionar nossa vontade de verdade; restituir ao discurso seu caráter de acontecimento; suspender, enfim, a soberania do significante (FOUCAULT, 2010a, p. 51).
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Quando Foucault atenta para a importância do rompimento com o significante, ele está realizando uma crítica à psicanálise e à linguística, à produção de estruturas universalizastes de compreensão do sujeito e do mundo empreendidas por essas ciências. Para realizar tal deslocamento da noção de discurso, esta primeira análise toma os filmes como acontecimentos, e não como criações autorais. Definindo a noção de acontecimento em Foucault, Cardoso (1995) o caracteriza como “a irrupção de uma singularidade única e aguda, no lugar e no momento da sua produção” (p. 58). Além de tomar o discurso enquanto singularidade participante em um sistema de poder-saber, uma análise genealógica deve também observar sua serialidade, e não tomá-lo enquanto unidade. Deve explorar sua regularidade e demonstrar que o que se apresenta nele enquanto original somente é possível a partir de sua inscrição em determinados regimes de regularidades. Deve ainda perceber que a inscrição em um regime discursivo condiciona não somente seu aparecimento, mas também suas possibilidades de significação. Para abordar os discursos sobre a sexualidade no cinema brasileiro contemporâneo segundo a concepção descrita, devo, portanto, deslocar também o lugar de produção dessa abordagem, ou seja, atentar que não basta problematizar o lugar de produção dos discursos analisados e suas implicações, mas também o lugar de produção desta pesquisa e suas vinculações. Dessa maneira, vale sublinhar que estou interessada em observar os filmes a partir da produção da diferença que eles engendram, trabalho facilitado por não estar presa às regulações de uma única disciplina e que estimula o exercício de atenção às solicitações peculiares de cada obra. Nessa direção, a abordagem proposta afasta-se da ideia de análise disciplinar, e, neste primeiro momento, objetiva explorar as condições de aparecimento desses discursos, dentro do recorte sexualidade e cinema contemporâneo brasileiro, observando especialmente como as obras se contrapõem a uma ideia hegemônica de representação da sexualidade neste contexto. Também por esse motivo, os filmes não serão tratados como “objetos”, dada a passividade positivista do termo, que não condiz com a presença das obras na construção das reflexões, atravessando qualquer pretenso sujeito durante toda a execução da pesquisa. Partindo do conceito de discurso, Foucault desenvolve o conceito de formação discursiva. Uma formação discursiva seria um conjunto de discursos coerentes entre si. Esses discursos não refletem a realidade, já que não são naturais e sim socialmente construídos, mas a representam sob um determinado olhar, que tem certa posição na disputa de poder. As formações discursivas servem para amparar regimes de verdade. O regime de verdade é uma 22
forma de compreensão da realidade que se justifica por uma série de discursos que a tornam coerente. É importante entender que, por ser uma construção histórica e social, o regime de verdade nunca é a verdade em si, e que o trabalho desenvolve-se muito mais no sentido de problematizar das verdades hegemônicas e na recusa de uma única verdade do que na busca de uma delas. Isso implica em dizer que o regime de verdade não mostra todas as características do fato sobre o qual se constrói, mas opera justamente no apagamento das características que não lhe são úteis e no destaque das que mais contribuem com sua coerência. Desenvolvendo essa noção, Foucault diz: [...] uma formação discursiva se define (pelo menos quanto a seus objetos) se se puder estabelecer um conjunto semelhante; se se puder mostrar como qualquer objeto do discurso em questão ai encontra seu lugar e sua lei de aparecimento; se se puder mostrar que ele pode dar origem, simultânea ou sucessivamente, a objetos que se excluem, sem que ele próprio tenha que se modificar. (FOUCAULT, 2010b, p. 50)
Além disso, há discursos que operam no sentido contra-hegemônico, que é inerente ao hegemônico, tencionando-o sempre. Esse processo de constante negociação pode levar a modificações no interior do discurso hegemônico com intuito de manter a hegemonia. A incorporação de aspectos que originalmente não faziam parte da formação discursiva que o sustentavam é apenas uma forma de adaptar-se e manter-se hegemônico ao longo do tempo. Dessa maneira, o conceito de representação somente pode ser tomando enquanto histórico, socialmente construído e não natural. Uma representação implica em uma opção de interpretação de realidade, em detrimento de outras, escolha feita em um cenário de disputa de poder. Representação é um conceito que atravessa esse trabalho, e o percurso sob o qual ele é construído na pesquisa demonstra o curso que a própria pesquisa tem tomado. Um deslocamento inicial que é realizado em relação a ideia de representação tem como base as reflexões de Stuart Hall (1997).
O autor demonstra que o trabalho da
representação pode ser entendido como a) reflexivo, quando a representação é deslocada da ideia de realidade e é entendida enquanto espelho, b) intencional, enquanto obra autoral que tem por finalidade ressaltar determinados aspectos e, possivelmente, comunicar uma mensagem na sua representação, e c) construcionista ou construtivista, que admite que a representação é construída pela e na linguagem. A abordagem construcionista tem, por sua
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vez, duas abordagens, sendo uma baseada na semiótica saussuriana e outra na noção de discurso em Foucault. Dentro dessa última perspectiva, o autor afirma também que a representação se dá no processo de conexão entre os conceitos de linguagem e cultura, e que o nosso acervo cultural comum, nosso “mapa cultural partilhado”, é que faz com que as representações sociais sejam coletivas (HALL, 2006). Paul Rabinow (1999) realiza uma abordagem etimológica do conceito, e em ordem cronológica, organiza os entendimentos de representação descritos acima. O conceito teria tido origem na Grécia antiga, quando perpetuava-se a ideia de representação como imagens mentais de uma dada realidade material. Não havia distinções entre estas duas esferas. É o pensamento cartesiano que introduz a separação entre a representação do real e o real em si, sendo o primeiro um atributo do mundo das ideias, da arte e da política, e o segundo da ordem da materialidade. Uma representação mental correta da realidade seria o caminho para o conhecimento. A partir de Descartes pode-se identificar ideia de representação correta versus representação errada, e esse ideal baliza o crescimento da ciência cartesiana durante a modernidade. O pensamento pós-estruturalista, por sua vez, recusa-se ao método cartesiano de produção de conhecimento, questiona qualquer normatização de valores bem como o conceito de representação enquanto reprodução de verdades naturais. Essa corrente de pensamento afirma que as verdades tidas como essenciais no pensamento cartesiano são construídas culturalmente e que, por isso, obedecem a um “regime de verdade” hegemônico que nos faz percebê-las como dados naturais, como essências (FOUCAULT, 1988). A base das questões postas pelo pós-estruturalismo está centrada na maneira de conceber a linguagem: “É precisamente por conceber a linguagem – e, por extensão, todos os sistemas de significação – como uma estrutura instável e indeterminada que o pósestruturalismo questiona a noção clássica de representação (SILVA, 2008, p. 90)”. A partir daí, a linguagem pode ser entendida como fato social, não sendo mais um simples instrumento que limita as possibilidades de representação da dita realidade, mas também como uma instituição em permanente processo de mutações, que tanto determina as possibilidades de representação do mundo material como também o determina, sendo passível de re-significações de seus termos mais orgânicos. A concepção deste trabalho está marcada pela ideia de representação enquanto fato social, como advoga Paul Rabinow (1999). Isso significa o abandono da ideia de 24
representação enquanto mimese, reflexo da realidade ou janela para a mesma, ou enquanto intencionalidade, produzida por um agente enunciador, artista, professor, escritor, dentre outros, capazes de construir representações de acordo com as variantes que deseja visibilizar. O conceito de Rabinow parecia muito bom para pensar o cinema narrativo, entender como o personagem posto na tela tanto interpelava o espectador através de uma identificação, como também instaurava uma nova possibilidade de existência para o espectador, ora lhe aproximando de algo absolutamente novo, ora lhe confirmando algo que ele já sabia. A representação é produção de realidades, e a ficção não está posicionada do lado oposto do “real”, anulando-o ou dirimindo seu poder de convencimento. Esta filiação é um tanto óbvia uma vez que está assinalada a proposta de crítica ao binarismo e à normalidade, modelos de pensamento intrinsicamente vinculados à ciência racional que julga possível eleger representações corretas, sempre aquelas que seriam mais próximas ao dito real. Mas que real é esse? Pensar a representação dentro do documentário parece desestabilizar ainda mais essa dicotomia, afinal, o que seria mais ou menos real quando se trata da representação de si mesmo? Ao pensar as representações enquanto construções sociais, algumas análises direcionam suas críticas às observações dos estereótipos, às forças que regem suas aparições e seus desaparecimentos. Neste sentido, concordo com as reflexões de Shohat e Stam sobre a parcialidade de uma análise da representação que se propõe corretiva: Se essas análises sobre os “estereótipos e as distorções” propõem questionamentos legítimos sobre a plausibilidade social e acuidade mimética, sobre imagens positivas ou negativas, elas geralmente têm como premissa uma aliança exclusiva com uma estética da verossimilhança. Uma obseção como “realismo” emoldura a discussão, que parece se resumir a uma simples questão de identificar “erros” e “distorções”, como se a verdade de uma comunidade fosse simples, transparente e facilmente acessível, e “mentiras” fossem facilmente desmascaradas. (SHOHAT; STAM, 2006, p. 61)
Desta maneira, tanto as análises que indicam as representações como positivas ou negativas e também as que propõem a desconstrução do estereótipo, através da positivação do mesmo (e que não são necessariamente duas análises distintas), perdem de vista o estereotipador, os seja, as possibilidades que cada representação tem de ser abordada como correta ou incorreta. Os chamados pelo apagamento do estereótipo, clamado por múltiplas vozes e executado fielmente por boa parte dos filmes de ficção, o que pretendo demonstrar no pequeno mapeamento dos filmes realizado no terceiro tópico deste capítulo, não resulta 25
somente na invisibilidade daqueles que não são considerados personagens dignos de representar a minoria sexual, pois as análises fílmicas que seguem este direcionamento retiram, em última instância, a possibilidade de observar o fator estereotipador, ou seja, a dinâmica que faz certos sujeitos ocuparem a categoria “estereótipos” por conta da maneira como performam seus gêneros, ou sua raça, como no exemplo usado pelos autores em relação a representação de negros: “Quando os estereótipos antinegros (sua bestialidade repulsiva, por exemplo) são registrados como positivos (a liberdade da libido), isso nos diz mais sobre a imaginação erótica branca do que sobre o objeto de sua fascinação (SHOHAT; STAM, 2006, p. 48). Mais uma vez, não se trata somente de perguntar quem merece ser visto, pois nesta pergunta a busca pelo referente real da representação toma a centralidade da reflexão, mas sim perguntar como cada representação é possível, o que nos dá pistas sobre as forças que ela agencia, sobre o desejo que ela investe. Ou seja, o que as imagens das/os trans, da bicha molinha e da lésbica masculinizada carregam para causar tanto incomodo? Sim, é certo que elas aparecem nos filmes, mas como observá-las tendo em vista suas potências afetivas? Inspirados no pensamento de Jean-Louis Comolli (2008), Caxieta e Guimarães trazem essas problematizações em reflexões sobre a prática documental, e propõem, para começar, que o conceito de representação seja separado do conceito de imagem: A noção de imagem utilizada por nós, ocidentais, poderia muito bem se desgarrar da idéia de representação, assim como a idéia de conhecimento poderia igualmente ser aquela dos xamãs amazônicos ou dos guerreiros do velho México. Para eles, o desconhecido não pode ser conhecível e o impensável não é pensável: podemos apenas presenciá-los, experimentá-los, estar de “corpo presente” perante as suas manifestações. Para aqueles xamãs, existir é diferir – em tudo o oposto da busca pela semelhança. E durar é mudar – em tudo diferente de permanecer. Então, entenda-se, deveríamos filmar não para “capturar” – que palavra perfeita para expressar o ato fílmico e fotográfico tal como concebido pela ontologia ocidental! – o corpo e o pensamento do outro (filmado), mas sim para transformá-lo e nos transformar. Existir é diferir e durar é mudar. Nesses termos, o conhecimento (e o documentário) adquire uma nova dimensão. (CAXIETA; GUIMARÃES apud COMOLLI, 2008, p. 41)
Dessa forma, fica clara a tentativa de evitar uma analogia simplista entre “discurso”, operado pela dinâmica das representações, e “imagem” compostas e trabalhadas nas operações dos dispositivos fílmicos 3. Logo, este trabalho trata também de reconhecer as 3
O conceito de “dispositivo fílmico” é aqui entendido, com base no trabalho de Cristian Metz (XAVIER, 1983, p. 411-435), enquanto o conjunto de aparatos técnicos que compõem o filme como som, montagem, fotografia, iluminação, etc. A estas unidades características do filme em si, o autor atualiza a idéia de dispositivo enquanto
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particularidades dos agenciamentos operados pelas imagens do cinema documentário, que coloca o espectador em uma posição muito particular, uma vez que não há fácil distinção entre referente e coisa filmada (representação), nem em termos discursivos, uma vez que o outro fala, nem em termos de imagem, que no cinema se equivalem de modo inédito em relação as artes ditas representativas que surgiram anteriormente, como a pintura ou a fotografia. A análise das representações enquanto discursos, que inicio neste primeiro capítulo, é parte do trabalho de crítica genealógica. Já as imagens, como potenciais instauradoras do “novo”, serão analisadas no segundo e no terceiro capítulo da dissertação. Voltando às reflexões sobre representação no documentário realizadas por Comolli, uma observação torna-se impossível de ignorar para pensar os filmes enquanto potenciais deslocamentos da norma: O que há de representação no poder é da ordem da relação. O que há de poder na representação também é dessa ordem [...]. A lição do cinema não está – ainda não está – obsoleta. Ela consiste em tornar sensível e manifesto que há relação e que a relação é por natureza transformável e transformadora. (COMOLLI, 2008, p. 106)
Se há inscrição realista no cinema documentário, esta se dá menos pela equiparação das imagens que se apresentam em relação ao referente no mundo real, e mais pelo registro da duração do encontro entre corpo(s) filmado(s) e máquina cinematográfica, “entre a ação e seu registro” (COMOLLI, 2008, p. 119). Não haveria, portanto, nenhuma outra maneira de crer no filme. Já sabemos que não há real que não se encene, nem representação que não se materialize. A potência concentra -se no encontro do corpo com a máquina cinematográfica, e é apostando nele que quem sabe eu possa, pelo menos um pouco, desejar menos o referente das imagens observada s e tomá-las enquanto dispositivos capazes de fazer passar o outro em mim. E é sob a orientação de Comolli que posso afirmar: o interesse no cinema documentário exposto aqui é o interesse em observar o que lhe ultrapassa de real na representação e na presença da imagem do outro. Afinal, o outro sexuado, marcado pela diferença sexual, é representado por diversas narrativas: institucionais, legais, militantes, estatais. Já nos disse Rosi Braidotti (2002) que as margens das subjetividades estão cheias, as margens do cinema também. Fascinante é somente o encontro do outro, ele mesmo, com a engrenagem que envolve o filme, produção, difusão, circulação e recepção, dando ao conceito a dimensão de construto social determinado também por um contexto histórico-social.
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máquina, e nosso (espectador), com a prova desse encontro, que no terceiro capítulo surgirá com mais força dado o empenho da observação nas mise-en-scènes compostas pelas personagens. Nem simplesmente representação, nem somente realidade, mas exatamente o que se produz de agenciamento ético-estético do embaralhamento desses conceitos.
Foi esse o
caminho aberto por Foucault, Comolli e outros que encontrei para operar um primeiro desligamento do significante: realizando uma análise focada no poder de agenciamento das imagens trazidas pelos filmes, libertando a representação de uma vocação de mimese do real e de signo imagético. Entretanto, somente pude fazê-lo porque os próprios filmes, especialmente através de suas temáticas e personagens, já o fazem. Na mesma perspectiva, a ideia de identidade, que atravessa o texto, não pode ser entendida na perspectiva de identidade enquanto a essência de um sujeito autônomo, ou designada pelas características perceptíveis dos corpos humanos, que lhes agrupariam em conjuntos unitários. É também com a autora feminista Rosi Braidotti, que ancora seu pensamento no contexto da produção pós-colonial, que penso as identidades em uma perspectiva genealógica: Identidade não é compreendida como algo fixo, essência dada por Deus – do tipo biológico, psíquico ou histórico. Pelo contrário, identidade é um processo: é construída nos mesmos gestos que a colocam como ponto de ancoradouro de certas práticas sociais e discursivas. Consequentemente, a questão não é mais essencialista: o que é a identidade nacional ou étnica? Mas ao invés, crítica e genealógica: como a identidade é construída? Por quem? Sob que condições? Para que fins? (BRAIDOTTI, 2002, p. 4)
Considerando as representações como potenciais agenciamentos de novas formas de identidade, novas formas de existência, e também que a recusa às identidades hegemônicas de gênero é uma operação de recusa às verdades hegemônicas que compõem o regime de verdade moderno da sociedade ocidental. Ao perguntar quem precisa de identidade, Hall (2006) realiza um apanhado das perspectivas ocidentais sobre o conceito de identidade, demonstrando seu caráter ficcional pela incompletude inerente ao processo de identificação que forma tal ou qual identidade. Neste sentido, o trabalho observa o agenciamento de novas categorias identitárias, que desestabilizam a ideia de gênero enquanto fixação binária e põem em cena o trânsito. É a partir e através das imagens e representações trazidas pelos filmes, centradas especialmente nas figuras de seus personagens enquanto sujeitos que apresentam processos de subjetivação
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diferenciados, que a potência pode ser operada, menos por identificação e mais por choque, por afeto.
1.1 Entre o cinema, a política e os estudos queer Mesmo considerando a impossibilidade de realizar um panorama exaustivo da produção cinematográfica contemporânea brasileira dos filmes que tratam de temáticas de gênero e sexualidade, ou que apresentem personagens não-heterossexuais, realizo aqui a contextualização provisória de um dos lugares de fala dessas obras. Ainda que parcialmente, exponho o conjunto de filmes que se vinculam à temática dos filmes escolhidos, seus fluxos narrativos, os desenhos desenvolvidos por eles e suas vinculações estético-políticas mais evidentes. Evidencio ainda que, embora não seja possível citar de maneira mais evidente os curtas vistos, eles foram, sem dúvidas, parâmetro para reflexão sobre os filmes textualmente citados4. Afinal, o corte “cinema nacional longa metragem” implica nas possibilidades de circulação e, consequentemente, de número de público espectador, uma vez que esse formato acessa as salas de exibições em cinemas e a televisão de maneira diferente em relação aos curta metragens (documentários e ficções), que estão na maior parte do tempo limitados à circulação em festivais temáticos ou não. Não menos relevante é a diferenciação entre ficção e documentário, uma vez que o apelo mercadológico desse primeiro gênero é muito maior do que o do documentário, muito embora a tradição de documentaristas no Brasil seja muito relevante e a produção numerosa, o que acontece inclusive dado os custos de produção que, no caso do documentário, são geralmente muito menores. Obviamente, não acredito que esse é o único motivo para o número e a tradição documentarista no Brasil. Neste momento, desejo desenhar algumas amarras observadas entre o cinema e os estudos queer, explicar como observo o desenrolar dessa ligação tendo como base filmes e textos próprios do campo do cinema. A chamada teoria queer, ou estudos queer, surge no final da década de 80 e início dos anos 90, nos Estados Unidos, refletindo sobre a discriminação das minorias sexuais, especialmente após o advento da AIDS, em meio a um clima de tensão,
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Evidencio aqui, dentre outros, o acervo da Porta Curtas (cf. endereço: . Acesso em: 27 nov. 2015), onde os filtros de busca permitem encontrar curtas com referência nos festivais, na temática, etc.
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terror e descaso por parte do governo de Ronald Reagan, que insistia em invisibilizar a questão, que para ele parecia muito bem localizada na chamada comunidade gay. Ações radicais de grupos militantes, em destaque a ACT UP e o Queer Nation, levaram os doentes terminais paras ruas de Nova Iorque e, aliando a estratégia de choque à proposta de positivação da injúria, lançaram-se em uma jornada frutífera que teve como resultado também as produções acadêmicas. Assim foi iniciado o percurso do que chamo aqui de estudos queer5. Além das frentes acadêmicas e militantes, o cinema passa a produzir, no mesmo período, uma série de filmes a qual se convencionou chamar de New Queer Cinema. Como atentam Benshoff e Griffin (2004), uns dos registros da primeira aparição do termo teria sido em 1992, por Ruby Rich. A etiqueta passa a designar uma série de filmes norte-americanos independentes, ou seja, realizados fora do sistema de produção e distribuição das produtoras de Hollywood, que trazem questões relacionadas ao binarismo de gênero, a fixidez das categorias de identidade sexual, retratam o preconceito, a AIDS, as comunidades LGBTTTQI, dentre outras questões. Os filmes produzidos logo ganham visibilidade no único espaço que de fato poderiam ocupar. Para definir o que aconteceu com os festivais no início dos anos 90, Rich descreve: “Havia, de repente, uma série de filmes que estavam fazendo algo novo, renegociando subjetividades, anexando papéis de gênero, revisitando histórias em suas imagens” (RICH apud BENSHOFF; GRIFFIN, 2004, p. 53, tradução nossa) 6. Em um primeiro momento, esse conjunto está interessado não somente em ampliar as possibilidades de representação das minorias sexuais, mas também em problematizar e agregar questões relacionadas às categorias de gênero, raça e classe ao debate, tal quais os estudos queer faziam dentro da academia e os militantes nas ruas. As particularidades das questões cinematográficas também apareceram, e são marcadas pela ironia em relação aos grandes gêneros do cinema hollywoodiano. Em The Watermelon Woman (1996), um falso documentário dirigido por Cheryl Dunye sobre uma atriz negra e lésbica que aparecia em papéis de governanta em filmes de época hollywoodianos, a paródia é debochada bem como em Zero Patience (de John Greyson,
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Prefiro chamar “estudos queer” a “teoria queer”, para distanciar tal produção daquilo que pode ser evidenciado enquanto canônico no campo das ciências, dado que tais reflexões são recentes. Por outro lado, a pluralidade dos estudos denotam que não se pode falar em um conjunto monolítico de textos, mas de uma produção diversa em relação a abordagem e a aplicação. 6 No original: “There, suddenly, was a flock of films that were doing something new, renegotiating subjectivities, annexing whole genres, revising histories in their image”.
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1993), que brinca tanto com o gênero musical quanto com a temática Ghost dos filmes da mega produtora. Lançar mão da paródia do formato é prática recorrente nos primeiros filmes do chamado New Queer Cinema. Parodiar sim, porque não se trata de copiar as inscrições do gênero com intenção de fazer com que o espectador seja interpelado pelos marcos narrativos dos grandes gêneros e atinja assim algum tipo de catarse por esta via, mas ao contrário, fazêlo reconhecer os marcos a partir de suas incompletudes, dando outro uso às marcas de gênero, com a finalidade de provocar o riso e reflexão. Outros exemplos de filmes de gênero do início do New Queer Cinema, que trabalham menos na paródia mas também subvertem as marcas de gênero cinematográfico a partir da assunção dos personagens queer, ou das temáticas subversivas, são os road movies The living end (de Christopher Munch’s, 1991), que traz um casal gay como protagonista, portadores do vírus da AIDS, e os musicais Velvet Goldmine (de Todd Haynes, 1998), e Hedwig and the angry inch (dirigido por John Cameron Mitchell, 2001). Nesses últimos, é marcante ainda a utilização da estética camp e da ambivalência de gênero e sexualidade de personagens andróginos, travestis e transexuais. Ambos são exemplos do que Benshoff e Griffin chamam de camp deliberado, em oposição ao naive camp, sendo este último termo utilizado para designar os filmes que não têm intenção de provocar o riso, mas o atingem pela precariedade das operações propostas seriamente pelas obras. O breve texto de Susan Sontag, Notas sobre o camp, apresenta o termo como uma sensibilidade, não uma sensibilidade que pode ser entendida como natural, mas exatamente o oposto, caracterizando-se no gosto pelo artifício e pelo exagero (SONTAG, 1997). Pensando o camp no contexto do cinema, Babuscio (2004) defende que as definições da autora esvaziam ou minimizam uma origem política do camp enquanto estética que está fundamentalmente ligada a uma estética gay, lésbica e queer, e que se constrói ao longo das aparições dos personagens queer no cinema e em outras representações artísticas. A crítica do autor concentra-se na não evidencia desta conexão, entre queer e camp, no texto de Sontag. Uma vez evidenciada é possível pensar em no camp como ferramenta, e assim o faz Meyer (2004), quando expande o conceito de camp para pensar as estratégias políticas queer de grupos como ACT Up e Queer Nation.
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Meyer afirma que sabe do risco de definições estáveis para conceitos complexos, como o de camp por exemplo, mas insiste em apontá-lo enquanto estratégia de paródia queer, e em seguida afirma que quando paródia é entendida como um processo, não como uma forma, então a relação entre os textos torna-se simplesmente um indicador das relações de poder entre os agentes sociais que manejam esses textos, um que possui o “original”, o outro que possui a paródia alternativa. [...] A produção de valor é a prerrogativa da ordem dominante, dominante, precisamente porque ela controla a significação, a qual está representada pelo privilégio de nomear os seus próprios códigos como o “original”. (MEYER, 2004, p. 143, tradução nossa)7
Sublinho aqui, o caráter desestabilizador da utilização fílmica da paródia, seja através das referencias aos gêneros, seja através do camp, ressaltados pelas aproximações próprias do cinema queer. No tocante aos documentários, o New Queer Cinema apresenta uma série de títulos que, em geral, promovem dois tipos de abordagens. Alguns, como After Stonewall (de John Scagliotti, 1999) e Pharagraph 175 (Rob Epstein e Jeffrey Friedman, 2000) empenham-se em resgatar fatos históricos referente as lutas das minorias sexuais, no caso do primeiro, ou de opressões particulares quase nunca tratadas, como faz o segundo, que conta a história da perseguição do regime nazista aos homens gays e as práticas específicas de tortura que eram praticadas com estes homens, fatos minimizados na maioria dos relatos sobre o regime nazista. Outros documentários se propõem à aproximação entre o espectador e o modo de vida de um grupo de pessoas marginalizadas pelas suas performances de gênero ou sexualidade. Dois exemplos desse tipo de abordagem estão em Venus Boyz (Gabriel Baur, 2001) que trata da vida de drag kings, mulheres que se apresentam artisticamente como homens, geralmente hiper-masculinizados, e o largamente conhecido Paris is Burning (Jennie Livingston, 1990), que conta história de toda uma comunidade formada em torno das competições de perfomances8 em bailes nova-iorquinos da década de 80, em uma abordagem que consegue
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No original: “When parody is seen as a process, not as a form, then the relationship between texts becomes simply an indicator of the Power relationships between social agents who wield those texts, one who possesses the ‘original,’ the other who possesses the parody alternative. […] value production is the prerogative of the dominant order, dominant precisely because it controls signification and which it is represented by the privilege of nominating its own codes as the ‘original’.” 8 Chamo de “performances” os eventos expostos em Paris is Burning por não encontrar melhor tradução, e acreditar que não há tradução para um evento específico da cultura nova-iorquina dos anos 1980 retratada pelo filme.
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dar conta das interseções entre as características identitárias referentes à gênero, sexualidade, classe e raça. Vale ainda chamar atenção para o documentário Mutantes - Punk, Porn, Feminist (Virginie Despentes, 2009), no qual constam entrevistas com produtoras e artistas que propõem a liberdade do corpo, do desejo e da existência do feminino, em uma reflexão que tenciona as questões feministas a partir da experiências de mulheres que rejeitam a posição de vítimas no exercício da prostituição, na industria pornô, da prática acadêmica e na existência diária. O filme consegue incluir em sua narrativa imagens produzidas pelas próprias artistas entrevistadas. O filme não está, entretanto, nas listagens mais conhecidas de filmes New Queer9. Seja acionando a narrativa clássica e a paródia para as ficções, ou apostando na possibilidade de documentar o outro invisibilizado dos documentários, as produções do New Queer Cinema tem como principal característica deslocar o personagem não heterossexual da posição de vítima, apresentando uma potência combativa e criativa destas existências. Nas abordagens queer do campo do cinema, por sua vez, encontrei trabalhos que não se restringem a apreciação de filmes apenas do corpus do New Queer Cinema. São especialmente relevantes para o presente trabalho, o trabalho de Jack Halberstam, quando ainda assinava Judith, Masculinidades femininas (2008), e de Deviant eyes, deviant bodies (1996), de Chris Strayeer. Tais textos são inspiradores no sentido de mostrar como os estudos queer e suas reflexões podem servir de ferramenta para uma crítica à “normatização” e às representações positivas, que assumem algumas representações como enquanto estereótipos danosos; critica que, como já assinalado, está incorporada neste trabalho. É preciso apontar que, antes dos estudos queer, os estudos feministas já levantavam de maneira veemente as questões de gênero e sexualidade em relação a representação da mulher no cinema. Segundo boa parte desses estudos, as mulheres estavam na tela como objeto de fetiche para o olhar masculino, machista e heterossexual. Em seu famoso ensaio Prazer visual e cinema narrativo (1983b), Laura Mulvey argumenta que: “Num mundo governado por um desequilíbrio sexual, o prazer no olhar foi dividido entre ativo/masculino e passivo/feminino. O olhar masculino projeta sua fantasia na figura feminina, estilizada de acordo com essa fantasia” (p. 144). Mais à frente, continua:
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Para o presente trabalho, utilizei especialmente dois sites, os quais julguei mais confiáveis e abrangentes dentre as páginas pesquisadas para colher informações iniciais sobre os filmes que apresento neste tópico de trabalho. Eles têm acesso pelos endereços: e . Acessos em: 27 nov. 2015.
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Uma divisão do trabalho heterossexual entre ativo/passivo também controla da mesma forma a estrutura narrativa. De acordo com os princípios da ideologia dominante e das estruturas psíquicas que a sustentam, a figura masculina não pode suportar o peso da objetificação sexual. O homem hesita em olhar para seu semelhante exibicionista. É dessa forma que a divisão entre espetáculo e narrativa sustenta o papel do homem como ativo no sentido de fazer avançar a história, deflagrando os acontecimentos. O homem controla a fantasia do cinema e também surge como o representante do poder num sentido maior: como dono do olhar do espectador. (MULVEY, 1983b, p. 445)
Orientada pela psicanálise, o trabalho de Laura Mulvey é um expoente da análise centrada em uma concepção de sujeito freudiana, baseada em um sujeito que necessariamente passou por um processo de subjetivação edipiano, e que é, portanto, centrado nos binarismos heterossexualidade versus homossexualidade e feminilidade versus masculinidade. O trabalho de Mulvey atenta para a construção do espectador no cinema e, para ela, o cinema narrativo hollywoodiano coloca a mulher na mesma posição da ordem simbólica então explicada pela psicanálise: ela é a castrada, e evoca para sua imagem “toda ansiedade que ela [a castração] originalmente significa” (MULVEY, 1983b, p. 447). Há dois principais deslocamentos em relação a observação de Mulvey, que tomo enquanto exemplo de aproximação feminista ao cinema dada a expressividade de seu trabalho, e uma abordagem queer. O primeiro, apontado por Tereza de Lauretis (1994), é referente a presunção de heterossexualidade do espectador, o que implica na não observação das possibilidades de subversão do olhar através de uma leitura lésbica, gay, trans, dentre outras, dos mesmos filmes. Outro deslocamento, que não se desliga do primeiro, diz respeito ao referencial psicanalítico utilizado pela autora e a concepção de sujeito advinda do mesmo: quais são as possibilidades e impossibilidades de aplicação da noção de sujeito quando desviantes de gênero, sexualidade e de desejo entram em cena, seja no filme ou enquanto espectadores? E que concepção de representação uma análise formal de fundo psicanalista assume? 10 Rogério Luz atenta que o fazer cinematográfico desenvolve-se no mesmo século que a psicanálise, e sob influências mútuas. Quanto à produção de análises, o autor atenta que Nos estudos de teoria inspirados na psicanálise, prevalece a concepção de que o filme narrativo se organiza basicamente em torno de uma fantasia 10
Ismail Xavier descreve, em A experiência do cinema (1983, p. 355-357), a força com a qual a psicanálise passa a interpelar o cinema. Ele aponta que, após o retorno a Freud pelos seminários de Lacan, e do casamento da disciplina com a semiolinguística, torna-se frequente o aparecimento deste referencial nas principais revistas de cinema da França no final da década de 60. Ele aponta ainda que este se torna o cenário que constituiu as Universidades, no tocante ao campo do cinema, no mundo inteiro.
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nuclear. Essa fantasia é atribuída a uma estrutura psíquica permanente do ser humano (a cena primeira, o voyeurismo, por exemplo) a dado estado da sociedade (o sonho americano) ou, com a emergência do cinema de autor, ao próprio diretor do filme [...]. Tal fantasia desencadeia maior ou menor identificação do público, projetado em situações e personagens. (LUZ, 2002, p. 72)
Dessa maneira, retomo os conceitos de Mulvey para afirmar que, seja pelo “prazer de olhar”, que consiste na identificação com o personagem representado, ou pela “escopofilia”, que seria a não identificação com a representação que separa o espectador do objeto e deflagra um prazer sádico-voyeurista, é basicamente sob o estatuto da identificação psicanalítica que a autora trabalha suas análises e, por isso, a subversão do olhar não é considerada. Para a psicanálise freudiana, a identificação é parte constituinte na formação subjetiva, que passa necessariamente pelo complexo de Édipo. A identificação é descrita por Freud como a primeira ligação por afeto do indivíduo com outros, no caso, com o pai e a mãe. Acredito que tal abordagem não é possível nem para o New Queer Cinema, nem para os filmes que estou começando a analisar. Primeiro porque tomo parte na recusa de submeter tais personagens a uma concepção de formação subjetiva centrada no complexo de Édipo, na qual lhe sobra o espaço do invertido cedido pela psicanálise freudiana 11. Se assim fosse, somente aquele que sofreu alguma perturbação no seu processo de subjetivação seria capaz de se identificar com os personagens analisados. Aqui, o argumento desenha-se quase que sozinho: embora reconheçamos a validade do trabalho de Mulvey, a abordagem psicanalítica não é pertinente neste caso porque, para começar, não se trata rigorosamente de homens ou de mulheres, mas exatamente da perturbação dessas categorias, como veremos na sequencia deste trabalho, nem as bombadeiras, nem as bombadas, nem Cláudia e muito menos os Dzi são personagens cuja identificação pode ser pautada em um esquema binário. A argumentação que empreendo agora implica no entendimento da representação e do próprio cinema, pois como mostram Benshoff e Griffin, é sob a solicitação de identificação enquanto semelhança que os críticos articulam sua oposição à representação articulada pelo cinema queer: A prática do New Queer Cinema não se dá sem opositores. Os filmes frequentemente provocam raiva em críticos conservadores que acreditam que tais assuntos deveriam permanecer silenciados. Outros espectadores têm 11
Freud afirma em sua busca pela causa da homossexualidade que ela está relacionada à uma inversão no processo de identificação durante o complexo de Édipo: “Pode então ocorrer que o complexo de Édipo sofra uma inversão, que o pai, numa postura feminina, seja tomado como objeto, do qual os instintos diretamente sexuais esperam satisfação, e assim a identificação com o pai se torna precursora da ligação objetal com o pai. O mesmo vale, com as substituições pertinentes, para filha pequena.” (FREUD, 2010b, p. 62)
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acusado o movimento de rearticular estereótipos negativos como o queer assassino psicótico [...]. New Queer Cinema tem sido acusado de elitismo, uma vez que frequentemente está engajado com questões [dos estudos] queer e do pós-modernismo. Como tal, New Queer Cinema pode ser rigoroso e difícil, tanto temática como formalmente, e muitos expectadores queer, bem como héteros, preferem o “sentir bem” do estilo hollywoodiano com finais felizes (BENSHOFF; GRIFFIN, 2004, p. 12, tradução nossa).12
A análise da representação cinematográfica centrada na identificação mina a potência da arte “que não fala de fantasias, frustrações, impossibilidades. Ela [a representação] é da ordem da realidade e trata de nomear, modificar e inventar a realidade, isto é, metamorfoseála” (LUZ, 2002, p. 74). Impossível identificar-se (ou pelo menos identificar-se sem crise), com os personagens e as práticas dos personagens de Pink Flamingos (John Waters, 1972), ou mesmo com o prazer de Lydia Lunch nos curtas e médias metragens de Richard Kern, como Fingered (1986) e The rigth side of my brian (1984). Estes dois exemplos (Kern e Waters), anteriores ao que estou chamando de New Queer Cinema, mostram que o desejo desviante já está representado no cinema desde antes desse conjunto de filmes, em produções contemporâneas às críticas feministas, mas que não poderiam ser facilmente abarcadas por elas, pois trazem um deslocamento da ideia de identificação, colocando no lugar da tal janela para realidade 13 um vocativo que opera pela provocação e pelo afeto. Considero que é sob o aspecto de contestação da negatividade absoluta do estereótipo e da busca inveterada pela positivação das margens que está a maior possibilidade de aproximação entre o cinema que trata de sexualidade no Brasil e os filmes produzidos no contexto do New Queer Cinema. Contudo, não é fácil identificar uma analogia entre o cinema brasileiro que trata de sexualidade e o New Queer Cinema. As distinções são bastante objetivas, portanto, vou começar pontuando as principais delas, para depois explorar as aproximações possíveis.
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No original: “The practice of New Queer Cinema is not without it’s detractors. The films often anger conservative filmgoers who fell such subjects should remains unspoken. Other viewers have accused the movement of recirculating negative stereotypes such as the queer psycho-killer […]. New queer cinema has been charged with elitism, since it is frequently engaged with issues of queer and post-modern theory. As such, New Queer Cinema can be rigorous and difficult both thematically and formally, and many queer spectators, like straight spectators, prefer ‘feel good’ Hollywood-style movies with happy-end.” 13 A noção de janela para realidade é retirada de Transparência e opacidade: o discurso cinematográfico, de Ismail Xavier (2008). Para ele, os vários realismos do cinema, próximos a percepção do cinema enquanto “janela de identificação” discutem, durante décadas, a concepção de cinema enquanto janela aberta sob a realidade. As reflexões sobre a montagem clássica, adotada como medida para assegurar a “impressão de realidade” neste cinema, possuem como pano de fundo uma questão ainda maior, o cinema enquanto discurso.
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Para começar, o contexto da produção das obras. Lembro que desde 1995 o cinema brasileiro é fruto da isenção fiscal, e que essa é a maior unidade que podemos conferir ao conjunto de obras realizado desde então. Alguns conjuntos temáticos desenharam-se neste período: ditadura militar e filmes ditos de época nos primeiros anos. A partir de 1999, observa-se a diversificação de temas e, enquanto no primeiro momento o desejo de resgate histórico é frequente, a virada do século traz uma quantidade maior de filmes urbanos, focados em questões da contemporaneidade. Na produção nacional de longas, não encontramos um momento, ou um conjunto de filmes empenhados em problematizar as questões de gênero e sexualidade e, de forma associada, parodiar os gêneros narrativos, como no início do New Queer Cinema. Em sentido quase contrário, observa-se o crescimento da aparição destes personagens na produção voltada para mercado, filmes “happy-end”, próximos ao modelo hollywoodiano. Vale à pena ressaltar que os personagens cinematográficos apresentam performances não-heterossexuais desde muito tempo. No Brasil, uma compilação bastante completa pode ser encontrada em A personagem homossexual no cinema brasileiro (2001), de Antônio Moreno, bem como no documentário Cinema em 7 cores (2008), de Felipe Tostes e Rafaela Dias. Tanto o trabalho de pesquisa de Moreno quanto o curta de Tostes e Dias permitem explicar como é orquestrada uma solicitação coletiva, proferida por falas autorizadas, que clama para o homossexual a mesma identificação do feminismo recém problematizada. Em entrevista, Moreno afirma que sente “falta de identidade ao ver o excesso e o estereótipo na representação da personagem homossexual, sempre trafegando num ambiente sórdido, muito diferente do que eu via no dia-a-dia que eu vivia” (MORENO, 2002). Jean Wyllys, único deputado federal que, sendo assumidamente homossexual, incorpora o lugar de representante das minorias sexuais brasileiras, realiza a pergunta retórica no filme de Tostes e Dias: “Quem é que disse que nós somos desviantes e anormais?” (WYLLYS apud CINEMA EM 7CORES, 2008). O curta é um compilado de falas de diretores homossexuais, políticos (resumidamente Jean Wyllys), e o próprio Antônio Moreno é um dos entrevistados. Entre as falas são entrepostos planos com imagens dos filmes dos que trazem personagens não-heterossexuais. Quase a totalidade das falas é organizada em uma narrativa que solicita uma representação que se distancie dos estereótipos, aliás, a nenhum sujeito tido como estereotipado é conferido o lugar de fala, nenhuma bicha molinha, nenhuma sapatão (apenas duas mulheres), nenhum/a transgênero, travesti ou transexual aparece no filme. 37
Atendendo a essa solicitação, uma quantidade cada vez maior de audiovisuais nacionais constrói a tal representação positiva. Nas telenovelas, formato audiovisual de maior relevância no mercado brasileiro, o diagnóstico apontado pela pesquisa do grupo Cultura e Sexualidade (CuS), orientado pelos estudos queer, aponta para uma representação que encaminha cada vez mais a apresentação de um/a homossexual branco, de classe média, que pouco sofre preconceito, que é capaz de consumir e que não executa ações de afeto diante das câmeras. O embraquecimento do personagem não-heterossexual, bem como sua inscrição em um regime capitalista de mercado, é também uma tarefa encampada pelo cinema de ficção brasileiro, especialmente para aqueles filmes que possuem possibilidades de circulação em salas de cinema, que visam atingir um público mais numeroso e que tem possibilidades de ser exibido nas televisões abertas. É assim em Como esquecer (Malu De Martino, 2010), que conta a história de Júlia, interpretada pela atriz global Ana Paula Arósio, uma professora universitária em estado de profunda tristeza após o fim de seu relacionamento lésbico. O filme foca sua trama no estado de luto da personagem principal, que durante a maior parte da narrativa resiste às tentativas de seus amigos para levantar seu ânimo. Sem muitas surpresas, as cenas de sexo não são muitas, não mostram demais, mas também não são evitadas. Do começo ao fim (Aluizio Abranches, 2009) foi largamente anunciado pela mídia como o filme que traria para o cinema um tabu fundamental da sociedade ocidental: o incesto. O filme conta a história de dois meio-irmãos que, muito próximos desde pequenos, acabam se envolvendo amorosamente durante a vida adulta. O fato é tratado com naturalidade pelos pais, interpretados por Júlia Lemmertz e Fábio Assunção. O grande clímax da narrativa é quando o irmão mais novo, Tomaz (interpretado por Rafael Cardoso), nadador profissional, é convidado para treinar fora do país, e a relação entre ele e Francisco (por João Gabriel Vasconcellos) estremece, até que o mais velho resolve ir encontrar o companheiro e o filme se resolve. Mesmo antes da estreia, Do começo ao fim prometia tocar de maneira inédita em temas como sexualidade infantil, incesto e homossexualidade, contudo, o filme chama atenção pela estética publicitária de suas imagens, que se concretizam em uma fotografia quase sem sombras, uma narrativa de felicidade absoluta e a ausência de conflitos entre os personagens. Amores possíveis (de Sandra Werneck, 2001) apresenta um protagonista bissexual que não foge à regra descrita até aqui, branco e de classe média. O filme conta a história das 38
relações amorosas de Carlos (Murilo Benício), dentre elas, uma relação homossexual e dois casamentos “héteros”. A homofobia aparece enquanto ciúmes, e não existe para além da relação familiar. O filme propõe um leve embaralhamento da narrativa, nada muito confuso, pois a história tem claramente começo, meio e fim e está centrada no relacionamento de Carlos e Julia, em seus encontros e desencontros. As melhores coisas do mundo (Laís Bodanzky, 2010) traz o tema geral do bullyng, e a homofobia é o bullyng praticado com os personagens principais do filme, dois adolescentes cujo o pai, um professor universitário, branco e de meia idade, deixa o casamento para ficar com seu orientando, por quem se apaixona e com quem logo passa a dividir um apartamento. Este tema toma conta da primeira parte do filme, que caminha para superação de todos os preconceitos, inclusive dos filhos em relação ao pai. A violência física sofrida por um deles é a representação máxima da homofobia na escola. O filme tem claramente o caráter educativo, seu público alvo são, certamente, jovens em idade escolar, e também por isso ele cumpre todas as determinações do politicamente correto. A propósito, o casal homossexual sequer se toca durante toda a trama. Considero que estes quatro primeiros exemplos de representação são o resultado de uma perfeita assimilação dos valores heterossexuais, em atendimento as demandas de um segmento de representantes oficiais de toda uma diversidade de sujeitos, os quais estou incluindo em um conjunto forjado para fins didáticos enquanto minorias sexuais. No que concerne a performance de gênero dos personagens, vale ressaltar que os mesmos atuam no que Moreno (2002) chama de performance de gênero “contida” sem estereótipos ou afetação. Em Elvis e Madona (Marcelo Lafitte, 2011), filme que cita em seu título os nomes dos personagens de Simone Spoladore e Igor Cotrim, eles representam a história de amor entre uma lésbica masculinizada e uma travesti. O filme avança muito em relação aos descritos anteriormente, desenvolve questões relacionadas ao preconceito e uma narrativa que embaralha os papéis do masculino e do feminino entre os personagens principais. Durante o relacionamento, Elvis engravida, exige que Madona se afaste das produções pornôs e adquire alguns atributos comumente relacionados à feminilidade. Enciumada e fragilizada pela gravidez, ela é protegida por Madona, que também não resiste a desempenhar os papéis esperados para paternidade. Mas tudo é muito negociado, suas identidades iniciais não são simplesmente abandonadas, mas negociam com as “obrigações” do amor filial. Neste momento, já é possível perceber que, ao contrário das telenovelas analisadas pelo CuS, o cinema de ficção contemporâneo, com possibilidades de circulação fora dos 39
festivais, explora sim as possibilidades de imagens homoeróticas, mas não muito. Acordar juntos na cama (Amores Possíveis, 2001) ou falar sobre a relação (As melhores coisas do mundo, 2010) continua sendo o suficiente para este tipo de casal. Posso apontar também que a respeitabilidade desses personagens está fortemente vinculada a monogamia. Em todos os casos descritos acima, as vidas dos personagens nãoheterossexuais se resolvem a partir da monogamia, vinculando sexo e amor, e distanciando-se da característica de promiscuidade do homossexual vitimado pela AIDS do início da década de 90. Não por acaso, a grande pauta dos representantes políticos das minorias sexuais brasileiros nos últimos anos foi, e continua sendo, a legalidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Contudo, alguns filmes promovem tensionamentos interessantes em relação a este modelo de representação, a exemplo dos longas de José Eduardo Belmonte, A concepção (2005) e Se nada mais der certo (2009). Em ambos ou autor trata de inserir a instabilidade das categorias identitárias, seja como temática central do filme, no caso do primeiro, ou através de um personagem, no caso do segundo, no qual o personagem Marcin, interpretada/o por Caroline Abras, tem sua potência concentrada na não assunção de uma identidade fixa de gênero e sexualidade. Através do material extra-fílmico é possível acessar a série de identidades de gênero e sexualidade as quais Marcin é submetido/a por críticos e comentadores. Lendo entrevistas 14 dos atores e diretores sobre o filme, é possível descobrir que a proposta do personagem é representar um homem transexual não operado, um homem aprisionado em um corpo biológico de mulher. Mas isso não é relevante, muito pelo contrário, considero que a potência do personagem está justamente na indefinição do papel de gênero que ele/a ocupa, sua aparência andrógena, e sua escolha por um não final feliz, quando ele/a decide abandonar o protagonista da trama e seu filho, seguindo um caminho oposto, ela/e está se recusando a compactuar com qualquer leitura de que a/o personagem aderiu à família monogâmica heterossexual. A androgenia também caracteriza o personagem principal criado pelo diretor Matheus Nachtergaele e interpretado por Daniel de Oliveira em A festa da menina morta (2008). O menino santo apresenta uma performance de gênero afeminada, e mesmo sem grandes anúncios, desenvolve uma relação incestuosa com o pai (Jackson Antunes). Chama a atenção a associação entre santidade e homossexualidade neste filme, justificada a partir de um 14
Cf. comentário do filme no site do festival Mix Brasil, disponível em: . Acesso em: 27 nov. 2015.
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contexto de profunda intersecção entre regional (o filme se passa em um pequeno povoado ribeirinho na Amazônia) e religiosidade. Cazuza, o tempo não pára (2004), de Sandra Werneck, desenrola-se em torno da vida do cantor que morre de AIDS no final da trama. O apelo do filme ancora-se na existência do cantor que viveu intensamente na década de 80, e foi um ícone da música brasileira neste período. Um filme feito, de alguma maneira, para os fãs do cantor, e que embora não traga questões relacionadas à homofobia, apresenta o drama do contágio pelo HIV de maneira bastante atenuada, especialmente se comparada a postura do próprio Cazuza que, em vida, problematizava a relação entre homofobia, HIV e ditadura militar de maneira muito mais veemente e explosiva 15. Destaco ainda as aparições de personagens travestis em papéis coadjuvantes. Em Carandiru (Hector Babenco, 2003), Rodrigo Santoro representa Lady Di e em Ó paí, ó (Monique Gardenberg, 2007), Lyu Arisson é Yolanda. No primeiro caso, Lady Di é uma travesti que se prostitui na cadeia, mas que acaba se apaixonando por Sem Chance (Gero Camile), com quem se casa; a temática do AIDS atravessa todo o filme, que tem mais algumas personagens travestis com menor participação. Já Yolanda, que divide a cena com a lésbica Neuzão, apresenta-se uma caricata travesti baiana, se é que caricata, o faz como todos os outros personagens do filme. Em ambos os filmes, os/as personagens das travestis desempenham uma função cômico-dramática, em atuações marcantes, seus personagens estão ligados com a criminalidade e, assim como Cazuza, rompem com o gestual contido, requerido por Moreno como condição de respeitabilidade, e cada vez mais recorrente no audiovisual brasileiro. A partir deste breve panorama, é possível perceber que as características dos personagens transitam entre uma assimilação absoluta das solicitações de Moreno e outros, no tocante as performances de gênero “contidas” (MORENO, 2002), e personagens que negociam suas performances com a) inscrição realística de um personagem que existiu na vida real e do qual há inúmeros registros, e que portanto não pode fugir a “afetação” (Cazuza) b) a posição coadjuvante e cômica na trama (Carandiru e Ó paí, ó) ; c) narrativa clássica, porém improvável, e que utiliza da troca dos papéis de gênero enquanto marca
da
improbabilidade da narrativa (Elvis e Madona); e d) com personagens de performance de gênero não definida entre os binarismos, sublinhando as performances de gênero não 15
Em entrevista à Marília Gabriela, exibida pelo programa Fantástico em 1988, Cazuza critica as campanhas de prevenção a AIDS que vinculam a doença e morte, e afirma que “a AIDS caiu como uma luva, o modelinho perfeito da direita e da igreja, eles nunca tiveram tão elegantes, e deselegantes ao mesmo tempo [...]”. Cf.: . Acesso em: 27 nov. 2015.
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conformadas com o normativo heterossexual (Se nada mais der certo e A festa da menina morta). Considero, portanto, que se tomados enquanto conjunto, os filmes têm, como maior objetivo, fazer os personagens representantes das minorias sexuais entrarem nos registros culturais da heterossexualidade, adquirindo a possibilidade de se inscrever enquanto cidadãos através das mesmas demandas, das mesmas regras da cultura hegemônica heterossexual. A bicha afetada e a lésbica masculinizada não protagonizam filmes, e se inscrevem em aparições condicionadas e justificadas, como descrevo acima. Acredito que Madame Satã (2002) provoca um rompimento relevante neste sentido, circundando o cenário do cinema de ficção recente, cuja ética do politicamente correto e da estética televisiva é preponderante. Tal operação começa com a escolha do tema, a apresentação da história do Rio de Janeiro e do bairro da Lapa a partir da representação de um marginal, não-heterossexual, negro como protagonista desta história. O primeiro longa de Karin Ainöuz inspira-se na história de João Francisco dos Santos, transformista, capoeirista e boêmio que viveu no bairro da Lapa da década de 30. João ficou conhecido como Madame Satã, e o longa de Karin não nos poupa nem da violência nem do prazer de sua história. O filme interpela o espectador através de dispositivos fílmicos que o aproximam do personagem principal, e o faz especialmente a partir de uma câmera que, de tão próxima do corpo negro de Lázaro Ramos, produz uma fotografia escura e desfocada. Não a toa, de todos os longas comentados até aqui, Madame Satã é o único que despertou angústia no espectador a ponto de relatos sobre espectadores que saíram das salas nas cenas de sexo entre João e Renatinho (seu companheiro no filme, interpretado por Fellipe Marques) terem sido recorrentes nas exibições no Rio e em Cannes. Além dos documentários escolhidos para análise mais aprofundada nos capítulos subsequentes, os já citados Meu amigo Cláudia (2009), Dzi Croquettes (2009) e Bombadeira (2007), destaco ainda quatro outros títulos brasileiros recentes que abordam de maneira central a temática de interesse: Cuba Libre (2008), de Evaldo Mocarzel, que conta a história da diva cubana Phedra de Córdoba, Olhe pra mim de novo (Cláudia Priscilla e Kiko Goifman, 2011), documentário que flerta com o gênero road movie, sobre um transexual cearense, O céu sobre os ombros (Sérgio Borges, 2011), que conta a história de três personagens, dentre eles, a travesti, professora universitária, prostituta e militante Everlyn Barbin, e Questão de Gênero (2010) de Rodrigo Najar, que acompanha a vida de 7 transexuais brasileiros durante 1 ano. 42
Uma característica tanto dos documentários do New Queer Cinema, quanto dos documentários brasileiros, diz respeito a citação explícita dos estudos queer na composição das obras. A despeito do documentário em curta metragem A cultura queer do Solange, tô aberta, de Claudio Manuel, que traz a referência no título, outros filmes optam pela inclusão de estudiosos queer como personagens nos filmes. Contudo, a inserção desses “intelectuais” chama atenção pela posição oferecida às/aos acadêmicos nas obras, operando por deslocamento da posição recorrente de validador das informações oferecidas pelos filmes desta natureza em direção ao espaço ocupado por qualquer outro personagem. Considero que este papel está assim desenhado especialmente pela posição da/o estudioso queer, que cada vez se interessa menos pela verdade e cada vez mais põe o corpo em jogo na prática de suas pesquisas, até bem pouco tempo entendida como exclusivamente teórica. É nesta condição, enquanto intelectual-personagem, que aparecem Everlyn Barbin, Beatriz Preciado e Jack Halberstan em O Céu Sobre os Ombros (2011), Mutantes (2009) e Venus Boyz (2001), respectivamente. O pequeno mapa apresentado pretende indicar o largo distanciamento de uma produção vinculada às reflexões queer no cinema brasileiro de ficção, enquanto no cinema documental, tendo em vista suas impossibilidades de alcance e talvez justamente por conta delas, a temática de forma mais rica e questionadora da realidade homofóbica. O conjunto abordado até aqui não é capaz de indicar uma origem ou um caminho que a representação destes personagens estejam traçando, nenhuma linha evolutiva pode ser encontrada, embora esteja claro o projeto de representação correta que alguns filmes empreendem. Neste primeiro momento, desejei demonstrar as condições de aparecimento dos enunciados, dos discursos, dos eventos discursivos que operam os filmes. Ao que parece, dentro do mercado de produção audiovisual nacional há uma linha muito visível entre discursos autorizados, com possibilidades de circular na televisão aberta e nos filmes que chegam às salas comerciais, e os produtos que somente encontramos disponíveis em festivais, em exibições únicas, e na internet. Lembro que é somente abordagem genealógica, em oposição a causal ou a semiológica, que permite a articulação os domínios discursivos dos não discursivos, que autoriza esta conclusão. Fica evidente a posição estratégica que os filmes brasileiros de ficção têm ocupado na construção das identidades para as minorias sexuais. Identidades que, embora negociem, estão longe de ser construídas para e pelos que apresentam suas performances de gênero em 43
descontinuidade com o sexo biológico, que assumem uma posição de contestação do gay branco, de classe média e gestual contido. A finalidade é claramente inseri-lo em um sistema de significações dominantes, no qual, por meio da assimilação, os personagens assumem alguma possibilidade de lugar de fala. Ou seja, o personagem não heterossexual somente ocupa um lugar de fala relevante nestes filmes quando é para repetir as normativas do discurso dominante. Desta maneira, somente advogo o status de rasgo para os filmes escolhidos sublinhando não somente suas posições de marginalidade no discurso, mas também no mercado cinematográfico brasileiro, uma vez que foram realizados para circulação em festivais e, à exceção de Dzi Croquettes (2009), malmente saíram deste circuito. Suas falas somente são autorizadas quando seu efeito, presumivelmente, será mínimo. Essas são as suas condições de aparecimento, e são o que de alguma maneira os torna queer, mesmo sendo um queer completamente distinto das condições iniciais do New Queer Cinema. Mesmo não podendo considerar com facilidade a produção brasileira, tampouco a produção específica desta análise, enquanto parte do New Queer Cinema, essa impossibilidade se dá muito mais por uma preocupação em não realizar a assimilação simplista para produções onde os dispositivos de poder/saber operam de forma tão distinta, do que por uma distinção absoluta entre as produções. Isso porque o potencial que observo no cinema nacional, como mostrarei mais a frente, atende ao que considero a principal demanda do New Queer Cinema, tal como aponta Rich, Certamente, os filmes e vídeos new queer não são todos iguais e não compartilham um único vocabulário estético, estratégia ou preocupação. No entanto, eles não deixam de ser unidos por um estilo comum. Chamá-lo “Homo Pomo”: em todos há traços de apropriação e pastiche irônico, bem como uma reformulação da história tendo o construcionismo social muito em conta. Rompendo definitivamente com abordagens de ordem humanística e com os filmes e vídeos que trabalham acompanhados com a política de identidade, estas obras são irreverentes, enérgicas, alternadamente minimalistas e excessivas. Acima de tudo, elas estão cheias de prazer. (RICH apud BENSHOFF e GRIFFIN, 2004, p. 54, tradução nossa)16
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No original: “Of course, the new queer films and vídeos aren’t all the same, and don’t share a single aesthetic vocabulary or strategy or concern. Yet they are nonetheless united by a common style. Call it ‘Homo Pomo’: there are traces in all of appropriation and pastiche irony; as well as a reworking of history with social constructionism very much in mind. Definitively breaking with order humanistic approaches and the films and tapes that accompanied identity politics, these works are irreverent, energetic, alternately minimalist and excessive. Above all, they’re full of pleasure.”
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Assim, seria no prazer que as imagens da diferença investem sua força, e também no prazer que se encontra a potencia queer de qualquer cinema, contudo, em diálogo com Rich, Leung argumenta que o percurso traçado ao longo dos anos pelo New Queer Cinema perdeu em qualidade e experimentação estética, e que isso foi um mecanismo para dialogar com o cinema mainstream hollywoodiano e o mercado que ele representa, atentando que há autores que advogam a não existência contemporânea deste cinema. Certamente, as experimentações do cinema brasileiro são muitas, especialmente se forem observadas as produções que não versam sobre temática da diversidade sexual, mas ainda mais se fosse capaz de observar a produção de curtas e médias metragens. Entretanto, espero entender melhor o que se passa com a forma e conteúdo que produzimos no cinema que proponho analisar, situando-o em seu contexto nacional, ou seja, pensando como rupturas éticas e estéticas têm sido operadas por aqui, desde bem antes do surgimento do New Queer Cinema, e observar o que é próprio do nosso cinema na ordem do capital internacional a partir do chamado terceiro cinema e tudo que se segue a ele.
1.2 O abjeto e o subalterno no cinema brasileiro: que história é essa?
O objetivo desta parte do trabalho consiste em realizar uma aproximação entre os estudos queer e os estudos subalternos, especialmente centrada nos conceitos de abjeção e subalternidade, para pensar como a representação do outro foi construída no nosso cinema. Parece-me que estas interlocuções são especialmente importantes para pensar o queer fora do contexto norte americano ou britânico, em um cinema em que as questões de etnia, regionalidade, criminalidade, dentre outras, são marcadas por um posicionamento específico no contexto mundial, que diz respeito a nossa herança colonial 17. Se, em um primeiro momento, foram destacados os deslocamentos e as rupturas entre o cinema contemporâneo brasileiro que trata de sexualidade e New Queer Cinema, aqui o trabalho consiste em desenhar o percurso do outro no cinema brasileiro, como o outro, constituído a partir das diferenças já sublinhadas, aparece neste cinema, desta vez, observando em especial o cinema documentário. 17
Aqui, me refiro especificamente a um colonialismo imperialista, definido por Ella Shohat e Robert Stam em Crítica da imagem eurocêntrica como “uma fase ou forma especifica de colonialismo que cobre os períodos de aproximadamente 1870 a 1914, quando a conquista de territórios esteve ligada a uma busca sistemática por mercados e à exportação expansionista de capital, assim como, de um modo geral, a uma política de intervenção do primeiro mundo nas nações recém emancipadas” (SHOHAT; STAM, 2006, p. 41).
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Jean-Claude Bernadet, em Cineastas e imagens do povo (2003), realiza uma análise crítica aprofundada dos documentários brasileiros e suas estilísticas ao representar o outro. Seu trabalho se concentra entre as décadas de 60 e 80 e trata, em sua maioria, sobre curtas metragens. Contudo, como o autor mesmo adverte, as opções pelos filmes foram feitas de acordo com o que lhe tocava “emocionalmente” e com o que lhe parecia mais rico esteticamente, mas as linhas gerais das reflexões, que irei expor de maneira breve, servem para pensar o cinema realizado na época de maneira geral. Para o presente trabalho, é especialmente importante elencar os dois modelos de representação do outro que Bernadet identifica em seu trabalho. Esses modelos mostram como os diretores engajavam as imagens que compunham na feitura de seus documentários e a posição ideológica de contestação da ordem vigente no Brasil, que à época vivia sob a ditadura do regime militar e em profunda desigualdade social. O “modelo sociológico I” é descrito como a fórmula de filmes que apresentavam a voz off do narrador como “a voz do saber, de um saber generalizante que não encontra sua origem na experiência, mas no estudo de tipo sociológico; ele dissolve o indivíduo na estatística e diz dos entrevistados coisas que eles não sabem ao seu próprio respeito” (BERNADET, 2003, p. 17). O locutor é, literalmente, o “dono da verdade”, mas uma verdade que se apresenta como modelo científico, apresenta dados e amostragem, ou melhor, os entrevistados. Nesse modelo, a fórmula particular/geral opera no convencimento de que o que se diz sobre os indivíduos representados pode se dizer sobre a coletividade deles. Esses filmes se apresentam como arte, mas também como ciência, algumas vezes recorrem a narradores auxiliares, especialistas, intelectuais, capazes de trazer a consciência para este outro, que nesse caso não deixa de ser objeto de estudo, cuja representação nos documentários é apresentada como atestado de sua própria alienação. O segundo modelo apresentado é o “modelo sociológico II”, que não deixa de apresentar o outro enquanto objeto, mas que convoca o espectador a tomar parte na situação que apresenta, o coloca enquanto sujeito opressor, apelando, com uma narração que o interpela através do uso do pronome “você” ou “nós”, em oposição ao ou Outro que está na tela, à sua culpabilidade. Bernadet lembra que, neste caso, o espectador presumido é o intelectual e a classe média. A operação para a qual quero chamar a atenção nestes modelos está explicitada nas linhas dispensadas pelo autor para comentar o plano no qual a narração adverte o espectador de que ele irá ouvir o outro, no filme Maioria Absoluta (Leon Hirszman, 1964): 46
[...] passamos a palavra, e só vem a gagueira. Os analfabetos não tomam a palavra; ela lhes é outorgada e mesmo assim não tem condição de fala, o que legitima que o cineasta tome a palavra – ou melhor, permaneça com a palavra; o que legitima que se fale no lugar daqueles que não falam. Por outro lado, “passemos a palavra” indica que o filme gostaria que eles falassem. Encontramos aqui essa contradição do intelectual progressista que espera que o povo fale e aja, mas, como ele elabora uma imagem passiva desse povo, toma ele a palavra, por enquanto... (BERNADET, 2003, p. 45)
O que descrevo de maneira sucinta nos parágrafos acima são os modelos de representação do outro expressivos de uma época em que, especialmente, os longa metragens, envolvidos com as questões marginais e realizados no terceiro mundo, eram chamados de terceiro cinema, que se caracteriza por estar engajado ideologicamente e desta forma lutar contra o imperialismo. O terceiro cinema fazia parte do contexto da contracultura das décadas de 60 e 70 e tinha como um de seus grandes expoentes o brasileiro Glauber Rocha e seu cinema novo. Angela Prysthon lembra que o “espírito” terceiro mundista, fundamentalmente antiimperialista, dava conta de mostrar inclusive a periferia do primeiro mundo, no cinema francês, com a Nouvelle Vague, e na Itália, com o neo-realismo, com os quais este terceiro cinema divide “traços estilísticos” (PRYSTHON, 2004, p. 87). O mundo não está mais dividido em três, e Prysthon (2010) classifica o cinema que continua com a opção pelas margens na contemponeidade como o campo do cinema periférico. Influenciado pelos pensadores pós-colonialistas, este cinema aposta no descentramento: Talvez a característica mais relevante do cinema periférico contemporâneo seja justamente a maneira como ele se volta para a documentação do pequeno, do marginal, do periférico, mesmo que para isso se utilize de técnicas e formas de expressão (às vezes até equipe de produção) de origem central, metropolitana, hegemônica, marcando assim uma distância enorme da tradição cinematográfica terceiro-mundista dos anos sessenta. Ou seja, a diferença, a história e a identidade periféricas tal como representadas pelo cinema contemporâneo [...]. (PRYSTHON, 2010, p. 87)
As estratégias do cinema documentário contemporâneo certamente se afastam da metodologia de amostragem dos filmes analisados por Bernadet. O particular ganha espaço, as possibilidades de trabalhar a questão da diferença sem narração, ou de realizar documentários de mote subjetivo aparecem com maior recorrência. Consuelo Lins e Cláudia Mesquita realizam esta distinção no campo do documentário, entre o que elas chamam de documentário moderno e contemporâneo, assinalando que 47
Algumas características se mantêm dominantes, tais como o cineasta filmar indivíduos pertencentes a segmentos sociais diferentes dos seus, mas as aproximações se diversificam e escapam da “exterioridade” do diretor em relação a quem é filmado e dos “tipos sociais” presentes [...]. (LINS; MESQUITA, 2008, p. 23)
As autoras atentam ainda que há uma maior recorrência dos documentários subjetivos, nos quais os diretores estão diretamente envolvidos na narrativa, como é o caso de Dzi Croquettes, e que os filmes passam a valorizar personagens anônimos, acontecimentos que passaram despercebidos ou que não são mais lembrados, ou ainda, que não serão contados pela história oficial do Brasil, e aqui se enquadram também Bombadeira (2007) e Meu amigo Cláudia (2009). Importa, cada vez mais, como se faz o filme e que jogo ele estabelece com a linguagem, e se neste aspecto houver originalidade, o documentário tem mais chances de chamar a atenção de especialistas. Contudo, para todos os casos as questões levantadas a partir das reflexões de Bernadet permanecem: de que forma o filme pretendem dar voz ao outro? Como é possível representar a diferença? O outro é capaz de falar? Recorro às questões levantadas pelos estudos subalternos para pensar a importância de narrar o outro e as circunstâncias em que se pode realizar tal operação, que acaba por ser a invenção deste outro. São os estudos subalternos que direcionam este trabalho a desconfiar de qualquer prática de falar pelo outro, acompanhada pela contraditória urgência de que essa representação se realize, tanto no sentido político quanto artístico do termo. Também inspirados em uma filosofia da diferença, os estudos subalternos se concentram em questionar o sujeito etnocêntrico e a narrativa das nações produzida por eles. A partir do estudo crítico da literatura, do cinema, dentre outros, os pensadores da subalternidade estão interessados especialmente em problematizar o imperialismo, em sua faceta epistemológica, enquanto fundadores do que entendemos enquanto nação: “O poder de narrar, ou de impedir que se formem e surjam outras narrativas, é muito importante para a cultura e o imperialismo, e constitui uma das principais conexões entre ambos” (SAID, 1995, p. 13). O paradoxo da representação urgente e impossível advém do próprio conceito de subalterno, o qual não é passível de ser pensado a partir de premissas essencialistas, mas sim, a partir da impossibilidade de ocupar permanentemente uma categoria monolítica e indiferenciada, uma vez que esse sujeito é irredutivelmente heterogêneo. Gayatri Spivak diz,“Considero que a palavra subalterno e a ideia de popular não habitam de modo algum
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um espaço contínuo. Eu vejo subalterno como uma posição sem identidade. (SPIVAK, 2004, tradução nossa)18
Sublinhar a escrita do subalterno, tanto no caso dos filmes quanto no caso desta pesquisa, implica em sublinhar minha própria inscrição neste texto, e a dos diretores nos filmes, tomando o ato de narrar com a importância devida, uma vez que: Tomar o pensamento ou o sujeito pensante transparente ou invisível parece, por contraste, ocultar o reconhecimento implacável do Outro por assimilação. É no interesse de tais precauções que Derrida não invoca que “se deixe o(s) outro(s) falar por si mesmos”, mas, ao invés, faz um “apelo” ou “chamado” ao “quase-outro” [...] para “tornar delirante aquela voz interior que é a voz do outro em nós”. (SPIVAK, 2010, p. 83)
Para Spivak, a fala do subalternos se complica porque ele está as voltas com a impossibilidade inerente a sua constituição enquanto subalterno, sempre ocupando o lugar de diferença; se trata do condicionamento a uma epistemologia dominante, que o funda enquanto outro, que na maior parte do tempo apenas finge lhe conferir o lugar de fala, seja lhe colocando no espaço passivo destinado aos objetos que se dão ao conhecimento, seja deixando que ele fale para que repita o discurso dominante. É assim que nosso cinema documentário, através de seus modelos de representação identificados por Bernadet, coloca-se no lugar de porta voz das minorias. Contudo, o que fazer quando o sujeito subalterno é também marcado pela diferença sexual, e quando os filmes operam de maneira a distanciar-se cada vez mais dos modelos encontrados por Bernadet? O caso é que não se narram somente nações, os gêneros também são narrados, inventados, segundo um sistema epistemológico também eurocêntrico, no qual as ciências ditas naturais e médicas ainda possuem hegemonia, mas tal narrativa também se disputa no campo das representações. Compreendo que para estar mais próximo deste tipo de colonialidade é necessário que o subalterno se aproxime do conceito de abjeção, tal qual formulado por Judith Butler (2003). Neste sentido, a ideia de existências abjetas em relação as características de gênero e sexualidade estão relacionada aos processos de subjetivação que visivelmente subvertem as normas que representam o binarismo de gênero, e o fazem de tal maneira que não podem ser facilmente classificados enquanto homens ou mulheres, heterossexuais ou homossexuais,
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No original “In my estimation the word subaltern and the idea of popular do not habit a continuous space at all. I see ‘subaltern as a position without identity”.
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estão aquém e além da norma, não se enquadram na lógica binária dos gêneros, não são, portanto, entendidos enquanto sujeitos. O duplo conjunto de significados que, por um lado enreda os personagens em um sistema imperialista 19 e lhes confere a posição subalterna, e por outro os marca pela diferença sexual, lhes colocando em uma rede de significações hegemônicas referentes ao não pertencimento à heterossexualidade, interdita a fala desses personagens através de uma economia discursiva opressora que, como tentei mostrar no primeiro tópico, o autoriza a falar desde que seja para repetir ansiosamente os valores da heteronormatividade. Para essa questão, Butler (2003), citando o argumento de Monique Wittig sobre o poder do nosso sistema de linguagem, diz que O discurso torna-se opressivo quando exige que, para falar, o sujeito falante participe dos próprios termos dessa opressão – isto é, aceite sem questionar a impossibilidade ou ininteligibilidade do sujeito falante. Essa heterossexualidade presumida, sustenta ela, age no interior do discurso para transmitir uma ameaça: “você-será-hetero-ou-não-será-nada.” Mulheres, lésbicas e gays não podem assumir posição de falante no interior do sistema linguístico da heterossexualidade compulsória. (BUTLER, 2003, p. 168)
Contudo, a própria Butler, mais a frente, constata uma possibilidade de fala das minorias sexuais neste contexto, ressaltada no exemplo da apropriação da linguagem própria do feminino pelo homem gay afeminado, e que aparece não como uma apropriação colonizadora do feminino, mas como uma multiplicação dos “lugares possíveis para aplicação do termo, de revelar a relação arbitrária entre significado e significante, e de desestabilizar e mobilizar o signo” (2003, p. 177). É neste sentido que direciono este texto, especialmente nos dois próximos capítulos, para entender que, através do manejo da abjeção, da explicitação daquilo que por si só é um rasgo na linguagem heterossexual, esta mesma que assujeita e funda a naturalidade dos corpos, existe uma possibilidade dos personagens retratados nos filmes, mesmo estando ligados a um duplo processo de significação/colonização, enfim, falarem.
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Cf.: nota 14.
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1.3 Por que escolhi estes filmes? Rasgando os discursos e escrevendo outras histórias.
A primeira vez que vi Meu amigo Cláudia o filme me pareceu importante demais. Por um lado, o registro da história de uma personagem única, que desenha para si uma história distinta da esperada para um sujeito que nasce presumidamente (sempre presumidamente) homem e heterossexual. Mas ali também havia a história do Brasil e da ditadura, contada a partir de outra fonte, que nunca foi oficial, uma história que tem como pano de fundo a luta dos desviantes de gênero e sexualidade, representados na figura de Cláudia, que a toda hora colocava seu corpo em jogo. Encantou-me aquela personagem. Mas não foi só isso. Em setembro de 2010, exibimos o filme no Centro de Cultura de Alagoinhas, cidade a 116 quilômetros de Salvador, para um grupo de jovens de uma escola estadual. Eu acompanhava a equipe que colhia imagens para o vídeo promocional dos Centros de Cultura do Estado da Bahia. Filmamos jovens em uma tarde de sexta-feira entrando na sala e o início da sessão. Depois fomos embora. O filme fez parte da quarta edição do Festival Possíveis Sexualidades que, em parceria com a Fundação Cultural do Estado, circulava alguns de seus filmes pelas salas dos Centros de Cultura no mês de setembro, quando os espaços do Estado são incentivados a apresentar programações com a temática da diversidade sexual. Na segunda feira seguinte à exibição, havia uma carta da escola solicitando uma retratação da instituição pela exibição de filme “pornô, com cenas de homossexualidade” para jovens que estavam, diga-se de passagem, acima da idade prevista na indicação etária do filme. Na verdade, o filme havia sido escolhido dentre alguns outros por uma das professora da escola que acompanhou os alunos até o Centro, ela não o conhecia, mas achou que a turma precisava discutir a temática. Na segunda seguinte, a coordenadora do Centro de Cultura ligava exasperada para Fundação Cultural onde eu trabalhava, o assunto era tema nas igrejas e nas rádios da cidade. Isso foi importante. Mais tarde tive oportunidade de conhecer Cláudia pessoalmente em uma visita que fez a Salvador para um de seus últimos shows. Dzi Croquettes (2009) me pegou de surpresa. Como não conhecê-los? Vi no cinema, uma, duas, três vezes. Impressiona que aquela história não houvesse circulado por tanto tempo. O filme me parecia importante demais também, ao mesmo tempo, me incomodava fortemente a montagem e a narrativa escolhida pelos diretores para contar a história dos Dzi. Mas o incômodo que eu sentia não impediu que o filme circulasse bastante, foi exibido em 51
diversos países e é um dos documentários brasileiro mais premiado internacionalmente. Que dispositivos fílmicos e extra-fílmicos Dzi acionou para conquistar tal façanha. Era mérito do filme, ou dos Dzi? Por que a história foi tão encantadora, para tantas pessoas, durante tanto tempo? E por que tão facilmente invizibilizada? Tatiana Issa, uma das diretoras, afirma em entrevista 20 que uma das motivações para realização do filme foi o fato de quase ninguém da sua geração conhecer a história do grupo. O maior desafio foi conseguir as imagens de arquivo que, como argumentarei mais a frente, concentram a maior potência do filme. Bombadeira circulou em Salvador pelo mesmo festival que Meu amigo Cláudia. Diferente dos outros dois filmes, ele realiza o registro de uma história também não contada, porém contemporânea à feitura do filme. Das histórias abordadas nos filmes trabalhados, é a que mais me é próxima, não só em termos geográficos. O filme foi gravado em Salvador, com travestis e transexuais que trabalham como profissionais do sexo pelas imediações do centro da cidade. Sou capaz de reconhecer as personagens, não porque as conheci em algum momento, ou porque necessariamente cruzei com elas por ai, muito embora não seja raro isso ter acontecido, mas porque elas representam uma existência que faz parte do meu cotidiano e do cotidiano dos moradores de Salvador, especialmente os que transitam no centro da cidade. Contudo, elas são a exata parte da realidade que a cidade e seus moradores insistentemente ignoram. Em Bombadeira (2007) encontro a possibilidade de tratar de questões muito caras a este trabalho, referentes às inscrições de um local espaço-temporal na construção de gênero e sexualidade das personagens. O local é determinado e determinante das questões referenciais do pós-colonialismo, e levá-lo em consideração permite que seja observada a construção dos sujeitos enquanto marcados pelo Estado brasileiro, demonstrando o quanto o Estado é capaz de “deixar morrer” os desviantes de gênero e sexualidade, tal qual Foucault, em História da sexualidade I (1988), já apontou ao tratar do biopoder 21. De maneira breve, pontuo algumas observações sobre como os filmes abordam e o outro, o que determina o local em que se colocam em relação a ele, ou seja, o lugar do próprio
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Entrevista concedida ao site da UOL em agosto de 2010. Cf.: OLIVEIRA, 2010. A noção de biopoder em Foucault demonstra que, a partir da época clássica, o poder deixa de ser somente focado na repressão institucional que, em sua ameaça última, está autorizado a matar, e passa a ser “um poder que se exerce positivamente sobre a vida, que empreende sua gestão, sua majoração [...]” (1988, p. 149), e inverte a lógica de exclusão: “Pode-se dizer que o velho direito de causar a morte ou deixar viver foi substituído por um poder de causar a vida ou devolver a morte” (1988, p. 150). 21
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cinema enquanto possibilidade de agenciamento político de mobilização em torno das minorias sexuais. Para começar a proposta de documentário subjetivo, com a inserção da representação de Tatiana Issa na narrativa de Dzi Croquettes (2009). Para a diretora, tal operação tem uma proposta bastante clara, como atesta em entrevista: “acho que isso [a sua inserção no filme] aproxima o filme do público” (ISSA apud OLIVEIRA, 2010). O áudio da voz de Wagner Ribeiro, que ao longo do filme é revelado como a mãe da família Croquettes, chega ao espectador antes de qualquer imagem, com a tela ainda toda negra, e indica que o filme começou. A voz acompanha os créditos referentes à realização da obra e são seguidos da imagem do personagem, apresentado por um material de arquivo, que o recorta com enquadramento de retrato, porém um pouco torto, mostrando apenas seu rosto e um pedaço da gola da camisa cor de rosa bebê; o fundo da imagem é preenchido por um plano, sem nenhuma profundidade de campo, não é possível identificar se o personagem está de pé ou deitado sobre o tecido. Wagner dá boa noite em português, inglês e francês, com sua voz fina, e ainda deseja paz e amor aos hippies que por ventura ainda existam.
Fotogramas 1, 2, 3 e 4: Dzi Croquettes (2009)
De cima para baixo, da esquerda para a direita: Wagner Ribeiro, Lennie Dale, Ciro Barcelos, Tatiana Issa.
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O segundo personagem que conhecemos é Lennie Dale. Para ele, é escolhida uma imagem de aula ou ensaio, a imagem também é de arquivo, e um leve movimento de câmera nos mostra o corpo de Lennie, da cabeça aos pés. Ele fala em inglês enquanto ministra a aula/ensaio. O terceiro personagem, Ciro Barcelos, é o primeiro em imagens gravadas para o filme, ele realiza uma performance, montada juntamente com os créditos iniciais do filme e entrecortada por planos de outros personagens e planos informativos sobre a situação política ditatorial da época. A quarta personagem de conhecemos, a terceira que factualmente fala, é Tatiana Issa, diretora que assume a voz da narração e aparece por quatro vezes ao longo do filme, acompanhada pela imagem de uma criança loira, que não podemos saber se é ela, em mais uma imagem de arquivo, ou se é uma representação dela mesma, interpretada por outra criança, em uma imagem trabalhada na pós-produção do filme, para que pareça de arquivo. As aparições de Issa são acompanhadas por uma música tocada no piano, trilha foge completamente do desenho de som do restante dos planos, e é uma marca clara da entrada da narração off. Na sua última aparição, o som do piano funciona para anuncia-la e, antes mesmo da narradora voltar, sabemos que ela falará em breve. Soma-se ao desenho de som, o tratamento das imagens, que também contribui para marcar o lugar da personagem diretora do filme. A grosso modo as imagens em Dzi podem ser divididas em imagens de arquivo, entrevistas, cartelas estilizadas que remontam colagens e as imagens de inserção da narradora, que aparecem com uma câmera titubeante, e a luz estourada. A trilha que acompanha a narradora, juntamente com uma fotografia esfumaçada dos planos nos quais aparece a criança, são também os planos em que a imagem, de maneira excepcional no filme, é levemente desacelerada. Somo a essas características, o conteúdo da própria narração, para afirmar que a escolha de aproximar a experiência infantil de Tatiana, em relação aos Dzi, a um universo lúdico é bastante óbvia, atestada quando, já no começo no primeiro plano em que aparece a narradora, ela os chama de “palhacinhos”, e confirmada em sua última aparição, quando descreve a experiência de estar com os Dzi como “o sonho que era minha realidade” (DZI CROQUETTES, 2009). Amparada pela experiência infantil, Tatiana sugere uma abordagem que se distancia de preconceitos, e por estar envolta por uma admiração quase que encantada, a narrativa e sempre enaltecedora dos artistas e de seus modos de vida. “Os grandes cílios coloridos” encantavam uma criança que, como frisa a narração, “não sabia que dois anos antes [do seu
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nascimento], iniciava-se o movimento que iria mudar minha vida e revolucionar o Brasil” (DZI CROQUETTES, 2009). O que Tatiana faz, ao longo de suas entradas narrativas, é apresentar o motivo do filme, o que a impulsionou a realizá-lo. Lembranças que são transmutadas pelos dispositivos fílmicos enquanto signos de ludicidade, ligadas a um universo quase mágico, circense. A ditadura é o contexto marcado pelo filme de maneira insistente, e a insistência é um elemento que marca a montagem do filme, ordenando as falas dos entrevistados em uma única grande voz, através da repetição de palavras em planos seguidos, como na sequência em que os personagens narram a cena na qual Claudio Tovar e Claudio Gaya dançavam bolero. As falas dos entrevistados seguem a ordem abaixo, e se seguem após um plano de apresentação da concepção do número de bolero a partir da música Dois pra lá, dois pra cá, interpretada por Elis Regina, que também é o áudio que acompanha a sequência. Falam Amir Haddad, Claudio Tovar, Pedro Cardoso, Rogério de Poly, respectivamente: […] [Amir Haddad:] Plano a: era muito bonito, muito bonito, era uma dança de salão que os dois faziam. [Claudio Tovar:] Plano b: mais tarde, eu que dancei esse bolero com o Gaya no teatro Rival, eu que dancei esse bolero com o Gaya. [Pedro Cardoso:] Plano c: Olha, a cena entre o Claudio Tovar e o Claudio Gaya [Rogério de Poly:] Plano d: Ah, eu tinha paixão por isso, Claudio Tovar, Claudio Gaya [Pedro Cardoso:] Plano e: em que eles dançavam um bolero cantado pela Elis Regina ... (DZI CROQUETTES, 2009)
A descrição da cena do bolero acompanha as imagens de arquivo que vemos entre os planos dos entrevistados, na edição, as falas são costuradas de maneira a repetir a informação, fixam a mensagem através da insistência. Aqui, a montagem tem um papel importante, uma vez que prescinde da “transparência” a fim de fixar a mensagem que deve ser apreendida pelo espectador. Tatiana Issa, mesmo possuindo a voz off de narração em primeira pessoa, o que já a tornaria “dona” da história, utiliza a voz dos entrevistados em uma montagem que as une como uma única voz. Não à toa, a voz chega antes de imagem em Dzi Croquettes (DZI CROQUETTES, 2009). Ademais, há uma padronização na escolha dos enquadramentos e da composição da mise-en-scène em geral, que coloca os entrevistados sempre de frente para câmera e para o entrevistador, sempre sentados, a fotografia transita entre o plano geral, o close nos rostos e, em alguns poucos planos uma segunda câmera mostra a equipe de filmagem, enquadrados de 55
cima para baixo ou de costas, oferecendo uma visão panorâmica da locação, mas ainda focando os entrevistados. Aceito, aqui, pela primeira vez, as proposições de Comolli em Ver e Poder (2008), para pensar a mise-en-scène e a auto-mise-en-scène no cinema documentário: [...] essas narrativas são também mise-en-scènes, verdadeiros rituais, em que os corpos e suas hierarquias, suas posturas, seus intervalos são frequentemente definidos [...]. Assim, a auto-mise-en-scène seria a combinação de dois elementos. Um vem do habitus e passa pelo corpo (o inconsciente) do agente como representante de um ou de vários campos sociais. O outro tem a ver com o fato do sujeito filmado, o sujeito em vista no filme (a “profilmia” de Souriau), se destina ao filme, conscientemente e inconscientemente, se impregna dele, se ajusta a operação cinematográfica, nela coloca em jogo sua própria mise-en-scène. (COMOLLI, 2008, p. 85)
A elas retornarei no último capítulo deste trabalho, Por hora, desejo ressaltar que, a inda que a
noção de corpo como analogia do inconsciente me pereça apressada para as proposições deste trabalho, a definição do autor permite que possamos tomar os personagens dos filmes como agentes ativos na construção dos mesmos. Permite, ainda, identificar que a repetição de um padrão em Dzi acaba por ser um imperativo do filme sobre o entrevistado, que perde um tanto de possibilidades de construção de uma auto-mise-en-scène.
Fotogramas 5 e 6 - Dzi Croquettes (2009)
Entrevistas: com Elke Maravilha e com Cláudio Tovar
Dentre as exceções destacáveis estão os planos da entrevista de Elke Maravilha, que chama a atenção pelas marcas da personalidade da artista nas dezenas de duendes e miniaturas de seres fantásticos que vemos em quadro e os de Cláudio Tovar, cuja a dezena de relógios que tomam a parede ao fundo funcionam quase como uma ironia dos tempos narrativos que o 56
filme tenta combinar, o das entrevistas, o das imagens de arquivo e os da narração de Tatiana, mas cuja unidade para o filme parece mal forjada na montagem descrita. No mais, são apartamentos bem decorados, espaços culturais fechados ao público e locais de trabalho dos personagens que majoritariamente compõe o quadro de locações do longa. Por outro lado, tal opção acaba por enfatizar a riqueza das imagens de arquivo. Elas sim são capazes de mostrar particularidades de cada personagem e das experiências, mais do a narração dos próprios entrevistados, ainda que alguns deles estejam falando de sua própria história. Ainda sobre os entrevistados, ressalto a ausência das famílias biológicas ou de criação. A escolha, se por um lado demonstra a opção de focar a validade dos Dzi Croquettes enquanto grupo de reconhecido sucesso e competência entre os mais diversos profissionais do campo das artes e ainda ressalta a construção de um laço familiar que se constrói para além do parentesco e que por sinal, estrutura os blocos da narrativa, que abre em cartela as cortinas para cada um dos membros da família Croquettes, por outro lado garante a inserção única de Tatiana no filme, afinal, ela adentra essa história através de uma relação filial, seu pai era da equipe técnica dos Dzi na França, o que a diferencia dos demais personagens do filme, e confirma a singularidade da relação que ela estabelece com eles durante sua narrativa. Embora recorra à narração subjetiva e se coloque enquanto personagem narrador, sua experiência somente é evocada por ela mesma, e por um único entrevistado, o diretor teatral francês François Till, que convoca a narradora a voltar para o filme depois de cerca de 1 hora e 5 minutos da sua primeira narração. São apenas quatro sequências de narração, sendo que a mais longa dura apenas 2 minutos. Contudo, a montagem nos faz perceber que ela estava presente todo o tempo do filme, dando o tema e marcando o roteiro. Portanto, acredito que as particularidades dos Dzi são incomparavelmente mais expressivas e complexas quando eles falam nas imagens de arquivo. Um roteiro que emenda as palavras a partir da insistência, da repetição, não nos deixa crer que os entrevistados suscitaram histórias novas, que a partir das entrevistas foram incorporadas ao filme, como defende Rafael Alvarez em entrevista (ALVAREZ; ISSA, 2010), mas sim que as entrevistas foram realizadas em um modelo jornalístico em que a pauta vai para locação muito bem fechada e o repórter sabe exatamente as respostas que deseja ouvir. No caso, a aproximação familiar e fantástica trazida por Tatiana não a impede de realizar uma observação do outro enquanto objeto, contudo, o objeto deixa de ser, nesse caso, objeto de exclusivo conhecimento e passa também a ser objeto de encantamento. 57
Já em Meu Amigo Cláudia (2009), Dácio Pinheiro renuncia à figura do narrador off e traz Cláudia Wonder como principal narradora da sua própria história. Outros entrevistados, imagens de arquivo, fotografias, performances da artista, recortes de jornais e cenas do cotidiano de Cláudia a auxiliam na narrativa autobiográfica. Também neste longa, consigo vislumbrar a divisão em eixos temáticos, quais sejam a vida familiar de da personagem e sua transformação física, a vida artística, a vida militante em conjunto com o contexto da perseguição e censura estatal, e ainda o surgimento da AIDS. Nenhum desses eixos é apresentado em blocos de maneira separada. Há uma interseção das temáticas, e cada uma delas recebe maior atenção em determinados momentos do filme, quase como em uma conversa cotidiana, onde os assuntos são falados, esquecidos e retomados sem a necessidade de uma determinação mais pungente que diga que agora vamos falar sobre isto ou aquilo. Na montagem, é privilegiada a costura das falas dos entrevistados sugerindo que deles partem os temas, tais temas são em geral mais aprofundados na sequência seguinte. O foco central do filme está em mostrar a relevância artística e política de Cláudia Wonder enquanto artista contestadora da ordem e da moral burguesa da década de 80. Para isso, o filme se prende mais detidamente ao perfil trabalhador da mesma. Nas cenas de cotidiano, por exemplo, o filme opta por acompanhar Cláudia em situações de trabalho, seja no palco, nas atividades relacionadas ao Conselho Municipal de Atenção à Diversidade Sexual, quando assistimos parte da cerimônia de sua posse, nas imagens da artista a caminho do Centro de Referência à Diversidade, durante parte de seu dia de trabalho, bem como na fala feita por ela na inauguração do CDR. Enquanto a narração de Cláudia e as imagens de arquivo são montadas de maneira a ilustrar a história que estamos ouvindo, pequenas operações de deslocamento da relação representação versus realidade são realizadas na montagem. Por vezes, cenas dos filmes em que Cláudia atua são utilizadas para representar a narrativa da história pessoal de Cláudia, a exemplo das cenas de casamento, que aparecem quando ela conta como conheceu seu marido, ou das sequências em que ela narra a viagem à Europa para mudança de sexo, enquanto assistimos o personagem interpretada por Cláudia em O sexo dos anormais (Alfredo Sternheim, 1984), na mesma situação da artista.
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Fotogramas 7 e 8 - O sexo dos anormais (1984)
Em O sexo dos anormais, o personagem encenado por Cláudia é interpretado por um ator até sua ida à Europa, a passagem se dá quando ela abre a mala para aprontá-la para viagem, e quando a fecha novamente, Cláudia já está no lugar do ator.
A operação também é realizada de maneira inversa, quando, por exemplo, um dos planos em que o jornalista Leão Lobo é entrevistado é construído a partir das imagens de uma cartela que mostra fotografias antigas de Cláudia. A imagem do jornalista é recortada da entrevista e aparece dentre as fotografias organizadas em uma cartela que simula a colagem de imagens antigas. A imagem de Lobo se destaca, e passa a ocupar o plano de sua entrevista. No mais, o objetivo de registrar a história desta personagem enquanto figura importante no cenário político nacional detém-se no relato dos fatos. Contudo, aos entrevistados auxiliares não é negada a possibilidade de relacionar sua própria história de vida às histórias que contam sobre Cláudia: “O quê que tava acontecendo conosco? Eu sei o que tava acontecendo comigo, eu tava tentando sobreviver a um casamento, tentando fazer um casamento dar certo, criar um filho e ainda conseguir comer num espaço artístico [...]” (MEU AMIGO CLÁUDIA, 2009) diz a atriz Grace Gianoukas, uma das entrevistadas. Todos validam a história de Cláudia, reconhecem a sua importância e a apresentam ao espectador. Contudo, o filme avança, em relação a Dzi Croquettes (2009), na possibilidade dos entrevistados apresentarem características singulares, o que pode acarretar na crença em um roteiro menos amarrado e mais disposto a seguir as pistas dadas pelos próprios entrevistados. Em uma das entrevistas, Cláudia fala do alto de um prédio, que permite que vejamos o céu a cidade onde se passa a história que ela nos conta, São Paulo. Vemos somente as pontas dos prédios da cidade cenário da história que escutamos. É em relação à cidade que Cláudia constrói sua vida, e não por acaso Cláudia fala do alto dela, dominando-a, apesar de tudo. Para o filme, a personagem principal importa enquanto agente ativa e transformadora do 59
espaço urbano, da cultura urbana underground paulistana. A presença da voz e da imagem de Cláudia de maneira tão pungente no longa não pode, contudo, ser entendida simplesmente como uma proximidade maior entre filme e personagem. Entretanto, diferente de Dzi, a mise-en-scène construída para e por Cláudia propõe uma montagem mais invisível, que se pretende mais transparente, mesmo sabendo que a tentativa de não fazer aparecer seu traço, ou sua pretensão por si só, já é uma tomada de posição do filme. Não há autonomia de Cláudia em relação a sua representação no filme, mesmo nos planos em ela não fala com a câmera e que o espectador acompanha seu cotidiano, como na sequência em que ela pega o ônibus para ir ao trabalho, ela está nitidamente presa ao aparato que a acompanha, representando seu cotidiano, a artista comporta-se de maneira a permanecer em quadro durante sua pequena caminhada pela rua, embora não demonstre, está preocupada com a equipe que a filma, esta que por sua vez não aparece no filme, como acontece em Dzi. Em Meu amigo Cláudia (2009), a personagem não heterossexual também é tratada como objeto, sua história de superação e luta no contexto da contracultura é o motivo maior do registro realizado. Contudo, devido às imagens subversivas que Cláudia coleciona em sua biografia, e o fato de escolher contar sua história a partir do resgate de tais imagens faz o filme passar de uma biografia como qualquer outra, para uma possibilidade de mostrar como o corpo transgressivo pode ser utilizado no agenciamento político e como a transgressão pode ser representada. Tudo isso a partir da presença de Cláudia.
Fotograma 9 - Meu amigo Cláudia (2009)
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Bombadeira (2007), como já dito, explora as histórias de personagens anônimos, mas que são muito frequentes no cotidiano do morador da capital baiana: as travestis e transexuais que se prostituem nas ruas, e que usam silicone industrial como modelador corporal. São muitas as questões que o filme propõe e para esta pesquisa interessa especialmente a visibilidade da realidade de pessoas que sofrem e morrem por conta da regulação estatal do sexo. Afinal, a aplicação de silicone é uma operação cotidianamente realizada por mulheres biológicas, e recorrer a bombação ilegal não denota apenas a falta de condições financeiras das personagens, pois também acontece como escape possível em relação a uma série de operações de controle dos corpos, de todos eles, e de determinados corpos e determinadas partes dos corpos ainda mais, no já citado exercício do biopoder foucaultiano pelo estado brasileiro. Luis Carlos de Alencar realiza uma aproximação diferenciada dos filmes anteriormente citados, interessa-lhe a história da vida pessoal das personagens, tanto que a maior parte das entrevistas é realizada nas casas das mesmas. A aparição do diretor no filme também acontece, mas de maneira menos planejada do que em Dzi, sendo o áudio das perguntas frequentemente utilizado para situar o espectador em relação ao diretor, cuja imagem, na maior parte das vezes, está fora de quadro. Luis entrevista a personagem Andrezza em um táxi e ela conta que passou dez anos indo e voltado de São Paulo. Ele pergunta: “E foi pra São Paulo fazer o quê?”, “Trabalhar, né, Luis Carlos!”, responde Andrezza, demonstrando que o entrevistador já conhece a história e está lhe fazendo repetir para as câmeras. Ele, com intimidade, devolve: “Trabalhar em quê, minha filha?” (BOMBADEIRA, 2007). A nítida aproximação confere à entrevista um tom de conversa, sensação que temos em maior ou menor medida ao longo do filme, e que também ganha força no linguajar informal utilizado pelos personagens e pela emoção que alguns deles deixam transparecer durante as entrevistas. A aproximação de Luis com as personagens se construiu durante o processo de filmagem. Somente Andrezza era conhecida dele, dos anos em que o diretor trabalhou em uma organização de defesa de direitos humanos de grupos marginalizados, cuja a marginalização se dava por conta de descriminações relacionadas às suas identidades de gênero e as suas sexualidades22.
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Sei que Luis não as conhecia porque em conversa com o diretor sobre a impressão de proximidade, ele enfatizou que a aproximação se deu durante a feitura do filme. Já a informação sobre o trabalho com transexuais
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Quanto ao exercício da auto-mise-en-scéne, considero que esta é nitidamente mais explorada em Bombadeira. Já nas duas primeiras cenas, a câmera acompanha as personagens Samara e Silvana. Fazendo a maquiagem, a segunda revela que está demonstrando para a câmera uma cena do seu cotidiano, e não a executando por espontaneidade “- Pronto. Meu ritual é esse, pouco né? Assim bem simples [...]”. Consciente da interpretação, ela constrói sua cena, movimenta-se no quarto, obriga a câmera a segui-la, sai de foco e de quadro algumas vezes e, como uma diva hollywoodiana, entoa uma melodia enquanto se olha no espelho. Em Bombadeira, o prazer não vem acompanhado de imagens agradáveis em todos os casos. Ao contrário da maior parte das imagens trazidas pelos filmes Dzi Croquettes e Meu amigo Cláudia, nele as imagens de realização do desejo, que denotam o prazer da transformação corporal, são também imagens de dor. O filme traz a profanação, tal como entendida por Agamben (2007). Nesta perspectiva, o exercício da bombação consiste na profanação do próprio gênero e na exposição de tal profanação. Para Agamben (2007), profanar é o ato de dar outro uso às coisas, neste caso ao corpo, um uso diferenciado do uso canonicamente estabelecido pela igreja ou pela ciência, por vezes um uso político-militante. Não acredito que o filme traga uma representação mais justa ou correta do que os dois observados anteriormente mas, certamente, a aproximação entre diretor e personagens é da ordem do afeto, que, ao contrário da exposição intencional da diretora em Dzi (2009), ou da não exposição em Meu amigo Cláudia (2009), aparece aqui de maneira potente justamente porque é capaz de mostrar a singularidade do encontro entre o diretor, sua equipe, suas câmeras, e o Outro representado. Representar a transgressão é, portanto, a tarefa a qual se propõem os filmes trabalhados nesta dissertação. Considero que cada um a seu modo rompe, em maior ou menor medida, com os discursos hegemônicos sobre estas representações, realizando investimentos de desejo revolucionário na economia destes discursos. Diferente da proposta de trazer a subversão das experiências de vida dos personagens como uma das temáticas relativas à narrativa, ou como pano de fundo das histórias contadas, o que acontece com a maior parte dos filmes narrativos brasileiros citados ao longo deste capítulo, os três filmes escolhidos estão centrados exatamente nestas singularidades, característica que, aliada ao apelo realístico próprio do documentário, possibilita um
e travestis foi colhida na entrevista dada pelo diretor ao site Overmundo, disponível em: . Acesso em 28 nov. 2015.
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agenciamento político transformador, que atua pela sensibilidade e que é decisivo para a escolha dos mesmos para dedicação exclusiva nos próximos capítulos. Outra similitude entre os filmes, também importante para o trabalho, diz respeito ao contexto de realização das obras, que passaram, em todos os casos, por dificuldades de produção. Dos três, o mais bem sucedido é, sem dúvidas, Dzi Croquettes, e o sucesso está certamente ligado à coprodução do Canal Brasil, que tardiamente entrou como patrocinador do filme. Antes disso, o filme contou com uma equipe de produção reduzida aos diretores, que como tinham uma produtora em Nova York, a TRIA, viabilizar o inicio do projeto de maneira independente. Meu amigo Cláudia foi uma ideia que passou quatro anos na gaveta, e assim como Dzi, o filme foi realizado inteiramente com recursos de uma produtora, neste caso de amigos do diretor, a Piloto. Nenhum dos dois teve apoio de leis de incentivo federais, estaduais ou municipais, fato que por si só torna os filmes exceções interessantes, próximos do que pode ser vislumbrado, em termos de patrocínio, como cinema independente no Brasil. Já Bombadeira, apesar de ter sido patrocinado pela Petrobrás através da Lei de Incentivo à cultura do Governo Federal, teve, dentre os três, as maiores dificuldades de exibição e distribuição, o que por um lado reflete a limitação de políticas públicas que são capazes de garantir somente (e parcamente) que os filmes sejam realizados. Por outro lado, denota certo rechaço às produções que deslocam os dispositivos fílmicos para uma utilização mais precária, suja, escura, imperfeita, que é associada, muitas vezes, a ideia de cinema mal feito, mas que pode também ser observada como potencialidade, como abertura de diálogo, com um outro modo de representar o outro 23. Não é demais concluir que tais dificuldades advêm também do conteúdo que cada projeto trazia, e a maneira como se deu cada uma das produções me permite afirmar que os filmes estiveram a margem no contexto da produção cinematográfica, e que trouxeram desta maneira, uma quantidade queer para o cinema brasileiro. A partir do contexto apresentado neste capítulo, tentei esboçar as singularidades dos filmes que escolho, que dizem respeito principalmente ao enfoque dado às questões de gênero e sexualidade de seus personagens, e também as suas especificidades narrativas e de
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Sobre o cinema imperfeito ver Julio García Espinosa: “O Cinema imperfeito não está mais interessado em qualidade ou técnica. Pode ser criado tão bem com uma Mitchell ou com uma câmera 8mm, em um estúdio ou em um acampamento da guerrilha no meio da selva. [...] Não é a qualidade que se pretende no trabalho de um artista. A única coisa que interessa é como um artista responde à seguinte questão: O que você está fazendo para superar a barreira da audiência de elite "culta", que até agora tem condicionado a forma de seu trabalho?” (GARCÍA ESPINOSA, 1996, p. 9, tradução nossa).
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produção. Sendo este o motivo pelo qual escolho estes filmes, acredito, inclusive, que a partir das rasuras provocadas pelos mesmos, outras construções colonialistas, a respeito do entendimento do outro criminoso, drogado ou doente, também podem ser problematizadas. No segundo capítulo tentarei mostrar como a economia das imagens operam dinamicamente na visibilidade e na construção da ideia de humanidade e desta maneira oferecem maior ou menor possibilidade de agenciar afetos diversos, do horror a amizade, em torno de si.
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CAPÍTULO 2 - CECI N’EST PAS UN HOMME Não sou infeliz nem quero que tenham compaixão de mim. Sou como sou e isso me basta. Saber que outros estão pior é o grande consolo, naturalmente. É possível que Deus exista, mas isso, a essa altura da história, com tudo que já nos aconteceu, tem alguma importância? O mundo poderia talvez ser melhor do que é? Sim, quem sabe, mas para que perguntar isso? Sobrevivi e, apesar das aparências, faço parte da raça humana. Olhe bem pra mim, meu amor. Reconheça-me. Reconheça-se. Vargas Llosa (2009)
É assim que um dos personagens de Mario Vargas Llosa no livro Elogio da Madrasta, termina sua descrição. Ele é aquele que não tem braços nem pernas, que perdeu uma orelha em uma luta provavelmente com outro humano e que sofre com o olfato apurado de seu monstruoso nariz, para citar apenas algumas características deste corpo monstruoso. Na descrição de sua existência, limitada espacialmente por um cubo de vidro que lhe deixa ver o mundo pelo seu único olho e que, ao mesmo tempo, impede que o mundo o veja, percebemos que o personagem habita outro tempo, cronologicamente adiante do atual, sinalizado na fala que faz sobre o seu olho, que por estar “funcionando, capturando as formas e as cores, é um testemunho do progresso extraordinário que caracteriza o tempo em que vivemos” (VARGAS LLOSA, 2009, p. 97). “Reconheça-me. Reconheça-se.” O imperativo é indispensável apôs a minuciosa descrição de sua existência abjeta, mas para reconhecer-se no abjeto é imprescindível que se rompa, para começar, com o desejo de similitude a partir da aparência, e que se instaure o regime da presença, do reconhecimento do fluxo de sensações que sempre serão possíveis, mesmo que nunca sejam sentidas. Trabalhei até aqui como os filmes se inserem enquanto rupturas em contextos de produção audiovisual, as contingências que são determinantes nas obras, suas condições de aparecimento, suas possibilidades de existência. Neste segundo momento, que dura até o final do texto, a tentativa é lançar as reflexões ao encontro do fluxo de imagens no qual consiste o cinema, seguir essas forças para acionar os conceitos que pelas imagens oferecidas podem ser reflexionados, homem e humanidade, em seguida, mulher e feminilidade. Aparece daí um tipo de máquina cinematográfica revolucionária, composta pela imagem do outro + aparato cinematográfico, e essa máquina trabalha produzindo desejo. A partir de agora, me esforço em perceber como essa máquina atua na repartição do sensível para uma nova construção comum da ideia que temos sobre humanidade. 65
No capítulo que se segue, tentarei mostrar como, a partir das imagens, é possível retomar conceitos e lançá-los ao infinito, e que tal operação não se faz sem o risco de perdêlos completamente. Não estou dizendo, contudo, que os filmes (ou qualquer obra de arte) criam conceitos ou fazem filosofia, o que fica muito claro em Deleuze e Guattari quando estes afirmam que: das frases ou de um equivalente, a filosofia tira conceitos (que não se confundem com ideias gerais ou abstratas), enquanto que a ciência tira prospectos (que não se confundem com juízos) e a arte tira perceptos e afectos (que também não se confundem com percepções ou sentimentos). Em cada caso, a linguagem é submetida a provas e usos incomparáveis, mas que não definem a diferença entre as disciplinas sem constituir também seus cruzamentos perpétuos. (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 33)
Interessa-me partir desse cruzamento, uma vez que nele residem as imagens de identidades transitórias, de corpos provisórios e de desejos produtivos, bem como os deslocamentos conceituais que as ilustram melhor, pois deles prescindem e ao mesmo tempo provocam. Resta investigar como dessas intersecções pode surgir algo de novo na ordem da sensibilidade e da política. Como são apresentados, através da articulação entre presença e testemunho do outro representado no filme, agenciamentos políticos que operam através da partilha imagética de experiências singulares de vida, as quais nos deixam entrever pistas sobre a nossa própria relação com o mundo? Estou falando de afeto, para além da capacidade/poder de afetar e de ser afetado, mas que se consolida em uma comunidade que se sensibiliza mais ou menos com determinadas imagens, sendo que tal mobilização é um tipo de agenciamento capaz de ir das nossas sensibilidades às nossas subjetividades. A abordagem dos corpos de análise nesta segunda parte do texto, desde este até o capítulo final, concentra-se em Bombadeira (2007), e os motivos que justificam tal operação são explicitados a medida que surgem no texto os seus elementos de validação. É a partir das dimensões afetivas em Bombadeira que lanço mão das ideias de Jaques Rancière, pela qual retomo a reflexão sobre o conceito de representação apresentado no capítulo inicial. As possibilidades de abordagens do campo da imagem também são retomadas com Butler em dois textos da autora que não versam especificamente sobre o queer, mas mais sobre a ideia de precariedade e das vidas que são dignas de serem choradas quando perdidas. Portanto, acompanhada de Rancière, Butler e munida do filme, tento observar como se agencia a partilhas de outras sensibilidades ou, quem sabe, das sensibilidades dos outros em Bombadeira. 66
Partirei da reflexão sobre a ideia de “homem”, enquanto unidade do universal “humanidade”, suas vinculações ao humanismo nos trabalhos de Vladimir Safatle e, novamente, Judith Butler, e à modernidade, sob as proposições de Bruno Latour, para logo retornar a Butler, Rancière e aos filmes e perguntar, enfim, que corpos importam e que vidas são dignas de serem choradas? O personagem de Llosa faz questão de deixar claro que pertence à raça humana, e é na precariedade de sua existência, na sua impossível constituição morfológica, no seu inevitável “apesar das aparências” que o caráter de sua humanidade dialoga com a humanidade que desejo procurar no cinema brasileiro contemporâneo, que habita as personagens que me mobilizam.
2.1 Comentários sobre o humano e o inumano
É certo que o primeiro entendimento de humanidade, para além da totalidade de homens que vivem na terra, está ligado ideia de algo que se repete em nós, seres humanos pertencentes a essa totalidade, enquanto entes vivos, independente de nossa localização geográfica, religiosa, sexual, dentre outros marcadores de diferenças. Quando adjetivo, tornar algo humano, humanizar, está sempre associado à bondade, brandura, complacência. Nos dicionários se fala também em certa natureza humana como significado que acompanha esses termos. Mas a ideia que nos convence de que há algo em nós que nos é exclusivo em relação aos outros entes que habitam o mundo não é exclusiva do senso comum e não se afirma apenas nos dicionários. Francis Wolff, em As quatro concepções de homem (2009), faz uma apanhado da concepção filosófica de homem em quatro momentos da história ocidental. A primeira concepção, “a antiga”, tem Aristóteles anunciando o homem como animal racional ou político, “a clássica”, com Descartes e o homem pensante, consciente de si mesmo, dividido entre duas substancias, a do cogito e a do corpo, esta última não pensa, é pura natureza e é pela associação intrínseca entre as duas substâncias que a humanidade nem sempre é racional, podendo ser acometida por paixões e sentimentos, advindos da “substância estendida”, o corpo, em oposição à “substância pensante”. A terceira seria “o homem das ciências humanas”, que perde a soberania de sua consciência quando cada disciplina aborda uma de suas especificidades para dizer, em última 67
instância, que ele não tem domínio sequer sobre o que pensa. Neste momento, o homem passa a ser sujeito, e a estes sujeitos pode estar associada a característica de mais ou menos humanidade. Dentre as sujeições que o constituem enquanto humanos está a sujeição à linguagem, “ele só pode pensar o que consegue dizer [...]. Não é porque penso que consigo dizer o que penso, é porque posso dizer ‘eu’ que consigo dizer, e inclusive acreditar, que sou uma coisa pensante” (WOLFF, 2009, p. 48). A quarta concepção de homem é oriunda das ciências cognitivas e, para o autor, constituem o paradigma contemporâneo. O homem volta a ser um animal como outro qualquer, cada espécie com suas especificidades, a humanidade não pode ser definida pelas características específicas da espécie, é o retorno do naturalismo, mas diferente do naturalismo fixo do homem aristotélico, o naturalismo contemporâneo é evolucionista, desenvolve-se junto às novas ciências, como a neurociência, por exemplo. Dessa maneira, não há essência fixa, mas sim uma série de características e necessidades que o constitui ao longo da evolução. A reflexão de Wolff é bastante interessante para perceber o quanto as concepções de homem estão ligadas a regimes de verdade específicos. Como ele mostra, a concepção de homem antigo diz respeito a validação das ciências naturais, e a de homem clássico valida a concepção do pensamento científico e seu projeto de conhecimento e domínio da natureza, uma vez que ela é composta por entes de fácil apreensão dada a ausência do exercício de pensamento nos mesmos. Como atenta Wolff, a própria concepção de homem em Descartes foi concebida em análises comparativas entre homem e natureza. Já o homem das ciências humanas, cheio de ilusões sobre si, completamente enganado, somente pode se conhecer a partir dessas ciências, e pela primeira vez ele é colocado enquanto objeto mesmo da produção de conhecimento. Dado este panorama, gostaria de voltar para o homem das ciências humanas, porque talvez o paradigma que lhe encurrala, sua imprescindível ignorância que valida o campo das ciências humanas tenha uma reflexão mais frutífera para este trabalho, aquela mesma que anunciou a sua morte cinquenta anos atrás em As ciências humanas, último texto de As palavras e as coisas (2007) de Foucault. Para ele, o homem é uma invenção recente, que surge com as ciências humanas, e não é por ser quase célebre de tão disseminada que posso deixar de incorporar aqui a citação do final do texto do livro supracitado: Uma coisa em todo caso é certa: é que o homem não é o mais velho problema nem o mais constante que se tenha colocado ao saber humano. Tomando uma cronologia relativamente curta e um recorte geográfico
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restrito – a cultura europeia desde o século XVI – pode se estar seguro de que o homem é aí uma invenção recente. Não foi em torno dele e de seus segredos que, por muito tempo, obscuramente, o saber rondou. De fato, de todas as mutações que afetam o saber das coisas e de sua ordem, o saber das identidades, das diferenças, dos caracteres, das equivalências, das palavras – em suma, em meio a todos os episódios dessa profunda história do Mesmo – somente um, aquele que começou há um século e meio e que talvez esteja em vias de se encerrar, deixou aparecer a figura do homem. E isso não constitui liberação de uma velha inquietude, passagem à consciência milenar, acesso a objetividade do que, durante muito tempo, ficara preso em crenças ou em filosofias: foi efeito de uma mudança nas disposições fundamentais do saber. O homem é uma invenção cuja recente data a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente. E talvez o fim próximo. (FOUCAULT, 2007, p. 536)
No capítulo final de sua arqueologia das ciências humanas, o autor concentra-se em mostrar como a figura do homem aparece, a partir da passagem do século XIX, como personagem epistemológico fundamental das chamadas ciências humanas, esse conjunto de discursos que abordam as dimensões empíricas do homem. Wolff concorda com Foucault quando diz que o homem das ciências humanas desconhece a si próprio, mas a abordagem Foucaultiana nos permite observar que o que há de fundamental nesta ausência de consciência, que para além da legitimação de todo um conjunto de disciplinas, é a posição que o homem passa a ter no campo de produção de conhecimento, passando a ser “acontecimento na ordem do saber” (FOUCAULT, 2011, p. 477). O aparecimento do homem provoca uma reorganização do campo epistemológico, confere forma às ciências humanas, que não se debruçam sobre ele, mas mais precisamente sobre a representação que ele é capaz de fazer de si mesmo, seja no campo social, linguístico ou, de maneira mais distante da ideia de representação, no campo do inconsciente. Foucault insiste que não é o homem em si que as humanidades investigam, mas sobre “o que se estende entre o que o homem é em sua positividade (ser que vive, trabalha, fala) e o que permite a esse mesmo ser saber (ou buscar saber) o que é a vida, em que consiste a essência do trabalho e suas leis, e de que modo ele pode falar” (FOUCAULT, 2011, p. 488). Em Foucault, a pergunta que inicia as reflexões de Lyotard: “O que se chamará de humano no homem, a miséria inicial de sua infância ou a capacidade de adquirir uma ‘segunda’ natureza que, graças a linguagem, lhe faz apto para compartilhar a vida em comum, na consciência e na vida adulta?” (LYOTARD, 1998, p. 11) já está previamente respondida, se as humanidades são capazes de investigar somente as representações que o homem faz de si mesmo, seus mitos, suas línguas, seus sistemas simbólicos familiares, escolares, as funções e os choques que se desprendem dessas representações, o homem somente existe quando capaz 69
de produzir e se filiar a linguagem. Em minha leitura, contudo, a arqueologia foucaultiana não reduz o homem ao discurso, mas propõe que as suas instâncias que fogem a razão sejam abordadas de maneira distinta, nas operações da psicanálise e da etnologia, que para ele não podem ser ciências humanas, e constituem as duas ciências do inconsciente. Contudo, a proposta não é mais deixar à etnologia realizar o estudo comparativo dos povos sem história para a partir de documentos arqueológicos descobrir e valorar a história desses povos, pois essas comparações sempre têm um único referente, as sociedades europeias, já à psicanálise, resta abandonar o status de saber objetivo que debruça-se sobre o homem justamente no que escapa à representação consciente. Neste sentido, Foucault propõe que a psicanálise encontre uma dimensão etnológica, para não mais se deter na explicação de fenômenos manifestados por indivíduos, e sim perceber o que do inconsciente pode ser analisado como uma estrutura formal, manifesta no campo social. Em uma operação semelhante, a etnologia, à nível do indivíduo, poderia concentrar-se na definição de estruturas formais que tornam significantes os discursos midiáticos formando os sistemas do inconsciente cultural. Tal operação, cujo exercício empreendo de maneira mais veemente no capitulo final, revelaria que tanto nos sistemas sociais, como nos sistemas linguísticos, há um número limitado de possibilidades de representação e que as demais não estão interditadas por cesura, há um desejo majoritário em não vê-las. Elas são construídas de maneira semelhante as palavras que se escolhe para compor um texto, uma vez escritas, tomam parte em um universo limitado e excluem todas as outras, mas como operamos essas escolhas? Seria essa a dimensão social do inconsciente, aquela que resulta em manifestações da estrutura do inconsciente nas regularidades sociais? Do interior da linguagem experimentada e percorrida como linguagem, no jogo de suas possibilidades estiradas até seu ponto extremo, o que se anuncia é que o homem é “finito” e que, alcançando o ápice de toda palavra possível, não é ao coração de si mesmo que ele chega, mas às margens do que o limita: nessa região onde ronda a morte, onde o pensamento se extingue, onde a promessa da origem recua indefinidamente. (FOUCAULT, 2011, p. 531)
O fim do homem é, portanto, o fim da imagem do homem, da sua possibilidade de apreensão pela linguagem, é o que a psicanálise, ao insistir em posicionar inconsciente enquanto objeto do conhecimento a ser acessado pela linguagem, certamente perde de vista. Foucault, mais do que colocar o homem na história das humanidades, das ciências da 70
modernidade, o entende enquanto própria historicidade do tempo moderno. Para ele, quando a história se debruça sobre a história da vida ou sobre a história da linguagem, por exemplo, é o homem que delineia e ao mesmo tempo é a pauta da narração, ele é a sua própria história, mas é também “a dispersão radical que funda todas as outras” (FOUCAULT, 2011, p. 512). Os movimentos do homem não podem escapar da história, de ter uma história. A história é aqui o limite das ciências humanas e do homem. Este homem, que pelas contas de algum já se findou, é o homem moderno, e estou segura de que foi ele o fundador da ideia de modernidade para qual Jean-François Lyotard e Bruno Latour realizam revisões do que seria seu tempo, o mesmo tempo no qual se concedeu uma substância ao que chamamos humano. Mas o que seria essa modernidade afinal? A modernidade é muitas vezes definida através do humanismo, seja para saudar o nascimento do homem, seja para anunciar sua morte. Mas o próprio híbrido é moderno, uma vez que este continua sendo assimétrico. Esquece o nascimento conjunto da “não-humanidade” das coisas, dos objetos ou das bestas, e o nascimento, tão estranho quanta o primeiro, de um Deus suprimido, fora do jogo. A modernidade decorre da criação conjunta dos três, e depois da recuperação deste nascimento conjunto e do tratamento separado das três comunidades enquanto que, embaixo, os híbridos continuavam a multiplicar-se como uma consequência direta deste tratamento em separado. E esta dupla separação que precisamos reconstituir, entre o que está acima e o que está abaixo, de um lado, entre os humanos e os não-humanos, de outro. (LATOUR, 2009, p. 19)
Já sabemos que o conceito de homem tem uma história, uma origem e também seus limites. Contudo, dele derivam outros conceitos, inspirados em existências talvez um pouco menos humanas e com outras qualidades e potências. Jamais fomos modernos (2009), sentencia Bruno Latour em sua revisão da constituição moderna e da constituição das ciências humanas. O filósofo francês debruça-se na inflexão dos paradigmas da modernidade para constituir o conceito de híbridos, aqueles que rompem as fronteiras natureza versus cultura, orgânico versus inorgânico, artificial versus orgânico, e que não são frutos de um pós-tempo, mas sim da modernidade. Os híbridos nascem e não cessam de nascer durante toda a modernidade como desafios à divisão absoluta, são de antemão impossíveis, de natureza e cultura indefinidas, desafiam a ética e o pensamento científico, ainda assim, se servem de ambos. Latour os chama de monstros, de constituição natural-cultural, que embora sejam produtos dela, são colocados pelo paradigma da modernidade como menos humanos. O híbrido é possível a partir do desenvolvimento das tecnologias modernas, das indústrias pós-guerras, eles misturam temporalidades, são capazes tanto de artificializar a 71
natureza, a exemplo dos agrotóxicos, e também de tornar orgânico o inorgânico, de corporificar a coisa, e nesses últimos casos não posso deixar de pensar nos implantes de silicone (industrial ou não), nas próteses penianas, na testosterona em gel, dentre outros artefatos quase humanos e que, por vezes, colocam os humanos que os utilizam em situações de menor humanidade. O paradigma que separa os seres puros dos seres híbridos não se sustenta em nenhum dos tempos, as próteses humanas e a humanização das coisas são empreendimentos das ciências médica, mas também da linguagem, e o gerenciamento do atributo de humanidade conferido a alguns em detrimento de outros é uma questão, sobretudo, da biopolítica que gerencia os corpos. São as trans exemplos do híbrido de Latour? Sim, certamente, e dessa assertiva muitas outras questões referentes à humanidade e sexualidade poderiam ser levantadas, mas por hora decido seguir esse texto em busca do inumano. Volto para um estudioso do campo da psicanálise, Vladimir Safatle. Ele atenta que quando Foucault afirma o fim do homem, tal fim deveria ser compreendido como libertação para novas possibilidades de existência, e não como uma morte absoluta, desaparecimento ou liquidação, o que fica claro nas reflexões foucaultianas que acionei acima, e também quando o mesmo trata mais a diante, em seus escritos especialmente a partir do primeiro volume da História de Sexualidade (1988), da estética de si. Para Safatle (2009), é a libertação identitária do homem com essa ideia de humanidade que nos propõe as possibilidades políticas portadoras de um horizonte verdadeiramente novo. Ele festeja a morte da figura do homem como formulada por Foucault porque este pode ser o início de várias possibilidades de devir do homem. Saflate desenvolve suas reflexões explicitando as conexões entre o projeto teológico ao qual o humanismo diz se opor por excelência e humanismo em si mesmo. Para ele, a identidade de homem do humanismo repete as características principais do mesmo Deus que esse conjunto de disciplinas pretendia enterrar. Ele retoma Deleuze para afirmar que autonomia, autenticidade e unidade, características conferidas aos humanos pelo humanismo enquanto privilégio de sua condição humana, já eram desde antes divinas, e “nesse sentido, por mais contraditório que possa parecer, a crítica ao humanismo é, na verdade, crítica à determinação do campo possível de experiências por modos de pensar herdados de construções teológicas” (SAFATLE, 2009, p. 205). Foucault mesmo já atenta que a morte de Deus não pode acontecer sem a conjunta morte do homem. Entregando ao homem as mesmas peculiaridades de Deus, o humanismo seria a continuação do projeto teológico de felicidade. 72
Essas inscrições (autenticidade, autonomia e unidade) são o que compõe a figura humana, e por conta dela “sentimo-nos seguros ao reencontrar a imagem identitária do homem, a ponto de imaginar que a ausência de tal imagem só poderia gerar o caos e a deposição de todo projeto de racionalização social” (SAFATLE, 2009, p. 201). Para Safatle, a capacidade de se reconhecer no que não possui a imagem identitária do homem é, em contrapartida, a possibilidade de renovar o pensamento, as lutas políticas e as estratégias de crítica do mundo. Felicidade, como lembra o autor, é a primeira premissa dos Direitos do homem e do cidadão de 1973, “pela a felicidade geral de todos os homens” (2009, p. 200), delibera a normativa. Entretanto se, como mostram Foucault e Safatle, esse homem tem identidade definida e certamente alguém está excluído à presunção geral de felicidade. Mas quem será e sob quais justificativas? Quais experiências são possíveis e quais são impossíveis para o homem, sendo que “impossível” não significa aqui “não existente” mas simplesmente “não pensável” [...] Quais experiências estão impossibilitadas de serem pensadas e integradas à vida devido ao advento do homem? (2009, p. 205). Neste sentido, acrescento as reflexões de Jean-François Lyotard em Lo inhumano, as
quais completam a questão acima: “E se, por uma parte, os humanos, no sentido do humanismo, estiverem obrigados a chegar a ser inumanos? E se, por outra parte, o ‘próprio’ do homem fosse estar habitado pelo inumano?” (2008, p. 10). O inumano de Lyotard não se constitui como uma unidade existente absoluta mente fora do humano, ou fora do sistema de significações e de visibilidade, ele integra, assim como o monstruoso personagem de Llosa, a raça humana, não apenas porque sua existência é constituinte do próprio estatuto de humanidade, que perderia em unidade, autenticidade e autonomia caso a ideia de algo que está despossuído de humanidade não lhe fizesse contraponto, mas porque o inumano, assim como o híbrido, é constituído e constituinte da própria humanidade moderna, é o traço que lhe excede, que lhe dá existência, que lhe compõe não pelo lado de fora, pois sua sombra aparece sempre que se procura a essência do humano, ele está lá, onde Foucualt sugere que a representação está suspensa, onde, para a abordagem psicanalítica, constitui-se o campo do inconsciente. Não reconhecemos o inumano em algo que está completamente apartado de nós mesmo, e ele nos aterroriza por isso mesmo, porque faz parte do nós e nos diz sem nenhum constrangimento: “Reconheça-me, reconheça-se”. Lyotard também atenta que é tarefa das artes aventurar-se no testemunho do inumano. 73
Mas como encontrá-lo? É possível representá-lo? Como Safatle atenta, é fácil reconhecer elementos desprovidos de humanidade em situações de catástrofe, nos grandes acontecimentos histórico-sociais que chocam a sociedade e são logo, em suas causas, atores e consequências, adjetivados de “desumanos”. Em diálogo com Lyotard e Foucault, Safatle observa tais situações e, ao revés, afirma que eles constituem os “resultados da incapacidade de se reconhecer naquilo que não tem mais a forma do homem” (LYOTARD, 2008, p. 213). Para ele, uma sociedade que investe no projeto de destruição do inumano somente se torna humana tarde demais. Nestas situações pode-se reconhecer a presença do inumano, ele passa por nós, iluminado na clareira aberta pelos estados de exceção aos quais sua imagem se vincula de forma massiva, sendo explorada pela mídia de massa. As guerras, os atentados, os acidentes de grandes proporções, dentre outros fatos, são seguidos da multiplicação de imagens de corpos desfeitos, mutilados, aniquilados, narrativas sobre vidas perdidas de forma brutal, saudades, luto, campos vazios, máquinas de tortura, câmaras de gás, exércitos de extermínio, armas, etc. A partir das imagens do que seria o exercício das capacidades mais desumanas do homem é que nos tornamos mais capazes de reconhecer e de nos mobilizar em torno dele, na maioria das vezes, somente de forma cínica. É pelo marco da guerra que Butler vai reflexionar sobre a humanidade. Recorro aqui especificamente a dois textos da autora: Vida Precária (2011) e Marcos de Guerra e Vidas lloradas (2010). No segundo ela vai observar as poesias dos prisioneiros de Guantánamo e as fotografias de morte da guerra no Iraque, para pensar a representação do outro dentro de uma “norma visual”, para mostrar, enfim, como algumas vidas são dignas de serem choradas enquanto outras, cujo desaparecimento não chega a ser percebido, não são dignas de sofrimento. Tais reflexões já haviam de alguma forma sido levantadas pela autora em Vidasprecária, e começo aqui por esse primeiro. Para que ainda servem as humanidades? Esta pergunta é posta desde o primeiro momento e é o pano de fundo das reflexões no texto. Afinal, depois da morte do homem e dos limites das ciências humanas já terem sido tão explorados, em que consiste o valor do trabalho destas ciências? Se as humanidades têm algum futuro como crítica cultural, e a crítica cultural tem uma tarefa no presente momento, é, sem dúvida, no sentido de nos fazer retornar ao humano aonde não esperamos encontrá-lo, em sua fragilidade e nos limites de sua capacidade de fazer sentido. Teríamos que interrogar a emergência e o desaparecimento do humano nos limites do que podemos saber, do que podemos ouvir, do que podemos ver, do que podemos
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sentir. Isso pode nos instigar a, afetivamente, revigorar os projetos intelectuais da crítica, do questionamento, da tentativa de entender as dificuldades e demandas da tradução cultural e do dissenso, e de criar um senso do público no qual vozes de oposição não são temidas, degradadas ou descartadas, mas valorizadas pela instigação à democracia sensata que ocasionalmente realizam. (BUTLER, 2011, p. 20)
Em todas as revisões do projeto de homem do humanismo, tanto em Latour, Lyotard, Foucault, como em Safatle e Butler, cada um a sua maneira, concordam que é mais produtivo pensar o homem pelos limites, operação que necessariamente retoma a ideia de política, que não mais pode pertencer à uma esfera social que seria externa a produção de ciência, e como aponta Latour, é o conceito de representação que está aí implicado. Quando consideramos as formas comuns de que nos valemos para pensar sobre humanização e desumanização, deparamo-nos com a suposição de que aqueles que ganham representação, especialmente autorepresentação, detêm melhor chance de serem humanizados. Já aqueles que não têm oportunidade de representar a si mesmos correm grande risco de serem tratados como menos que humanos, de serem vistos como menos humanos ou, de fato, nem serem mesmo vistos. (BUTLER, 2011, p. 8)
Se, em Vidas precárias (2011), as assertivas sobre representação concentram-se na esfera política do termo, em Vidas lloradas (2010), quando Butler recorre a circulação de imagens e poesias produzidas em estados de guerra para pensar as condições éticas nas quais se explicita a economia da atribuição de humanidade, conferida a alguns e retirada de outros, ela retoma representação não somente enquanto representação midiática ou artística, mas como possibilidade de partilha de experiências. O movimento da imagem ou da poesia fora do confinamento é uma espécie de evasão, de maneira que, ainda que nem a imagem nem o texto não possam libertar ninguém da prisão, deter uma bomba nem, seguramente, interferir no curso de uma guerra, elas podem sim oferecem as condições necessárias para evadir-se a aceitação cotidiana da guerra e para um horror e um escândalo mais generalizado para que apoiem e fomentem chamados à justiça e ao fim da violência. (BUTLER, 2010, p. 27, tradução nossa) 24
A potência política das imagens e dos versos consistem em fazer apreender, mais do que reconhecer ou identificar, a precariedade de vidas que não são mais vidas, tais como as imagens dos mortos e das poesias dos prisioneiros às quais a autora dedica o livro, mas que talvez nunca tenham sido vidas dignas de serem vividas. 24
No original: “El movimento de la imagen o del texto fuera del confinamento es uma especie de evasión, de manera que, aunque ni la imagen ni la poesia puedan libertar a nadie de la carcél, detener una bomba ni, por supuesto, intertir el curso de uma guerra, si oferece las condiciones necessarias para evadirse de la aceptacion cotidiana de la guerra y para un horror y un escândalo más generalizado para que apoyen y fomenten llamamientos a la justicia y al fin de la violência”.
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Para a autora, a apreensão, diferente da representação, não vem da identificação por marcos, identidades, nomes ou normativas, pois é a apreensão das dinâmicas da marcação, da identificação, da nomeação e da normatividade que produzem a precariedade de algumas vidas e a plenitude de outras. Nas palavras de Butler, apreender consiste em perguntar “Como a estrutura do marco consegue produzir afeto? Qual é a relação entre afeto, um juízo e uma prática de índole ética e política?” (2010, p. 29, tradução nossa) 25. A suspeita de Safatle, de que os momentos de catástrofe são fruto das tentativas de purificação ou adequação do humano a um determinado projeto de homem, é confirmada por Butler: Como contrapor o sofrimento humano sem perpetuar uma forma de antropocentrismo que tem sido geral e facilmente utilizada para fins destrutivos? Tenho que deixar claro em que considero que consiste o humano? Proponho que consideremos como funciona o humano como norma diferencial. [...] A norma segue produzindo a quase impossível paródia de um humano que não é humano, ou de um humano que borra o humano tal como se conhece pelos demais. Sempre que está o humano, está o inumano. (BUTLER, 2010, p. 112, tradução nossa) 26
A humanidade é, portanto, uma prerrogativa cambiante, e é a dinâmica da norma que a rege e as humanidades devem concentrar-se em lê-las, cultural e eticamente, sendo essa a sua função, que não pode ser realizada sem estilhaçar todas as noções de progresso e os binarismos que ela outrora fundou. Mas Butler está falando de guerras, das guerras que consideramos de verdade, anunciadas enquanto guerra pelos Estados envolvidos, estados de exceção assumidos, noticiados no mundo inteiro. As imagens que ela analisa circularam em grandes jornais, enquanto este trabalho está restrito à abordagem de algumas das Notícias de uma guerra particular (João Moreira Sales, 1999). Para ela, observar a dinâmica dos marcos, os limiares da imagem e sua circulação, é tratar do que ela chama de “norma visual”, e que opera sobre a afecção aos marcos de guerra. De maneira semelhante, estou falando da distribuição das imagens do Outro, como a construção de um humano e de um inumano não existe fora dos marcos de diversidade sexual e de gênero que incidem nessa norma visual. 25
No original: “Cómo se consigue producir afecto esta estructura del marco? Cual és la relación entre afecto y um juicio y uma práctica de índole ética y política?”. 26 No original: “Como objetar el sufrimiento humano sin perpetuar una forma de antropocentrismo que ha sido general e facilmente utilizada para fines destructivos? Tengo que dejar claro en que considero que consiste lo humano? Propongo que consideremos cómo funciona lo humano como norma diferencial. [...] La norma sigue produciendo la quase impossible paradoja de un humano que no es humano, o de un humano que borra lo humano tal y como se conoce por lo demás. Siempre que esta lo humano, esta lo inhumano”.
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Nas palavras de Butler, se trata de pensar no afeto não somente como estrutura individual, subjetiva e inconsciente: “desde o princípio, o afeto nos vem comunicado desde outra parte, nos dispõe para perceber o mundo de certa maneira, para deixar entrar certas dimensões do mundo e opor resistência a outras” (2010, p. 79, tradução nossa) 27. Ela deixa claro que o circuito do afeto é social, que ele opera pela dinâmica da visibilidade, da circulação de imagens, e nisso consiste a outra ponta que a ideia de norma visual, a que liga a imagem e humanidade: “de que maneira as normas que regem que vidas serão consideradas humanas entram nos marcos mediantes os quais se desenvolve o discurso e a representação visual, e como estas delimitam ou orquestram nossa capacidade ética de resposta ao sofrimento” (2010, p. 114, tradução nossa) 28. Nos filmes que aqui abordo, a imagem do Outro reproduzida na tela é uma máquina revolucionária, mas não de representação ou de interpretação. A imagem por si só já interpreta, e o ato de registrá-la é uma interpelação da realidade. Esta imagem se oferece, de uma vez por todas, como chamamento. “O corpo respira, respira com palavras e encontra aí certa sobrevivência provisória. Contudo, uma vez que o alento se transforma em palavras, o corpo se entrega a outro em forma de chamado” (2010, p. 92, tradução nossa)29. Assim, a ideia de humanidade, em sua acepção de senso comum, aquela que não encontramos quando vemos imagens que nos chocam, mobiliza de um lado a representação e de outra, o afeto. Mas estas não são, de maneira nenhuma, instâncias separadas. Elas se articulam pela norma visual. Os filmes rompem o regime de visibilidade porque operam de forma a revelar a dinâmica da norma visual. E se o Outro se entrega em forma de chamado, ele somente é perceptível pelo reconhecimento e repulsa que temos da sua inumanidade, pois nela, como afirma Lyotard e Safatle, é que estão as possibilidades de agenciamentos políticos mais frutíferos para repensar a condição humana, sua distribuição e seus limites produtivos. As imagens que abordo nesse trabalho, se não podem ser ditas de guerra, no sentido de uma guerra geopolítica tradicional, podem sem dúvidas compor o cenário de uma guerra micropolítica que atinge o campo da produção de subjetividades, guerras particulares cuja circulação de imagens atua de maneira constitutiva na produção do afeto que pode ser 27
No original: “desde el principio, el afecto nos viene comunicado desde otra parte, nos dispone para percebir o mundo desde cierta manera, para dejar entrar ciertas dimensiones del mundo e oponer resistencia a otras”. 28 No original: “de qué manera las norma que rigen qué vidas serán consideradas humanas entran em los marcos mediante los quales se desarrolla el discurso y la representación visual, y como estas delimitan u orquestran nuestra capacidade ética de respuesta al sufrimiento”. 29 No original: “El cuerpo respira, respira com palavras (imagens) y encuentra ahí cierta supervivência provisional. Pero uma vez que el aliento se convierte en palabras, el cuerpo se entrega a otro en forma de un llamamiento”.
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mobilizado para com o modo de vida do Outro, e as imagens que eles carregam implicam não somente nas condições de produção e circulação, o que sem dúvidas é parte constitutiva da norma visual, mas o que me interessa agora, a partir dos filmes, é encontrar as sombras do inumano nestes filmes, os espaços onde a representação se colocou em suspenso, e as imagens foram capazes de mobilizar agenciamentos afetivos enquanto estratégias políticas de partilha do sensível.
2.2 A política do afeto em Bombadeira
No primeiro capítulo deste trabalho concentrei-me em mostrar que a representação da transgressão sexual e de gênero no cinema documentário brasileiro pode ser melhor abordada quando a crítica realizada pressupõe a transgressão do conceito mesmo de representação, ou de uma certa ideia de representação. Como se apresentam imagens capazes de romper com o regime representativo que promove identificação através da mimese e da verossimilhança? Incorporei às críticas de uma dada pós-modernidade na abordagem já executada, e para arrematá-la, ofereço neste último tópico uma abordagem que concerne a recolocação dos filmes na esfera política, desta vez não mais em relação as rupturas relacionadas aos contextos de produção das mesmas, mas sim da ordem do encontro, do afeto. Para esta reflexão, afeto pode ser entendido como um conceito que carrega as conotações de intensidade e dinamismo corpóreo que energizam as forças da sociedade. Isso não pode ser pensado fora das complexidades, reconfigurações e iner-articulações do poder. A múltipla semântica da noção de afeto emerge aqui como particularidade sugestiva: afeto como paixão social, como phatos, simpatia e empatia, como trauma e sofrimento político afetado pelo outro, mas também como incondicional e responsável [resposta capaz de] abertura para ser afetado por outros – de ser moldado pelo contato com outros. (ATHANASIOU et al., 2008, p. 6, tradução nossa)30
Para Athena Athanasiou, Pothiti Hantzaroula e Kostas Yannakopoulos (2008), o afeto figura como estrutura de sentimento, que não é deliberativa ao ponto de que um espectador possa decidir o que comove a si mesmo, ou mesmo a qualidade ou quantidade de sentimento que lhe prende a determinadas situações e imagens, e por isso tão pouco pode ser dita como 30
No original: “bears the connotations of bodily intensity and dynamism that energise the forces of sociality. It cannot be thought outside the complexities, reconfigurations and interarticulations of power. The semantic multiplicity of the notion of ‘affect’ emerges as particularly suggestive here: affect as social passion, as pathos, sympathy and empathy, as political suffering and trauma affected by the other, but also as unconditional and response-able openness to be affected by others – to be shaped by the contact with others”.
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pré-destinada ou programada, contudo, pode ser entendida em suas dinâmicas, ou seja, mais do que identificar o afeto como produto de uma motivação advinda do campo de significação em direção ao campo da experiência, deve-se observar a estrutura mesma que define e separa essas duas instâncias, e também a distância incomensurável que separa essas esferas no que diz respeito a multiplicidade de sentidos possíveis para cada imagem ou conjunto delas. O desafio consiste em repensar as oposições binárias entre razão e emoção, discurso e afeto, em uma reconfiguração ética capaz de reapropriar o que entendemos por “emoções” em um panorama de complexas relações entre poder e subjetividade. Elas continuam: Mas como nos tornamos movidos pelos discursos afetivos de dor, amor, culpa ou perda? Como as subjetividades são afetadas nesse contexto de mover para, ou afastar-se de objetos e sujeitos, ideias e ideias, espaço social e corporal? Como específicos corpos, vidas e formas de vida são construídos como amáveis, lamentáveis e avaliáveis para a cultura normativa de engajamento afetivo, e como outras são transformados em objetos de ódio e aversão? (ATHANASIOU et al., 2008, p. 7, tradução nossa) 31
O cinema é uma das máquinas que nós move por afeto, sendo assim, é possível observar nele tanto a dimensão afetiva do normativo e também suas condições de ruptura. De antemão, tenho em vista que o agenciamento que pode ser mobilizado por um filme, ou por um conjunto de filmes, é de ordem micropolítica e que os microprocessos revolucionários devem considerar, por exemplo, o fato de que a relação de um indivíduo com o cinema, assim como com a música ou a pintura “pode acarretar um processo de percepção e de sensibilidade inteiramente novo” (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 47). Retomo portando, o debate inicial, que visa apresentar os argumentos de falência do regime representativo destas imagens, mas desta vez para encontrar no regime estético, tal como formulado por Jaques Rancière, a possibilidade de pensar as forças que movem estes filmes, agenciamentos da ordem do sensível, da sua partilha. Para Rancière, estética é: É um recorte dos tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído que define ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de experiência. A política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo. (RANCIÈRE, 2009, p. 17)
Em contrapartida à ideia de estética está o dispositivo de representação, que para o 31
No original: “But how do we become ‘moved’ by affective discourses of pain, love, guilt or loss? How are subjectivities affected in these contexts of ‘moving’ towards or ‘turning’ away from objects and subjects, ideas and ideals, social and bodily spaces? How are specific bodies, lives and forms of life constructed as loveable, grievable and available to the normative culture of affective engagement, and how are others transformed into objects of hate and aversion?”
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autor concentra o problema da passagem do regime representativo para o regime estético. O dispositivo de representação sempre falha, e a falha do mesmo se dá quando, por exemplo, os atos de transmitir mensagens, oferecer modelos e contramodelos são percebidos como não sendo a principal dimensão política da arte, e quando a crítica não é um exer cício de decifração e valoração. Para Rancière, o regime representativo da arte não é definido pela obrigação da semelhança, mas pelas lógicas que obrigam essa semelhança a estar adequada a um modelo de visibilidade da palavra que ao mesmo tempo regula uma certa contenção do visível, uma regulagem das relações entre efeitos de saber e efeitos de phátos, [...] um regime da racionalidade próprio à ficção, que subtrai seus atos de palavra aos critérios normais de autenticidade das palavras e das imagens para submetê-los a critérios intrínsecos de verossimilhança e conveniência. (RANCIÈRE, 2003, p. 130)
Com Rancière é possível afirmar que as regularidades discursivas dos filmes brasileiros recentes que revisamos no primeiro capítulo e que resultam no embraquecimento dos personagens, na assepsia de seus corpos, dentre outras regularidades discursivas, são efeitos de conveniência, fazem parte do regime de contenção do visível, característica do regime representativo que se explicita também na verborragia dos casais não heterossexuais, que precisam falar sobre suas relações para que o espectador tome conhecimento delas. A relação imperativa da palavra que condiciona a ação, a imagem e o pathos, e essas três à narrativa, é a condição do regime representativo que quero explorar em sua ruptura, pois acredito que alguns filmes são capazes de tomar parte nas estratégias dos artistas que se propõem a modificar as referências daquilo que é visível e enunciável, de fazer ver aquilo que não era visto, de fazer ver de outra maneira aquilo que era visto de maneira fácil, de por em relação com aquilo que não estava, com o objetivo de produzir rupturas no tecido do sensível das percepções e das dinâmicas dos afetos. (RANCIÈRE, 2010, p. 66, tradução nossa) 32
Em nenhum dos filmes aqui abordado, há uma ruptura decisiva com as amarras da semelhança que constituem o regime representativo. A palavra está, na maior parte do tempo, regendo o entendimento da imagem, a cena da bombação em Bombadeira (2007), por exemplo, é anunciada por pelo menos dez minutos em planos de narrações das personagens sobre o que acham das bombações, suas motivações, as transformações de cada uma, a dor e a 32
No original: “estrategias de los artistas que se proponen cambiar las referencias de aquello que es visible y enunciable, de hacer ver aquello que no era visto, de hacer ver de outra manera aquello que era visto demasiado fácilmente, de poner em relación aquello que no lo estaba, com objectivo de producir rupturas en el tejido sensible”.
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libertação que o ato de bombar proporciona. Tudo isso imediatamente antes da cena que mostra, quase sem mostrar, o processo de bombação. É quase sem mostrar porque são excluídos do quadro, durante toda a sequência, a imagem do rosto das duas personagens que estão em cena, as quais sabemos, por dedução óbvia, que são uma travesti ou transgênero recebendo injeções de silicone industrial e outra pessoa que aplica o silicone, a bombadeira. A ausência do rosto pode ser lida como a ausência da imagem do outro, mas não é a ausência de sua presença. Em alguns dos planos que intercalam os planos de bombação, e que estão presentes também em outros momentos do filme, vemos outra imagem sem Outro, é o plano em que uma personagem dá seu testemunho na penumbra, compondo uma fotografia que nos é familiar, nos deparamos com essa composição (personagem no escuro e paisagem ao fundo) frequentemente nos programas de jornalismo policial.
Fotogramas 10 e 11 - Bombadeira, a dor da beleza (2007)
Em Bombadeira (2007) acredito que são nesses dois momentos, nos quais a imagem fica desprovida de rosto humano, que a voz, enquanto palavra, perde um pouco de sua primazia, tal como solicita Rancière. Retomo Vida precária (2011), quando Butler se inspira na noção de rostidade em Levinas, para dizer que a vulnerabilidade do rosto é a vulnerabilidade do direito à existência, ele expressa a própria humanidade e é capaz de provocar a tanto a rejeição absoluta pelo Outro como a compaixão pela sua vida. Mas o rosto, como ela mesmo afirma, não é a cara, tão pouco é uma exclusividade humana, ele é aquilo que grita “não matarás!”, mas não literalmente. Nestes dois quadros do filme, toda a imagem é feita rosto. A imagem sem rosto mostra o desenho da silhueta na penumbra e uma janela ao fundo. 81
Uma janela que mais parece uma pintura, daquelas que pejorativamente chamamos naïfe e que encontramos aos montes nas ruas do Pelourinho. Enfileirados, os retratos melancólicos e irreverentes mostram os casarões coloridos e seus telhados, as pessoas subindo e descendo as ladeiras, os pretos e as pretas, às vezes sob porcelanas pequenas e outras em telas, confeccionadas pelos artistas locais, de habilidades técnicas e estéticas ditas duvidosas. A exceção da sujeira das paredes dos casarões e dos carros estacionados em fila, suprimidos nas pinturas dos azulejos, a composição é a mesma da janela que está para quadro. Um quadro iluminado, de um cartão postal mal acabado, ainda bonito, é pura história. O único plano aberto do filme, composto quase que exclusivamente por planos fechados, planos detalhe, e muitos close up (rosto), não é um plano, é um plano dentro do plano, uma janela na janela, que concentra o movimento do quadro, pois tudo em volta é sombra, é onde a personagem está, ela que a pouco subiu ou desceu aquela cidade que vemos ao fundo, quem é ela? Não é o rosto que conta a sua história, é todo o quadro que se transforma em rosto. Se o interesse consistir em encontrar os motivos pelos quais os rostos dessas personagens são suprimidos da imagem, é uma leitura possível dizer que, embora possa ter sido contingência (solicitação/ condição imposta pela personagem ou opção do filme em não expor ao regime policial do corpo determinadas personagens), e inclusive por isso, essa operação é também o modo pelo qual o filme nos informa sobre a gerência estatal sobre esses corpos, que estas existências estão sob a escrita do estado, sob sua lei, e é ela que interdita as imagens da presença das personagens sob pena de redução de seus direitos, mas elas já estão interditadas, e por isso mesmo somente podem falar pela sua ausência. Os planos que mostram a bombação também prescindem da imagem do rosto. No lugar dele, vemos em close a pele perfurada por agulhas, várias simultaneamente, as formas que o corpo vai tomando durante as injeções, os poros abertos, silicone e sangue vazando pela perfuração que deveria servir somente injetar, o corpo seminu deitado na cama, os hematomas no corpo, o lençol que cobre apenas uma parte da cama, um pedaço do colchão, tudo acompanhado pelo som direto, os gritos de dor e as falas de consolo da bombadeira “– é normal”, mas nem sempre ela tranquiliza o espectador. Aqui, toda a sequência é o rosto, e ele não clama mais alto porque podemos ouvir a voz do outro, não é na palavra que se concentra seu clamor, mas na sequência de imagens que dividem um corpo em pequenos pedaços de carne transfigurado pelas agulhas e pelo retalho feito pelo retrato fotográfico. A vocalização do clamor está mais próxima do poros abertos e dos olhos apertados. 82
O humano, para Butler, é o elemento que limita qualquer representação, e o rosto não “pode (se) exaurir completamente, o rosto entendido enquanto sofrimento humano, como um clamor do sofrimento humano do qual não é possível ter uma representação direta” (2011, p. 26). Sendo assim, “para a representação exprimir o humano, portanto, ela deve não apenas falhar, mas deve mostrar sua falha” (2011, p. 27). São nessas sequências de imagens que o filme negocia com a contenção do visível da qual trata Rancière, expondo os limites do que pode ser mostrado, e também quebrando com qualquer determinante de regulação do phatos pela palavra. Não nos tranquilizamos com o alento da bombadeira avisando que “está tudo bem” e que “a dor é aquela mesma”; nem mesmo sabendo pelos outros depoimentos da vontade e da necessidade que muitas das personagens tem em passar pela “fada madrinha”, com sua varinha de “dor e sofrimento”. Este é o momento em que muitos espectadores baixam a cabeça ou saem sala, o que pude perceber durante as exibições públicas do filme em que estive presente, e presumo que é o rosto do Outro, clamando “não matarás”, que nós evitamos encarar. Esses dois panos aparecerem, dentre outros, por volta dos cinquenta minutos do filme, que a esta altura se encaminha para o final. As falas giram entre o desejo de transformação e o perigo dessas operações, e são narrações sobre descriminação hospitalar e morte. Algumas personagens morrem antes de finalização do filme, Silvana narra a morte de Leila, e destaca se o testemunho de Emanuel sobre a morte de Michele. Antes, ele já havia falado sobre o seu sonho de casamento, em planos onde seu testemunho consistiu na repetição do discurso que reitera a instituição familiar: Michele de branco, véu e grinalda, em uma cerimônia íntima com muita bebida e comida, “tudo direitinho”. Não posso deixar de lembrar de Venus Stravaganza, em Paris is burning (1990), falando de sua pele branca, de suas mãos pequenas, do valor da sua feminilidade que não a valorava somente no mercado da prostituição de travestis e transexuais, mas era a possibilidade e a esperança de conseguir um marido de verdade. Como atenta Butler em Gender is burning (Bodies that matter) (1993), há, em Paris is Burning (1990), a revelação da aproximação incompleta da norma, que julgo ser da mesma natureza da aproximação incompleta que o testemunho de Emanuel, mas não somente o dele, faz da norma heterossexual. Tais testemunhos denotam a falência constitutiva da norma, quando a performatividade atua como “deslize entre o comando e a apropriação de seu efeito.
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(BUTLER, 1993, p. 122, tradução nossa) 33. Gostaria de replicar parte da análise da autora sobre Paris is burnning, filme que para ela retrata a rearticulação das relações de parentesco que “devem ser entendidas como repetições da forma hegemônica de poder, as quais falham em repetir fielmente e, nessa falência, abrem possibilidades de resignificação dos termos da violação contra a violação e seus objetivos” (BUTER, 1993, p. 124, tradução nossa) 34. Os testemunhos de Emmanuel e de Venus, em sua expressão do desejo de constituir uma família no modelo heteronormativo, não possuiriam o mesmo traço heteronormativo se fossem pronunciados por um casal hetero, e menos ainda quando consideramos que é proferido no interior da máquina cinematográfica, encadeado entre outros testemunhos e outras imagens. A assertiva de Butler serve para afirmar que o desejo de repetição dos valores do casamento como promoção do projeto de família de Emmanuel e Michele é também, mesmo contendo os traços da heteronormatividade, a profanação da própria ideia de família, é a citação da norma que desnuda sua falência. De maneira semelhante, é possível encontrar entre os depoimentos do filme desde falas conscientes da condição subalterna que as trans ocupam nas relações sociais heteronormativas, até falas que repetem com propriedade a valoração do consumo e o pa drão de beleza que se espera de uma mulher média brasileira: - Batom da Boticário, né?! [...]. Bem fraquinho, bem discretinho, só pra dar uma vida nos lábios, tem que tirar o excesso de oleosidade do rosto, pra não ficar oleoso, dá um toque no cabelo, uma ajeitadazinha no cabelo e o rímel um pouquinho [...], [e finaliza] Um creme para ficar a mão macia, para o cliente não reclamar, para não machucar. É isso que eu faço, bem simples. E um perfume né, da Fiorucci, italiano! (BOMBADEIRA, 2007)
Silvana está perfeitamente adequada com as normas de Glória Kalil para o dia a dia da mulher que trabalha: descrição (bem fraquinho, pouquinho), aspecto saudável (dar uma cor aos lábios), limpo (pele sem oleosidade) e com produtos de boa qualidade (Boticário, Fiorucci, italiano!). Ela repete a norma porque o testemunho do Outro, como afirma Rancière, não tem forma própria nem singularidade linguística, apenas a possibilidade de assumir a condição de chamado, é a partilha de uma experiência por meio de uma linguagem reconhecível. Contudo, Gloria Kalil certamente nunca imaginou que as normas de feminilidade 33
No original: “this slippage between discursive command and it’s appropriated effect, which provides the linguistic occasion and index for a consequential disobedience”. 34 No original: “migth be understood as repetitions from hegemonic forms of power which fail to repeat loyally and, in that failure, open possibilities for resignifying the terms of violation against their violating aims”.
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pudessem ser tão bem apropriadas em uma feminilidade prostituta e trans, Silvana também não deve compor o público alvo da empresária, e Silvana, por mais que repita a norma, jamais será a mulher que ela descreve, ela nem pode imaginar Silvana, o que não impede Silvana de saber, assimilar, introduzir no seu dia a dia a etiqueta que ela mesma rasga. Quanto ao testemunho de Emmanuel, sabemos por que ele chora, acreditamos na sua dor. Seu testemunho é a tentativa da máquina, que ele compõe junto ao aparato cinematográfico, de nos mobilizar, e sua fala, não é a manifestação do invisível, oposto a forma visível e da imagem. Ela mesma está grudada no processo de constituição da imagem. É a voz de um corpo que transforma um acontecimento sensível em outro, esforçando-se por nos fazer ver o que viu, por nos fazer ver o que nos diz [...]. Mas essa emoção produzida por sua vez pelo dispositivo do cineasta, desde o momento que este filma essas lágrimas e liga esse plano com outros planos, esta já não pode ser o acontecimento rememorado. (RANCIÈRE, 2010, p. 95)
Suas falas são impulsionadas pela paixão por Michele, pela desejo heteronormativo de casar, seguido pela narração de seu luto, e, na sua última aparição, a vontade de conservar a casa “do jeito que ela deixou”, se referindo as imagens de santos católicos e de anjos com as quais Michele decorava a casa, que ele apresenta logo nas primeiras sequências do filme. Na sua última cena, um letreiro nos informa que “Emmanuel não mora mais na casa de Michele, a família dela é dona da casa...” (BOMBADEIRA, 2007). O testemunho dele não é a reconstrução de sua relação, de sua saudade, de seu amor, ele é a possibilidade de afetar que se produz diante das falas sequenciadas, da sua figura que chora: “A virtude de um bom testemunho é de ser o que obedece ao duplo golpe do real que horroriza e a palavra do Outro que obriga” (RANCIÈRE, 2010, p. 94). Emmanuel obriga o espectador ao reconhecimento de seu sofrimento, e ao um reconhecimento de si mesmo naquele sofrimento. Não estou dizendo que todos os espectadores necessariamente realizem a leitura sociológica de seu depoimento e se reconheçam como mantenedores da ordem heteronormativa que produz existências como a de Michele, de Emmanuel, e das outras personagens sob determinadas condições de precariedade: A experiência extrema do inumano não conhece impossibilidade de representação nem língua própria, não há uma língua própria do testemunho. Nos casos em que o testemunho deve representar a experiência do inumano, ele encontra certamente uma linguagem já constituída do devir inumano, de identidade entre sentimentos humanos e movimentos inumanos. [...] o irrepresentável repousa justamente ai, na impossibilidade de uma experiência se expressar em sua língua própria. Mas essa identidade de princípio entre o
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próprio e o impróprio é a marca mesma do regime estético da arte. (RANCIÈRE, 2012, p. 137)
O que obriga o espectador são os testemunhos em linguagem reconhecível, entrecortado por imagens de forte ausência do outro, do estado de luto entre os anjos e santos, do ritual cotidiano de Silvana que dá duro todo dia e que, caprichosa, revela sua impureza humana na sentença leve sobre a “mão macia que agrada o cliente”. Sendo assim, os depoimentos, em Bombadeira (2007), mais que testemunhos, são chamados, e é na composição deles com as imagens do Outro, especialmente quando elas prescindem da face para compor com o quadro um rosto capaz de enunciar “não matarás”, que posso visualizar o regime estético de Rancière, para quem “uma comunidade emancipada é uma comunidade de narradores” (2012, p. 28). Bombadeira opera na redistribuição dos privilégios do que pode ser dito, de quem pode ser visto, de modo a mostrar que reconfigurar “a paisagem do perceptível e do pensável é modificar o território do possível e a distribuição das capacidades e das incapacidades” (RANCIÈRE, 2012, p. 52). No filme, as imagens não são duplos de um referente real, elas que são parte do empreendimento pela igual condição de representatividade para pequenos e grandes fatos, acontecimentos insignificantes e marcos estatais, eventos cotidianos e catástrofes, heróis e anônimos, ou seja, pela partilha de vários sensíveis singulares. Se tenho me esforçado metodologicamente durante a reflexão, em perguntar cada vez menos sobre a causa das coisas, suas verdades e seus significados, não é pela absoluta descrença na representação, mas pelo desejo de valorizar nela sua possibilidade de multiplicação ao infinito e a sua falência, pois suas lacunas não estão em branco, é nelas que se encontra o Outro, na ausência de sua representação, na sua impossibilidade de rosto, na sombra. O que tal imagem pode nos dizer, além das associações imediatas entre criminalidade e a personagem que o filme não podia se expor, por exemplo, é que sua exposição é certamente uma ameaça contra ela mesma, e para não colocá-la em risco, a sua sombra nos fala, porque ela mesma sabe que não pode deixar de falar. É a presença de sua ausência enquanto portadora de direitos civis igualitários que está suprimida da tela, é também na ausência de sua imagem que a representação opera, exatamente quando admite que não pode representar, mas ainda assim tem que clamar: “reconheça-me, reconheça-se”. O que estas imagens mobilizam não é capaz de mudar o destino das personagens, não conseguiu evitar que apenas duas delas ainda estejam vivas após apenas 4 anos de realização do filme, assim como Estamira (2006) não conseguiu evitar que Estamira morresse por falta 86
de socorro médico em 2011, nem Meninas (2006, Sandra Werneck) evitou que um dos seus personagens sem rosto fosse assassinado em um confronto com a polícia apenas três meses após o fim das filmagens. O que resta deles é a intensidade de suas imagens, os saberes de suas narrativas e, mais especialmente, a partilha de sensíveis singulares, a narração do cotidiano do outro, a aproximação à outros modos de vida, o senso de amizade que daí pode nascer. Essas são as intensidades que tais imagens carregam, que operam em última instância na redistribuição da humanidade, na dimensão política do afeto, na estrutura do que somos capazes de reconhecer enquanto humanidade, se não pela identificação, pela ausência de imagem a se identificar, e a presença de um chamamento a modificar as estruturas dos nossos sentimentos. Butler ainda tem esperanças nas humanidades, para ela, essas ciências têm ainda algum futuro na crítica cultural, e devem se lançar na tentativa de encontrar o humano onde não se espera, “em sua fragilidade e nos limites de sua capacidade de fazer sentido” (2011, p. 32). Acredito que, filiada ao regime estético das artes, o filme se vincula politicamente com as questões queer não só porque expõe a temática e tenta explorar a representação dos personagens não heterossexuais dando ênfase as peculiaridades e diversidades dos personagens. Apressada, essa conclusão na se distanciaria o bastante das análises de representações das minorias sexuais que acionam a categoria humanidade e humanizado como determinante na avaliação positiva ou negativa dessas representações 35, e correria o risco de não apresentarem reflexões no que diz respeito a que índices são tomados para encontrar o elemento humano nas representações, e possivelmente perderia a potência que tais representações possuem de construir o sentido comum do que seria humano. O que mais importa, de agora em diante, é a dupla acepção da partilha, que opera na comunidade de ideias que repartimos sobre o que é humano e na partição dos quinhões de humanidade entre os entes existentes. A norma visual que opera na distribuição dessa humanidade, como tentei mostrar durante esse capítulo, é cindida pelo filme, e o outro se 35
Em A personagem homossexual no cinema brasileiro (2001) de Antônio Moreno, a categoria discurso humanístico como determinante na qualificação positiva ou negativa dos discursos dos filmes analisados; de forma semelhante, o grupo Cultura e Sexualidade utilizou no início de sua pesquisa sobre telenovelas a metodologia para qual se adota o nome de Aquenda (COLLING, 2008), expressão própria do vocabulárrio pajubá, utilizados especialmente entre a comunidade trans* (o uso do asterisco após o emprego da palavra “trans” indica que estou me referindo a transexuais, transgêneros e travestis. A indicação dessa grafia parte do movimento transfeminista e justifica-se como modo de evitar classificações excludentes. Considero que a aplicação se faz necessária, uma vez que as personagens abordadas fazem parte dessas três, e quem sabe de outras categorias mais). Na aquenda, valoriza-se a qualidade de “humanizado” de um personagem, sendo ela de fundamental importância para que se considerasse que a representação do personagem não-heterossexual funcionava de maneira a combater o preconceito e a homofobia.
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apresenta repetindo nosso discurso, um vocativo irrevogável que, em última instância, desperta nossa inumanidade, a retirando da perspectiva que lhe põe em posição oposta ao que seria a humanidade e nos mostrando que não podemos viver sem ela, é a inumanidade mesma que nos constitui humanos. Estamira já sabia: “Eu sou a visão dos outros. Ninguém pode viver sem mim, ninguém pode viver sem Estamira” (ESTAMIRA, 2006).
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CAPÍTULO 3: CECI N’EST PAS UNE FEMME
A humanidade feminista precisa ter outra forma, outros gestos; mas, creio, precisamos ter figuras feministas de humanidade. Não podem ser homem ou mulher; tampouco o ser humano como a narrativa histórica apresentou esse universal genérico. As figuras feministas finalmente, não podem ter nome; não podem ser nativas. A humanidade feminista deve, de algum modo resistir à representação, à figuração literal, e também explodir em poderosos novos tropos, novas figuras de discurso, novas viradas de possibilidade histórica Donna Hardway (1992) E como é que as possibilidades discursivas disponíveis encontram os seus limites em um “subalterno feminino”, entendido como uma catacrese, cuja exclusão da representação tornou-se a condição mesma da representação (Spivak)? Fazer tais perguntas é ainda continuar a colocar a questão da “identidade”, porém não mais como uma posição restabelecida ou uma entidade uniforme, mas como parte de um mapa dinâmico de poder no qual identidades são constituídas e/ou apagadas, acionadas e/ou paralisadas.36 Judith Butler (1993)
Um pouco aquém do manifesto. À esta altura, não deve haver mais dúvidas sobre a disputa da qual tomo parte. A tentativa de lançar mão da ideia de afeto como percurso epistemológico já determina, de forma explícita e talvez arriscada, como observo o campo da comunicação e da produção cinematográfica. Neste último capítulo, para o qual prometi a apreciação mais cuidadosa das imagens, o faço flertando com a escrita manifesto, um pouco menos na forma e um pouco mais do desejo de enfrentar o que tenho formulado, nos pensamentos mais ordinários, como front de batalha. Depois de falar um pouco de humanidade, da noção de homem, e dos sujeitos cujas existências possuem maior aderência à noção de vida, em contraposição à outros cujas existências se aproximam mais da ideia de precariedade, e de ter realizado essa reflexão em paralelo com as noções e “norma visual”, tal qual desenvolvida por Butler, e de “partilha do sensível”, em Rancière, ambas cercadas no segundo capítulo, identifico a necessidade de tratar da ideia de mulher, não mais explorando o campo de formação do conceito, como tentei 36
Passagem retirada do livro Bodies That Matter, 1993, p. 117, de Judith Butler. Tradução livre de Fábio Ramalho do original: “And how is that available discursive possibilities meet their limits in a ‘subaltern feminine’, understood as a catachresis, whose exclusion from representation has become the condition of representation itself (Spivak)? To ask such questions is still to continue to pose the question ‘identity’, but no longer as a reestablished position or a uniform entity; rather, as a part of a dynamic map of power in which identities are constituted and/or erased, deployed and/or paralyzed”.
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realizar com as noções de homem e humanidade, e sim no que concerne ao campo do visível, ou seja, como as personagens se constroem mulheres, ou ao menos o tentam, nas imagens dos filmes. Se pudesse me vincular a algum tipo de hipótese, seria a de que o campo da “norma visual”, no qual circulam as imagens femininas do cinema, com seus jogos de poder, saber e visibilidade, se liga a um imaginário heteronormativo, no sentido de que acessam a todo tempo uma série de imagens do que se entende hegemonicamente como mulher, e que as imagens de feminilidades desviantes da norma heterossexual podem, a partir de manobras no campo do sentido, interferir, em última instância, no nosso senso de realidade. Uma primeira aproximação em relação ao que estou chamando de realidade faz-se necessária: Para Lacan, a realidade dos seres humanos é constituída por três níveis entrelaçados: o simbólico, o imaginário e o real. Essa tríade pode ser precisamente ilustrada pelo jogo de xadrez. As regras que temos para seguir são a dimensão simbólica: do ponto de vista simbólico, puramente formal, “cavalo” é definido apenas pelos movimentos que essa figura pode saber. Esse nível é claramente diferente do imaginário, a saber, o modo como as diferentes peças são moldadas e caracterizadas por seus nomes (rei, rainha, cavalo), e é fácil imaginar um jogo com as mesmas regras mas com um imaginário diferente, em que essa figura seria chamada de “mensageiro”, ou “corredor”, ou de qualquer outro nome. Por fim, o real é toda a série de circunstâncias contingentes que afetam o curso do jogo: a inteligência dos jogadores, os acontecimentos imprevisíveis que podem confundir um jogador ou encerrar imediatamente o jogo. (ŽIŽEK, 2010, p. 17)
Saber das regras ou tomar consciência do imaginário enquanto processo de criação/reprodução de jogos de poder é somente o primeiro lampejo de reflexão antes de lançar-se na disputa, que deve articular os três planos, sob pena de perder sua única possibilidade de êxito: quebrar essa engrenagem, romper o fluxo, criar linhas de fuga para rearticular o que se entende por realidade. Acredito que algumas imagens trazem, voluntária ou involuntariamente, uma performatividade que articula signos e significados de maneira diferenciada, não cabendo em um imaginário normativo e sendo capazes, por fim, de reestabelecer um novo jogo simbólico, que ilumina outros territórios e se entregam a construção de novas imagens de mulher. Para tanto, reviso mais demoradamente o conceito performatividade e tento desenhar o caminho que percorri até tomá-lo como categoria de análise. Em seguida, passo em revista os conceitos de mise-en-scène e de imagem, para rapidamente me dedicar às análises, que se dão pela observação da construção das imagens do corpo e da performatividade de gênero articuladas nas encenações das personagens. 90
Desde já, devo esclarecer que, a despeito da predominância de reflexões referentes ao filme Bombadeira (2007) nesse capítulo, a decisão pelo abandono parcial das imagens de alguns filmes – Meu amigo Cláudia (2009) e Dzi Croquetes (2009) – diz respeito também a possibilidade de observar as transversalidades dos marcadores de diferenças nas personagens em questão. Isto porque, na minha leitura, a visibilidade de existências que não possuem acesso às garantias mínimas de sobrevivência (talvez ainda não, talvez nunca), ou seja, de indivíduos que não figuram como sujeitos de direito, apresentam uma possibilidade de aproximação diferenciada em Bombadeira, uma vez que as personagens habitam um lugar de indiscutível subalternidade. Ao contrário da narrativa de Dzi, que mostra como o grupo se adequou à lógica de mercado da produção cultural da época e como isso de alguma maneira os salva, a todos, das condições de não acesso aos sistemas de saúde e educação, por exemplo; e de Cláudia, que acaba se tomando parte do estado enquanto desenvolvedora de ações de inclusão de travestis e transexuais no mercado de trabalho, as personagens de Bombadeira permanecem à margem, sua inserção no mercado formal de trabalho é rarefeita e apenas uma das personagens a parece frequentando uma instituição social formal, que é a escola. O que quero dizer é que, na operação de procurar para si um lugar de representação política e social, Cláudia e os Dzi não falam entre, mas com o estado e com o mercado, tomam parte no jogo da linguagem dominante e ainda que operem rupturas, o fazem especialmente pela narração de tempos passados, acessada somente pelas imagens de arquivo. No entanto, à época de filmagem, no espaço e no tempo em que o filme foi realizado, parece que não há mais nada a ser visto, apenas dito. E é nessa intersecção, entre a precariedade da vida, sua subalternidade, e os marcadores de gênero e sexualidade desviantes, que desejo entrever nas imagens abordadas as linhas de fuga da linguagem heteronormativa, sua derrocada que dura somente alguns segundos, o tempo de um plano, de uma cena, de um frame fotográfico, de uma fala, para logo em seguida se erguer novamente. Neste movimento, a identidade, enquanto processo de nomeação em referência a uma categoria hegemônica, se desfaz e refaz em instantes, no murmúrio quase imperceptível, ou no grito estridente pelos quais as personagens operam as suas falas. Retomo, com uma leitura um tanto deleuziana, as reflexões de Gayatri Spivak, em entrevista à Suzana Milevska (2005), e foco especialmente sua proposta de operar identidades a partir do “essencialismo estratégico”, apostando nele enquanto agenciamento capaz de 91
empreender fluxos desterritorializantes, e operar territórios para novas identidades, e, principalmente, para novos fluxos. Tal noção é desenvolvida por ela mesma em Pode o subalterno falar? (2010). Na entrevista (MILEVSKA, 2005), Spivak reclama que parte do entendimento da questão centrou-se na palavra “essencialismo”, enquanto a noção de “estratégia” permaneceu sobreposta. Neste sentido, associar-se estrategicamente a uma identidade, segundo a autora, requer em primeiro lugar que se assuma que não há um único ponto de partida, pois a noção de mulher é vaga e imprecisa (fuzzy), e é pensada sempre em relação a uma identidade hegemônica fictícia, abstrata. Tais questões são trazidas também por Judith Butler, já no primeiro capítulo de Problemas de Gênero (2003), no qual ela vai tratar do problema da categoria mulher como sujeito do feminismo. Na outra ponta da imprecisão da identidade está a abstração na qual se ergue a representação política dos sujeitos que são considerados mulheres. Dito de outra maneira, a relação entre a imprecisão da ideia de mulher, por exemplo, acompanhada por suas margens (espaços transitórios de alta densidade demográfica) e à noção abstrata de direitos destas mulheres (direitos da mulher), como o acesso aos projetos de melhoria da qualidade de vida desenvolvidos pelo Estado. O exercício de pensar com o exemplo usado por Spivak na abordagem da ideia de nação como imprecisa, e do Estado enquanto abstração, serve para introduzir a ideia do duplo vínculo que a linguagem utilizada pelas personagens, sob a perspectiva da performatividade de gênero, opera em desconstrução: Por um lado, elas fomentam a imprecisão da categoria mulher, a colocam em xeque e propõem uma viagem ao impensável, ao indizível, e, em paralelo, desnudam os processos arbitrários de construção das fronteiras abstratas que circunscrevem as identidades, nos deixando entrever as relações de poder e normatização empreendidas pela linguagem, materializadas em leis e normas estatais, que em última instância codificam o desejo: Codificar o desejo – e o medo, as angústias e todos os fluxos descodificados –, é próprio do socius. Como veremos, o capitalismo é a única máquina social que se construiu como tal sobre os fluxos descodificados, substituindo os códigos intrínsecos por uma axiomática das quantidades abstratas em forma de moeda. Portanto, o capitalismo liberta os fluxos do desejo, mas nas condições sociais que definem o seu limite e a possibilidade de sua própria dissolução; de modo que ele não pára de contrariar com todas as suas forças exasperadas o movimento que impele para ele estes limites. No limite do capitalismo, o socius desterritorializado dá lugar ao corpo sem órgãos, e os fluxos descodificados se lançam em produção desejante. (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 185)
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Relacionar os traços de identidade não heterossexual nas personagens à constituição da sua condição de subalternidade é uma tarefa de veras arriscada, dada a distância que separa os dois conceitos, identidade e subalternidade. Contudo, o atravessamento de fluxos desterritorializantes pelas bordas que constrangem os territórios das identidades hegemônicas são mais uma vez tensionadas quando postas em relação às condições de subalternidade. Sublinho que as indeterminações que alicerçam a ideia de nação em relação à abstração da noção de Estado não diminui a importância do vínculo entre elas, vínculo dinâmico que se reconfigura constantemente e reafirma a subalternidade de quem não executa suficientemente bem a performatividade de gênero de acordo com o binarismo de gênero, de quem não “canta” de maneira convincente o hino nacional, de quem “não passa por” de maneira satisfatória. Não é a imprecisão que caracteriza a noção de subalterno, e está aí a possibilidade de falar em identidades periféricas, marginais, não-hegemônicas, dentre outras, mas não em identidades subalternas. A subalternidade se dá como uma posição concreta em relação às estruturas abstratas de acesso à cidadania, e nesse ponto em muito se distancia da ideia de identidade, ainda que se esteja valorizando a fluidez, a hibridez, e por mais que se ressalte a imprecisão desta última. Mas como observar a performatividade como resistência nos personagens, uma vez que já percebi a reinteração de muitos valores heteronormativos (como o desejo pelo casamento, e a produção do corpo feminino hegemônico)? Quando Spivak (MILEVSKA, 2005) volta à questão da fala do subalterno e tenta esclarecer as leituras menos apuradas do seu texto, ela concentra-se em sublinhar que há uma série de “resistências que não são reconhecidas como tais”, que esse é um problema de tradução cultural, sendo essa talvez a maior questão que seu ensaio Pode o Subalterno Falar? (2010) traz a tona. Há aqui uma necessidade de repensar a noção de agenciamento, na medida em que passamos a nos perguntar sobre a nossa capacidade de reconhecer as resistências do outros. Entretanto, Spivak (2010) deliberadamente deixa de fora as questões que entende como pertencentes ao âmbito das singularidades (e também da psicologia), esclarecendo em seguida que seu problema se concretiza na esfera de uma certa materialidade da questão – no abstrato, mais do que no impreciso; ela objetiva discutir as fronteiras do Estado, ainda que para mostrar que elas não coincidem com as bordas da Nação, que embora sejam abstratas, estão precisa e arbitrariamente marcadas. Dessa maneira, embora sua questão sobre as características principais do subalterno 93
me servirem de corte para corpo de análise, o que me interessa nesse capítulo é trazer para superfície da reflexão a singularidade da experiência subalterna associada à imprecisão identitária, imprecisão que, no caso das personagens, abre feixes que iluminam outros territórios possíveis e agenciam fluxos de migrações permanentes. É no movimento de abertura para constituição singular de identidades femininas que as personagens se entregam ao filme, e tal movimento é potencial agenciador de novos modos de vida que põem em xeque, em última instância, o território do que se supõe comum à todos, se volta para a “comunidade sensível” para perguntar quem são esses “todos” e a quem serve a dinâmica de comunhão e partilha dos afetos, como esta se consolida na abstração do Estado, validando, por maioria, a eleição de quem merece partilhar do tal estado de direitos e da qualidade de humano. Sobre o corte do corpo de análise, argumento ainda que o potencial de construção da auto-mise-en-scène no referido filme, pelas mesmas características dos planos já abordadas no primeiro capítulo, cuja maior liberdade de enquadramento, a precariedade das locações, dentre outros fatores, promove uma maior possibilidade de encenação para as personagens, que dessa maneira participam mais ativamente da construção da mise-en-scène, e se nela revelam alguma verdade sobre si, esta diz respeito ao desejo delas em construírem para si uma imagem cinematográfica feminina. Em última instancia, desejo pensar as fronteiras que tais representações ultrapassam em relação às identidades hegemônicas, em especial no que concerne a identidade da mulher, para com Hardway questionar: “como pode a humanidade ter uma figura fora das narrativas de humanismo? Que língua tal figura falaria?” (HARAWAY, 1993, p. 279) Como ponto de partida, preciso, ou melhor, desejo falar das mulheres que fui, das mulheres que sou e das mulheres que passam em mim e que processam comigo estas reflexões. Isso porque durante o percurso de escrita encontrei várias maneiras de abordar os filmes, algumas julguei melhores do que outras, e tal escolha foi pautada, especialmente neste capítulo, por percursos e tropeços que foram além das leituras de livros e das visitas aos filmes.
3.1 Devir banana-travesti-puta
Arrebatada, assim estive nos últimos dois anos, um pouco mais que isso. Olho-me do 94
espelho e sinto que já abri mão do autorreconhecimento, nunca havia confiado naquela imagem, nem nessa nova. Hoje, esse abandono é política. Este trabalho tem sido feito entre muitas viagens, tempestades, precipícios, desintegração e morte. Não teve como ser diferente. Todo o processo está descrito, os conceitos e as abordagens foram descobertos em curvas, em alta velocidade. Tracei diversos caminhos e me perdi em todos eles, havia uma perspectiva a cumprir, a da micropolítica, e o percurso percorrido foi capaz de me levar apenas para o lugar onde eu já estava, potencializando a existência de múltiplas cíntias, em dimensões diferentes, provocadas por distintos potenciais sensíveis. A escrita é um dos resultados, uma parte importante do processo, mas há pelo menos mais um lugar onde a produção de experiências se imbrica com o lugar familiarmente estranho da pesquisa acadêmica, e que a influenciou de maneira decisiva pelo extremo prazer que me proporcionou nesse mesmo período. São algumas dessas experiências que, sob os limites das palavras, sempre muito pequenas, vou tentar reinventar nas próximas linhas, antes de voltar à revisão bibliográfica anunciada. Para começar, preciso ressaltar que a escrita deste trabalho tem sido registro da caminhada em direção ao caos, lugar dimensionalmente incapaz de comportar a civilização que colonizou e coloniza nossas existências em suas dimensões corpóreas e em suas estruturas de sentimento: Julga-se um civilizado pela maneira como se comporta e ele pensa tal como se comporta; mas já em relação à palavra civilizado há confusão; para todo o mundo, um civilizado culto é um homem bem informado sobre os sistemas e que pensa em sistemas, em formas, em signos. É um monstro que desenvolveu até o absurdo a capacidade que temos de extrair pensamentos de nossos atos, ao invés de identificar nossos atos com nossos pensamentos. (ARTAUD, 1936, p. 3)
Há uma recusa permanente, nos textos de Artaud com os quais tive contato, ao elogio da existência neurótica como formulada por Freud como qualidade do homem comum, apto o viver em sociedade e a adequar-se às normas sócias hegemônicas. Há, contudo, além do neurótico, um sujeito que também é assimilado pela lei, constituído a partir de castrações e repressões, mas que, ao que parece, habita de um outro modo na linguagem, é capaz de jogar com ela, pois de alguma maneira teve a sorte de se tornar um cínico: “Já não é a idade da crueldade nem do terror, mas a idade do cinismo, que é acompanhado por uma estranha piedade, e ambos constituem o humanismo” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 259). Para Deleuze e Guattari, é na parceria cinismo-piedade que o Estado-nação se sustenta enquanto 95
entidade quase espiritual. Tenho convivido com cínicos convictos nesta última fase da escrita, desde que mudei de cidade pela terceira vez nesses dois anos, em busca de tranquilidade para pesquisa, e essa por sinal nunca chegou. Esses cínicos me apresentaram um conceito que muito me ajudou a desenvolver as análises que se seguem: a ideia lacaniana dos “gestos vazios”, e por conta dela empreendi o esforço de abordar desde os atos de fala performativos em Austin até a ideia de performatividade em Butler e Sedgwick. Por hora, desejo explicitar somente que observar o jogo da norma, a simpatia investida em quem não se gosta realmente, a adequação as normas de vestimenta, quentes e desconfortáveis que lhes abrem portas de trabalho, a reciprocidade sem real vontade, tudo funcionando a favor de quem opera na norma, me fez perceber que há uma classe de pessoas que sim, operam no normativo e que, se não constroem nele (ou a partir dele) possibilidades de fuga, sem dúvidas, promovem rachaduras, muitas vezes imperceptíveis. Há nelas, guardadas as devidas proporções, uma dimensão de “resistência que não é reconhecida como tal”, uma vez que no jogo dos cínicos se opera na norma, consciente da arbitrariedade da maior parte delas, e pela repetição das convenções, dos “gestos vazios”, executam a linguagem para o autobenefício, reiteram as normativas para ao fim de tudo gozar sem ônus, sem se pôr em jogo, dos prazeres que estão fora da norma. Os cínicos, em suas contradições inegáveis (e quem não às tem?!), possuem sim algum papel na rede de resistência às normativas, eles riem delas. Não digo que é o bastante, e talvez o que mais me incomoda é a falta de pretensão em ser suficiente, a desistência do papel de resistência que ainda me persegue, a descrença na perspectiva de enfrentamento que não está presente na maior parte do tempo. Ao lado dos cínicos, e muitas vezes, de um lado diagonalmente oposto, na rede de pessoas que assumo como rede colaborativa (conjunto fictício de pessoas, artefatos culturais e experiências sensíveis que crio para amparar esta pesquisa, e para assumir, de uma vez por todas, que boa parte das palavras que escrevo estou tomando emprestadas delas), estão pelo menos mais duas classes de pessoas: as que conseguem ser cínicas, mas que deliberadamente optam pelo enfrentamento direto, e as que não conseguem ser cínicas, ainda que tentem. Para esses outros, nos quais me incluo, houve um suspiro, um chamado que em algum momento nos tirou do conforto e, voluntariamente ou não, aderimos a ele, Não. Ouça, foi isso que aconteceu: eles mentiram, venderam-lhe ideias de bem e mal, infundiram-lhe a desconfiança de seu próprio corpo e a vergonha pela sua condição de profeta do caos, inventaram palavras de nojo para seu
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amor molecular, hipnotizaram no com a falta de atenção, entediaram-no com a civilização e todas as suas emoções mesquinhas. Não há transformação, revolução, luta, caminho. Você já é o monarca de sua própria pele – sua liberdade inviolável espera ser completa apenas pelo amor de outros monarcas: uma política se sonha, urgente como o azul do céu. (HAKIM BEY, 2007, p. 5)
Não civilizada e insubordinada. Sentei e chorei o mundo, chorei o fim do mundo inteiro, enterrei verdades, valores, segurança, abrigos, amores... escrita à deriva. Me afoguei, como previsto. Depois de morta, entre todos os outros mortos e observando as sombras, descobri que não estava sozinha. Espectros de urubus me cercam. Construí novo corpo, mais forte, mas ágil, mas potente. Deixei os cabelos pelo caminho e acoplei uma banana, algumas vezes cílios que minha amiga Belzebitch me ensinou a usar. Passeei por aí, “– Quer uma banana? Quer apertar a minha bunda?” Devir-banana-puta-travesti.
Fotografia 1 - Intervenção mulher-banana, de Cíntia Guedes
Autoria: Zulu Aborigeni
Me senti tão poderosa enquanto expunha meu corpo à riscos antes impensáveis, mas não fazia mais diferença. Eu já estava morta mesmo. Fui pega pela peste, o problema se transformou em chamado: sou capaz de disseminá-la?
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Ora, se o teatro é como a peste, não é apenas porque ele age sobre importantes coletividades e as transtorna no mesmo sentido. Há no teatro, como na peste, algo de vitorioso e de vingativo ao mesmo tempo. Sente-se que esse incêndio espontâneo que a peste provoca por onde passa não é nada além de uma imensa liquidação. Um desastre social tão completo, um tal distúrbio orgânico, esse transbordamento de vícios, essa espécie de exorcismo total que aperta a alma e a esgota indicam a presença de um estado que é, por outro lado, uma força extrema em que se encontram em carne viva todos os poderes da natureza no momento em que ela está prestes a realizar algo essencial. (ARTAUD, 1987, p. 24)
A mulher banana apareceu a primeira vez em 2011, no museu de colagens urbanas que acontecia nas últimas sextas de cada mês, na Praça da Cruz Vermelha, bairro da Lapa, Rio de Janeiro. Não sou atriz, nunca pensei em entrar em cena, e a banana somente pode acontecer porque ela prescinde de tudo isso. A banana sou eu, seminua, com uma cinta -caralho que usava para transar com meu namorado àquela altura. No lugar da prótese, uso uma banana, referência e homenagem a todas as mulheres frutas, das quais a banana copia, além da vulgaridade, a feliz promessa do gozo. Pensando melhor, seria um pouco injusto dizer que é a banana que me traz a vulgaridade das frutas, a vulgaridade está em mim, passa por mim, e com a banana eu a realizo da maneira mais irônica e verdadeira. Embora seja muito desejada, o saldo da banana enquanto fruta comestível não é numericamente credor... Educada e sorridente, sempre convido tod@s pra comer banana, de preferência in loco, essa não é uma passagem possível para a maioria.
Fotografia 2 - Intervenção mulher-banana, de Cíntia Guedes
Autoria: Zulu Aborigeni
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Somente assim pude descobrir que para você talvez seja difícil ajoelhar, descascar, comer minha banana enquanto eu faço carinho na sua cabeça. Minhas unhas, mal pintadas de vermelho, quase sempre compõe uma imagem interessante entre os seus cabelos, mas o significante da imagem que você, eu e a banana fálica vão compor por alguns segundos o faz desistir de sua fome e do seu desejo. A bunda e a banana, a banana e a bunda. Esses são os dois gatilhos dessa mulher. É por aí que circulam os olhares, as mãos e as bocas. Uma termina e começa na outra “ - pacote completo, vai querer?”, a banana é quase um manequim do Saara no mês de janeiro, quando tudo está em promoção e as peças formam conjuntos que à primeira vista parece aleatória, em composições de imagens no mínimo inovadoras para o gosto-classe-médio. Ao oferecer a alguém meu corpo em processo, atravessado pela experiência de juntar a referência do pênis no escracho da banana, uma bunda redonda completamente nua, o torço e as costas largas, muita purpurina, cílios vermelhos e um sorriso malicioso, habitei, ainda que por pouco tempo, um lugar de desejo e rejeição. Pessoalmente, eu não queria dizer necessariamente nada, mas queria ver o que acontecia com esse corpo performático. Levei tapas na bunda e beijos na boca, percebi olhares de canto de olho, sorrisos de deboche e de vergonha, deboche por me ver ali, exposta, vergonha por mim, por me ver ali, exposta. Exposta e a compor imagens, as que me competem, as que meu corpo em banana pode suportar. Não são muitas, é um exercício, um ritual que toda vez que é realizado abre novas possibilidades de ser, e se contenta em ser puro devir, não só porque não pode prever seus resultados ou significados, ou porque é sempre inesperado e surpreendente, mas porque só se completa no encontro com o outro, que me observa, mas que também me toca. Obtém sucesso todas as vezes que saio desses encontros completamente destruída. Quanto aos urubus que me rodeiam, inspiradores carniceiros que infelizmente não estão em toda parte, são como eu, fulanos e cicranos capazes, se quiserem, de operar no cinismo, o que fazem boa parte do tempo, mas que uma hora ou outra do dia descem em voo elegante para se alimentar, não resistem ao chamado da morte. A Sagração de Urubutsin é a dissertação-processo-corpo que Sara Panamby e Filipe Espindola realizaram como apresentação de banca de mestrado de Sara, em sua casa, depois de um ritual de passagem que culminou com sua entrada formal no mundo dos mestres acadêmicos37. Foi um ritual de dor. Dois dias depois, eu escrevia a ela a seguinte mensagem pelo facebook: 37
Cf. trecho da performance-defesa de Sara Panamby: . Acesso em: 01 dez. 2015.
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O desalinhamento dos astros resultou numa chuva torrencial que escondeu a lua cheia. Alguém aconteceu de novo. Devir urubu, estraçalhando a cientificidade, dando a volta no sentindo, amarrando ele pela ponta de fora, imperceptível verdade, que como um dente de leão, depois de desfeita conserva apenas sua memória de imagem, e povoa outros territórios. Intensidade. Reescrita da história do corpo na academia. Ontem, na defesa de mestrado de Sara Pananby, fiz mais uma curva. Acompanhei as agulhas que atravessaram seu corpo e sangraram em quem teve sorte. E depois devir banana, desejo e vulgaridade. E quando já estava devidamente desonrada, entre tapas, apertos e dedadas, mostrei meu piercing pra banca. Dei banana pra ela.
O corpo que já chega despido e desenhado, um corpo nu, todo riscado, careca. Dois chifres tatuados na parte de trás da cabeça. As agulhas-flechas-penas transfiguram bem mais de 30 vezes mulher-urubu, cada perfuração, um lamento grave soprado ao didgeridoo, um tipo de flauta indígena, e o manto branco que ao final enrola o corpo e desenha a face em sangue. Estas são algumas das imagens que Sara e Filipe compõem durante a performance, e eu não pude deixar de lembrar das cenas de bombação registradas por Luis em Bombadeira.
Fotografia 3 - Ritual de Passagem/ Conclusão de Mestrado/ performance A Sagração de Urubutsin de Sara Panamby
Autoria: Zulu Aborigeni
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A produção de si dessas personagens também se dá entre agulhas, e ao realizar tais
operações clandestinas, elas se expõe à morte e renunciam a representação dentro do estado de direito; considero que são, neste sentido, vidas performáticas, expostas a riscos que a banana apenas pode imaginar, e a partilha dessa experiência aproxima-se à partilha da experiência dos corpos que se deformam-performam a partir da arte performance. O que há de comum entre os dois atos, performáticos em sentidos apenas aparentemente contraditórios, como espero fazer perceber no tópico seguinte, é o corpo em risco e a autoconstrução de si através da dor, dor essa que não se separa da experiência subjetiva, em verdade, é capaz de transformá-la para sempre. Em nenhum dos casos a representação no sentido clássico de estar no lugar de outrem acontece desta maneira. Sara sangra e expõe sua dor, as bombadas também, então, nos dois casos, qual seria a separação entre arte e vida? Para as duas experiências, a indissolubilidade entre vida e arte se dá em dimensões do terror, dadas as imagens que comportam. Pertencem, por isso, ao tipo de arte mais interessante do Terrorismo Poético, prática anarquista conclamada por uma pessoa que, nos dias de hoje, com o Google a serviço de revelar a qualquer um o registro oficial de seu nome, ainda assina pelo pseudônimo de Hakim Bey: A Arte-Sabotagem é o lado negro do Terrorismo Poético – criação-atravésda-destruição –, mas não pode servir a nenhum partido ou niilismo, nem mesmo à própria arte. Assim como a destruição da ilusão eleva a consciência, a demolição da praga estética adoça o ar no mundo do discurso, do Outro. A Arte-Sabotagem serve apenas à percepção, atenção, consciência. A AS vai além da paranoia, além de desconstrução – a crítica definitiva – ataque físico a arte ofensiva – cruzada estética. O menor indício de um egotismo mesquinho ou mesmo de um gosto pessoal estraga sua pureza e vicia sua força. A AS não pode nunca procurar o poder – apenas renunciar a ele. (BEY, 2007, p. 11).
A destruição como vida, o corpo dilacerado como um outro corpo, que deve ser utilizado para praticar a profanação. Dei uma pequena volta com banana e com os urubus somente para dizer que o encontro com artistas do campo da performance, e as minhas experiências enquanto corpo performático, foram ao final uma curva que me arremessou de volta às reflexões sobre os atos de fala de Austin, sobre a performatividade de gênero em Butler e em Sedgwick, mas durante esse retorno voltei diferente, e consegui enxergá-los de maneira distinta do que estava executando até então.
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3.2 Perfomatividade, performance e vida
O ponto de partida é quase invariável, para falar de performatividade, em qualquer dos desdobramentos que o conceito toma em diversos campos da pesquisa acadêmica, o trabalho de Austin e seu conceito de “ato de fala performativo” parece se colocar para maioria dos autores consultados de forma primordial. É ele quem vai dizer que existem sentenças performativas, elas pressupõem atos, e elas mesmas não se diferenciam das ações. Tais atos performativos se definem de acordo com os acontecimentos que lhes seguem ou precedem e que determinam suas falhas, suas incapacidades de materializarem-se. Para Austin, as falhas são infelicidades (que se opõe a felicidade do ato performativo procedido com êxito), status que não se confunde com o de falsidade (cujo o inverso correspondente só pode ser o de verdade) das sentenças que pertencem a esfera dos atos constatativos (constative). Para ele, uma sentença performativa pode falhar por seis diferentes motivos, e estes se dividem ainda em dois grupos, misfires e abuses. O primeiro grupo de falências diz respeito à adequação dos sujeitos que invocam e são invocados pelo ato de fala, e faz referência à necessidade de completude dos atos de fala, um exemplo do primeiro caso seria a infelicidade do ato performativo que enuncia a união matrimonial quando não é proferido por uma autoridade competente ou porque um dos participantes já é casado/a, e do segundo caso, quando a cerimônia (jurídica ou religiosa), por qualquer motivo, não se completa. Nestes dois casos, evidencia-se a necessidade de pessoas e circunstâncias apropriadas para felicidade do ato de fala performativo. Outro grupo de fatores de infelicidade se dá quando os atos subsequentes ou anteriores não são executados de maneira apropriada, e quando não são executados por todos os participantes. Todos esses tipos de infelicidades são chamados de misfires. A princípio, das modalidades de infelicidades levantadas pelo autor, as mais interessantes para este trabalho são as de segundo tipo, denominadas por ele abuse. Isso porque elas se dão no âmbito das subjetividades, e não se definem em primeira instância pela relação de autoridade do enunciador, do local ou das ações desenvolvidas. Elas se dão no âmbito do sentimento, do pensamento e das intenções. Para ele, esses atos de fala são vagos em suas implicações – como explica no quarto e quinto capítulos do livro supracitado -, além de serem variáveis de acordo com diferenças culturais de todo tipo. 102
“Sinto muito”, “me desculpe”, “seja bem vindo”, “parabéns”, “bom trabalho”, são sentenças que embora não estejam vazias de sentido nem de performatividade, perdem muito pouco se são falsas, porque suas ações subsequentes são imprecisas, e especialmente porque fazem parte de um contrato maior, e a ele se vinculam por formalidade, e não por conteúdo. No mais, ressalto que na maioria dos exemplos de infelicidade descritos por Austin, os atores têm consciência da falência de grande parte deles, e além da capacidade de perceber, muitas vezes conseguem deliberar sobre a falha. Em How to do things with words (AUSTIN, 1962), as reflexões se seguem enfatizando a distinção entre os atos performativos e os constatativos e, para tanto, o autor recorre aos léxicos gramaticais, classificando-os entre as duas modalidades de sentenças de acordo com os tempos verbais, considera também o humor (mood) empreendido em cada aplicação e a polissemia histórica e cultural que acompanha cada um dos atos, o que lhes confere ambivalências de uso, dentre outros fatores. Como chama atenção Loxley (2007), em Austin, tanto a divisão entre atos performativos e atos constatativos, ancorada na diferença entre os tipos de infelicidade, são lugares de reinteração da crença nas ações que seguem os atos performativos como última instância de verdade, estabilizada sobre a condição de materialidade que as acompanha: eu vejo, eu toco, eu ouço, logo, eu posso comprovar. Ao mesmo tempo, ao assumir que “desculpar-se”, “felicitar”, “dar boas vindas”, dentre outras expressões formais, são atos performativos, o autor chama a atenção para a modalidade de performatividade que procede por sentimentos, intenções e pensamentos, para sua dimensão não mensurável, e se nestes processos pode haver infelicidades, estas não se dão sem esfumaçar a divisão entre constatação e performatividade. Outro problema que pode ser trazido à tona a partir dos atos performativos de Austin, diz respeito à dimensão formal e ritualística dos mesmos, especialmente para os atos que envolvem intenções, sentimentos e pensamentos. Não que os outros tipos não possuam tais características, mas porque os exemplos utilizados por Austin, para os tipos de infelicidades denominadas abuses em especial, me remetem ao conceito de “gestos vazios”, os quais abordo de maneira rápida com Slavoj Žižek (2010), para logo passar ao debate sobre a encarnação dos atos performativos. Para Žižek, em sua leitura de Lacan, a linguagem foi um presente tão perigoso para a humanidade quanto o cavalo foi para os troianos: ela se oferece para o nosso uso gratuitamente, mas, depois que a aceitamos, ela nos coloniza. A ordem simbólica emerge de
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um presente, uma oferenda, que marca seu conteúdo como neutro para fazerse passar por um presente: quando um presente é oferecido, o que importa não é seu conteúdo, mas o vínculo entre o que presenteia e o que recebe estabelecido quando o que recebe aceita o presente. (ŽIŽEK, 2010, p. 20)
O autor atenta que é também a partir dessa concepção que Lacan sustenta a linguagem como o grande Outro, impreciso, virtual e que “só existe na medida em que os sujeitos agem como se ele existisse” (ŽIŽEK, 2010, p. 20). Neste jogo, os sujeitos primeiramente reclamam o estatuto de sujeito na linguagem/lei para depois operar a partir dela, e para exemplificar essa condição, ele usa o exemplo do próprio Lacan, dos operários que se reclamam classe operária e se filiam a ela para logo terem o direito de fazer greve geral. Para a noção de “gestos vazios”, não importa se a infelicidade está ou não vinculada à falsidade do sentimento, da intenção ou do pensamento, tal qual quando se enuncia algo que não se sente, não se quer, não se acredita verdadeiramente. A ação performativa da noção de “gesto vazio” já está completa na formalidade da ação de enunciação, que equivale a sua (re)ligação à linguagem, entretanto, o “gesto vazio” não está vazio de significados nem tão pouco vincula menos ações subsequentes. A noção de “gesto vazio” propõe a linguagem como um jogo, que sobrevive apenas pela sua dinâmica de reforço da normativa. Ele é estruturante, e nesse sentido, todo o corpo da linguagem é um duplo vínculo, de nomeação e em seguida, colonização. Ele é vazio porque pouco importam os sentimentos, as intenções ou pensamentos dos sujeitos vinculados. E aqui me lanço à pergunta: até que ponto a nomeação do sexo, cujas ações subsequentes desenrolam-se em profusão, e que não esperam pela deliberação do sujeito nomeado, para o qual não houve começo, descoberta nem construção de gênero, consiste em um “gesto vazio”? É Butler (2003) quem atenta para a performatividade operando com e sob o binarismo do sexo: suas características e constrições, as obrigações a serem performadas cotidianamente derivadas da nomeação, muitas vezes pré-natal, “é menino” ou exclusivamente, “é menina”; também para as limitações da linguagem nos seus mais diversos usos, das palavras aos gestos, e ainda dos sentimentos, do horizonte de possibilidades de existência, em última instância, da própria materialidade dos corpos. Tal assertiva não pode ser entendida a partir da tomada do binarismo, baseado na anatomia percebida e classificada dos corpos humanos de maneira abstrata, como significante primário. Esse debate, empreendido por Judith Butler em Bodies that Matter (1993), é também uma resposta às críticas recebidas pela autora,
mais especialmente em sua 104
formulação do conceito de performatividade em Problemas de Gênero (2003), que foi julgado como um trabalho que dedica pouca atenção para a dimensão corporal da experiência de formação subjetiva das identidades de gênero e sexualidade. Tais reflexões organizaram outro importante argumento, que está ligado ao primeiro, sobre o trabalho de Butler em Problemas de Gênero, o problema da voluntariedade. Se o corpo for entendido como tábula rasa capaz de receber inscrições, ele poderia também ser capaz de deliberar sobre elas? Tais questões, Butler se apressa em responder já na introdução de Bodies that Matter: O chamado de que o discurso é formativo não é clamar que ele origina, causa ou, exaustivamente compõe aquilo que admite, ao contrário, é clamar que não há referência de um corpo puro que não seja ao mesmo tempo uma formulação futura deste corpo. Neste sentido, a capacidade linguística de fazer referencia a corpos sexuados é não negada, mas o sentido de “preferencialidade” é alterada. Em termos filosóficos, o chamado constatativo é sempre, em algum grau, performativo. (BUTLER, 1993, p. 10, tradução nossa) 38
Para ela, o risco é tomar a nomeação inicial como uma sentença constatativa de algo já dado, um a priori do corpo que seria, antes de tudo, menino ou menina. É certo que a nomeação binária dos sexos e dos gêneros é capaz de organizar toda cadeia de reações subsequentes, que são posteriores apenas aparentemente, mas se assim acontece, é porque uma rede de saberes e poderes, replicados, por exemplo, na psicanálise e no cinema (para citar duas áreas presentes neste texto), tomam tal distinção como fundadora e dessa forma se articulam na produção do próprio entendimento de corpo. Digo que tais ações são apenas aparentemente posteriores porque, se observarmos ao nosso redor, elas são reiteradas o tempo todo e por todos os lados, e esta é mais uma característica apontada por Butler na conceituação da performatividade de gênero, o seu caráter reinterativo, o gênero como citação. Como Austin já apontou, performatividade é a instância produtiva da linguagem, e para Butler, ainda que a autora rompa a divisão proposta por ele e amplie o entendimento de performatividade como uma característica de toda a linguagem, é ainda com Austin que ela afirma a linguagem como produtora gêneros binários. Contudo, pelo funcionamento descrito pela autora, podemos dizer que essa máquina de fazer gênero atua de maneira análoga à noção 38
No original: “The claim that discourse is formative is not to claim that it originates, causes, or exhaustively composes that which it concedes, rather, it is to claim that is no reference to a pure body which is not at the same time a further formation of that body. In this sense the linguistic capacity to refer to sexed bodies is not denied, but the very meaning of ‘preferentiality’ is altered. In philosophical terms, the constative claim is always to some degree performative.”
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de poder em Foucault, construindo transversalmente os contornos do corpo, os territórios das identidades e dos desejos que cada ser pode portar sem risco de não continuar a ser vida. O entendimento da linguagem como performativa, que tentei enunciar com a primeira aproximação a Žižek, dificulta o diálogo com as falências apontadas por Austin, já que em um ato performativo de gênero não haveria possibilidades de recusa voluntária por parte dos implicados, que todos os sujeitos são autorizados, e que todas as circunstâncias são apropriadas para que se profira um diagnóstico disfarçado de descrição: “é uma menina” ou “é um menino”. Há uma perigosa autoridade universal sobre tal sentença, e a vigilância de sua falência é, por consequência, globalizada. Desta maneira, a aproximação entre atos performativos e performatividade de gênero é arriscada pois o problema da performatividade se situa em outra dimensão, uma vez que os atos de fala se dão em situações e circunstâncias determinadas, e a noção de performatividade de gênero é um empreendimento de toda a linguagem, e nela estrutura a ideia de heteronormatividade; dessa feita, o contrato com as normas de performatividade de gênero não é uma opção conferida a nenhum de nós. A recusa, contudo, é recorrente. A misapropriation de um ato performativo que faz parte da engrenagem da performatividade de gênero normativa é uma recusa sim voluntária e que, quanto mais aparente, mais arriscada. A despeito deste tema, chamo atenção para a abordagem diferenciada de Eve Sedgwick em relação a ideia de performatividade, no tocante a encarnação da vergonha. Sedgwick realiza um giro e observa o conceito de performatividade como a encarnação de um sentimento, ela chama a atenção para a performatividade tornada gesto a partir de um corpo, recentes trabalhos de teóricos e psicólogos sobre a vergonha, localiza a protoforma (olhos baixos, cabeça evitando) deste poder afetivo – que aparece em crianças muito cedo, entre o terceiro e o sétimo mês de vida, logo depois da criança ter se tornado capaz de distinguir e reconhecer a face do seu cuidador – em um momento particular em uma narrativa particular repetido. Este é o momento em que o circuito de expressões espelhadas entre a face da criança e a face reconhecida do cuidador (um circuito que, se invocado pela forma do narcisismo primário, sugere que o narcisismo desde o princípio lança-se socialmente perigosamente no campo gravitacional do outro) quebra: o momento quando a face do adulto falha ou se recusa a jogar a sua parte para continuar a contemplação mutua; quando, por uma ou por várias razões, falha na habilidade de ser reconhecido ou, do reconhecimento da, criança que está, por assim dizer, fazendo careta baseado na continuidade deste circuito. (SEDGWICK, 2003, p. 36, tradução nossa)39 39
No original: “Recent work by theorists and psychologists of shame locates the proto-form (eyes down, head averted) of this powerful affect – which appears in infants very early, between third and seventh month of life,
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Com este exemplo, Sedgwick aciona a performativiadade da “vergonha” e sua encarnação como momento de ruptura no processo de identificação; os olhos baixos, a cabeça que refuta o encontro face-a-face e, em alguns casos, o rubor no rosto, são para ela semáforos de um problema e, ao mesmo tempo, de um desejo de construir uma nova ponte para a identificação. Afinal, as comunidades minoritárias também se formam por injúria, fundando uma relação dinâmica entre vergonha e identidade, ou melhor, entre vergonha e comunidade. Afinal, quem tem vergonha de quem? Inspiro-me no modo como Sedgwick enxerga a vergonha enquanto performatividade, para
proceder
a
observação
da
performance
corporal
como
materialização
da
performatividade de gênero. O momento de encarnação de um sentimento, de um pensamento ou de uma intenção é o espaço-tempo-corpo que, quando colocado no campo do visível, torna a performatividade de gênero uma categoria de análise de imagens. Sabia que a performatividade deveria ser uma ferramenta neste trabalho 40. Passei muito tempo com essa perspectiva em mente, mas não sabia como realizá-la, a princípio pela dificuldade em pensar uma análise fora dos nos modelos fílmicos. No mais, fazer uma análise da performatividade de gênero na imagem de filmes documentários me promovia certo desconforto, temia realizar um elogio simplista da transgressão ou de analisar as personagens operando da mesma maneira que alguns psicanalistas fazem/iam em sua análises fílmicas, diagnosticando-os, sendo que nesse caso, com outro referencial teórico e outro intuito político, procurando menos a narrativa edípica e o personagem neurótico e mais a profusão de esquizos. Mas bem, não era isso que eu queria fazer, nem em conteúdo nem em forma, e a leitura de Sedgwick foi importante porque me apresentou com clareza a potência do uso do conceito de performatividade como momento de refazer nosso vínculo com a linguagem, partindo desta vez da observação da ambivalência da relação discurso corpo, pois há, por um lado, a incorporação do discurso pelo corpo, que não é a simples identificação das constrições just after the infant has become able to distinguish and recognize the face of his caregiver – at a particular moment in a particular repeated narrative. That is the moment when the circuit of mirroring expressions between the child’s face and the caregiver’s recognized face (a circuit that, if it can be called a form of primary narcissism, suggest that narcissism from the very first throws itself sociably dangerously into the gravitational field of the other) it broken: the moment when the adult face fails or refuses to play its part un the continuation of mutual gaze; when, for any one of many reasons, it fails to be recognizable to, or recognizing of, the infant who has been, so to speak, ‘given face’ based on a faith in the continuity of this circuit.” 40 Trabalhei em algumas análises, realizadas com o grupo Cultura e Sexualidade, algumas análises de telenovelas que observavam a ‘gestualidade’, proposta analítica já comentada no capítulo anterior. E também do professor Mohomed Bamba, que sugeriu que o conceito de performatividade se transformasse em categoria de análise na ocasião da banca de qualificação desta dissertação.
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discursivas que operam sob o corpo. Acredito que aí se encontra, por exemplo, a possibilidade de observar como a performatividade constrói e reconstrói corpos nas auto-mise-en-scène de algumas personagens, e ainda, por mais que pareça contraditório, na reiteração do clichê e da norma. Para esta abordagem, a performance de gênero corporificada está novamente próxima da noção teatral, para observar como a personagem se põe na frente da câmera, sua tentativa é de expressar sua vida, de ser o mais fiel possível ao que ela imagina de si, e tudo isso para entregar a imagem. O encontro com a câmera, aquele mesmo que transforma a junção personagem-imagem uma máquina de singular potência, é um encontro que constrange e incita ação performativa, atua sobre ela de maneiras incomensuráveis, mas é somente do registro deste encontro que disponho. Logo, é na encenação da performatividade de gênero que podemos (re)reconhecer as imagens e as personagens, os seus flertes com a inumanidade e com a abjeção, tudo que nos faz rejeitá-los e desejá-los, às vezes, na mesma sequência de cenas (lembra a dupla bundabanana?). E ainda, é no caráter performativo da imagem, não só dos personagens, que o espaço irreparável entre os interlocutores dos atos de fala na instância dos filme, diretor+câmera e personagem, e em suas instâncias últimas, entre o espectador e as personagens, se quebra. Desse modo, a performatividade do cinema pode ser, por conta de seu lugar impróprio, interlocutores e sentenças não autorizadas, uma máquina de fazer falhar a performatividade de gênero hegemônica. A heteronormatividade faz parte do status da linguagem hegemônica para a qual a performatividade de gênero atua, e para encontrar a potência das imagens nesses filmes, entendo que devo me concentrar nos acontecimentos infelizes, nas apropriações que por diversos motivos falham, e também na falha da performatividade de gênero capturada pela imagem, pois é pelas lacunas deixadas por elas que se expõem as normas heteronormativas que as vinculam. Contudo, há em Austin um terceiro tipo de falha do ato performativo (além dos misfires e abuses): os non-sirius. Eles são atos de fala performativos utilizados em situações classificados por Austin como peculiares, ou seja, proferidas no campo das artes. Para ele, a performance artística figura quase como sinônimo de imitação, A sentença performativa vai estar por exemplo, de um modo particular, oca ou vazia se pronunciada por um ator no palco, ou se introduzida em um poema, ou falada em um solilóquio. Isto aplica-se de maneira similar para
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toda e qualquer sentença – o mar - muda em circunstâncias especiais. Linguagem, nestas circunstâncias, está de um modo especial, parasitária sobre seu uso normal – modos são abrangidos pela doutrina do estiolamento da linguagem. Tudo isso nos não levamos em consideração. Nossas sentenças performativas, felizes ou não, devem ser entendidas como questões em circunstâncias ordinárias. (AUSTIN, 1962, p. 22, tradução nossa)41
O que observo aqui é que a performatividade da linguagem trabalha de maneira diferenciada neste tipo de ações, jogando com a representação, e talvez tal trabalho seja mais sério do que a designação que Austin lhes atribuiu pode indicar. O autor os denomina nossirius porque eles não invocam uma ação subsequente em coerência absoluta com o significante da sentença que compõe o ato performativo enunciado pelo ator ou pelo poema, e porque, consequentemente, esse não é o propósito da atuação. Contudo, tais atos performativos, praticados no campo das artes, possuem possibilidades especiais de dar a volta no sentido usual da linguagem, e de reconfigurar as ações e os vínculos pretendidos a partir do uso “inapropriado” de um ato de fala performativo. É exatamente a partir reutilização, em circunstâncias especiais, que os atos performativos se desligam da linguagem normativa, procedimento que, maior ou menor medida, encontro sendo executado na encenação das personagens. Abordagem dos non-sirius em Austin só é possível se combinada a uma ideia de representação fundada no paradigma do “estar no lugar de algo”. Tentei esboçar uma reflexão sobre o limite dessa noção no capítulo anterior. Desta forma, a potência de um ato performativo, quando apropriado em circunstâncias ou sujeitos especiais (não somente aqueles que identificamos como ligados diretamente ao campo das artes), está no duplo corte que ele faz na costura que nos vincula com a linguagem. Por um lado, as sentenças perfomativas usadas no contexto non-sirius podem profanar seus conteúdos a partir da forma, já que toda expressão de atos performativos na arte pode proceder por paródia do significado usual (muitas vezes tomado como original), dando outro uso as palavras e as sentenças que os compõe. Neste tipo de operação, eles tomam para si, em cada ato de fala, significados distintos, antagônicos, excessivos ou irônicos em relação ao uso dito original, tal qual fazem alguns filmes em relação aos formatos canonizados dos grandes
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No original: “utterance will, for example, be in a peculiar way hollow or void if said by an actor on the stage, or if introduced in a poem, or spoken in soliloquy. This applies in a similar manner to any every utterance- a seachange in special circumstances. Language in such circumstances is in special ways parasitic upon its normal use - ways which fall under the doctrine of the etiolations of language. All this we are excluding from consideration. Our performative utterances, felicitous or not, are too be understood as issued in ordinary circumstances.”
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gêneros narrativos42. Contudo, ela não espera o retorno da linguagem que as vincula, nem as ações subsequentes previstas para um uso “normal”, de alguma maneira, trata-se da falência a qual está exposta toda representação artística, na qual já não se crê plenamente, uma vez que a esperança de estar de fato no lugar do referente, de “passar por” completamente, já foi abandonada; contudo, a falência instaura uma nova dinâmica entre o ato de fala performativo ali pronunciado e a linguagem. E aqui vale ressaltar o ganho que a ideia de linguagem performativa tem quando pensada dentro do campo do documentário, onde já não faz mais diferença entre “estar no lugar de” e “ser”; nos resta apenas a imagem composta pelo encontro de qualquer um deles com a câmera. Neste sentido, dentro do marco teórico sobre performatividade abordado, encontrei ainda em Parker e Sedgwick (1995) uma ponte de retorno em direção ao campo da performance: A ironia é que, enquanto a filosofia começou a derramar de seus preconceitos anti teatrais, os estudos do campo do teatro tem tentado, ao mesmo tempo, retirar-se do teatro de seu campo. Reimaginando-se sobre a causa da década passada como o vasto campo dos estudos da performance, a disciplina passou bem além da ontologia clássica do modelo da caixa preta para abraçar uma miríade de práticas performáticas, variando do palco para o festival e tudo que está entre, filme, fotografia, televisão, computador, simulação, musica, “arte performance”, demonstrações políticas, assistência médica, cozinha, moda, ritual xamanístico... (PARKER; SEDGWIK, 1995, p. 2, tradução nossa) 43.
E foi o xamânico Gomez-Peña, um dos performers multifacetados que me ajudam a perceber que não há mais o que ser dito na arte que opera por presença, que desloca com seus textos e suas performances o lugar da intencionalidade e do significante. Segundo ele ainda há, certamente, intenção do artista na execução de uma performance, de uma encenação, de uma instalação etc, entretanto ela jamais se caracterizará como uma intenção significativa, simplesmente porque este tipo de arte não disputa significado através da representação. Nas reflexões do performer, não se pode falar em intenção mais do que se pode falar em força. Não é, claramente, a intenção de um autor, mas a força do encontro. 42
Aqui, chamo a atenção para as paródias dos grandes gêneros empreendidas por alguns filmes do New Queer Cinema, abordados da sessão 1.1 desta dissertação. 43 No original: “The irony is that, while philosophy has begun to shed of its anti-theatrical prejudices, theater studies have been attempting, meanwhile, to take themselves out of (the) theater. Reimagining itself over the cause of the past decade as the wider field of performance studies, the discipline has moved well beyond the classical ontology of the black box model to embrace a myriad of performance practices, ranging from stage for the festival and everything in between, film, photography, television, computer simulation, music, 'performance art', political demonstrations, health care, cooking, fashion, shamanistic ritual...”
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A diferença das fronteiras impostas por um estado/nação, as fronteiras no nosso “país da performance” estão abertas aos nômades, os emigrantes, os híbridos e os desterrados. Nosso país é um santuário temporal para outros artistas e teóricos rebeldes expulsos dos campos multidisciplinares e das comunidades separatistas. A performance também é um lugar interno, inventado em cada um de nós, de acordo com nossas próprias aspirações políticas e necessidades espirituais mais profundas; nossos desejos e obsessões; nossas lembranças mais perturbadoras e nossas busca inexorável de liberdade. No momento em que termino este parágrafo, me mordo a língua ao me descobrir demasiado romântico. Sangra. O sangue é real. Meu público se preocupa. (GOMEZ-PEÑA, 2005, p. 204, tradução nossa) 44
Irônico em sua escrita performática, Gomez-Peña demonstra a falência de um regime representativo que busca a verdade na arte da performance. É na linguagem da arte, e para mim, especialmente da arte da performance, que observei mais claramente a dupla profanação da linguagem que pode ser realizada. Neste sentido, não há diferença entre as agulhas que perfuram Sara Panamby e as que perfuram a personagem de Bombadeira, ambas sangram. O sangue é real. O público se preocupa. Portanto, observar a performatividade de gênero como categoria de análise significa, especialmente, não cair na cilada de observá-la como significado de um sentimento interior mais puro ou mais verdadeiro. Ela é sim a incorporação de um sentimento, mas isso não significa que ela é um informe sobre qualquer verdade sobre o sujeito que a performa, ou seja, para além de seu status de comunicação, é precisamente no momento destrutivo que ela me interessa mais, quando sua força interrompe a significação, martela os pés do sujeito mulher ontológico, e ainda assim produz corpo, desejo e identidade. As agulhas-penas e as agulhas-silicones, em Sara e na personagem sem rosto de Bombadeira, produzem vida, elas próprias não se separam da vida, injetam penas e transfiguram a imagem da performer, sara-devir-urubu, carniceira voraz dos bichos mortos, e também injeta alguns litros de material inorgânico que passa a ser parte de um corpo-travestiputa-proto-humano, o torna abjeto e pode matá-lo todas vezes que o campo da linguagem hegemônica se materializa em sua forma microfascista de Estado. Assim abordo meus (sim, meus) personagens, como vidas performáticas e
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No original: “A diferencia de las fronteras impuestas por un estado/nación, las fronteras en nuestro “país del performance” están abiertas a los nómadas, los emigrantes, los híbridos y los desterrados. Nuestro país es un santuario temporal para otros artistas y teóricos rebeldes expulsados de los campos monodisciplinarios y las comunidades separatistas. El performance también es un lugar interno, inventado por cada uno de nosotros, de acuerdo con nuestras propias aspiraciones políticas y necesidades espirituales más profundas; nuestros deseos y obsesiones sexuales más oscuras; nuestros recuerdos más perturbadores y nuestra búsqueda inexorable de libertad. En el momento en que termino este párrafo, me muerdo la lengua al descubrirme demasiado romántico. Sangra. Es sangre real. Mi público se preocupa.”
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performadas para câmera, um exercício de construção de si pela mise-en-scene, que apresenta a apropriação da linguagem heteronormativa como choque, paródia e clichê, e completa sua função microrevolucionária ao expor sua falta de aderência, sua infelicidade, sua dor, seu sangue e seu terror.
3.3 Imagem, imaginário heteronormativo e encenação
No apêndice da edição de 2008 do seu livro O discurso cinematográfico, Ismail Xavier (2008) aponta que as incursões dos estudos de gênero no campo da sexualidade na década de 70 o fazem como crítica às análises formalistas: “fazendo voltar um interesse pelo roteiro (pelas regras da escrita do cinema) e questionando o exclusivo elogio da mise-en-scène como traço de estilo e sinal exclusivo de uma inflexão subjetiva (autoral) presente no olhar da câmera e na montagem” (XAVIER, 2008, p. 180). Nesta perspectiva a noção de mise-en-scène está indubitavelmente vinculada à produção de um cinema que, transparente ou opaco em sua montagem, ou seja, reflexivo ou não sobre o modo de produção da imagem, trabalha arraigadamente com a imagem-produto, a imagem pronta, a imagem representação, a obra de arte. Em A Imagem (1993), Aumont reflete que, para as análises de base freudianas e lacanianas do campo do cinema, existem também duas dimensões de filiação do sujeito à imagem: a consciente e a inconsciente. Ele está tratando especialmente dos trabalhos empreendidos nas décadas de 70 e 80, que assumem duas possibilidades de conceber a aparição das imagens, uma como dado do inconsciente, outra como produzida pela arte, sendo esta última frequentemente adotada como sintoma, o que faz tais reflexões se aproximarem à análises de personagens, de representações ou mesmo de autores. É nesta direção que as análises que buscam estereótipos, comentadas no primeiro capítulo em concordância com a crítica de Shohat e Stam (2006), caminham. De maneira semelhante à Aumont, Rancière, no livro O inconsciente estético (2009), reflete sobre as análises de obras artísticas nos textos de Freud, e conclui que tais análises resultavam majoritariamente em diagnósticos que buscam sujeitos neuróticos de constituição edipiana, o que atualiza Édipo e renova a crença na imagem simbolizante. Para Aumont, a análise de Freud sobre as obras de Leonardo Da Vinci resulta (e só poderia resultar), no diagnóstico do homossexual recalcado/sublimado. 112
Também em O inconsciente Estético (2009), Rancière comenta as mesmas análises, dentre outras, continuando o esforço em demonstrar como as primeiras análises da psicanálise do campo da arte privilegiam uma leitura das obras “como sintoma relacionado a um sujeito neurótico, o autor”, podendo ser lidas como “uma produção organizada do inconsciente em geral” (2009, p. 117). A questão mais controversa em relação às leituras psicanalíticas, para Aumont, é exatamente a definição de um campo do inconsciente geral, aliado a sua única via de acesso, a linguagem. E este é o feixe que ilumina o ponto de partida da disputa explorada por Racière no livro supracitado, e me filio a tais reflexões para retomar o que chamei de hipótese algumas páginas antes: podemos falar em um imaginário heteronormativo, e porque não, em um inconsciente heteronormativo, que se disputa na prática da auto-mise-en-scène das personagens, especialmente se tomo como ferramenta analítica a ideia de performatividade de gênero? Para Aumont (2011), quando o mesmo toma como base a reflexão de Michel Mourlet, a mise-en-scène que se oferece através da imagem é obtida pelos recursos técnicos próprios do cinema, mas não são eles que importam, seu potencial estético se dá a partir da filmagem da expressão de corpos humanos, o que em uma equação simplista, resultaria na encenação. Esta por sua vez, está além das simbolizações do teatro ou da pintura, se oferece enquanto força, pois no cinema “tudo se passa como se o quadro, ao condicionar a encenação, ao classificá-la, ao torná-la definitiva, se tornasse uma espécie de lente que foca sua energia” (2011, p. 102). Em relação à conceituação de mise-en-scène, é o movimento geral das reflexões de Aumont em Mourlet, aquele que vai direção ao personagem/ator, e retorna como força de sua expressividade, o que mais me interessa. Contudo, executar a observação de como as personagens apropriam-se do espaço cênico não significará procurar na encenação a verdadeira emoção, trata-se antes de observar como elas se ligam ao espaço, como se apropriam do jogo e dos gêneros, e se são, enfim, capazes de construir algo como linhas de fuga nas imagens que compõem. Abordar a auto-mise-en-scène seria então abordar o retorno, na encenação da performatividade de gênero, do olhar destas personagens, que antes já se tornaram visíveis: outros que se ofereceram à imagem e aos olhares dos espectadores. Nas palavras de Comolli, seria a combinação de dois movimentos. Um vem do habitus e passa pelo corpo (o inconsciente) que age como representante de um ou de vários campos sociais. O outro tem a ver com o fato de que o sujeito filmado, o
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sujeito em vista do filme (a “profilmia” de Souriau), se destina ao filme, consciente e inconscientemente, se impregna dele, se ajusta a operação cinematográfica, nela coloca em jogo sua própria mise-en-scène, no sentido da colocação do corpo sob o olhar, do jogo do corpo no espaço e no tempo definidos pelo olhar do outro (a cena). (COMOLLI, 2008, p. 85)
Encontrei uma concepção semelhante em Barthes, quando ele retoma a pose na fotografia como o encontro do observador com o instante passado, onde a coisa real permaneceu imóvel, ainda que por um instante, diante do olho. Para ele, a pose é a natureza da fotografia, e no caso do cinema a coisa não permanece imóvel diante da câmera, mas passa por ela, “a pose é levada e negada pela sequência contínua das imagens” (BARTHES, 2012, p. 74). A mise-en-scène da fotografa, como observada por Barthes, é acrescida de uma dimensão interativa, ele afirma que diante das fotografias que gostava sabia que tinha a sua disposição apenas duas experiências, sendo uma a do sujeito olhado e a segunda do sujeito que olha. Ele sublinha o encontro do personagem com a câmera e ainda vislumbra o conceito que acionarei na análise, o de auto-mise-en-scène, que Barthes certamente não põe nestes termos, mas que ilumina ao constatar que: Ora, a partir do momento que me sinto olhado pela objetiva, tudo muda: ponho-me a “posar”, fabrico-me instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-me antecipadamente em imagem. Essa transformação é ativa: sinto que a fotografia cria meu corpo ou o modifica, a seu bel-prazer [...]. (BARTHES, 2012, p. 19)
Barthes se dirige para a imagem fotográfica não como uma questão a ser aprofundada, mas sim como uma ferida, a qual ele vê e sente para posteriormente, ainda que a distância seja de milésimos de segundo, notá-las, olhá-las e pensar sobre elas. Suas experiências em relação à fotografia, ensaiadas em A câmara clara (2012), originalmente escrito em 1981, são descritas em dois planos: o stadium e o punctum. O stadium seria a leitura codificada, cultural e politicamente orientada: “É pelo studium que me interesso por muitas fotografias, que as receba como testemunhos políticos, que as aprecie como bons quadros históricos: pois é culturalmente (essa conotação está presente no studium), que participo das figuras, das caras, dos gestos, dos cenários, das ações” (BARTHES, 2012, p. 31). Já o punctum faria um movimento contrário ao stadium, ele se dá ao espectador antes mesmo que este perceba, pois não é um investimento de consciência; punctum, atenta ele, é uma palavra que faz referência a essa picada, ferida causada por um instrumento pontiagudo, 114
mas também carrega a ideia de pontuação, de pontos sensíveis e do detalhe: “O punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me punge (mas também me mortifica, me fere)” (2012, p. 33). Não posso fingir, a essa altura, que o que me trouxe a essas imagens foi sua dimensão afetiva como formulada na noção de punctum por Barthes. Já no primeiro capítulo narrei o meu encontro com os filmes e o que me mobilizou em cada um deles, esclareci o interesse em apresentá-los como rupturas da representação normativa dentro de um panorama de filmes, contexto que os fazem relevantes histórica e culturalmente. Ademais, Barthes (2012) realiza as aproximações às imagens em relação ao punctum quase sempre observando seus detalhes, seus pontos de aderência quase imperceptíveis “os sapatos de presilha (p. 46)” ou “os maus dentes do garoto (p. 48)”, enquanto eu estou propondo uma aproximação à mise-en-scène e à performatividade como citações de grandes gêneros e do binarismo de gênero, ainda que para miná-los. Contudo, já no final do ensaio, Barthes apresenta outro punctum, que suponho ser mais precisamente uma ampliação do conceito. Desta vez, ele embaralha a formulação entre o fazer sentido e o fazer sentir: Na época (no início deste livro: já está longe) em que me interrogava sobre minha ligação com certas fotos, eu julgava poder distinguir um campo de interesse cultural (o stadium) e essa zebrura inesperada que às vezes vinha atravessar esse campo que eu chamava de punctum. Sei agora que existe um outro punctum (um outro “estigma”) que não o “detalhe”. Esse novo punctum que não é mais de forma, mas de intensidade, é o Tempo, é a ênfase dilaceradora do noema (“isso-foi”) sua representação pura. […] Esse punctum, mais ou menos apagado sob a abundância e a disparidade das fotos da atualidade, pode ser lido abertamente na fotografia histórica: nela há sempre o esmagamento do Tempo: isso está morto, isso vai morrer. (BARTHES, 2012, p. 89)
E se a natureza da imagem é fazer crer, como afirma Barthes em relação a imagem fotográfica, a única crença possível, para os filmes que abordo no presente trabalho, é esta mesma anunciada por Barthes, que coincide com mesmo chamado de Butler abordado no capítulo anterior, quando ela trata das precariedades das imagens, é o clamor de morte, “o não matarás”. Por um lado, concordo com Aumont quando este diz que “a verdadeira revolução das imagens, se houve alguma, está distante, atrás de nós, na época em que, ao reduzirem-se progressivamente a mero registro – por mais expressivo que fosse – das aparências, perderam a força transcendente que haviam possuído” (AUMONT, 1993, p. 314). Sendo assim, há uma mudança de intensidade e a revolução não é meramente tecnológica quando se aumenta 115
infinitas vezes a frequência do registro fotográfico 45, há também uma transformação de sensibilidade, na maneira de apegar-se a imagem, que durante tanto tempo ficou no plano do sagrado e, portanto, a profusão de imagens da contemporaneidade pode não ser suficiente para validar uma noção de civilização da imagem, ou para datar seu início, pois as forças e possibilidades do punctum já haviam sido transformadas radicalmente. Por outro, com Rancière, em O destino das Imagens (2012a), devolvo a questão das imagens pela reaproximação definitiva entre stadium e punctum. Para ele, tal separação, empreendida com o objetivo claro de separar o gozo da “imagem nua” da dimensão semiológica da imagem acaba por achatar toda a genealogia da imagem, e dessa maneira deixa passar despercebida a reflexão sobre como um artefato consegue passar, em nosso tempo e cultura, por arte. Neste momento, me filio ainda mais as reflexões de Rancière em Inconsciente estético (2009), para inverter a pergunta e concluir, ainda que pareça apressada, que mais que uma civilização das imagens, temos uma colonização das imagens, que a própria ideia de civilização já comporta. E se por um instante peço para voltar a atenção da palavra imagem/linguagem para a palavra “colonização”, é para provocar novamente a reflexão sobre que imagens somos capazes de representar, que imagens somos capazes de desejar, que imagens são capazes de nos afetar, mais do que o que as imagens querem dizer. A imagem perde sua transcendência mais uma vez, quando se percebe que não há novas imagens a serem feitas, e a lacuna apresentada nos filmes, são lacunas não porque estão vazias de imagens, mas porque repetem as imagens já existentes e rompem com as imagens colonizadoras pela citação. As lacunas talvez sejam pequenos precipícios, vertigens de imagens que profanam a imagem, e talvez tenha que ser uma imagem bárbara, não civilizada, a imagem da profanação do sagrado – do corpo que sangra, que se desfaz, sob a ação ambivalentes das agulhas, sob o comando clandestino da bombadeira, a nossa imagem-varinha-mágica, que com dor e sofrimento, fazem o outro passar por mim. Rancière também clama por um outro Édipo, por outros édipos, uma vez que não é mais possível abrir, nem com a força, as portas do inconsciente, e para perceber o que dizem por lá “talvez seja preciso apenas, para encarnar essa palavra no palco, um novo corpo: não mais o corpo humano do ator/personagem, mas o de um ser que ‘tivesse a aparência da vida sem ter vida’, um corpo de sombra ou de cera, ajustado a essa voz múltipla e anônima” 45
A esse respeito, cf. SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e início do sensacionalismo popular, em O cinema e a invenção da vida moderna (CHARNEY, Leo; SHWARTZ, Venessa R., 2004).
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(RANCIÈRE, 2009, p. 40). Para Rancière, a narrativa do Édipo é pedra fundamental do regime representativo, e quando ele clama por um édipo que venha romper com o Édipo romântico, é para que ele não siga sendo herói de um pensamento que não sabe o que sabe, quer o que não quer, age padecendo e fala por seu mutismo. Se Édipo – arrastando atrás de si o cortejo dos grandes heróis edipianos - está no centro da elaboração freudiana, é porque ele é o emblema desse regime da arte que identifica as coisas da arte como coisas do pensamento, enquanto testemunhos de um pensamento imanente a seu outro e habitado por seu outro, escrito em toda parte na linguagem dos signos sensíveis e dissimulado em seu âmago obscuro. (RANCIÈRE, 2009, p. 49)
Tal assertiva já está em Deleuze e Guattari, quando estes afirmam que a grande descoberta da psicanálise não foi o inconsciente, mas a produção desejante, contudo, esta é suprimida desde que nos compararam com Édipo, o que consistiria em um idealismo onde “substituiu-se o inconsciente como fábrica por um teatro antigo; substituiu-se as unidades de produção do inconsciente pela representação; substituiu-se o inconsciente produtivo por um inconsciente que podia tão somente exprimir-se (o mito, a tragédia, o sonho)” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 40). Recoloco assim meu problema central no plano da micropolítica, não somente como disputa por representação e visibilidade, não resumida ao significado das imagens, mas ao seu afeto, a sua capacidade de partilhar sentimentos moleculares, onde imaginário e inconsciente não são lugares inacessíveis que comportam a verdade sobre os seres, mas espaços em disputa, com os quais o cinema atua de maneira exemplar, muito porque possui a capacidade, herdada da fotografia, de reproduzir em suas mise-en-scènes, com inédita perfeição, a imagem do indiciado, acrescida de movimento, mas mais ainda porque se confunde com ele, e com ele maquina o mundo.
3.4 Entre corpos-(re)feitos e máquinas-desejantes: o clichê e a potência da imagem da performatividade de gênero.
Samara e Silvana se maquiam durante a primeira sequência do filme. Eu já narrei essa abertura no capítulo dois. Seus corpos balançam, guiados pelas mãos, a esquerda segura a maquiagem e o espelho. Os olhares de ambas se fixam nos espelhos que carregam, um olhar daqueles de franzir a testa enquanto inclina a cabeça um pouco para frente, um pouco para 117
direita, Silvana fita a câmera uma vez ou outra, mas a imagem dela ainda não se demora, nos é apresentada em planos entrecortados; mais à frente ela finalmente ganha a cena. As mãos são polivalentes, utilizadas para pintar o rosto, munidas de pincel ou fazendo do dedo um pincel (Samara), passam batom, também ajeitam o cabelo e, mais importante, guiam Silvana no seu giro final pelo cenário, depois de terminada a encenação do ritual, aquele de se arrumar para sair, de sair para trabalhar, de trabalhar como prostituta. É uma primeira sequencia relativamente longa. Dura mais de seis minutos que se seguem aos planos de apresentação do título do filme, no qual o nome “bombadeira”, em minúsculas brancas, aparece no fundo preto, letra por letra, da última para a primeira letra, da direita para a esquerda, leitura oferecida de modo invertido, do fim ao começo. Antes do nome se formar por completo, o fundo em blackout cede espaço, através de uma fade, para o detalhe de uma das cenas que veremos mais ou menos quarenta minutos mais tarde, quando Michelle devolve um pouco de silicone industrial, amparado pela tampa, para dentro do seu frasco de plástico. Esta primeira imagem está desacelerada, é exibida em slow motion e acrescida de zoomin. Ela flerta com o que Aumont (1993) chama de “imagem pregnante” e compõem em conjunto com outras, algumas abordadas no capítulo anterior, a capacidade de fornecer as informações gerais do filme. São exemplos delas os planos de Samara e Silvana maquiandose, de Emmanuel chorando a morte de sua companheira e principalmente, as imagens de bombação. O que tais imagens possuem de pregnante é a capacidade de constituírem a memória do filme e, se pensadas de forma encadeada, podem oferecer uma síntese do filme: A produção do feminino, a utilização de silicone industrial, a bombação precária e a morte. Era destas imagens que eu lembrava quando resolvi assistir novamente o filme na ocasião em que precisava decidir sobre os corpos que fariam parte desta pesquisa. Com ela, o filme começa grave, me fazendo pensar sobre o detalhe da imagem do líquido, a mão e a garrafa plástica que surgem ao fundo da tela, a figura é o título. Será esta imagem o segredo que será revelado? O desenho sonoro auxilia na composição de uma atmosfera grave. A estes planos, seguem-se os planos de Samara maquiando-se, intercalados com a tela preta, que logo é substituída por planos de Silvana, personagem que por fim toma conta da sequência, narrando seu ritual de maquiagem.
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Fotogramas 12, 13, 14 e 15 - Bombadeira, a dor da beleza (2007)
Nos dois frames acima, o nome do filme aparece em fonte branca ao revés, a mão derrama o silicone ao fundo. Nos dois frames abaixo, o plano completamente em Black é seguido pela imagem de Samara se maquiando, ainda com a impressão dos créditos iniciais.
Em cena, Silvana se expressa por falas indicativas de cada ato que será praticado, ou representa na fala a ação que acabou de praticar. A sequencia não tem nada de extraordinária. Cada verbo ou sentença é seguido ou precedido de uma ação que o confirma, como em uma encenação teatral “antiquada”. Como abordei no capítulo anterior, a potência da apropriação da linguagem hegemônica pela figura de Silvana, por mais que ela repita as normas de maquiagem da mulher média brasileira, que demonstre que incorporou tais regras no seu dia a dia de trabalho, tal apropriação profana a própria norma quando ela, sem sinais de deboche, finaliza seu ritual com “um creminho na mão para o cliente não reclamar”, e ouvimos o som do seu sorriso vindo do rosto fora de quadro, o qual se concentra nos detalhes das mãos.
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Fotogramas 16 e 17 - Bombadeira, a dor da beleza (2007)
“Um creminho na mão para o cliente não reclamar”
Aqui, lembro das abordagens da mulher banana, sua oferta sorridente e generalizada, acompanhada pela cabeça que se inclina um pouco à direita, um pouco à esquerda “ – quer comer minha banana? Quer apertar minha bunda?”, dito não como um texto atuado, mas como um convite educado, que funciona como um convite à uma relação, ao menos um momento de intimidade. Silvana, em sua primeira cena, não somente se constrói mulher para se oferecer à imagem, como tento mostrar nas próximas linhas, ela também faz um convite ao espectador à adentrar sua intimidade e a das outras personagens, oferece algo que diz respeito à sua vida privada à visibilidade pública. Quanto às bananas, ressalto que possuem também uma dimensão ofensiva, nem sempre é agradável ganhar uma banana. Volto a esta sequência porque abordá-la enquanto auto-mise-en-scène traz à tona novos elementos que acabam por singularizá-la: o diálogo entre a performatividade de gênero e a ideia de precariedade, intersecção própria deste filme (em relação à Dzi Croquettes e Meu Amigo, Cláudia), e que afinal toma parte na observação das imagens desse capítulo; é neste diálogo que se entrevê a potência da encenação que, no caso desta sequência em especial, aparece quase como pantomima, na qual a personagem tenta aderir de forma didática à performatividade de gênero dita feminina, a partir das imagens de feminilidade produzidas pelo campo do cinema, mas não só por ele. Trata-se do dedo-pincel de Samara e da melodia entoada por Silvana que, ansiosa, não espera que o aparato cinematográfico presenteie sua imagem com um tema deste tipo na montagem, e não demora em encenar-se como a diva na penteadeira. A potência desta mise-en-scène não se resume à visibilidade da precariedade dos objetos em cena, do improviso criativo que é o dedo-pincel ou das cortinas-portas que vemos 120
em tantas sequências durante o filme. Quando Butler (2009) articula performatividade de gênero ao conceito de precariedade, é porque esta última se constrói em relação à violência, aos acidentes, às injúrias e à morte para as quais determinadas populações são largamente expostas. Normas de gênero tem tudo a ver com como e de que maneira nós podemos aparecer no espaço público; como e de que maneira se distingue o público e o privado, e como esta distinção é instrumentalizada a serviço da política sexual; quem vai ser criminalizado com base na aparência pública; quem vai falhar em ser protegido pela lei ou, mais especificamente, pela polícia, na rua, no trabalho ou na casa. Quem vai ser estigmatizado; quem vai ser objeto de fascinação e prazer do consumidor? Quem vai ter benefícios médicos diante da lei? Nós sabemos das questões advindas do ativismo transgênero, do feminismo, das políticas de parentesco queer e também do movimento pelo casamento gay e das questões levantadas pelos profissionais do sexo para segurança pública e emancipação econômica. (BUTLER, 2009, p. ii, tradução nossa) 46
Neste sentido, volto para esta cena com o desejo de articulá-la como uma “resistência que não é entendida como tal” e, para tanto, reescrevo o exemplo de Butler (2010), quando ela narra uma performance, que poderia adjetivar mais como “política” do que “artística”, se acreditasse nesta divisão. Em 2009, imigrantes ilegais, residentes de Los Angeles, saíram às ruas cantando o hino dos Estados Unidos, em inglês e espanhol, e também o hino do México. Tal performance, conclui Butler, é o exercício do direito de livre assembleia sem o possuir, a fim de clamar ao governo e à sociedade/público em geral que eles deveriam possuir tal direito. Tal ato possui a característica da performatividade dos gestos vazios, abordada neste trabalho pelas formulações de Žižek. Os sujeitos implicados se apropriam da linguagem para se colocarem como sujeitos de direitos, ou pelo menos, clamar por esses direitos, o que somente seria possível a partir da lei, e esta, por sua vez, funciona em conformidade com a língua hegemônica. Butler continua sua análise da performance dos imigrantes focando as questões de uso da língua e da citação da lei por atores impróprios e em situações inapropriadas. Legalmente, ela lembra que tais sujeitos não possuem sequer o direito de livre reunião, uma vez que não
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No original: “Gender norms have everything to do with how and in what way we can appear in public space; how and in what way the public and private are distinguished, and how that distinction is instrumentalized in the service of sexual politics; who will be criminalized on the basis of public appearance; who will fail to be protected by the law or, more specifically, the police, on the street, or on the job, or in the home. Who will be stigmatized; who will be the object of fascination and consumer pleasure? Who will have medical benefits before the law? Whose intimate and kinship relations will, in fact, be recognized before the law? We know these questions from transgender activism, from feminism, from queer kinship politics, and also from the gay marriage movement and the issues raised by sex workers for public safety and economic enfranchisement.”
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partilham da cidadania estadunidense. No que concerne ao uso da língua inglesa, a autora direciona sua crítica à resistência conservadora do ensino público norte-americano operado pelo incentivo e pela validação do uso apenas da língua inglesa nas escolas, e discorre ainda sobre a separação espaço público versus espaço privado inerente à tal resistência, sendo assimilado como público o uso do inglês e o espanhol como prática linguística que deve permanecer nas esferas familiar e doméstica. Desta maneira, cantar o hino norte-americano em inglês simboliza imediatamente que eles dominam as normas da língua e da lei, e devem ter os mesmos direitos que os cidadãos comuns, devendo partilhar da comunidade de direitos; cantá-lo em espanhol evidencia que os chicanos fazem parte da sociedade norte-americana, mas que a reapropriam e traduzem, transformam suas normativas e suas narrativas, promovendo um espaço que é transcultural; por fim, cantar o hino do México funciona não somente para reafirmar um sentimento de pertença e de comunidade, que os particulariza enquanto minoria, mas é também convite à partilha pública de uma intimidade, tal qual o escracho de Silvana em relação ao creme de amaciar a mão, apenas o primeiro dos muitos hábitos e histórias íntimas que ouvimos e vemos durante o filme. Para os imigrantes ilegais e para as personagens de Bombadeira, o chamado proferido não se legitima no plano legal, é um protesto-performance de risco, pois a qualquer momento das manifestações os participantes poderiam ser presos, assim como diversas das intimidades partilhadas pelas personagens carecem de legalidade, como a prática da prostituição e a prática da bombação, por exemplo. Em ambos os casos, a potência das ações desenvolvidas no protesto dos imigrantes e das intimidades cotidianas visibilizadas no filme, concentra -se na partilha de singularidades: estou presente e posso cantar o hino de duas nações com sotaques, estou presente e posso mesclar em meu corpo os dois gêneros, todos dizem: “estou entre”: “Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma a outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 37). A esperança, em ambos os casos, é a mesma dos indígenas que servem para as reflexões de Butler e de Spivak: para ambas, o o indígena pobre apenas pode ser representado quando adquire a linguagem dominante, uma vez que os que falham em traduzir o monolinguismo possuem menos chances de fazer valer para si os direitos estabelecidos dentro de um determinado código social. 122
Silvana, Samara e a penteadeira. O clichê do gênero e o clichê do cinema. A dupla falha, de colonização e de representação, é também dupla potência. O caso é que mesmo que elas não tenham as referências fílmicas da diva na penteadeira, a intencionalidade que elas investem sobre a encenação que desempenham e que compõem suas auto-mise-èn-scènes é clara: fazer-se mulher no cinema.
Fotografias 4, 5 e 6 - Greta Garbo, Marlene Dietrich e Lillian Gish
Da esquerda para direita: Greta Garbo, atriz sueca que galgou prestígio em Hollywood a partir da década de 20, o conquistou nos anos 30 e o abandonou nos 40, Marlene Dietrich, atriz e cantora alemã que já chegou a Hollywood com a carreira consolidada e recusou-se a filmar para o regime nazista, e uma das divas que as precedem, Lillian Gish, ainda sob a luz do candelabro, atriz que já nos anos 10 encenava os filmes de D. W. Griffith, estadunidense tido como precursor do que se denomina linguagem cinematográfica.
Aqui, o espaço “entre” emerge por apropriação formalmente perfeita na encenação da personagem Silvana, contudo precária em seus elementos, o que comprometeria a composição final da mise-en-scène. No entanto, é no “entre” que entrevemos o rastro do segredo a ser revelado, e ele diz respeito ao funcionamento do inconsciente heteronormativo, mostrando como a máquinacinematográfica atua como produtora do imaginário da feminilidade nas suas imagens grandiloquentes, internalizadas e repetidas pela personagem em questão.
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Fotografias 7 e 8 - Brigitte Bardot e Marilyn Monroe
A imagem de produção da feminilidade no ato de maquiar-se atravessa dois continentes e as décadas de 40, 50, 60 e 70, com as sensuais Brigitte Bardot, diva da Novelle Vague, e Marilyn Monroe, diva de Hollywood.
Quando Silvana e Samara repetem a encenação da mulher diva no cinema clássico, que se repetem também nos cinemas que se seguem a este, elas se aproximam, de um modo ou de outro, da função da encenação clássica concebida como mais próxima à literatura do que ao teatro, retomadas por Aumont (2011) com base em Astruc e Bazin, para os quais o cinema estava mais próximo da literatura do que da pintura ou do teatro, dada sua capacidade de produzir imaginário, para além ser uma arte da imagem visual ou do palco, respectivamente.
Fotogramas 18 e 19 - Paris is burning (1990)
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Fotogramas 20 e 21 - Hedwig and the angry inch (2001)
Na passagem dos anos 80 para os 90, Willi Ninja transforma a mão em blush e alterna o olhar entre o espelho de mão e o da penteadeira, na qual se senta a frente, levando a encenação ao ápice da mimese em sua performance de Vogue no documentário Paris is burning (1990). Já em 2001, o diretor John Cameron Mitchell ora confere à câmera o ponto de vista do espelho de sua penteadeira, ora a encara de frente pelo espelho em um dos números de seu musical Hedwig and the angry inch, no qual ele interpreta Hedwig.
A pretensão significativa da encenação nas imagens analisadas é a de que se encarne corretamente uma determinada ficção, a ficção da vida delas encenadas por elas mesmas, e cuja intencionalidade, que neste caso concerne mais às personagens do que ao realizador, é encarnar corretamente a ficção do ser mulher: “Nesta operação, a encenação deixa de remeter ao teatro para se tornar sinônimo de invenção” (AUMONT, 2011, p.73).
Fotogramas 22 e 23 - Bombadeira, a dor da beleza (2007)
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Fotogramas 24 e 25 - Bombadeira, a dor da beleza (2007)
Silvana toma conta da sequência, se maquia em seu quarto, caminha e encontra suas luzes, faz a câmera a seguir.
O que mais posso dizer, nesta primeira sequência, é que as personagens de Bombadeira (2007) expressam-se citando elementos da mise-en-scène clássica, dada inclusive a encenação próxima à mimese, a evidência do esforço em dominar o espaço cênico e não sair de quadro, posicionar-se de frente (características de um tipo de encenação que, para Aumont (2011), pelo menos desde a década de 50, já não se assiste com frequência), e até a produção da trilha que acompanhará a imagem. Por sorte, a intencionalidade da representação produzida não inspira muita verdade, é profundamente precária. Contudo, se elas falham em significação porque não passam pela diva, dada as precariedades que oferecem como composição da mise-en-scène, não se pode negar que tais encenações lançam-se em uma disputa pela produção do imaginário do que é ser mulher, criando imagens que carregam outras possibilidades de devir-mulher, e rachando assim o binarismo do imaginário heteronormativo. E se neste último comentário, ao recorrer à ideia de mimese, me afasto momentaneamente do conceito de encenação oferecido anteriormente, há, pela falha da intencionalidade representativa, um retorno à ideia de Mourlet, em Aumont (2011), sobre a encenação como “criação de um mundo maravilhoso onde reinam a beleza e a energia dos gestos e dos corpos” (2011, p.104). O mesmo ar de diva pode ser reconhecido no semblante de Andrezza, nas diversas cenas em que ela é enquadrada em um carro, onde divide o banco de trás com a câmera e o seu operador, o diretor certamente segue no banco da frente, para onde Andrezza se dirige em algumas poucas falas. Ela se mantém de perfil durante os quase sete minutos da entrevista, em diversos 126
planos vemos quase a mesma composição. A duração da sequência é suficiente para irmos da figura ao fundo algumas vezes e, em trânsito, escutamos Andrezza contar um pouco sobre todas as suas mudanças, geográficas, hormonais e plásticas. Também ficamos sabendo dos babados. Ela solenemente conta que foi expulsa da igreja evangélica porque não quis, afinal, se libertar do demônio. Nesse momento, alguém no carro sorri, mas ela não se abala, seu sorriso só aparece aos dois minutos da entrevista, ao começar a contar o quase “causo”, de quando trabalhava como inspetora de chaves em um edifício de quinze andares em São Paulo, o sorriso é o momento escolhido pela montagem para nomeá-la. Há, por sinal, uma delicadeza da montagem em escolher momentos singulares para nomear cada uma das personagens. Os letreiros com os nomes delas não acompanham suas primeiras aparições, funcionam quase como um retrato de cada uma. Quando o nome surge na tela, ele fixa a imagem, e a encenação, naquele momento, readquire um pouco da potência da pose em Barthes.
Fotogramas 26 e 27 - Bombadeira, a dor da beleza (2007)
“Ao olhar uma foto, incluo fatalmente em meu olhar o pensamento deste instante, por mais breve que seja, no qual uma coisa real se encontrou imóvel diante do olho” (BARTHES, 2012, p.73).
Durante a viagem podemos perceber que o rosto de Andrezza, de traços fortes e femininos como os de muitas mulheres baianas, fica sensivelmente mais bonito quando iluminado pelas luzes de freio vermelhas do carro que está na frente do deles. A performatividade de gênero que Andrezza encena é mais contida, no lugar da encenação que esbanja o passo a passo da feminilidade, ela atua com gestos curtos e permanece com o olhar ao longe, nesta cena, não haveria espaço para ser diferente, mas como também somos apresentados à casa da personagem, onde ela e seu companheiro nos contam 127
outras histórias, o gestual da personagem se confirma contido no desempenho do feminino. Quanto ao olhar que ela leva no carro, será que ele indica o retorno às lembranças de histórias passadas, ou será a ansiedade de chegar, onde quer que estejam indo, e que não chegaremos a saber? Não importa muito, o que vale é o encontro, o perfil de Andrezza a contar algumas histórias que nós escutamos por sorte do registro, pois se é a câmera que está em nosso lugar, a nós ela não contaria, nessa sequência, por timidez ou indiferença, pois ela não nos dirige nenhum olhar. É interessante notar que foi em uma coletânea de textos que tratam sobre a produção do corpo nas artes dos séculos XX e XXI, História do Corpo: as mutações do olhar (2009), que encontro a interessante reflexão de Antoine de Baecque sobre a produção de imagens das divas no cinema. Para ele, é no cinema produzido durante a década de 30 que as caricaturas, sob todas as suas formas, das mais repulsivas as mais desejáveis, são como que domesticadas: aprendem as regras do savoir-vivre hollywoodiano (não olhar para câmera, ser bastante aterrorizadoras, mas não demais para alguns, suficientemente apetecíveis, sem porém ultrajar as poderosas ligas da virtude para os outros [...]). O corpo que os espectadores vêm ver na tela encontrou suas regras, suas estrelas, e logo seus clássicos. (BAECQUE, 2009, p. 485)
A imagem de Andrezza certamente carrega algo das divas, esse quê está no olhar que se perde no infinito, enquadrado num close-up de seu perfil. Tal olhar, que me prende na imagem e ao qual retorno sempre durante os seis minutos da entrevista, somente pode invocar o clichê da “mulher sonhadora” se é lido como se esvanecendo em inocência. Mas a imagem cinematográfica fala, e por vezes narra sua falência. Nesta sequência, é a narração de Andrezza, pela dimensão significativa, que preenche a imagem apresentada de múltiplos significados, desconfio, por ela, que em Andrezza não há nada de inocência. Já para o filme, a narrativa desta personagem é de superação. Ao final, como nos indica um dos letreiros, descobrimos que ela coordena a ONG Projeto Esperança. A última sequência de Andrezza, que culmina na imagem que acompanha este letreiro, é oferecida ao espectador como uma informação que não pode deixar de ser conhecida. Nela, a personagem desce uma das ladeiras do Pelourinho enquanto a câmera a acompanha fazendo questão de mostrá-la da cabeça até os pés, ela é igual a todas, jeans, pulseiras, sandálias, adereços. Sobe as escadas de um casarão de chão de taco, abre a porta de uma sala, acende a luz, a cena corta e agora vamos nos despedir de outro personagem, o Pai Nenê. É na narrativa que o ar de diva dá lugar à mulher comum. A despedida de Samara também é a sua entrada em uma instituição, no caso dela, a 128
escola. Ela se despede contando que estuda no Colégio Antonio Vieira, uma escola particular de classe média de Salvador, onde ela vende bombons, salgados e outros lanches durante o intervalo das aulas. A câmera a acompanha desde casa, empacotando os produtos, vai atrás dela durante o caminho até o colégio, com certeza as sacolas estão pesadas. A vemos entrando no colégio desde o outro lado da rua, Samara acena para câmera, depois de uma breve última conversa no portão da escola. No mais, as mise-en-scènes que compõem a narrativa principal do filme se direcionam para a intimidade, às experiências singulares, às circunstâncias excêntricas. Os “trabalhos” feitos pela avó de Andrezza para matá-la, o companheiro de Silvana que vive com ela e a ama em uma relação que não envolve mais sexo, e inclusive as porradas que Nenê levou da mãe na época em que tinha silicone... tudo isso é mais importante do que saber que Andrezza coordena uma ONG, ou que Samara frequenta uma escola. E a câmera acompanha até a porta as experiências de algumas personagens no mundo do ensino formal, do trabalho legal, mas daí pra frente elas seguem longe das nossas vistas. Nestas imagens de intimidade, a performatividade de gênero é, por vezes, encenada pelas personagens em posturas corporais que parecem buscar graça e leveza. Tudo se inclina no corpo de Leila que, contra luz, desenha algumas linhas no quadro, com seus braços um pouco abertos, o tronco ereto, a cabeça levemente inclinada, em um leve plongée que nos leva a seu rosto como ponto central da imagem. Enquanto isso, ela conta como foi a recepção da sua família em relação às suas modificações corporais, a mãe não a reconheceu depois do silicone, e os irmãos já não aceitavam “nem quando era gay, imagine agora” (BOMBADEIRA, 2007).
Fotogramas 28 e 29 - Bombadeira, a dor da beleza (2007)
Vaidosa, Leila possui várias aplicações de silicone.
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O rosto dela possui modificações aparentes, logo entendemos que são aplicações de silicone industrial, lábios, maçã do rosto. Um rosto que chama atenção por suas proporções não usuais, olhos puxados, sobrancelhas bastante arqueadas, Leila redesenhou seu rosto, não mais do que muitas atrizes hollywoodianas ou mesmo as das telenovelas nacionais com a mesma idade dela. Ainda em relação à imagem da diva, mais especialmente a do cinema do clássico, Baecque aponta sua capacidade de multiplicar-se em encantamento, e afirma que, a partir desse encantamento, engendra-se “essa imensa comunidade de sentimentos, uma sensibilidade de massa, que se ia construindo através da fascinação desses [corpos] glamorosos vistos na tela” (BAECQUE, 2009, p. 494). O autor mostra como essa imagem foi se transfigurando ao longo do tempo e de acordo com os movimentos cinematográficos hegemônicos. À época, sua dimensão encantadora operava de maneira a domesticar desde os gestos aos olhares, a maquiagem, e até os nomes das atrizes, que não deveriam possuir mais de três sílabas. Assim, seja citando a mulher comum que trabalha, namora, se apaixona, sofre, morre, seja citando o glamour da diva hollywoodiana, imortalizada em close-ups, as personagens recriam uma mise-en-scène que não as comporta e as racham em polissêmicas leituras parciais, sendo esta que escrevo somente uma das possibilidades. Aqui, tanto faz se elas viram ou inventaram as cenas que reproduzem, porque essas imagens não são delas, e também não são de Hollywood ou da TV nacional, elas não são de ninguém, habitam a todos, e não se dão por acaso. Trata-se do estatuto da imagem que “é universal, mas sempre particularizada” (AUMONT, 1993, p. 131). Materializada na imagem, a performatividade se torna potência de corpo a partir do gesto, e mesmo o corpo é força performativa materializada. Identificar a reapropriação da performatividade de gênero, dita hegemonicamente como feminina, na auto-mise-en-escène, serve especialmente para sublinhar que a domesticação da mulher faz parte de uma imensa comunidade de sentimento, acionada pelas personagens como clamor de pertencimento à categoria mulher. Contudo, a pertinência da sua encenação é falha e, por isso, tais imagens possuem, nas qualidades ambivalentes que tentei levantar até aqui, possibilidades de operar o dissenso nesta mesma comunidade a qual Baecque se refere. Assim, o que há de mais especifico nestas imagens de Bombadeira é uma questão da ordem do dia, de todos os dias, para mais distantes vozes do feminismo. 130
E, enquanto as personagens nos oferecem as imagens de divas transfiguradas em precariedade, ou de mulheres comuns com problemas gerais e em busca do corpo ideal, o movimento do filme procede em direção ao que já havia anunciado, na aparição de seu título e no detalhe da primeira imagem, uma pequena porção de verdade será oferecida ao espectador em breve. E a verdade em nada surpreende, ela retorna ao corpo. Não estou aqui falando, de maneira alguma, que houve uma intenção autoral em fomentar qualquer mistério na narrativa, estou falando da estrutura formal na qual se organiza a narrativa, que grosseiramente oferece a pista, apresenta personagens e temáticas, caminha para um momento clímax e depois se despede. Obviamente, muitas nuances podem ser enumeradas, mas, ao final, a cena chave do filme é a imagem da bombação. É quase como se não houvesse escapatória, a pista e o segredo são sempre a dupla que gera expectativa em qualquer experiência artística, por mais irrelevante que ela seja, sempre se quer ler, imaginar ou inventar o que não está explícito, afinal, não a toa, é o segredo que move Édipo e toda sua narrativa. Lembro da experiência da banana na defesa de Sara, quando uma amiga performer que trabalha com strip tease, e oferece lindamente seu corpo fora dos padrões da beleza magra nas cenas que compõe, me orientou acerca do desnudar por completo, sugerido por algum presente: “não é bom, é sempre bom deixar algo, um mistério, se não perde a graça”, me disse Giorgia Conceição. Na hora, a sinceridade antecedeu os bons modos e eu logo respondi “não!”, se eu quiser ficar nua, eu vou ficar, completei em pensamento. Não há nada a revelar, não vejo nenhuma graça no jogo de mostra-esconde como produtor do desejo de ver. Gostaria, se fosse possível, que no caso da banana não houvesse mais nada a conhecer, mas muito a provocar, e quem insistir que me invente um segredo ou um recalque. Quanto a reflexão sobre a representação do corpo no cinema, sublinho que o texto de Baecque trata apenas de um cinema de grande circulação, produzido por grandes escolas cinematográficas e grandes produtoras. Ele atenta que o percurso do corpo neste cinema passa por uma modernidade que investe na imagem do corpo da mulher uma promessa de acesso à verdade a partir de narrativas de sofrimento, de uma realidade crua e direta, e para o cinema contemporâneo, ressalta a aparição do corpo do futuro, cibernético, ciborgue e até monstruoso; ele considera que, uma vez bem realizada, pode haver, para a imagem do corpo da mulher no cinema contemporâneo, uma perda do humano e um ganho da política. Nas imagens de bombação, a imagem performa um corpo-dilacerado, desfeito, decomposto, deformado. Acompanhando a performatividade de gênero expressa pelas 131
personagens, que em suas mise-em-scènes recorrem a todo tempo às citações da mulher diva, mas também de tantas outras imagens de mulheres hegemônicas nas quais não concentrei tanto esforço analítico, o filme prossegue a apresentação de seus corpos em uma mise-enscène que privilegia o som direto, que não poupa o espectador dos gritos, e enquadra o corpo perfurado de modo a deixar ver apenas a precariedade da situação a qual ele se expõe duplamente, a dor e ao olhar do outro sobre a sua dor.
Fotogramas 30 e 31 - Bombadeira, a dor da beleza (2007)
São as imagens da reinscrição de gênero não autorizadas. É a tecnologia precária de fazer corpos, e tal transformação leva a imagem ao estatuto de abjeta não porque representa a dor e o sangue, a transgressão e o horror, mas porque encontramos, com a profanação do corpo, arrastado pelas agulhas ao submundo das imagens, a dupla profanação: ele rompe com a originalidade do gênero e com a pureza do corpo. O movimento em direção à inumanidade, performado pelos personagens para o filme e para vida, é completo no encontro com a máquina cinematográfica: O fato de a máquina-cinema fabricar para o nosso uso outra percepção do espaço e do tempo que não aquela que acionamos em tantas outras experiências sensíveis induz a um tipo de poder “não-humano” ou “extrahumano” da máquina cinematográfica – poder que, como o de qualquer máquina, é tanto desejado como temido por os que com ela estão envolvidos. (COMOLLI, 2008, p. 75)
A porção inumana na encenação da profanação do corpo em conjunto com a porção inumana da máquina-cinema coloca em suspenso nossa percepção ordinária do mundo, e é assim que a mise-en-scène apresenta-se como espaço de disputa, nos fazendo duvidar das capacidades que possuem nossos corpos, dos limites aos quais somos capazes de levá -los, 132
fazendo-nos duvidar do próprio corpo que está se construindo na tela, pois ele colocou em risco sua humanidade. Assistimos o movimento de desterritorialização do corpo, não somente pela injeção de silicone, pois tais imagens se oferecem desde antes, nas imagens do cotidiano exercício de performar gênero, mostradas ao longo de todo o filme. É o corpo como artefato, como para Gomez-Peña, aquele que se produz em suas fendas, feridas e adornos, para o qual “nossas cicatrizes são palavras involuntárias no livro aberto do nosso corpo, tanto que nossas tatuagens, perfurações (piercings), pintura corporal, adorno, próteses e/ou acessórios robóticos, são frases deliberadas” (GOMEZ-PEÑA, 2005, p. 204, tradução nossa)47. A força do performer pode ser empreendida conscientemente no desejo de descolonizar o corpo, de fomentar um movimento de devir minoritário, incitar o fluxo. Já para as personagens, não posso dizer que há uma alternativa entre pôr ou não em risco os seus corpos, mas há certamente uma escolha por mostrá-los, exibi-los, falar sobre eles, falar com eles. Acredito que estas duas experiências sensíveis, se podem ter intencionalidades distintas, certamente dividem o mesmo desejo: “De fato, sempre resulta doloroso exibir e documentar nossos corpos imperfeitos, cirurgiados pela cirurgia midiática, cobertos de implicações políticas e culturais. Não temos outra opção. É quase um mandato a falta de um termo melhor” (GOMEZ-PEÑA, 2005, p. 205, tradução nossa) 48. O desejo, que quase sempre tem alguma ligação com o “detalhe” das narrativas, de pronto faz a passagem da dimensão repressiva para ser pura produção. O detalhe do primeiro dos planos de Bombadeira (2007), imagem recuperada aos 43 minutos do filme, felizmente não é um recalque nem um segredo, é parte da engrenagem da máquina-desejante, que performa e cria corpos que se desfazem, em gestos e agulhas, feitos para exibição e para o comércio. Há, por fim, uma dimensão desta desterritorialização que é operada pelo capital, e quem nos fala dele no filme é Leila, que aplica silicone, é bombadeira, Nenê, que bombou, mas teve que tirar por questões de ordem doméstica e religiosa, ela ainda expressa o desejo de ter os seios dos tamanhos dos de Iemanjá, e também Samara, que preferiu não passar pela mão da fada-madrinha, pois viu muitas amigas morrerem por causa do silicone.
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No original: “Nuestras cicatrices son palabras involuntarias en el libro abierto de nuestro cuerpo, en tanto que nuestros tatuajes, perforaciones (piercings), pintura corporal, adornos, prótesis, y/o accesorios robóticos, son frases deliberadas.” 48 No original: “De hecho, siempre resulta doloroso exhibir y documentar nuestros imperfectos cuerpos, intervenidos por la cirugía mediática, cubiertos de implicaciones políticas y culturales. No tenemos otra opción. Es casi un ‘mandato’ a falta de un mejor término.”
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No fluxo corpo-silicone-prostituição a modificação dos corpos das personagens possui, para além da dimensão de satisfação pessoal, todo um sistema de resignificação e capitalização a partir da modelação operada pelo silicone, eles são reterritorializados em novas dinâmicas de desejo, e passam a atender demandas específicas de alguns tipos de clientes do comércio sexual; eles ganham, literalmente, outros valores. Sendo assim, máquinas de fazer gênero, na ilegalidade da bombação para prostituição, produzem, ao lado e de mãos dadas com a potência do devir-mulher, a disputa exemplificada por Samara na figura de “Valquíria 11 litros, que não sabia mais onde botava silicone”, que “hoje em dia já deve ter para mais de 20 litros de silicone” em todas as partes do corpo, porque sempre aceitava o desafio de quem bota mais, afinal quem bota mais ganha mais “aqué” (BOMBADEIRA, 2007). É o fluxo do capital organizando a fabricação dos corpos, mesmo os mais periféricos. Tal fluxo, que carrega a possibilidade de uma rica apreciação no tocante aos microfascismos específicos que certamente empreende, e dos quais não trato neste trabalho, não minimiza a dimensão de singularidade que tais máquinas agenciam. É o fluxo do novo que encontro quando Andrezza fala que a bombadeira é uma fada madrinha, e conta agradecida como ela livrou-a do “pireque”, “aquele short horroroso com espuma do lado” que ela usava por debaixo da calça pra fazer uma bunda (BOMBADEIRA, 2007). E o novo vem através da máquina de fazer corpos. Tal máquina opera pela “dor da beleza”, mas já era performativa enquanto ato de fala, ainda quando pronunciada em circunstâncias ordinárias por mulheres tidas como normais. A “dor da beleza” expande seus sentidos e sua força quando pronunciada por Samara e quando executada pelas personagens para filme. As ações que se seguem ao processo de maquinar gênero, e que validam tal ato performativo, vão de furar uma orelha até a aplicar silicone, segundo os exemplos da própria Samara. Executar a performatividade de gênero para elas é, no final das contas, expor a todo tempo seus corpos à novos perigos, em uma engenharia e uma tecnologia de si que resiste em fixar-se, e nos apresenta, pela imagem, a possibilidade de engendrar rupturas na sensibilidade heteronormativa. Nessa maquinação, a própria performatividade de gênero heteronormativa não se completa, é uma falha que investe desejo desviante na combinação do binário, e culmina na produção de gênero multiplicada ao infinito, espaço ao qual tento de alguma maneira me aproximar com a dupla bunda-banana, banana-bunda, e peço licença para voltar a ela em um texto mais livre e carregado de experiências pessoais, o qual apresento como considerações 134
finais deste trabalho.
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UMA CARTA PARA ILO
Querido Ilo, tudo bem? Não sei se você lembra de mim, somos amigos de facebook, mas nos encontramos poucas vezes na vida, uma em Salvador e outra em Buenos Aires, na ocasião do meu aniversário, quando ambos vivíamos o inverno portenho. Não lembro muito bem em que situação nos encontramos pela primeira vez, e te convidei para o aniversário na esperança de fortalecer e ampliar uma rede de amigos, o inverno estava sendo muito duro, não dominava ainda a tecnologia do frio, nem a língua. Não entendia, e não cheguei a entender, como se fazem amigos naquela cidade, pior para mim; por isso, a festa era uma tentativa de começar pelo caminho mais fácil, acionando os brasileiros. Sabia que você estava lá para escrever um livro, tínhamos bons amigos em comum, certamente é um cara interessante, entrou na lista. Você foi, acompanhado de uma mulher linda, acho que se chamava Tati. Busquei-os na porta e subi as escadas ensaiando um portunhol vergonhoso, pior ainda quando entendi que ela também era brasileira. Tudo bem. Subimos para o apartamento, e que apartamento, centenário, lindo! O piso de taco, a banheira, a varanda com vista para o Obelisco, marco zero que continua a ser ponto central da cidade, e ainda as fotos do proprietário, que também era fotógrafo do tipo viajante, emolduradas nas paredes. Para mim, elas não pareciam nada “exóticas”, como as caracterizava Pekka, um senhor já na terceira idade, homossexual e rico, considero um tipo de riqueza poder se dar o luxo da passar o verão da Europa na Europa, e o de Buenos Aires em Buenos Aires... Enquanto isso, para nossa sorte, ele alugava aquele apartamento incrível por um preço ridículo, mas somente para jovens de boas referências, o que significava, pelo menos para as últimas duas gerações de moradores das quais tínhamos conhecimento, serem jovens homossexuais, eu e Matheus, apesar de estarmos juntos, não configurávamos uma exceção, e ademais tínhamos Pedro. As fotos de Pekka estavam por todos os cômodos do apartamento e resolvemos deixálas lá durante a nossa estada. Eram imagens de países que ele considerava exóticos, figuras humanas sempre compunham as fotografias, algumas eram mesmo retratos. Sentamos em uma mesa abaixo da minha foto preferida, bebemos vinho e Fernet com Coca, fumamos, e ainda restava um pouco de comida mexicana que havíamos preparado para um jantar mais cedo, com uns três ou quatro amigos mais íntimos. Acima de nós, garotos cubanos devolviam sorridentes o olhar ao fotógrafo, quem terá sido mais exótico no instante de captura daquela 136
imagem?
Fotografias 9 e 10 - Minha casa em Buenos Aires
Era também a foto que mais chamava a atenção dos visitantes, e eu achava um luxo ter aqueles rapazes na parede de casa com o sorriso aberto, pura simpatia, sem falar na beleza. Voltando à festa, lembro que em pouco tempo, depois de um convidado ligar para um amigo, e este que chegava com mais duas pessoas, e outras pessoas que não faço ideia de como foram parar na minha sala, que pelo tamanho e acústica facilmente poderia chamar de salão. A festa ficou cheia. Ouvimos a Bahia, em alto e bom som para matar as saudades: Doces Bárbaros, Novos Baianos, Gil, Caetano, Gal, Daniela. Eu fiquei ainda algum tempo sentada abaixo da foto, olhava as pessoas dançarem, o português, ou melhor, o baianês das conversas parcamente acompanhada por um ou outro convidado estrangeiro, mexicano ou chileno, não me lembro de ter recebido portenhos “de verdade”. E ali, sentada um pouco alheia, um pouco bêbada, Unheimlich! Durante os meses que passei naquela casa o sentimento de inquietação me acompanhou em diversas situações. Voltei ainda agora ao texto de Freud (2010a) para confirmar, unheimlich: o estranho familiar. Não eram somente as portas que batiam sem vento aparente, o ranger das antigas madeiras e o som da criança chorando nas madrugadas sem que nunca tivéssemos esbarrado com nenhum vizinho que tivesse filhos. Toda casa antiga carrega consigo sons e movimentos que, se possuímos alguma tendência à superstição, podemos facilmente atribuir ao retorno de antigas existências que naquele espaço habitaram, e o preenchem com suas energias, as quais somente depois de um tipo específico de trabalho espiritual podem abandoná-lo. 137
Mas eu sou uma pessoa que Freud descreveria como impermeável às tentações da superstição (2010a), e este tipo de inquietação, provocada pelo que ele chama de precariedade intelectual, decorrida do desconhecimento ou da carência de explicação racional para certos eventos que, por vezes, chamamos de coincidências, não me abalam tanto a ponto de me lançar em uma inquietação aguda. O próprio Freud afirma que eventos deste tipo, as coincidências, os mistérios, não podem servir à uma explicação geral do unheimlich, e encontrar tal caminho, àquele que possa fazer com que a universalidade dos sujeitos reconheçam esta inquietação, é o objetivo final de seu texto. Acredito que explicações místicas são possíveis em muitas situações para quem as procura, e é desta maneira que os universos místicos podem de alguma maneira chegar a existir de fato. Freud (2010a) trata a questão como “animismo primitivo”, que, por sorte, em nós, neuróticos consolidados, manifesta-se apenas por um breve período na vida. Neste ponto, eu realmente não sei se concordo completamente com ele, o desprezo de Freud e a utilização de determinados termos pelo psicanalista talvez seja uma questão muito grande para mim, mas devo admitir que desconfio quando determinados eventos são utilizados para confirmação da existência de um grande Outro transcendente, especialmente se este está investido de valores religiosos, e mais ainda quando tais valores são cristãos. Eu, enquanto posso, me concentro no unheimlich enquanto experiência estética, tal como Freud sugere. A primeira vez que ouvi falar neste termo foi em um comentário sobre o texto de Clarice Lispector: “certa hora da tarde, as amoras que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se” (2008) . Essa é Ana, de Clarice, em Amor, mas também é Maria Bethânia, quando, no documentário Pedrinha de Aruanda (2006), a escutamos falar da angústia que sentimos todo final de dia, precisamente nos arredores melancólicos do pôr do sol, como a “hora do dia que o universo troca de guarda e nos sentimos desprotegidos”. É o pressentimento de Vinícius no Soneto de Separação, escrito em 1938:
De repente do riso fez-se o pranto Silencioso e branco como a bruma E das bocas unidas fez-se a espuma E das mãos espalmadas fez-se o espanto De repente da calma fez-se o vento Que dos olhos desfez a última chama E da paixão fez-se o pressentimento E do momento imóvel fez-se o drama De repente não mais que de repente
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Fez-se de triste o que se fez amante E de sozinho o que se fez contente Fez-se do amigo próximo, distante Fez-se da vida uma aventura errante De repente, não mais que de repente
Essa já sou eu em Buenos Aires: “No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz forte das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado”. Em Freud, as descrições do inquietante são distintas, e há ainda uma distinção maior, entre o unheimlich que se descreve na literatura e aquele que sentimos nas experiências da vida. Para ele, não há coincidência certa no percurso entre ler a descrição do sentimento inquietante de um personagem e a partir da leitura ter em si provocada tal angústia. Mas eu, quando encontro Ana, embarco no fluxo de pensamento de Clarice e sigo a leitura lembrando que antes de todas as palavras havia um título para o texto que dizia Amor. Na sua explicação do unheimlich Freud busca Édipo, escreve Édipo na literatura de E. T. A. Hoffmann. É em Édipo que ele encontra as causas do insuportável desconforto dos personagens de Hoffmann, uma vez desenhada a figura da castração, o inquietante retorna como o reprimido que estava oculto, o terror do personagem de perder os olhos, alimentado na infância pela mãe e pela empregada, aparece como causa do medo absurdo do “homem dos olhos”, que faz o personagem já adulto sair do controle. Freud demora uma nota de rodapé de uma página (na edição do texto O inquietante editado pela Companhia das Letras) para edipianizar a história e termina por diagnosticar o próprio autor: “E.T.A. Hoffmann foi filho de um casamento infeliz. Quando ele tinha três anos de idade seu pai abandonou a família e nunca mais voltou a viver com ela. Segundo os documentos citados por E. Grisebach na introdução biográfica das obras de Hoffmann, a relação com o pai sempre foi um dos pontos mais delicados da vida emocional do autor” (FREUD, 2010a, p. 349). Não é por acaso que, para Freud, a obra do autor é especialmente rica em discrições de experiências relacionadas ao inquietante, o psicanalista recorre a alguns de seus personagens para desenvolver sua argumentação sobre o tema, o considera o mestre do inquietante na literatura. Esse Freud, que tudo explica. Mas em mim, em Ana... o retorno do recalcado parece mais uma citação de outra natureza, e “o que chamava crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada”, escreve Clarice sobre Ana no Jardim Botânico. A sala da casa, toda preenchida de Bahia, com suas músicas e seus sotaques. As 139
lembranças de um lugar do qual tinha partido sem intenções de retornar para morar, em direção a uma viagem planejada para ser pura leveza e amor, mas pela qual eu tinha, mesmo antes de partir, um pressentimento que me incomodava. Não era a casa, não eram as pessoas quase desconhecidas, nem tão pouco saudades de Salvador ou da Paraíba. A memória que me incomodava era de mim mesma em todos os lugares que ainda não estive, e que minha feliz rotina, previamente desejada, deixava fora de perspectiva. Neste sentido, foi sim o retorno do oculto, mas não somente do que foi, como explica Freud, sempre em busca de traumas do passado, mas mais ainda do que ainda não foi, e que tinha grandes possibilidades de estar perdido para sempre. No Jardim Botânico, Ana demora toda a tarde com seu mal-estar, e não fica claro ao fim do texto se ele deixará de acompanhá-la, nem quando. Em um dos textos de Hoffmann tratado por Freud, quando já adulto o personagem pula da torre de uma igreja em um último acesso de terror ocasionado pela visão do “homem dos olhos” que se aproxima, e não o faz sem antes tentar empurrar de lá sua noiva, ele investe em seu trauma, loucura, mas já para Ana: “A crueza do mundo era tranquila, o assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos”, para ela, o Jardim Botânico aquela tarde era um mundo que se come com os dentes. Eu não tinha uma banana em casa naquela noite, e improvisei com uma prótese peniana uma figura que não aparecia fazia um tempo. Me montei no meio da festa, fui ao quarto, vesti uma cinta-caralho, acoplei uma prótese peniana e um espartilho preto que tinha usado na ocasião do meu casamento, mais ou menos três meses antes, e que nunca mais tinha usado, estava mais folgado, havia perdido peso. Meus seios ficavam cobertos, mas dava para ver o desenho dos mamilos por debaixo da renda, já o piercing clitoriano aparecia completamente pela abertura inferior da cinta, dependendo da posição que eu ficasse. Voltei para sala assim, quase nua, triunfante. Pedi para trocarem a música por um fu nk de Valesca Popozuda que eu adoro: “minha buceta é o poder”, canta ela no refrão, dando ênfase à última palavra. Se eu tivesse a banana, e queria que fossem muitas, teria oferecido para todas as pessoas, eu não as tinha, mas ainda tinha a bunda, “pacote completo, vai querer?” Você ria nervoso e recusava a oferta. Insisti um pouco até perceber que, quando enfim revisto minha inquietação de loucura, minha domesticação de potência e traspasso por um instante, uma noite, metade de uma noite, o terror e o pressentimento que haviam se transformado em angústia cotidiana, os revestindo de outro tipo de terror, te vejo performar sua inquietação com o sorriso nervoso e o braço em 140
riste que me dizia claramente: não me toque. Ao forjar nesta carta palavras para lembrar daquele acontecimento, não quero esconder que para muitos, quase todos, aquela situação inusitada era uma grande brincadeira, para os estrangeiros à Bahia possivelmente cumpre o papel de brasileira maluquinha provavelmente sob o efeito de drogas pesadas. Para você ficou muito claro que havia um terror a mais, que não te deixava disfarçar, que não deixava você tirar os olhos de mim, ainda que não virasse a cabeça, seus olhos me seguiam até onde podiam pelos cantos da sala, e seu braço subia dobrado até a altura do peito a qualquer tentativa minha de aproximação. Você não queria que eu encostasse em você, eu não encostei em você, mas sei que para você “era fascinante, e ela [Ana] sentia nojo”. Unheimlsch? Medo? De que? Lembro de uma exibição, em Alagoinhas, do filme Meu Amigo Cláudia, que mostra Cláudia Wonder em uma das cenas do pornô no qual atua, com seus seios, seu pênis, e apenas um corpo. A plateia levantou-se entre muita algazarra, gargalhadas e um tanto de indignação; para eles, para as igrejas, escolas, rádios locais, ninguém é obrigado a ver (tocar, ouvir, falar, estar na presença de) certos corpos e certos tipos de pessoas. Você não foi embora, ficou na festa, mas performou, consciente ou inconscientemente, todo o seu incômodo. Bem, para começar, devo lhe agradecer, pois se não fosse o encontro da minha figura montada com você, certamente a noite não teria passado de uma grande brincadeira, no encontro com você meu corpo performático ganhou dimensões mais relevantes àquela noite. Mas afinal, o que você achava que eu ia fazer? Por que aquele braço em riste? Por que fui tão violenta para você? Por que não escolheu, ou não conseguiu, levar a situação como os demais o fizeram, como uma simples brincadeira? Não espero uma resposta, e essa é a melhor parte das cartas escritas para não serem enviadas, também não acho que você teve qualquer trauma infantil com bundas ou próteses ou espartilhos... Mas a inquietação estava ali, o desconforto habitava seu corpo e tomava conta da sua performace: da sua postura, do seu caminhar em fuga. Mas fugir de quê? Medo de que eu faça uma performance adolescente, te segure e esfregue à força minha prótese em você? Não sei, fiquei um tempo pensando nisso, depois esqueci. Esses dias, com o cenário de disputa entre pessoas que consideram crime expressar em público a discordância pessoal em relação à homossexualidade e as que acham pecado, ou se incomodam com a mesma força de um sentimento de fé, com as expressões de carinhos homoafetivos e lutam pelo direito de expressar tal opinião/sentimento, acho que responder as perguntas sobre o inquietante centrando as respostas em histórias pessoais não confere novas espessuras nem dimensões 141
relevantes ao debate. Retornaríamos inevitavelmente ao inútil argumento de que fulano ou cicrano é reprimido, enrustido, deseja demais ou sofreu um trauma, ou justamente porque sofreu algum trauma deseja demais. Isso não significa que o desejo deixa de ser considerado, porque sim, na maior parte dessas inquietações, ao menos nas minhas experiências inquietantes, algum forte desejo está sempre implicado. Contudo, também pode se reivindicar por desejo o direito de não gostar de, o direito de não ser tocado, de não ser invadido, obrigado a conviver, a ver determinadas imagens/corpos/pessoas. Quantos amigos heterossexuais não acionam, de primeira, o argumento de que verdadeiramente não possuem desejos homossexuais quando argumento que a heterossexualidade é construção social, e eu mesma, como gostaria de me construir lésbica e me abrigar sob o guarda-chuva da identidade antes de entrar no campo de batalha cotidiano por respeito à diversidade sexual. No final das contas, o que nos inquieta está tão oculto quando a linguagem que usamos, está nas estruturas que organizam nossos pensamentos e nossos sentimentos. Quando as lutas anti-homofobia apostam tão apenas nos marcos legais, e ao mesmo tempo aceitamos argumentos como “não gosto”, “não sinto”, “tenho direito de achar o que quer que seja” como espaço reservado a individualidade pessoal e irretocável, perdemos a dimensão da disputa que diz respeito à subjetividade, e como eu não acredito que nascemos com sensos estéticos préestabelecidos, gosto mesmo de perguntar sobre seus sentimentos, ainda que somente sobre seus sentimentos por mim naquela noite, pois talvez eles digam respeito menos a nossa relação, que como disse nas primeiras linhas, sei bem que não existe muito, e mais sobre as nossas relações com o mundo, como nos ocupamos dele, sobre, afinal, o que é capaz de nos fazer sentir qualquer coisa. Terminei a pouco uma dissertação, que foi também um processo de auto-esquizo-análise selvagem, onde tento falar um pouco sobre isso. Bem, isso era tudo que tinha para lhe dizer por hora. Sinto muito a brevidade de algumas argumentações e a falta de mais repertório. Espero lhe encontrar em breve e espero ter a sorte de ter uma banana para lhe oferecer na ocasião, quem sabe possamos fazer um piquenique para conversar mais um pouco. Até mais, um beijo.
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Filmografia principal: BOMBADEIRA, A DOR DA BELEZA. Direção: Luis Carlos de Alencar. Rio de Janeiro; Salvador: Singra Produções; Grifo, 2007. (75 min). DZI CROQUETTES. Direção: Raphael Alvarez; Tatiana Issa. São Paulo: Imovision, 2009. (110 min). MEU AMIGO CLÁUDIA. Direção: Dácio Pinheiro. São Paulo: Piloto, 2009. (86 min).
Filmografia complementar: A concepção (José Eduardo Belmonte, 2005) A cultura queer do Solange, tô aberta (Claudio Manuel, 2010) A festa da menina morta (Matheus Nachtergaele, 2008) After Stonewall (John Scagliotti, 1999) Amores possíveis (Sandra Werneck, 2001) As melhores coisas do mundo (Laís Bodanzky, 2010) Carandiru (Hector Babenco, 2003) Cazuza, o tempo não pára (Sandra Werneck, 2004) Cinema em 7 cores (Felipe Tostes e Rafaela Dias, 2008) Como esquecer (Malu De Martino, 2010) Cuba Libre (Evaldo Mocarzel, 2008) Do começo ao fim (Aluizio Abranches, 2009) Elvis e Madona (Marcelo Lafitte, 2011) Estamira (Marcos Prado, 2006) Fingered (Richard Kern, 1986) Hedwig and the angry inch (John Cameron Mitchell, 2001) Madame Satã (Karin Ainöuz, 2002) Maioria Absoluta (Leon Hirszman, 1964) Mutantes - Punk, Porn, Feminist (Virginie Despentes, 2009) 148
Notícias de uma guerra particular (João Moreira Sales, 1999) O céu sobre os ombros (Sérgio Borges, 2011) Olhe pra mim de novo (Cláudia Priscilla e Kiko Goifman, 2011) Ó paí, ó (Monique Gardenberg, 2007) O sexo dos anormais (Alfredo Sternheim, 1984) Paris is Burning (Jennie Livingston, 1990) Pedrinha de Aruanda (Andrucha Waddington, 2006) Pharagraph 175 (Rob Epstein e Jeffrey Friedman, 2000) Pink Flamingos (John Waters, 1972) Questão de Gênero (Rodrigo Najar, 2010) Se nada mais der certo (José Eduardo Belmonte, 2009) The Watermelon Woman (Cheryl Dunye, 1996) The living end (Christopher Munch’s, 1991) The rigth side of my brian (Richard Kern, 1984) Velvet Goldmine (Todd Haynes, 1998) Venus Boyz (Gabriel Baur, 2001) Zero Patience (John Greyson, 1996)
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