Reboul, Oliver. Introdução à Retórica. Fichamento.docx

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Introdução Natureza e função da retórica Para o senso comum, retórica é sinônimo de coisa empolada, artificial, enfática, declamatória, falsa. p. XIII Retórica é redescoberta pelos acadêmicos nos anos 1960. p. XIII Charles Perelman e L. Olbrechts-Tyteca “veem a retórica como arte de argumentar, e buscar seus exemplos mormente entre os oradores religiosos, jurídicos, políticos e até filosóficos”. p. XIII Morier, G. Genette, J. Cohen e o “Grupo MU” “consideram a retórica como um estudo do estilo, e mais particularmente das figuras”. p. XIII Para os primeiros, a retórica visa a convencer; para os últimos, constitui aquilo que torna literário um texto; e é difícil perceber o que as duas posições tem em comum. p. XIII Elemento comum: a articulação dos argumentos e do estilo numa mesma função. p. XIII Definição proposta pelo autor: retórica é a arte de persuadir pelo discurso. p. XIV Por discurso entendemos toda produção verbal, escrita ou oral, constituída por uma frase ou por uma sequencia de frases, que tenha começo e fim e apresente certa unidade de sentido. p. XIV Portanto, retórica diz respeito ao discurso persuasivo, ou ao que um discurso tem de persuasivo. p. XIV Persuadir é levar alguém a crer em alguma coisa. Alguns distinguem rigorosamente “persuadir” de “convencer”, consistindo este último não em fazer crer, mas em fazer compreender. A nosso ver essa distinção repousa sobre uma filosofia – até mesmo uma ideologia – excessivamente dualista, visto que opõe no homem o ser de crença e sentimento ao ser de inteligência e razão, e postula ademais que o segundo pode afirmam-se sem o primeiro, ou mesmo contra o primeiro. Até segunda ordem, renunciaremos a essa distinção entre convencer e persuadir. p. XV A nosso ver, a persuasão consiste em levar a crer (1), sem redundar necessariamente no levar a fazer (2). Se, ao contrário, ela leva a fazer sem levar a crer, não é retórica. p. XV Esta, dizíamos, é uma arte. Este termo, tradução do grego techné, é ambíguo, e até duplamente ambíguo. Em primeiro lugar, porque designa tanto uma habilidade espontânea quanto uma competência adquirida através do ensino. Depois porque designa ora uma simples técnica, ora, ao contrário, o que na criação ultrapassa a técnica e pertence somente ao “gênio” do criador. p. XVI O verdadeiro orador é um artista no sentido de descobrir argumentos ainda mais eficazes do que se esperava, figuras de que ninguém teria ideia e que se mostram ajustadas; artista cujos desempenhos não são programáveis e que só se fazem sentir posteriormente. p. XVI  Função persuasiva: argumentação e oratória. Problema central do livro: por que MEIOS um discurso é persuasivo. p. XVII Esses meios são de ordem racional alguns, de ordem afetiva outros. Ou melhor dizendo: uns mais racionais, outros mais afetivos, pois em retórica razão e sentimentos são inseparáveis. p. XVII Os meios de competência da razão são os argumentos. E veremos que estes são de dois tipos: os que se integram no raciocínio silogístico (entimemas) e os que se fundam no exemplo. [...] Os meios que dizem respeito à afetividade são, por um lado o etos, o caráter que o orador deve assumir para chamar a atenção e angariar a confiança do auditório, e por outro lado o patos, as tendências, os desejos, as emoções do auditório das quais o orador poderá tirar partido. De modo um pouco diferente, Cícero distingue docere, delectare e movere:

  

Docere: (instruir, ensinar) é o lado argumentativo do discurso. Delectare: (agradar) é seu lado agradável, humorístico, etc. Movere: (comover) é aquilo com que ele abala, impressiona o auditório. p. XVIII

Em resumo, o persuasivo do discurso comporta dois aspectos: um a que chamamos de “argumentativo”; e outro, de “oratório”. Dois aspectos nem sempre fáceis de distinguir. p. XVIII Os gestos do orador, o tom e as inflexões de sua voz são puramente oratórios. Todavia, o que dizer das figuras de estilo, aquelas famosas figuras a que alguns reduzem à retórica? A metáfora, a hipérbole, a antítese são oratórias por contribuírem para agradar ou comover, mas são também argumentativas no sentido de exprimirem um argumento condensando-o, tornando-o mais contundente. p. XVIII Demonstração, meio de convencimento puramente racional, sem nada afetivo, e que escapa ao campo da retórica. p. XVIII  A função hermenêutica Entretanto, por mais primordial, a função persuasiva não é única. Se a retórica é a arte de persuadir pelo discurso, é preciso ter em mente que o discurso não é e nunca foi um acontecimento isolado. Ao contrário, opõe-se a outros discursos que o precederam ou que lhe sucederão, que podem mesmo estar implícitos, como o protesto silencioso das massas às quais se dirige o ditador, mas que contribuem para dar sentido e alcance retórico ao discurso. A lei fundamental da retórica é que o orador – aquele que fala ou escreve para convencer – nunca está sozinho, exprime-se sempre em concordância com outros oradores ou em oposição a eles, sempre em função de outros discursos. p. XIX Ora, para ser persuasivo, o orador deve antes compreender os que lhe fazem face, captar a força retórica deles, bem como seus pontos fracos. p. XIX Para ser bom orador, não basta saber falar; é preciso saber também a quem está falando, compreender o discurso do outro, seja esse discurso manifesto ou latente, detectar suas ciladas, sopesar a força de seus argumentos e sobretudo captar o não dito. p. XIX Hermenêutica – a arte de interpretar textos. p. XIX  A função heurística Heurística - do verbo grego euro, eureca, que significa encontrar. Em resumo, uma função de descoberta. p. XX Num mundo sem evidência, sem demonstração, sem previsão certa, em nosso mundo humano, o papel da retórica, ao defender esta ou aquela causa, é esclarecer aquele que deve dar a palavra final. Contribui – onde não há decisão previamente escrita – para inventar uma solução. E faz isso instaurando um debate contraditório, só possível graças a seus “procedimentos”, sem os quais logo descambaria para o tumulto e a violência. p. XXI  A função pedagógica A arte do discurso implica a arte de compreender e possibilita a arte de inventar. p. XXI O autor defende que, a despeito de sua exclusão dos programas escolares franceses no século XIX, a arte retórica continua presente na cultura escolar, especialmente nas disciplinas de filosofia e letras, onde exigese dos alunos competências como cuidar do estilo, coerência, encadeamento de argumentos, falar distintamente e com vivacidade. p. XXII E aprender a arte de bem dizer é já e também aprender a ser. p. XXII Capítulo I ORIGENS DA RETÓRICA NA GRÉCIA

Para começar, os gregos inventaram a “técnica” retórica, como ensinamento distinto, independente dos conteúdos, que possibilitava defender qualquer causa e qualquer tese. Depois, inventaram a teoria da retórica, não mais ensinada como uma habilidade útil, mas como uma reflexão com vistas a compreensão, do mesmo modo como foram eles os primeiros a fazer teoria da arte, da literatura, da religião. p. 1 A história da retórica termina quando começa (pouca alteração desde o século V a. C até os tempos atuais). p. 1 Datas importantes: 480 a. C, batalha de Salamina, na qual os gregos coligados triunfaram definitivamente sobre a invasão persa, quando começou o grande período da Grécia clássica; 399 a. C, morte de Sócrates. p. 2 Origem judiciária A retórica não nasceu em Atenas, mas na Sicília grega por volta de 465, após a expulsão dos tiranos. [...] Os cidadãos despojados pelos tiranos reclamaram seus bens, e à guerra civil seguiram-se inúmeros conflitos judiciários. Numa época em que não existiam advogados, era preciso dar aos litigantes um meio de defender sua causa. Certo Córax, discípulo do filósofo Empédocles, e o seu próprio discípulo, Tísias, publicaram então uma “arte oratória” (tekhné rhetoriké), coletânea de preceitos práticos que continha exemplos para uso das pessoas que recorressem à justiça. Ademais, Córax dá a primeira definição da retórica: ela é “criadora de persuasão”. p. 2 Como Atenas mantinha estreitos laços com a Sicília, e até processos, imediatamente adotou a retórica. p. 2 Logógrafos: escrivães públicos, que redigiam as queixa que os litigantes só tinham que ler diante do tribunal. p. 2 Os retores, com seus senso agudo de publicidade, ofereceram aos litigantes e aos logógrafos um instrumento de persuasão que afirmavam ser invencível, capaz de convencer qualquer pessoa de qualquer coisa. Sua retórica não argumentava a partir do verdadeiro, mas a partir do verossímil (eikos). p. 2 Córax Córax é considerado o inventor do argumento que leva seu nome, o córax, e que deve ajudar os defensores das piores causas. Consiste em dizer que uma coisa é inverossímil por ser verossímil demais. Por exemplo, se o réu for fraco, dirá que não é verossímil ser ele o agressor. Mas, se for forte, se todas as evidencias lhe forem contrárias, sustentará que, justamente, seria tão inverossímil julgarem-no culpado que não é verossímil que ele o seja. p. 3 Origem literária: Górgias Com Górgias surge uma nova fonte da retórica: estética e propriamente literária. p. 4 Isso porque, até então, os gregos identificavam “literatura” com poesia (épica, trágica, etc). A prosa, puramente funcional, restringia-se a transcrever a linguagem oral comum. Górgias, um dos fundadores do discurso epidíctico, ou seja, elogio público, cria para esse fim uma prosa eloquente, multiplicando as figuras, que a tornam “uma composição tão erudita, tão ritmada e, por assim dizer, tão bela quanto a poesia” (Navarre, p. 86). p. 4 Na realidade, esse ensino preenchia uma necessidade, pois até então os gregos só recebiam uma formação elementar, sem nada de parecido com um ensino superior ou mesmo secundário. É aos retores que se deve essa inovação: ensino intelectual aprofundado, sem finalidade religiosa ou profissional, sem outro objetivo senão a cultura geral. p. 6 Górgias pôs a retórica a serviço do belo. p. 6 A retórica e os sofistas Ora, se admitirmos como ele que o ser não existe, ou que não é cognoscível nem comunicável, não estaremos reconhecendo ipso facto a onipotência da palavra, palavra que não está mais submetida a nenhum

critério externo e da qual nem mesmo se pode dizer que é falsa? Nessas alturas estamos em plena sofistica. p. 7 Protágoras: o homem medida de todas as coisas O elo entre a sofistica e a retórica só aparece plenamente em Protágoras (c. 486-410). p. 7 Erística – éris = controvérsia. p. 7 Passa também por fundador da erística, que depois virá a ser dialética. Partindo do principio de que a todo argumento pode-se opor outro, que qualquer assunto pode ser sustentado ou refutado, ele ensina a técnica erística, a arte de vencer uma discussão contraditória (“erística” vem de éris, controvérsia). p. 7 Recordemos as teses de Protágoras: o homem é a medida de todas as coisas; em outras palavras, as coisas são como aparecem a cada homem; não há outro critério de verdade. [...] Não há mais nenhuma objetividade, nem mesmo lógica, pois o princípio de contradição não vale mais. A cada um a sua verdade, e todas são verdades. A cada um: mas, em Protágoras, o “cada um” é tanto a cidade quanto o indivíduo; é a cidade que, em nome de seu próprio interesse, decida sobre os valores e as verdades. p. 8 Fundamento sofístico da retórica De qualquer forma, pode-se dizer que os sofistas criaram a retórica como arte do discurso persuasivo, objeto de um ensino sistemático e global que se fundava numa visão de mundo. p. 9 Ensino global: é aos sofistas que a retórica deve os primeiros esboços de gramática, bem como a disposição do discurso e um ideal de prosa ornada e erudita. Deve-se a eles a ideia de que a verdade nunca passa de acordo entre interlocutores, acordo final que resulta da discussão, acordo inicial também, sem o qual a discussão não seria possível. A eles se deve a insistência no kairós, momento oportuno, ocasião que se deve agarrar na fuga incessante das coisas, ao que se dá o nome de espírito da oportunidade ou de réplica vivaz, e que é a alma de qualquer retórica viva. Sim, todos os elementos de uma retórica riquíssima, que serão encontrados depois, especialmente em Aristóteles. p. 9 Certamente porque o mundo do sofista é um mundo sem verdade, um mundo sem realidade objetiva capaz de criar o consenso de todos os espíritos, para dizerem que dois e dois são quatro e que Tóquio existe...Privado de uma realidade objetiva, o logos, o discurso humano fica sem referente e não tem outro critério senão o próprio sucesso: sua aptidão para convencer pela aparência de lógica e pelo encanto de estilo. A única ciência possível é, portanto, a do discurso, a retórica. p. 9 Concretamente, o que muda? Muda que o discurso não pode mais pretender ser verdadeiro, nem mesmo verossímil, só poderá ser eficaz; em outras palavras, próprio para convencer, que no caso equivale a vencer, a deixar o interlocutor sem réplica. A finalidade dessa retórica não é encontrar o verdadeiro, mas dominar através da palavra; ela não está devotada ao saber, mas sim ao poder. p. 10 Isócrates ou Platão? Isócrates consegue satisfazer sozinho estas quatro exigências (necessidade de técnica judiciária, de prosa literária, de filosofia, de ensino), ao propor uma retórica mais plausível e mais moral que a dos sofistas. p. 10 Isócrates, o humanista Ateniense, viveu entre 436 e 338 a. C. p. 10 Ensina sempre recorrendo à reflexão do aluno e fazendo seus grandes discípulos cooperarem na gênese de seus próprios discursos, que leem, discutem e corrigem com o mestre. Aliás, opondo-se aos sofistas, que se vangloriavam de capacitar qualquer um a persuadir qualquer um, ele mostra que o ensino não é todo poderoso. A seu ver, para ser orador, são necessária três condições. Para começar, aptidões naturais. Depois, prática constante. Finalmente, ensino sistemático. Prática e ensino podem melhorar o orador, mas não crialo. p. 11

Principalmente, moraliza a retórica ao afirmar alto e bom som que ela só é aceitável se estiver a serviço de uma causa honesta e nobre, e que não pode ser censurada, tanto quanto qualquer outra técnica, pelo mau uso que dela fazem alguns. Aliás, para Isócrates, ensino literário e formação moral estão ligados, para dizer o mínimo. p. 11 Isócrates, que se proclama anti-sofista, também não reivindica o nome de retor. Ele se diz “filósofo”. Mas, convencido de que o homem não pode conhecer as coisas assim como são, colocando a dialética de Platão no mesmo nível de inutilidade da erística dos sofistas, integra a filosofia na arte do discurso. Ela é para a alma o que a ginástica é para o corpo, formação intelectual e moral, boa para os jovens, mas inútil para perseguir por toda a vida (a mesma crítica que será feita a Sócrates por Cálicles). p. 12 Uma pausa Desse modo, os exemplos de Górgias provam que nem tudo podem os especialistas, e não que nada podem; provam que a retórica é capaz de alguma coisa, e até muito, mas não que é onipotente. p. 15 Retórica e cozinha Platão rejeita a confiança que os sofistas como Isócrates atribuem à linguagem. Só lhe reconhece valor se a serviço do pensamento, único a atingir as “ideias”, a verdade inteligível. p. 18 De que “ciência” se trata? Para ele, essa ciência, a dialética, proporciona um conhecimento das coisas éticas e políticas tão seguro quanto as ciências da natureza, e até mais seguro. (cf. República, livros VII e VIII). p. 18 Concluindo, como diz muito bem Barbarin Cassin, Platão apresenta-nos duas retóricas, quer dizer, duas a mais. A primeira, a dos sofistas e de Isócrates, não é arte, mas uma falsa adulação. A segunda é apenas uma expressão da filosofia, sem conteúdo próprio. Hoje em dia, reencontramos esse dualismo estéril entre uma publicidade que só procura agradar, para vender, e uma pretensa “ciência humana” que não resolve os problemas humanos, abstendo-se mesmo de formulá-los. p. 19

Capítulo II ARISTÓTELES, A RETÓRICA E A DIALÉTICA Aristóteles, filósofo e sábio universal, soube conciliar em si duas tendências pouco conciliáveis: o espírito de observação e o espírito de sistema. p. 21. Retórica que Aristóteles vai repensar de cabo a rabo, integrando-a de inicio num sistema filosófico bem diferente daquele dos sofistas, e depois transformando-a em sistema. p. 22. Uma definição mais modesta... Górgias a celebra (a retórica) por seu poder, Aristóteles por sua utilidade. Ambos admitem (como Isócrates) que ela pode ser usada desonestamente (adikôs), o que nada subtrai o seu valor. p. 23. Entretanto, se é que Górgias e Aristóteles estão falando da mesma coisa, não falam da mesma maneira. O discurso do sofista é digno quando muito de uma praça pública; sua argumentação pelo exemplo dá guinadas. O de Aristóteles, ao contrário, é muito coeso; procede por silogismos implícitos, ou entimemas. Em suma, passa-se de uma arenga propagandística, do tipo “vocês vão ver o que vocês vão ver”, para uma argumentação rigorosa. p. 23. E essa nova argumentação dá uma ideia mais profunda e sólida de retórica. para começar, já não a apresenta como poder de dominar, mas como poder de defender-se, o que logo de cara a torna legítima. p. 23. Em resumo, enquanto a defesa de Górgias ou de Isócrates consistia em fazer da retórica um instrumento neutro, que só valia pelo uso, Aristóteles lhe confere um valor positivo, ainda que relativo. p. 24.

Voltemos, pois, à sua definição “corrigida” da retórica. Ela não se reduz, diz ele, ao poder de persuadir (subentendido: ninguém de coisa nenhuma); no essencial, é a arte de achar os meios de persuasão que cada caso comporta. Em outras palavras, o bom advogado não é aquele que promete vitória a qualquer custo, mas aquele que abre para a sua causa todas as probabilidades de vitória. p. 24. Em resumo, dando à retórica uma definição mais modesta que a dos sofistas, ele a tona muito mais plausível e eficaz. Entre o “tudo” dos sofistas e o “nada” de Platão, a retórica se contenta com ser alguma coisa, porém de pouco valor. p. 24. A argumentação de Aristóteles Se a arte pode ter vantagem sobre a natureza, então é preciso um suplemento da arte para devolver à natureza seus próprios direitos. p. 25. É preciso ser capaz de defender tão bem o contra quanto o pró, claro que não para torna-los equivalentes – como pretendiam os sofistas -, mas para compreender o mecanismo da argumentação adversária e assim a refutar. p. 25. No campo do direito, da política, da vida internacional, vivemos sempre uma situação polêmica, em que as armas mais eficazes são as da palavra, visto que só ela – e não a força física – define o justo e o injusto, o útil e o nocivo, o nobre e o desprezível. A retórica, arte ou técnica da palavra, é, portanto, indispensável. E aí está o que a legitima. p. 25. Aristóteles opõe-se aos sofistas, para os quais tudo é relativo, e também, como sempre, a Isócrates, para quem uma ciência absoluta, à moda de Platão, não passa de logro, visto que o homem poderá chegar apenas a opiniões justas, ou melhor, mais ou menos justas. Quanto a Aristóteles, admite que existe uma ciência exata, e até “inteiramente exata” (akribestaté). Assim como Platão, admite uma ciência que, por via demonstrativa, parta do verdadeiro para chegar ao verdadeiro. Mas parece que objeta a Platão que a ciência mais exata é impotente para convencer certos auditórios, aos quais falta instrução. p. 26. Em outras palavras, um discurso submetido às exigências científicas só pode ser feito numa escola, numa instituição especial, com seus métodos, seus mestres, programas progressivos, etc. p. 26. A retórica não é, pois, a prova do pobre. É a arte de defender-se argumentando em situações nas quais a demonstração não é possível, o que a obriga a passar por “noções comuns”, que não são opiniões vulgares, mas aquilo que cada um pode encontrar por seu bom senso, em domínios nos quais nada seria menos científico do que exigir respostas científicas. p. 27. Numa palavras, Aristóteles salva a retórica, colocando-a em seu verdadeiro lugar, atribuindo-lhe um papel modesto, mas indispensável num mundo de incertezas e de conflitos. É a arte de encontrar tudo o que um caso contém de persuasivo, sempre que não houver outro recurso senão o debate contraditório. p. 27. O que é dialética? Parece que a primeira dialética foi a erística dos sofistas, arte da controvérsia que permitia fazer triunfar o absurdo ou o falso. Sócrates e depois Platão puseram a dialética a serviço do verdadeiro, transformando-a no próprio método da filosofia. p. 28. Para Aristóteles, a dialética não está menos a serviço do verdadeiro do que do falso; ela trata do provável: Em filosofia, é preciso tratar as questões segundo a verdade, mas em dialética somente segundo a opinião. A dialética de Aristóteles é apenas a arte do diálogo ordenado. O que a distingue da demonstração filosófica e científica é raciocinar a partir do provável. O que a distingue da erística sofista é raciocinar de modo rigoroso, respeitando estritamente as regras da lógica. p. 28. A dialética é um jogo O silogismo demonstrativo parte de premissas evidentes, necessárias, que provam sua conclusão explicando-a de modo indubitável. O silogismo dialético parte de premissas simplesmente prováveis,

os endoxa, aquilo que parece verdadeiro a todo o mundo, ou à maioria das pessoas, ou ainda aos indivíduos competentes. p. 28 O endoxon opõe-se, pois, ao paradoxon (o paradoxo pode ser verdadeiro, mas contradiz a opinião aceita). p. 28. Portanto, a dialética renuncia à verdade das coisas em beneficio da opinião aceita. p. 28. Em nossa opinião, a melhor resposta para esse tipo de crítica é mostrar que a dialética não é nem moral nem imoral, simplesmente porque, no fundo, ela é um jogo. Num jogo, o problema é ganhar. E, neste, vencer é convencer; em outras palavras, uma proposição enunciada pelo adversário é admitida como provada, sem que se possa voltar a ela. p. 29. Em síntese, um jogo análogo ao xadrez, em que o acaso tem posição ínfima. Um jogo em que se deve fazer de tudo para ganhar, mas sem trapacear, respeitando as regras...da lógica. p. 29. Tudo para ganhar O importante é acharem que ele defendeu bem, que argumentou brilhantemente; por fim, caso o questionador tenha vencido ressaltando todos os absurdos decorrentes da tese, o defensor deve poder “mostrar” que a culpa não é sua, mas da própria tese; em suam, que ele defendeu o melhor que pôde uma tese que não era sua. p. 30. Respeitar as regras do jogo Para começar, as que – sem serem propriamente lógicas – têm por objetivo permitir a conclusão, o fim do jogo, num tempo limitado. p. 30. Às regras que dizem respeito aos argumentadores, acrescentam-se as que dizem respeito à argumentação. p. 31. Em primeiro lugar, as regras de clareza no que diz respeito aos termos. p. 31. Outros sofismas dizem respeito à forma de raciocínio. p. 31. A passagem do falso ao verdadeiro deve ser dialética, não erística. p. 31. Enfim, uma regra apropriada ao jogo dialético: só serão feitas perguntas que possam ser respondidas com sim ou com não. p. 32. Utilidade do jogo dialético A dialética é, pois, um jogo cujo objetivo consiste em provar ou refutar uma tese respeitando-se as regras do raciocínio. O papel do inquiridor “é concluir a discussão de modo que o defensor sustente os mais extravagantes paradoxos, como consequências necessárias de sua tese”. Aou outro, em contrapartida, cabe defender sua tese por todos os meios. O essencial é que cada um mostre que raciocinou bem e utilizou todos os argumentos a seu alcance. E esse “mostrar” já não é simples aparência; é o sofista que raciocina na aparência, exatamente como o trapaceiro, que faz de conta que está jogando. Quanto à dialética, é uma argumentação que vai da aparência à aparência, mas raciocinando de modo real, quer dizer, correto. E o que reforça ainda mais a ideia de jogo é a afirmação de Aristóteles: quando um dos dois adversários raciocina mal, a discussão vira chicana, e o faltoso “impede o bom cumprimento da obra comum”; como em todo jogo, cada parceiro persegue seu próprio objetivo comum, que é chegar ao fim da partida. Cada um quer ganhar, mas ambos querem levar a bom termo a “obra comum”. p. 32. Benefícios secundários do jogo: uso pedagógico, uso filosófico e uso social (“homilético”, que diz respeito diretamente à retórica). p. 33 Em primeiro lugar, a dialética, que desempenha um papel epistemológico por permitir (e só ela o faz) estabelecer através de um exame contraditório os primeiros princípios de cada ciência e os princípios comuns a todas. p. 33.

“Numa palavra, é dialético quem está apto a formular proposições e objeções”. Proposição: extrair o universal de vários casos particulares; objeção: achar um caso particular que permita infirmar uma proposição universal...E ainda mais, a dialética dá ao filósofo “a capacidade de abarcar apenas com um olhar (...) as consequências de uma e de outra hipótese”; assim, só lhe resta “fazer a justa escolha entre ambas”. p. 33. Retórica e dialética Na nossa opinião, esse termo deve ser visto como uma provocação. Isto porque Aristóteles argumenta quase sempre contra Platão. Como se sabe, este último desprezava a retórica e exaltava a dialética, na qual via o método por excelência da filosofia, único que permitia alcançar o absoluto, o “aipotético”. Aristóteles inicia, pois, o seu livro com um gesto de desafio a Platão. Faz a dialética descer do céu para a terra e, inversamente, reabilita a retórica, atribuindo-lhe um papel mais modesto do que lhe atribuíam os antigos retores. Dessa forma, ela passa a ser antístrofos da dialética, ou seja, está no mesmo plano. p. 35. O que elas têm em comum A retórica é apenas uma “aplicação”, entre outras, da dialética; é uma de suas quatro funções. Inversamente, a retórica utiliza a dialética como um meio, entre outros, de persuadir. Mais ou menos como o médico utiliza as ciências biológicas, mas também a psicologia, a psicanálise, etc. p. 35. Dialética, parte argumentativa da retórica A retórica, diz Aristóteles, comporta três tipos de prova (pisteis) como meios de persuadir. Os dois primeiros são o etos e o patos, que estudaremos no próximo capítulo; constituem a parte afetiva da persuasão. O terceiro tipo de prova, o raciocínio, resulta do logos, constituindo o elemento propriamente dialético da retórica. p. 36. Fique claro que, limitada ao verossímil, a argumentação continua racional. p. 36. Numa palavra, a dialética constitui a parte argumentativa da retórica. Cabe esclarecer, porém, que a argumentação não tem a mesma função, portanto o mesmo sentido, em ambos os casos. A dialética é um jogo especulativo. A retórica, por sua vez, não é um jogo. É um instrumento de ação social, e seu domínio é o da deliberação (buleusis); ora, esse domínio é precisamente o do verossímil. De fato, não se delibera sobre o que é evidente – por exemplo, para saber se a neve é branca – nem sobre o que é impossível; delibera-se sobre fatos incertos, mas que podem realizar-se, e realizar-se em parte através de nós. Por exemplo, a cura de um doente, a vitória na guerra, etc. p. 37. Em resumo, a retórica é uma “aplicação” da dialética, no sentido de que a utiliza como instrumento intelectual de persuasão. Mas instrumento que não a dispensa de modo algum dos instrumentos afetivos. p. 37. Moralidade da retórica A retórica, ao contrário, é uma disciplina séria, pois está ligada à ação social e contribui para decisões graves, como condenar ou absolver, entrar em guerra ou viver em paz, etc. Pode-se, pois, formular a questão de sua moralidade: será honesto o método de debater e persuadir, ou trata-se de manipulação desonesta? p. 37. A essa pergunta, que ainda teremos oportunidade de formular, vimos o que responde Aristóteles: a retórica é uma técnica útil, frequentemente indispensável. Se seu uso às vezes é desonesto, não cabe censurar a técnica, mas o técnico. p. 38. A retórica só é exercida em situações de incerteza e conflito, em que a verdade não é dada e talvez jamais seja alcançada senão sob a forma de verossimilhança. p. 39. A única coisa que se pode fazer, na falta de uma demonstração rigorosa, é confiar no debate contraditório em que cada orador “se esforça por detectar tudo o que seu caso comporta de persuasivo”. p. 39.

Conclusão: Aristóteles e nós A dialética é um jogo intelectual que, entre suas possíveis aplicações, comporta a retórica. Esta é a técnica do discurso persuasivo que, entre outros meios de convencer, utiliza a dialética como instrumento intelectual. Pois bem, se os dois círculos podem cruzar-se, é porque se situam no mesmo plano, e – indo mais longe – porque pertencem em sentido estrito ao mesmo mundo. p. 39. “A dialética”, diz Pierre Aubenque, “refuta no real (...) mas só demonstra na aparência”. Na retórica, em que não se sustenta uma tese, mas se defende uma causa, em que não se joga com ideias, mas o que esta em jogo no discurso é o destino judiciário, político ou ético dos homens, na retórica, é preciso levar a sério o “na aparência”, como verossímil que faz as vezes de uma evidencia sempre inapreensível”. p. 40. A retórica de Aristóteles está bem próxima da retórica de Isócrates em termos de conteúdo. A diferença é que em Aristóteles a retórica é uma arte situada bem abaixo da filosofia e das ciências exatas. Estas, “demonstrativas”, atingem verdades “necessárias”, que, como os teoremas, só podem ser o que são, possibilitando compreender e prever. A retórica, por sua vez, só atinge o verossímil, aquilo que acontece no mais das vezes, mas que poderia acontecer de outra forma. Equivale a dizer que só é possível em certo mundo. p. 40. Para Aristóteles, existem dois mundos. Primeiro, o mundo divino, o “céu”, não cognoscível pela fé, mas, ao contrário, pela razão demonstrativa. Esta conhece tanto o divino invisível, Deus, quanto o divino visível, a saber, os astros, objeto da astronomia matemática, visto que seus movimentos são necessários, portanto calculáveis e previsíveis. Abaixo, o mundo “sublunar”, a Terra, onde existem acaso, contingência, imprevisibilidade, onde nunca é possível a ciência perfeita, mas onde existe o provável, o verossímil. Mundo, enfim, aberto à ação humana. Citemos mais uma vez Aubenque: Num mundo perfeitamente transparente à ciência, isto é, onde estivesse estabelecido que nada poderia ser diferente do que é, não haveria lugar para a arte, nem, de maneira geral, para a ação humana. Nenhum lugar também para a retórica, que é uma arte. mas vivemos em um mundo que não é o da pura ciência; em um mundo que não é um jogo, mas que nem por isso está subemetido ao cego acaso. p. 40. Capítulo III O SISTEMA RETÓRICO Aristóteles, portanto, reabilitou a retórica ao integrá-la numa visão sistemática do mundo, onde ela ocupa seu lugar, sem ocupar, como entre os sofistas, o lugar todo. Mais ainda, Aristóteles transformou a própria retórica num sistema, que seus sucessores completarão, mas sem modificar. p. 43 As quatro partes da retórica A primeira é a invenção (heurésis, grego), a busca que empreende o orador de todos os argumentos e de outros meios de persuasão relativos ao tema de seu discurso. A segunda é a disposição (taxis), ou seja, a ordenação desses argumentos, donde resultará a organização interna do discurso, seu plano. A terceira é a elocução (lexis), que não diz respeito à palavra oral, mas à redação escrita do discurso, ao estilo. É aí que entram as famosas figuras de estilo, às quais alguns, nos anos 60, reduziram a retórica! A quarta é a ação (hypocrisis), ou seja, a proferição efetiva do discurso, com tudo que ele pode implicar em termos de efeitos de voz, mímicas e gestos. Na época romana, à ação será acrescentada a memória. p. 43, 44. As quatro partes na realidade são as quatro “tarefas” (erga) que devem ser cumpridas pelo orador. Se este deixar de cumprir alguma delas, seu discurso será vazio, ou desordenado, ou mal escrito, ou inaudível. p. 44. Invenção

Antes de empreender um discurso, é preciso perguntar-se sobre o que ele deve versar, portanto sobre o tipo de discurso, o gênero que convém ao assunto. Veremos que essa questão do gênero também diz respeito à interpretação do discurso. p. 44. Os três gêneros do discurso Segundo os antigos, os gêneros oratórios são três: judiciário, deliberativo (ou político) e epidíctico. p. 45. Aristóteles responde: “porque há três espécies de auditório” (Retórica, 1358 a); é a necessidade de adaptarse a eles que confere traços específicos a cada gênero: conforme as pessoas a quem nos dirigimos, não falaremos da mesma maneira. p. 45. Aristóteles quase não se detém nos estilos respectivos dos três gêneros, esclarece, todavia, que o epidíctico é o “mais escritos dos três” (1413 b, 1414 a). Em compensação, mostra durante longo tempo que o tipo de argumentação dos três não é o mesmo. O judiciário, que dispõe de leis e se dirige a um auditório especializado, utiliza de preferência raciocínios silogísticos (entimemas), próprios a esclarecer a causa dos atos. O deliberativo, dirigindo-se a um público mais móvel e menos culto, prefere argumentar pelo exemplo, que, aliás, permite conjecturar o futuro a partir dos fatos passados: Dionísio pede uma guarda; ora, todos os futuros tiranos conhecidos da história pediram uma guarda; logo, Dionísio vai tornar-se tirano (1357 b). Quanto ao epidíctico, recorre sobretudo a amplificação, pois os fatos são conhecidos pelo público, e cumpre ao orador dar-lhes valor, mostrando sua importância e sua nobreza (1368 a). Hoje em dia mesmo, quando se faz o elogio de um morto, parte-se daquilo que todos conhecem, para exaltar seus méritos e calar o resto. p. 46. O gênero epidíctico é essencialmente pedagógico. p. 47. O fato é que a teoria dos três gêneros hoje é bem mais restritiva; há tantos outros tipos de discursos persuasivos além desses três! Mas o mérito de Aristóteles foi mostrar que os discursos podem ser classificados segundo o auditório e segundo a finalidade. p. 47. Os três gêneros do discurso Auditório

Tempo

Ato

Valores

Argumentotipo

Judiciário

Juízes

Acusar Defender

Justo Injusto

Entimema (dedutivo)

Deliberativo

Assembleia

Passado (fatos por julgar) Futuro

Aconselhar Desaconselhar

Útil Nocivo

Exemplo (indutivo)

Epidíctico

Espectador

Presente

Louvar Censurar

Nobre Vil

Amplificação

Os três tipos de argumento: etos, patos, logos. Aristóteles define três tipos de argumentos, no sentido generalíssimo de instrumentos de persuadir (pisteis): etos e patos, que são de ordem afetiva, e logos, que é racional. p. 47.  O etos é o caráter que o orador deve assumir para inspirar confiança no auditório, pois, sejam quais forem seus argumentos lógicos, eles nada obtém sem essa confiança. p. 48. Como então dispor favoravelmente o auditório? É verdade que a resposta depende do próprio auditório, cujas expectativas variam segundo a idade, a competência, o nível social, etc. O orador, portanto, não terá o mesmo etos se estiver falando com velhos camponeses ou com adolescentes citadinos. Mas, em todo caso, ele deve preencher as condições mínimas de credibilidade, mostrar-se sensato, sincero e simpático.

Sensato: capaz de dar conselhos razoáveis e pertinentes. Sincero: não dissimular o que pensa nem o que sabe. Simpático: disposto a ajudar seu auditório (cf. II, 1, 1377 b e também 1366 a). Note-se que etos é um termo moral, “ético”, e que é definido como o caráter moral que o orador deve parecer ter, mesmo que não o tenha deveras. O fato de alguém parecer sincero, sensato e simpático, sem o ser, é moralmente constrangedor; no entanto, ser tudo isso sem saber parecer não é menos constrangedor, pois assim as melhores causas estão fadadas ao fracasso. p. 48.  O patos é o conjunto de emoções, paixões e sentimentos que o orador deve suscitar no auditório como seu discurso. Portanto, ele precisa de psicologia, e Aristóteles dedica boa metade de seu livro II à psicologia das diversas paixões – cólera, medo, piedade, etc. – e dos diversos caracteres (dos ouvintes), segundo a idade e a condição social. Aqui, o etos já não é o caráter (moral) que o orador deve assumir, mas o caráter (psicológico) dos diferentes públicos, aos quais o orador deve adaptarse. p. 48. Em todo caso, a retórica criou uma verdadeira psicologia, de que tirará proveito toda a literatura, em particular o teatro. Toda a análise dos sentimentos e das paixões deriva da retórica. p. 49. Se o etos diz respeito ao orador e o patos ao auditório, o logos (Aristóteles não emprega esse termo, que utilizamos para simplificar) diz respeito à argumentação propriamente dita do discurso (cf. 1356 a). p. 49. Como em Tópicos, distingue dois tipos de argumentos, o entimema, ou silogismo baseado em premissas prováveis, que é dedutivo, e o exemplo, que a partir dos fatos passados conclui pelos futuros, e que é indutivo. As premissas prováveis dos entimemas são: ou verossimilhanças (eikota), como por exemplo que um filho ama o pai, ou indícios seguros, como por exemplo que uma mulher que aleita teve um filho, ou indícios simples, como por exemplo que a presença de cinza indica que houve fogo. p. 49. Provas extrínsecas e provas intrínsecas Na realidade, o orador dispões de dois tipos de provas: as atekhnai, ou seja, extra-retóricas, e as entekhnai, ou seja intre-retóricas. Vamos denomina-las, respectivamente, extrínsecas e intrínsecas (no século XVII eram traduzidas por naturais e artificiais). p. 49. As provas extrínsecas são as apresentadas antes da invenção: testemunhas, confissões, leis, contratos etc. Do mesmo modo, num discurso epidíctico, tudo o que se sabe da personagem cujo elogio se faz. p. 49. As provas intrínsecas são as criadas pelo orador; dependem, pois, de seu método e de seu talento pessoal, são sua maneira própria de impor seu relatório. Vimos isso no capítulo anterior: o texto-lei, prova extrínseca, pode ser objeto de uma argumentação intrínseca contraditória, conforma essa lei seja favorável ou desfavorável ao orador (cf. supra, p. 50); do mesmo modo, que não tiver testemunhas dirá que os testemunhos são subjetivos, muitas vezes comprados, e que é melhor julgar segundo as verossimilhanças (cf. 1376 a). O orador transforma assim sua desvantagem em vantagem. p. 50. Os lugares (“topoi”) Na dúvida, pode-se sempre traduzir “lugar” por argumento. Mas lembremos que esse termo tem pelo menos três sentidos, que exporemos por níveis de tecnicidade. p. 50, 51. I – No sentido mais antigo e mais simples, o lugar é um argumento pronto que o defensor pode colocar em determinado momento de seu discurso, muitas vezes depois de o ter aprendido de cor. p. 51. No primeiro sentido, o lugar é, pois, um argumento-tipo, cujo alcance varia segundo as culturas. São encontrados no discurso epidíctico: os melhores são os que partem..., também serão vistos no discurso publicitário. p. 51. II – Em sentido mais técnico, o lugar já não é um argumento-tipo, é um tipo de argumento, um esquema que pode ganhar os conteúdos mais diversos. p. 51.

Altamente verossímil, esse lugar do mais e do menos está longe de ser evidente, porém; como toda verossimilhança, pode ser contestado. Seria incontestável se aplicado a realidades homogêneas, como por exemplo, o dinheiro: quem pode dar mil francos pode dar cem; mas isso não despertaria o menor interesse. É interessante quando aplicado a dados heterogêneos, como por exemplo aos saberes e aos poderes; mas ai deixa de ser evidente. Afinal, quem sabe menos talvez saiba coisa diferente de quem sabe mais; o mesmo para o poder: uma enfermeira pode coisas que um médico não pode, etc. Quem pode mais não pode necessariamente o menos. p. 52. Classicamente, dá-se a esses lugares o nome de “lugares-comuns”, pois se aplicam a toda a espécie de argumentação; no caso atual não passa de opinião banal expressa de modo estereotipado, enquanto o lugar comum clássico é um esquema de argumento que se aplica aos dados mais diversos. Tecnicamente, opõe-se ao lugar próprio, tipo de argumento particular a um gênero de discurso. p. 52. III – No sentido mais técnico, o dos Tópicos, o lugar não é um argumento-tipo nem um tipo de argumento, mas uma questão típica que possibilita encontrar argumentos e contra-argumentos. p. 53. Esse terceiro sentido da palavra lugar é muito notado num lugar próprio do gênero judiciário, o do estado da causa (stasis, status). Suponhamos que alguém é processado por um crime: a acusação e a defesa vão propor-se as mesmas perguntas, que a antiga retórica sintetiza em quatro: 1. Estado de conjectura: ele matou realmente? 2. Estado de definição: trata-se de um crime premeditado, não premeditado, de homicídio involuntário? 3. Estado de qualidade: supondo-se que seja admitido o crime voluntário, quais são as circunstâncias que podem acusar ou escusar o réu: motivo patriótico, religioso? 4. Estado de recusa, que consiste em perguntar se o tribunal é realmente competente, se a instrução foi suficiente, etc. Naturalmente, o lugar no sentido de questão também pode ser um lugar-comum, no sentido de que, sobre qualquer espécie de assunto, podemos interrogar sobre o tipo de ser, os tipos de causas, etc. Mas, no terceiro sentido, o lugar é sempre uma questão que permite encontrar argumentos que sirvam à tese, inventar as premissas de uma conclusão dada. p. 53. Finalmente, lugar é tudo o que possibilita ou facilita a invenção, mas que, por isso mesmo, a nega, pois uma invenção deixa de sê-lo à medida que se torna fácil! p. 54. Observações sobre a invenção Por um lado, é um “inventário”, a detecção pelo orador de todos os argumentos ou procedimentos retóricos disponíveis. Por outro, é a “invenção” no sentido moderno, a criação de argumentos e de instrumentos de prova; até o etos, explica Aristóteles, a confiança inspirada pelo pelo orador, deve ser “obra de seu discurso” (1356 a); em outras palavras, o importante não é o caráter que ele já tem, e que o auditório conhece, mas é o caráter que ele cria. p. 54. Na realidade, talvez sejamos nós que criamos uma oposição onde os antigos não a viam. Não imaginavam criação ex nihilo, e achavam que qualquer invenção é feita, por um lado, a partir de materiais dados (lugares extrínsecos) e por outro de regras mais ou menos estritas (lugares intrínsecos); mas achavam também que com ela a criatividade do orador, longe de desvanecer-se, afirma-se ainda mais. Originalidade, sim, mas como fruto da arte, ou seja, de uma prática e de um ensino. p. 54. Disposição (“taxis”) A disposição, em si, é um lugar, ou seja, um plano-tipo ao qual se recorre para construir o discurso. p. 55. Exórdio (“prooimion”, proêmio) Exórdio é a parte que inicia o discurso, e sua função é essencialmente fática: tornar o auditório dócil, atento e benevolente. p. 55.

  

Dócil significa em situação de aprender e compreender; por isso, é preciso fazer uma exposição clara e breve da questão que vai ser tratada, ou ainda da tese que se vai tentar provar. Atento: nesse ponto os antigos multiplicavam procedimentos – dizer que nunca se ouviu nem viu nada de tão espantoso ou de tão grave, procedimentos infladores, pois os juízes deviam ficar bem cansados com eles! Benevolente: é aí que o etos assume toda a sua importância. Um dos lugares mais correntes consistia em escusar-se da própria inexperiência e em louvar o talento do adversário (cf. Navarre, pp. 223s.). p. 55.

Narração (“diegésis”) A narração é a exposição dos fatos referentes à causa, exposição aparentemente objetiva, mas sempre orientada segundo as necessidades da acusação ou da defesa. O fato é que, se não for objetiva, deverá parecer. E é na narração que o logos supera o etos e o patos. Para ser eficaz, deve ter três qualidades: clareza, brevidade e credibilidade. p. 56. Como ser claro? Ao mesmo tempo pelos termos empregados e pela organização do texto, de preferencia cronológica, mas recorrendo às vezes aos retornos, aos flash-backs. Como ser breve? Eliminando tudo o que seja inútil, todos os fatos anteriores ao caso, todas as circunstâncias que não esclareçam nada, mostrando que no fundo tudo leva àquilo... Como ser crível? Enunciando o fato com suas causas, sobretudo se o fato não for verossímil; mostrando que os atos se afinam com o caráter de seu autor, com tudo o que se sabe dele. É evidente que a maneira de apresentar os fatos já é, em si, um argumento. p. 57. No deliberativo – diz Aristóteles – ela quase não tem razão de ser, pois esse discurso trata do futuro; no máximo, pode fornecer exemplos. No epidíctico, ao contrário, é tão importante que há interesse em dividi-la segundo as questões: os fatos que ilustram a coragem, os que ilustram a generosidade. p. 57. Confirmação (“pistis”) Em seguida vem uma parte nitidamente mais longa, a confirmação, ou seja, o conjunto e provas, seguido por uma refutação (confutatio), que destrói os argumentos adversários. p. 57. Com a invenção, vimos os dois grandes tipos de argumentos, o exemplo e o entimema. Convém precisar que a amplificação, própria do gênero epidíctico, pode também servir à confirmação judiciária; como dirá Cícero, ela permite ampliar o debate, remontar da “causa” à “questão” (thésis) que lhe está subjacente; assim, além dessa traição, propor o problema da confiança, da pátria, etc. p. 57. Tempo forte do logos, a confirmação recorre, porém ao patos, despertando piedade ou indignação. p. 57. Cícero, em Do orador, preconiza a ordem “homérica”, que consiste em começar pelos argumentos fortes, continuar com os mais fracos e terminar com outros argumentos fortes. Mas esse plano supõe que o orador tem um número suficiente de argumentos fortes para reparti-los assim. p. 58. Em nossa opinião, convém contestar a própria ideia da pluralidade de argumentos; cada discurso só teria um único argumento capaz de conquistar a decisão, e os outros não passariam de maneiras diferentes de apresentar ou não seriam mais que contra-argumentos que responderiam às objeções possíveis. p. 58. Digressão (“parakbasis”) e peroração (“epílogos”) Narrativa ou descrição viva (ekphrásis), a digressão tem como função distrair o auditório, mas também apiedá-lo ou indigná-lo; pode até servir de prova indireta quando feita como evocação histórica do passado longínquo. p. 59. A peroração é o que se põe no fim do discurso. Aliás, pode ser bastante longa e dividir-se em várias partes. p. 59.

Note-se, enfim, que a peroração é o momento por excelência em que a afetividade se une à argumentação, o que constitui a alma da retórica. p. 60. Por que a disposição? A disposição tem primeiramente uma função econômica: permite nada omitir sem nada repetir; em suma, possibilita que o orador “se ache” a cada momento do discurso. p. 60. Depois, quaisquer que sejam os argumentos que se organize, a disposição é em si mesma um argumento. Graças a ela, o orador faz o auditório encaminhar-se pelas vias e pelas etapas que escolheu, conduzindo-o assim para o objetivo que propôs. essa metáfora do caminho é confirmada por termos como “preâmbulo” (sinônimo de exórdio) ou “digressão” (desvio do rumo). p. 60. Finalmente, a disposição tem função heurística, por permitir interrogar-se metodicamente. Pois, em suma, o que é fazer um plano? É formular-se uma série de perguntas distintas, constituindo cada uma delas uma parte ou subparte. Saber fazer um plano é saber fazer-se perguntas e trata-las uma após outra, agindo de tal modo que cada uma delas nasça da resposta precedente. p. 60. Elocução (“léxis”) A elocução, em sentido técnico, é a redação do discurso. Das quatro partes da retórica, diz-nos Cícero que esta é a mais própria ao orador, aquela em que ele se exprime como tal. p. 61. Língua e estilo: uma arte funcional A elocução é, pois, o ponto em que a retórica encontra a literatura. p. 61. Hoje em dia também, quem quiser persuadir o grande público não poderá permitir-se incorreções nem preciosismos, salvo em ocasiões muito precisas. p. 61. A retórica foi a primeira prosa literária e durante muito tempo permaneceu como a única; por isso, precisou distinguir-se da poesia e encontrar suas próprias normas. Por quê? Afinal, um discurso poético pode ser perfeitamente convincente. Só que a poesia grega utilizava uma língua arcaizante, bastante esotérica, e seus ritmos a aproximavam muito do canto. Portanto, era preciso recorrer à prosa, mas a uma prosa digna de rivalizar com a poesia. Em suma, entre o hermetismo dos poetas e o desmazelo da prosa cotidiana, a prosa oratória devia encontrar suas próprias regras. p. 61. De qualquer modo, o fato é que a prosa oratória deve distinguir-se ao mesmo tempo da poesia e da prosa vulgar. Para isso: escolher as palavras no vocabulário usual, evitando tanto arcaísmos quanto neologismos; utilizar metáforas e outras figuras, desde que sejam claras, ao contrário das dos poetas; evitar qualquer frase métrica, como os versos dos poetas, e qualquer frase arrítmica, para encontrar frases com ritmo flexível e sempre a serviço do sentido. p. 62. O melhor estilo, ou seja, o mais eficaz, é aquele que se adapta ao assunto. Isso significa que ele será diferente conforme o assunto. Os latinos distinguiam três gêneros de estilo: o nobre (grave), o simples (tênue) e o ameno (médium), que dá lugar à anedota e ao humor. O orador eficaz adota o estilo que convém a seu assunto: o nobre para comover (movere), sobretudo na peroração; o simples para informar e explicar (docere), sobretudo na narração e na confirmação; o ameno para agradar (delectare), sobretudo no exórdio e na digressão. A primeira regra é, portanto, o da conveniência (prepon, decorum). p. 62. Estilo

Objetivo

Prova

Momento discurso Peroração digressão

do

Nobre=grave

Comover=movere

patos

Simples=tenue

Explicar=docere

logos

Narração, confirmação, recapitulação

Ameno=medium

Agradar=delectare

etos

Exórdio, digressão

(paixão),

A segunda regra é a da clareza, em outras palavras, a adaptação do estilo ao auditório. Pois a clareza é relativa: o que é claro para um público culto pode parecer obscuro para quem é menos culto e infantil para especialistas. Ser claro é pôr-se ao alcance de seu auditório concreto. p. 63. A terceira regra diz respeito ao próprio orador, que deve mostrar-se em pessoa no seu discurso, ser colorido, alerta, dinâmico, imprevisto, engraçado ou caloroso, numa palavra: vivaz. Essa regra da vivacidade tomamos de empréstimo a um pastor retórico do século XVIII, G. Campbell, que a expõe com o termo vivacity. Para ser vivaz, é preciso observar regras de estilo bem precisas. Primeiro, a escolha das palavras, sempre que possível concretas: deve-se preferir “fonte” a “origem”, “aqui jaz Alexandre” a “aqui jaz o corpo de Alexandre”. Depois, o ritmo das palavras, ao qual voltaremos. Finalmente, a brevidade, que constitui a força das máximas. p. 63. Essas regras, porém, não passam de linhas gerais: evitar ser redundante, inutilmente abstrato, etc. O sabor do discurso não se ganha com regra alguma; quem faz é o autor. p. 64. A vivacidade é capital para o etos, pois ela torna o discurso marcante, agradável, cativante; e, principalmente, confere-lhe o indispensável cunho de autenticidade. O verdadeiro estilo é o do discurso onde é possível encontrar o seu autor. p. 64. Figuras (“schemata”) e o problema do desvio Fiquemos com a classificação mais simples, a de Cícero, que distingue as figuras de palavras, como o trocadilho e a metáfora, das figuras de pensamento, como a ironia ou a alegoria. p. 64. Pois bem, cumpre definir as próprias figuras como desvios? À primeira vista, sim. A metáfora desvia-se do sentido próprio, substituindo o significado por um outro que lhe é semelhante; assim também a ironia, que substitui o significado por um que lhe é contrário. p. 65. O fato é que, mesmo limitado à figura, a noção de desvio apresenta um problema triplo. Em primeiro lugar, desvio em relação a quê? Que “norma” é essa, esse “grau zero” da qual a figura se desviaria: o código linguístico, digamos, o vernáculo? Não vemos que ele proíba figuras. A lógica? Mas não é a lógica que rege a língua: sol é feminino em alemão, o inverso para a lua; nenhuma lógica nisso seja em alemão seja em português. O sentido primitivo, etimológico? Veremos quanto essa noção é ideológica, ou mesmo mítica; ademais, utilizar um termo em sentido arcaico – por exemplo, húmile para o que está no chão – já é uma figura. O uso normal, ou seja, o modo como todos falam? Mas todos falam com muitas incorreções, por um lado, e por outro com muitas figuras, portanto com desvios. O discurso funcional dos cientistas? Esse de fato é o ponto de vista de J. Cohen, que compara os textos dos escritores e dos poetas com um grupocontrole, formado por textos de autores científicos do fim do século XIX; mas custa enxergar como esses textos, trabalhados para adaptar-se ao assunto de que tratam, seriam mais “normativos” ou mais “normais” que os dos escritores. p. 65, 66. Na realidade, a noção de desvio é relativa; um discurso se desvia de outro discurso em função de seus objetivos, de seus públicos e de seus gêneros respectivos, sem que nenhum deles constitua norma absoluta. p. 66. Mas não se pode dizer simplesmente que a figura se desvia do sentido próprio? Por certo, mas isso só vale para algumas, não para as figuras de palavras ou para as de construção. p. 66. A figura eficaz pode ser definida como algo que se desvia da expressão banal, mas precisamente por ser mais rica, mais expressiva, mais eloquente, mais adaptada, numa palavra mais justa do que tudo que a poderia substituir. E, se fizermos questão de falar em desvio, é a figura, a figura bem-sucedida, que constitui a norma. p. 66. Ação (“hypocrisis”) A ação é o arremate do trabalho retórico, a proferição do discurso. É essencial porque, sem ela, o discurso não atingiria o público. p. 67. Uma “hypocrisis” sem hipocrisia

Ação, que em grego é hypocrisis, no início, antes de adquirir o sentido pejorativo, significava a interpretação do adivinho, depois a interpretação do ator, a ação teatral. Assim como o hipócrita, o autor finge sentimentos que não tem, mas sabe disso, se seu público também. Assim também o orador: pode exprimir o que não sente, e sabe disso; mas não pode informar seu público, ou destruiria seu discurso. O ator que finge bem é um artista; o orador que finge bem seria um mentiroso. p. 67. Mostrar que a retórica é um sistema é mostrar que ela tem um sentido ao mesmo tempo rico e preciso. Toda a sequencia deste livro sustenta a tese de que é possível utilizar a retórica sem fazer referência a esse sistema, que na verdade constitui uma das chaves da nossa cultura. p. 69.

Capítulo IV DO SÉCULO I AO XX Limitamo-nos a lembrar alguns grandes problemas, que foram surgindo em diferentes épocas, desde Cícero até nós. p. 71. Período latino Depois de Isócrates e Aristóteles, a retórica se instala na cultura grega helenística como disciplina essencial, tão importante quanto para nós a matemática. Os romanos também aderirão, assimilando-a. p. 71. Forma e fundo: pintura e cores verdadeiras Obras axiais: Do orador (55 a. C) e O orador (46 a. C), de Cícero; Introdução oratória (93 d. C), de Quintiliano. p. 71. Essas obras constituem admiráveis tratados de retórica, escritos por praticantes. Note-se que, ao contrário dos gregos, os romanos tinham advogados; que não tinham o direito de ser pagos, mas tinham um consolo: eram ressarcidos com presentes. Cícero e Quintiliano forma ambos grandes advogados que, em seus livros, “teorizaram” sobre sua prática. p. 71. A primeira tarefa da retórica latina foi traduzir os termos gregos. Por exemplo, metáfora em Cícero transforma-se em tralatio, epidíctico é demonstrativum. Tekhné rhetoriké será chamada de ars oratória, ou rhetorica. Significativo: a palavra grega rhetor terá duas traduções: orator, que é o executante, o fazedor de discursos, e rhetor, que é o professor, geralmente grego. p. 71. Essa dualidade apresenta um problema de fundo, o do papel da técnica na eloquência. Pois o retor ensina uma técnica, com seus lugares, seus planos-tipo, suas figuras. Mas a verdadeira eloquência tem a ver com receitas? Não, responde Cícero; se ela é autêntica, ocorre naturalmente no orador, desde que ele seja dotado, experiente e culto, ou seja, instruído em todas as áreas essenciais: direito, filosofia, história, ciências. As receitas retóricas, os “truques” para se impor são ineficazes. O estilo também nada tem de artificial; longe de ser um ornamento aplicado ao discurso, decorre naturalmente do fundo. A escolha das palavras (electio), a composição das frases, as figuras, o ritmo – principalmente o ritmo – são expressões naturais do que se tem para dizer, e tudo o que soa artificial deve ser riscado. p. 72. E o homem culto que tem algo para dizer não precisa dos cursos de expressão dos retores. p. 72. O discurso para ele [Cícero] é um organismo vivo cujas partes desempenham todas um papel; portanto, se forem aplicados ornamentos, eles não passarão de “pintura”, enquanto o que conta é o “colorido da pele”, sinal de boa saúde. p. 72.

Mas trata-se de um ensino em profundidade, que pega o homem desde a infância e forma-o naquilo que os gregos chamam de Paideia, traduzido magnificamente por Cícero como humanitas, nossa cultura geral. Só ela permite exprimir-se de modo justo e apropriado, elevar o debate da causa à thésis, do caso particular à questão geral subjacente. Por exemplo, o advogado, ao pedir o castigo do réu, elevar-se-á, tomando considerações históricas em apoio, aos problemas da defesa social, da exemplaridade do castigo, etc. p. 72, 73. Retórica e moral Inversamente, retórica é sinônimo de cultura, e a Institutio oratória, “formação do orador”, apresenta-se como um tratado completo de educação a partir da primeira infância, que possibilita classificar seu autor, sem muito anacronismo, como pedagogo. p. 73. Porém o mais importante, como educador, é que ele se esforça por reconciliar a retórica e a ética, que Aristóteles havia separado. p. 73. Quando define a retórica como scientia bene dicendi, arte de bem falar (II, 15, 5; 16, 38), a palavra “bem” para ele tem sentido não só estético como também moral. p. 73. Na realidade, o que reconcilia retórica e moral é a cultura, para Quintiliano valor supremo. Concordando com Isócrates, ele escreve que, sendo a linguagem e a razão características do homem, a retórica que as cultiva constitui a virtude humana por excelência. Falar bem é ser homem de bem; inversamente, só o homem de bem, honesto e culto, fala bem. Pode-se dizer que a Institutio oratória propõe os fundamentos da educação humanista. p. 74. Retórica e democracia Na época imperial, Tácito, em Diálogo dos oradores, levanta a questão de porque a eloquência entrou em declínio depois de Cícero. “A arte oratória desenvolvera-se na sociedade em que era indispensável, qual seja, a democracia. Quando todas as decisões eram submetidas a debates públicos, o futuro orador formavase naturalmente no fórum, ouvindo as discussões e depois tomando parte delas; descobria assim as técnicas dos diversos oradores e, principalmente, as reações do público”. p. 75. É verdade que a retórica perdeu os grandes debates políticos, que só recuperará nas democracias modernas, mas ganhou outros gêneros: a epístola, a descrição, o testamento, o discurso de embaixada, a consolação, o conselho ao príncipe, etc. o “fim da retórica” não passa de lugar-comum no mau sentido do termo, ou seja, não retórico. p. 76. Por que o declínio? Na realidade, foi no século XIX que a retórica realmente declinou, a ponto de quase desaparecer. p. 77. Retórica e cristianismo No entanto, como mostrou tão bem H.-I. Marrou, os cristãos logo aceitarem a escola romana e a cultura que ela veiculava. Em seguida, quando todas as estruturas administrativas do Império desmoronaram, foi a Igreja que se tornou depositária dessa cultura antiga, retórica inclusive. É verdade que grande número de pais da Igreja rejeitam os autores pagãos, como inúteis e perigosos, mas admitem a língua e a retórica dos pagãos (cf. marrou, 460s). Por quê? Por duas razões. p. 77. A primeira é que a Igreja, em seu papel missionário e em suas polêmicas, não podia prescindir da retórica, muito menos da língua (grega ou latina). Não podia deixar esses meios de persuasão e de comunicação em mãos de adversários. p. 77. A segunda razão é que a própria Bíblia é profundamente retórica. Não sobejam nela metáforas, alegorias, jogos de palavras, antíteses, argumentações, tanto quanto nos textos gregos se não mais? São Paulo bem afirma que não tem a sophia logou, “a arte do discurso” (1 Cor I, 17), mas acrescenta a argumentação de um rabino às antíteses de um orador grego. p. 77, 78.

Portanto, a Bíblia era um modelo, porém mais ainda: um problema. Com efeito, não bastava ser lida, precisava ser compreendida; e, para interpretá-la, nunca era demais utilizar todos os recursos da retórica. A hermenêutica da Idade Média é toda alegórica: propõe que todo texto bíblico tem outro sentido além do literal.    

Histórico, literal; Alegórico; Tropológico (moral); Anagógico (relativo a ressurreição e ao reino de Deus). p. 78.

Verdadeiras causa do declínio: retórica, verdade e sinceridade Portanto, o cristianismo nada tem a ver com o declínio da retórica. Esta, ao contrário, desenvolveu-se durante toda a Idade Média, tanto na literatura profana quanto na pregação. A partir do Renascimento, voltou aos cânones antigos, e seu ensino constitui o ciclo essencial de toda a escolaridade, tanto entre os protestantes e os jansenistas quanto entre os jesuítas. No entanto, é nesse período que começa o declínio da retórica. As novas ideias vão dar-lhe o golpe mortal, rompendo o elo entre o argumentativo e o oratório, que lhe davam força e valor. p. 79. Foi dito que essa cisão ocorreu a partir do século XVI, com o humanista Pedro Ramus (Pierre de la Rameé, 1515-1572). Este de fato separa resolutamente a dialética, arte da argumentação racional, da retórica, reduzida “ao estudo dos meios de expressão ornados e agradáveis” (TA, p. 669), em suma à elocução. Mas nada prova que a atitude de Ramus tenha sido duradoura; ao contrário, os retóricos que apareceram até o século XIX, sobretudo na Inglaterra, continuam completos, incluindo tanto a e a disposição quanto a elocução. p. 79. Apesar disso, no século XVII ocorre uma fratura também grave com Descartes, que vai destruir um dos pilares da retórica, a dialética, em outras palavras a própria possibilidade de argumentação contraditória e probabilista. p. 79. Descartes “repudia a dialética, por nunca oferecer mais que opiniões verossímeis e sujeitas a discussão, ao passo que a verdade só pode ser evidente, portanto única e capaz de criar acordo em todos os espíritos. Com a dúvida metódica, Descartes tomará a atitude de considerar não como verdadeiro, mas como falso, tudo o que só é verossímil, e sua filosofia se apresentará como um encadeamento de evidências, análogo a uma demonstração matemática. Enfim, contra o debate de várias pessoas, que é a dialética, ele afirma que só pode encontrar a verdade sozinho, por um retorno a si mesmo”. p. 80. Outros filósofos, os empiristas ingleses, chegam à mesma condenação. Para eles, qualquer verdade vem da experiência sensível, e a retórica, com seus artifícios verbais, só faz afastar da experiência. p. 80. Descartes situa a verdade na evidência das ideias claras e distintas; Locke, na experiência dos sentidos. Mas ambos veem a retórica como um anteparo artificial entre o espírito e a verdade. Ambos desconfiam da linguagem, que só vale como veículo neutro de uma verdade independente dela, de uma verdade que nada tem a ver com as controvérsias da dialética. A retórica não pode mais ter pretensões a invenção alguma. p. 81. Duas novas ondas de pensamento conduzirão ao desenlace da retórica. A primeira é o positivismo, que rejeita a retórica em nome da verdade científica. Ela será excluída até mesmo de sua última trincheira, a elocução, sendo substituída pela filologia e pela história científica das literaturas. p. 81. A segunda corrente é o romantismo, que rejeita a retórica em nome da sinceridade. “Paz com a sintaxe, guerra à retórica”, exclama Victor Hugo, querendo dizer com isso que o escritos deve respeitar o código da língua, mas sem se sobrecarregar com um segundo código. p. 81. Hoje: retóricas

Finalmente, a partir dos anos 60 aparece na França e na Europa uma nova retórica, que logo conhecerá imenso sucesso. A palavra já não dá medo. p. 82. Uma retórica estilhaçada Apesar de tudo, a retórica atual é bem diferente daquela que substitui. p. 82. Para começar, seu objetivo já não é produzir discursos, porém interpretá-los, e assim se aproxima mais da gramática dos antigos. Pode-se dizer que já não se aprende a fazer discursos? Aprende-se, mas esse ensino, que no fundo se identifica com a formação literária e filosófica, já não é visto como retórica – ou não é ainda. p. 82. Em segundo lugar, o campo da moderna retórica alargou-se muito. Longe de limitar-se aos três gêneros oratórios dos antigos, ela vai anexando, como lhe cabe, todas as formas modernas do discurso persuasivo, a começar pela publicidade, e mesmo gêneros não persuasivos, como a poesia. Não contente com reivindicar todo o campo do discurso, vai bem além, pois se apodera de todas as espécies de produções não verbais. Elabora-se assim uma retórica do cartaz, do cinema, da música, sem falar da retórica do inconsciente. p. 82. Finalmente, e mais importante, a retórica moderna é uma retórica estilhaçada, fragmentada em estudos distintos. Distintos não só pelo objeto, mas pela própria definição que dão à palavra “retórica”, de tal modo que cabe perguntar se esse termo ainda tem algum sentido preciso. p. 82. Retórica da imagem “Vivemos no século da imagem”, é o que se ouve com frequência. Clichê bem contestável, pois os outros séculos comunicaram-se bem mais pela imagem que pelo texto escrito. Além do mais, é raro que as nossas imagens possam prescindir do texto escrito para serem legíveis. p. 83. O pontapé inicial da retórica da imagem, na França, foi dado por Roland Barthes, em seu artigo publicado em Communications no ano de 1964. p. 83. O que se pode dizer é que, se é imprópria para produzir argumentação, a imagem é porém notável para amplificar o etos e o patos. p. 83. A imagem é retórica a serviço do discurso, não em seu lugar. p. 85. Retórica da propaganda e da publicidade A propaganda e a publicidade pertencem à comunicação de massa. O que é massa? Um número indefinido, geralmente imenso, de indivíduos cujo único elo é receber a mesma mensagem. Um camelô que vende um tira-manchas na feira dirige-se a algumas pessoas e adapta-se às reações delas. O anunciante de um tira-manchas na televisão dirige-se a milhões de desconhecidos cujo único ela é a mensagem e que estão submetidos. A massa, em si, é passiva e atomizada. p. 85. Na verdade é a comunicação de massas que cria a massa. Para que ela exista, são necessários meios de comunicação modernos, de grande difusão, como o cartaz ou o anúncio de televisão. Nisso, a massa se distingue da multidão, conjunto de pessoas reunidas para alguma coisa, que pode reagir imediatamente à mensagem que recebem. A multidão aplaude ou inflama; a massa não tem voz nem rosto. E a comunicação de massa é sempre indireta. Utiliza algum canal, do cartaz ao filme, complexo e caro, o que implica consequências para o próprio conteúdo do discurso. p. 85. Em primeiro lugar, geralmente é breve, pois limitada no tempo ou no espaço, o que quase não lhe possibilita argumentações sutis, mas autoriza, em compensação, a jogar com ambiguidades. p. 85, 86. Em segundo lugar, embora menos claro e menos preciso, o discurso é completado pelo conteúdo não linguístico da mensagem, pela música, pela imagem, que no fundo desempenham o papel da ação, parte não verbal da antiga retórica. p. 86.

Mas a publicidade vai renovar a invenção também. p. 86. Primeiro ela cria seus próprios lugares, no sentido de argumentos-tipo (“somos jovens”) ou de perguntas para chegar a eles (“como parecer jovem?”). Lembremos os lugares mais conhecidos: juventude, sedução, saúde, prazer, status, diferença, natureza, autenticidade, relação qualidade/preço. p. 86. Depois, a publicidade privilegia o etos e, principalmente, o patos, em relação ao logos. Em outras palavras, a mensagem é bem mais oratória que argumentativa. p. 86. Dieter Flader, em seu estudo de 1976 sobre a estratégia da publicidade, insiste no lado infantilizante dessa retórica, voltada para a necessidade que há nos consumidores de se sentirem seguros e amados. p. 86. Caberia mostrar aqui o que distingue a propaganda da publicidade. Limitemo-nos a observar que elas tendem a confundir-se, pois os partidos políticos confiam suas campanhas cada vez mais a publicitários. p. 87. Certo, mas a publicidade limita a liberdade de escolha por situar o debate em tal nível que na verdade não há debate, conservando da argumentação apenas o que ela tem de mais sumário e oferecendo como termos de escolha apenas objetos – brancura, sorriso – que não tem relação com problemas reais. A democracia precisa de um povo adulto, e a retórica publicitária devolve as massas à infância. p. 87. Nova retórica contra nova retórica Nos anos 60 assiste-se ao nascimento de uma “nova retórica”. Mas que retórica? Houve várias, e a que estava mais na moda naquela época afirmava-se puramente literária, sem relação com a persuasão. p. 87. Em todo caso, à retórica literária opõe-se outra corrente, de Chaim Perelman e Lucie OlbrechtsTyteca, cujo livro mais importante, Traité de l’argumentation, la nouvelle rhétorique, foi publicado em Presses Universitaires de France em 1958 e quase não teve sucesso na época. p. 88. Essa obra, que se insere na grande tradição retórica de Aristóteles, Isócrates e Quintiliano, é realmente a teoria do discurso persuasivo. Seus autores partiram de um problema, não linguístico nem literário, mas filosófico: como fundamentar os juízos de valor? o que nos permite afirmar que isto é justo ou que aquilo não é belo? Buscaram, pois, a lógica do valor, paralela à da ciência, e acabaram por encontra-la na antiga retórica, completada, como convém, pela dialética. A grande descoberta desse tratado – a palavra “descoberta” comporta um pressuposto, mas nós o assumimos – é que, entre a demonstração científica e a arbitrária das crenças, há uma lógica do verossímil, a que dão o nome de argumentação, vinculando-a à antiga retórica. p. 88, 89. De fato, se o tratado descreve maravilhosamente as estratégias da argumentação, deixa de reconhecer os aspectos afetivos da retórica, o delectare e o movere, o encanto e a emoção, essenciais contudo à persuasão. p. 89. O pensamento de Perelman só teve penetração realmente no fim dos anos 70. E mesmo então seus esquemas argumentativos foram utilizados bem menos para interpretar os autores que para “desmistifica-los”. p. 89. A nosso ver, a teoria de Perelman-Tyteca permite uma leitura retórica dos textos que se fundam no diálogo, e não na desconfiança, como tentaremos mostrar no último capítulo. Para chegar lá, é preciso negar-se à opção mortal entre retórica da argumentação e retórica do estilo. Uma nunca está sem a outra. p. 90. Capítulo V ARGUMENTAÇÃO Isso para ilustrar a tese deste capítulo e de todo o livro: entre a demonstração científica ou lógica e a ignorância pura e simples, há todo um domínio da argumentação. Esta constitui um método de pesquisa e prova que fica a meia distância entre a evidência e a ignorância, entre o necessário e o arbitrário. Tanto quanto a dialética - que ela continua com outra forma -, constitui um dos pilares da retórica. Os filósofos, desde Descartes, acreditaram que esse pilar estivesse destruído; no entanto eles

mesmos precisam dele ... A retórica em si compõe-se de dois elementos: argumentativo e oratório. E aí vai nossa segunda tese: a importância da oratória é maior quanto mais urgente for a questão, mais restrito o acordo prévio, e menos acessível à argumentação lógica o auditório. p. 90. É então que o etos e o patos tendem a suplantar o logos, e é aí também que surgem as figuras. p. 92. As cinco características da argumentação Pode-se definir o argumento como uma proposição destinada a levar à admissão de outra. p. 92. Como se vê, certos argumentos são demonstrativos, outros argumentativos, não se podendo definir a argumentação senão a partir do argumento. Argumentação é uma totalidade que só pode ser entendida em oposição a outra totalidade: a demonstração. Inspirando-nos livremente em PerelmanTyteca, diremos que a argumentação distingue-se da demonstração por cinco características essenciais: 1) dirige-se a um auditório; 2) expressa- se em língua natural; 3) suas premissas são verossímeis; 4) sua progressão depende do orador; 5) suas conclusões são sempre contestáveis. p. 92. O auditório pode ser universal? Sempre se argumenta diante de alguém. Esse alguém, que pode ser um indivíduo ou um grupo ou uma multidão, chama-se auditório, termo que se aplica até aos leitores. Um auditório é, por definição particular, diferente de outros auditórios. Primeiro pela competência, depois pelas crenças e finalmente pelas emoções. Em outras palavras, sempre há um ponto de vista, com tudo o que esse termo comporta de relativo, limitado, parcial. Ora, como a argumentação pode modificar esse ponto de vista sem recorrer pouco ou muito ao etos e ao patos? Responderão que os próprios Perelman-Tyteca introduzem a noção de auditório universal, que está acima de qualquer ponto de vista, portanto talvez de qualquer retórica. p. 92, 93. Em suma, o auditório universal poderia ser apenas uma pretensão, ou mesmo um truque retórico. Mas achamos que ele pode ter função mais nobre, a do ideal argumentativo. O orador sabe bem que está tratando com um auditório particular, mas faz um discurso que tenta superá-lo, dirigido a outros auditórios possíveis que estão além dele, considerando implicitamente todas as suas expectativas e todas as suas objeções. Então o auditório universal não é um engodo, mas um princípio de superação, e por ele se pode julgar da qualidade de uma argumentação. p. 93, 94. Língua natural e suas ambiguidades Na demonstração é grande o interesse de se utilizar uma língua artificial, por exemplo a da álgebra ou da química. A argumentação desenrola-se sempre em língua natural (exemplo, francês), o que significa utilizar com grande freqüência termos polissêmicos e com fortes conotações, como "democracia", que está longe de ter o mesmo sentido e o mesmo valor para todos os oradores. Além disso, a própria sintaxe pode ser fonte de ambigüidade. p. 94. Outra observação: quando se fala de argumentação, é preciso perguntar se ela é escrita ou oral, pois isso muda tudo. Uma argumentação oral deve combater dois inimigos mortais: desatenção e esquecimento; e só pode fazer isso por meio de procedimentos oratórios. As chamadas culturas "orais" confirmam isso; é certo que argumentam e ensinam, mas por repetições, aliterações, ritmos, metáforas, alegorias, enigmas, que desenvolvem a função poética em detrimento da função crítica, como se observa ainda em nossos provérbios. p. 95, 95. Em suma, a argumentação oral em geral é menos lógica e mais oratória que a escrita. p. 95. Premissas verossímeis: o que é verossímil? O verossímil não decorre de ignorância, incompetência ou preconceitos do auditório, mas do próprio objeto. Quando se trata de questões jurídicas, econômicas, políticas, pedagógicas, talvez também éticas e filosóficas, não se lida com o verdadeiro ou o falso, mas com o mais ou o menos verossímil. Inversamente, num mundo onde tudo fosse cientificamente certo, já não seria possível

argumentar, nem ... agir. Em suma, a argumentação não deve resignar-se ao verossímil como se ele fosse filosofia de pobre, mas deve respeitá-lo como inerente a seu objeto e não ter pretensões a um cientificismo que não passaria de engodo, que na verdade seria anti científico. O que é então o verossímil? Para encurtar: tudo aquilo em que a confiança é presumida. Por exemplo, os juízes nem sempre são independentes, os médicos nem sempre capazes, os oradores nem sempre sinceros. Mas presume-se que o sejam; e, se alguém afirma o contrário, cabe-lhe o ônus da prova. Sem esse tipo de presunção, a vida seria impossível; e é a própria vida que rejeita o ceticismo. p. 95, 96. Cumpre deixar claro que a argumentação, mesmo se apoiando no verossímil, pode comportar elementos demonstrativos, no sentido de necessários e, portanto, indubitáveis. p. 96. Tais elementos geralmente são negativos: nega-se um argumento, não se dá uma certeza. p. 96. Premissas verossímeis: o simples fato de invocá-las equivale, pois, a apelar para a confiança do auditório, para a sua "presunção", e comporta um aspecto oratório. p. 96. Uma progressão que depende do orador A ordem dos argumentos é, pois, relativamente livre, e depende do orador; vimos, de fato, que a disposição dos antigos compreendia dois planos-tipo, mas nada havia de necessário, e podiam ser subvertidos. Por outro lado, depende do auditório, no sentido de que o orador dispõe seus argumentos segundo as reações, verificadas ou imaginadas, de seus ouvintes. Em suma, a ordem não é lógica, é psicológica. p. 97. Conclusões sempre controversas Numa argumentação, a conclusão não é, ou não é só, um enunciado sobre o mundo; ela expressa acima de tudo o acordo entre os interlocutores. Portanto, tem as seguintes características. Primeiramente, deve ser mais rica que as premissas, ao contrário da demonstração, em que a conclusão "sempre segue a pior parte"; se a argumentação ficasse aí, seria estéril, ou estaria limitada a ser apenas refutação. Em segundo lugar, a conclusão é reivindicada pelo orador como algo que deve impor-se, encerrar debate. Mas, no que se refere ao auditório, este não é obrigado a aceitá-la; continua ativo e responsável tanto pelo sim quanto pelo não; é principalmente nesse sentido que a conclusão é controversa: ela compromete tanto quem a aceita quanto quem a recusa. p. 97, 98. Seja como for, uma conclusão não é obrigatória: é sempre contestável; mas o é em maior ou menor grau. Também aqui é preciso renunciar ao tudo ou nada em favor do mais ou menos verossímil. p. 98. Concluiremos que a argumentação rejeita a alternativa "racional ou emotivo". Pois as premissas são crenças, e as crenças sempre têm um conteúdo afetivo, e só pode ocorrer o mesmo com a conclusão, mesmo que em caminho o discurso consiga modificar a afetividade; se o orador transformar medo em confiança, tristeza em alegria, terá libertado o auditório de sentimentos negativos, mas não de sentimentos. p. 98. Convém principalmente - cremos nós – distinguir entre demonstração lógico-matemática, puramente formal, e demonstração experimental, na qual intervêm também outros critérios além da validade lógica, como por exemplo a falsificação de Karl Popper, que seria muito instrutivo comparar à argumentação. p. 98. Quanto a esta, alguns acham que poderia ser formalizada, ou seja, expressa em língua artificial. Mas o verdadeiro problema é outro. Uma formalização só tem vantagem se for fecunda, se permitir descobrir pelo cálculo outros dados além daqueles que ela transcreve. Não nos parece que tal cálculo seja possível com a argumentação; suas estruturas podem ser descritas, mas não deduzidas. Por quê? Porque a argumentação é dirigida ao homem total, ao ser que pensa, mas que também age e sente. p. 99. O que é uma “boa” argumentação? Então, segundo quais critérios avaliar a honestidade duma argumentação? O primeiro que vem à mente é o da causa. Uma argumentação valeria pela causa a que serve. p. 99.

Outro critério, este interno, consiste em respeitar os elementos demonstrativos, ou seja, lógicos, que a argumentação comporta. Em outras palavras: agir de tal modo que ela não seja sofistica. p. 100. Os sofistas e a argumentação. Inspirando-nos em Lalande, digamos que o sofisma é um raciocínio cuja validade é apenas aparente e que ganha adesão por fazer crer em sua lógica. Pode servir assim para legitimar interesses, amor-próprio e paixões. Portanto, é pela forma que um raciocínio é sofistico, e não por seu conteúdo. p. 100. Pode-se responder, porém, que a argumentação, pelo fato de comportar elementos demonstrativos, pode abusar deles, sendo pois sofística no sentido estrito. p. 101. O exemplo torna-se sofístico quando dele se extrai uma conclusão que ultrapassa o que ele mostra, quando se “extrapola” do particular ao universal. p. 101. O entimema torna-se sofístico quando infringe as regras do silogismo, quando conclui além daquilo que a lógica lhe permite. p. 101. Em suma, um entimema é sofistico quando conclui mais do que deve. É falso quando toma por verdadeira uma premissa, geralmente implícita, que é desmentida pelos fatos. Podemos ir mais longe: uma argumentação é sofistica, ou pelo menos errônea, quando sua conclusão vai além dos argumentos que supostamente a estabelecem. p. 102. Não-paráfrase e fechamento Sofisma da argumentação seria, portanto, ela dizer mais do que sabe. Pois bem, existe a maneira de "dizer". Pode-se afirmar excluindo qualquer objeção - para começar em si mesma, mas também se pode propor sem impor, favorecer ao máximo a própria afirmação, deixando-a aberta às criticas alheias. Essa abertura constitui a honestidade da argumentação. Mas não estará esta comprometida pela retórica? Aqui cabe interrogar sobre o "dizer" próprio da retórica. Pelo que dissemos acima, um discurso é retórico quando, para persuadir, alia seu componente argumentativo a seu componente oratório, a forma ao conteúdo. Isso acarreta duas conseqüências. A primeira é que o discurso retórico nunca é completamente parafraseável; em outras palavras, não pode ser traduzido, nem mesmo em sua própria língua, por um discurso que tenha absolutamente o mesmo sentido. p. 102. A segunda é que o discurso retórico é sempre mais ou menos fechado, sem réplica. p. 102. A nosso ver, a característica da boa argumentação não é suprimir o aspecto retórico - uma argumentação inexpressiva não é obrigatoriamente mais honesta -, mas equilibrá-lo, segundo dois critérios. À não-paráfrase pode-se opor o critério da transparência: que o ouvinte fique consciente ao máximo dos meios pelos quais sua crença está sendo modificada; o encanto e a poesia do discurso não serão destruídos por isso, mas serão dominados. Ao fechamento, pode-se opor o critério da reciprocidade: que a relação entre o orador e o auditório não seja assimétrica, que o auditório tenha direito de resposta. Esses dois critérios não tornam a argumentação menos retórica, porém mais honesta. p. 104. O que salva a retórica é precisamente o que exclui esse tipo de linguagem: o diálogo. p. 104. Argumentação pedagógica, judiciária, filosófica. Do pedagógico ao judiciário O ensino não pode prescindir da pedagogia; e toda pedagogia é retórica. O professor é um orador que, como todos os outros, deve atrair e prender a atenção, ilustrar os conceitos, facilitar a lembrança, motivar ao esforço. Iremos mais longe: aquilo que hoje chamamos de "transposição didática" faz parte da retórica;

ensinar uma matéria é conferir-lhe uma clareza, uma coerência que ela não tem necessariamente como ciência, é passar da invenção à elocução e à ação, porém muitas vezes em detrimento do conteúdo propriamente científico. As pedagogias ativas, que tendem a suprimir a aula professoral, não escapam a essa regra: o que há de mais retórico do que conhecer antes aqueles que vão ser instruídos e obter sua adesão? p. 105. Esses imperativos ressaltam o aspecto assimétrico do ensino, mesmo quando se afirma que há diálogo ou cooperação. Só que o verdadeiro professor nunca dissimula sua retórica; ao contrário: ensina os procedimentos retóricos que possibilitam ensinar, e leva assim os alunos a tornar-se mestres no assunto. O ensino é, pois, uma relação assimétrica que trabalha por sua abolição, para que o aluno se torne, se possível, igual ao mestre. Aí está a justificativa do "poder docente". p. 105. No judiciário, o diálogo "ecumênico" dá lugar ao debate polêmico, em que o objetivo não é convencer a parte adversária, mas uma terceira parte, o tribunal. E o advogado nada tem de professor; sua finalidade é fazer de tudo para tornar válida a causa de seu cliente, para lhe dar todas as oportunidades de vitória. Só que o advogado não está sozinho, mas tem diante de si colegas capazes de desmentir sua retórica, de contraditála com outra. E as duas partes preparam dessa maneira o julgamento do tribunal. p. 106. Uma controvérsia judiciária: os expropriados e a desvalorização Argumentação filosófica: onde está o tribunal? E a filosofia? Poderia ser comparada a uma controvérsia em que cada filósofo seria advogado de sua própria causa diante de um tribunal que seria ... quem senão o leitor? Mas o leitor dificilmente admitirá ser melhor juiz do que aqueles que ele lê; julgará para si, é verdade, mas não para os outros. O fato é que os filósofos não formulam o problema dessa maneira, principalmente - como vimos - a partir de Descartes. Os maiores deles afirmam ser demonstrativos, "apodícticos", dizia Kant na língua de Aristóteles; e se, às vezes, aceitam o termo argumentação é deixando claro que ela não poderia ter nada que fosse retórico. p. 109, 110. A essa pretensão dos filósofos, de serem demonstrativos podem ser opostos três argumentos, dos quais os dois primeiros decorrem do lugar da unidade. O primeiro é que os filósofos chegam a doutrinas muito diferentes, muitas vezes opostas, embora a demonstração só possa redundar numa verdade única. O segundo, ainda mais forte, é que as estruturas da demonstração não são as mesmas, segundo se trate de cartesianos Kant, Hegel, Bergson, Husserl, neopositivistas e outros. Há uma só matemática, enquanto existem várias filosofias. O terceiro argumento (exemplo) mostra que na verdade os filósofos todos recorreram, em maior ou menor grau, à argumentação. p. 110. Hoje em dia parece que a filosofia cindiu-se: de um lado uma investigação lógica rigorosa, porém estéril; de outro, um discurso retórico que, por falta de interrogar-se sobre sua própria argumentação, incide no arbitrário. p. 110. Uma causa exige um juízo hic et nunc; uma tese visa a uma explicação de alcance universal; ela não responde à pergunta: "Catilina é injusto?", mas a outra bem diferente: "O que é justo e injusto?" E mesmo que a pergunta tenha alcance prático, como aqui, é de longo prazo e para todos. p. 110. Portanto, o que distingue o filósofo - mesmo quando fala de política ou de direito - do político e do advogado é que ele sustenta ao mesmo tempo o pró e o contra, é que ele é ao mesmo tempo o advogado e seu adversário. Mas qual é o tribunal? O auditório universal, responderia Perelman. Mas deixemos claro que ele não está em lugar nenhum, senão em cada um de nós. p. 111, 112. Aí está o que tentamos demonstrar neste capítulo. Inicialmente, que a argumentação existe como meio de prova distinto da demonstração, mas sem incidir na violência e na sedução. Depois, que ela comporta uma parte de oratória, e que os antigos tinham razão em unificar seus elementos racionais e afetivos num mesmo todo, a retórica. p. 112.

Capítulo VI FIGURAS O que é figura? Um recurso de estilo que permite expressar-se de modo simultaneamente livre e codificado. Livre, no sentido de que não somos obrigados a recorrer a ela para comunicar- nos; dessa forma, qualquer um poderá dizer que vai se suicidar para pôr fim a uma paixão culposa, sem precisar recorrer às figuras de Fedra: Para ocultar da luz uma chama tão negra. Codificado, porque cada figura constitui uma estrutura conhecida, repetível, transmissível. p. 113 A expressão "figuras de retórica" não é pleonasmo, pois existem figuras não retóricas, que são poéticas, humorísticas ou simplesmente de palavras. A figura só é de retórica quando desempenha papel persuasivo. p. 113. A figura de retórica é funcional. p. 113. Quando os antigos falam das figuras, é para evocar o prazer que elas proporcionam, que eles relacionam com o de/ectare e mais raramente com o movere. A figura seria, portanto, uma fruição a mais, uma licença estilística para facilitar a aceitação do argumento. p. 114. Perelman-Tyteca também vêem na repetição uma figura de "presença", uma das que fazem sentir o argumento. Para eles, porém, ela não se reduz ao patos; não é apenas o que facilita o argumento, mas constitui o próprio argumento; desse modo, o primeiro Não te aba/aste ... indica um fato; o segundo, depois de quando uma mãe, ressalta o caráter chocante desse fato, incompatível (argumento) com os valores da humanidade. Para o TA, toda figura de retórica é um condensado de argumento: a metáfora é condensado de analogia, etc. A nosso ver, essa teoria é intelectualista demais; esquece-se do prazer da figura, que deriva ora da emoção, ora da comicidade, mas sempre do patos. p. 114. Aqui estudaremos a função argumentativa das principais figuras de retórica, que classificaremos conforme suas relações com o discurso em que se encaixam. p. 114. Figuras de palavra – que dizem respeito à matéria sonora do discurso. p. 114. Figuras de sentido – que dizem respeito à significação das palavras ou dos grupos de palavras. p. 114. Figuras de construção – que dizem respeito à estrutura da frase, por vezes do discurso. p. 114. Figuras de pensamento – que dizem respeito à relação do discurso com seu sujeito (o orador) ou com seu objeto. p. 115. Figuras de palavras O que caracteriza as figuras de palavras? O fato de serem intraduzíveis, de poderem ser destruídas por menos que se mude sua matéria sonora. Entretanto, devem desempenhar bem alguma função argumentativa, porque os filósofos mais racionalistas recorrem a elas. p. 115. Dividem-se em dois grupos: Figuras de ritmo Para os antigos, o ritmo da frase tem importância capital, pois é a música do discurso, o que torna a expressão harmoniosa ou tocante, sempre fácil de ser retida. p. 115. Figuras de som: aliteração, paronomásia, antanáclase As figuras de som implicam fonemas, sílabas ou palavras.

a) Fonemas: aliteração, em que há repetição de uma mesma letra na frase. p. 116. b) Sílabas: paronomásia: raduttore, traditore, de cuja tradução não sobra grande coisa (tradutor, traidor). A rima é uma paronomásia no final das palavras, que retoma em ritmo regular. p. 116. c) Palavras: a figura baseia-se ora na homonímia, ora na polissemia. A partir da homonímia, cria-se o trocadilho, que aproxima duas palavras idênticas no som, mas com sentido diferente. p. 116. A figura que se baseia na polissemia é a antanác1ase, que se aproveita de dois sentidos ligeiramente diferentes de uma mesma palavra; como por exemplo no slogan que aconselha o exame de mamas. p. 116. Pergunta: de onde vem a força persuasiva das figuras de palavras? Elas facilitam a atenção e a lembrança, mas não é só isso. Lembremos o princípio lingüístico da arbitrariedade do signo, segundo o qual as palavras não são "motivadas": não há razão para dizer mesa, em vez de Tisch ou tavola. Esse princípio também se aplica às nossas figuras de palavras: não é porque dois significantes são idênticos que seus significados também o sejam; e, no entanto, tudo acontece como se fossem idênticos. As figuras de palavras instauram uma harmonia aparente, porém incisiva, sugerindo que, se os sons se assemelham, provavelmente não é por acaso. A harmonia é comprovada pelo prazer. p. 118. Um argumento retórico: a etimologia Entre as figuras de palavras, é preciso contar a etimologia, que serve de argumento tanto para as definições quanto para as dissociações. Recorrer à etimologia para definir o "verdadeiro" sentido de uma palavra na verdade é um ato de poder pelo qual o orador impõe seu "sentido", portanto seu ponto de vista, ao auditório. p. 118. Na verdade, o argumento etimológico esquece-se de outra lei lingüística, a de que a palavra só tem sentido sincronicamente, ou seja, no sistema presente de uma língua. Desse modo, a palavra "infância" só tem sentido em relação a "lactação" e a "adolescência"; e o latim não tem autoridade alguma nesse sentido. p. 119. Etimologia como parte da história das línguas, sim. Etimologia como argumento, talvez, porém do mesmo tipo da antanáclase, e não do trocadilho. p. 119. Figuras de sentido Se as figuras de palavras dizem respeito aos significantes, as de sentido dizem respeito aos significados. Portanto, podem ser traduzidas sem - ou sem nem tantos - estragos. Consistem em empregar um termo (ou vários) com um sentido que não lhe é habitual. p. 120. Desse modo, a figura de sentido é um tropo, um significante tomado no sentido de outro, escuta por olha com reverência. Mas nem todo tropo é uma figura de sentido. Quando o tropo é lexicalizado a tal ponto que nenhum outro termo próprio poderia substituí-lo, passa a ser catacrese. p. 120. Inversamente, por falta de referências culturais, uma figura pode ser incompreensível; torna-se então enigma, mas aí deixa de ser retórica. Podemos dizer da figura de sentido aquilo que Aristóteles dizia da metáfora: deve ser clara, nova e agradável. Nova, porém clara e por isso mesmo agradável, como o enigma que se tem a alegria de desvendar. A meio caminho entre o enigma e o clichê, a figura de sentido desempenha seu papel retórico. p. 120 Tropos simples: metonímias, sinédoques, metáforas. Todas as outras figuras de sentido derivam destas. p. 121.

A metonímia designa uma coisa pelo nome de outra que lhe está habitualmente associada. Seu poder argumentativo é antes de tudo o da denominação, que ressalta o aspecto da coisa que interessa ao orador. p. 121. Baseada no nexo habitual, a força argumentativa da metonímia provém da familiaridade, e essa força desaparece quando a metonímia vem de outra cultura. p. 121. A sinédoque distingue-se da metonímia por designar uma coisa por meio de outra que tem com ela uma relação de necessidade, de tal modo que a primeira não existiria sem a segunda; por exemplo, cem cabeças por cem pessoas, sinédoque da parte, ou cem mortais, sinédoque da espécie. p. 121. Isso também se observa com a antonomásia, sinédoque que consiste em designar uma totalidade ou uma espécie pelo nome de um indivíduo considerado seu representante. p. 122 A metáfora designa uma coisa com o nome de outra que tenha com ela uma relação de semelhança. Voltaremos depois a seu papel argumentativo. Aqui diremos algumas palavras sobre sua gênese. Diz-se que a metáfora é uma comparação abreviada, que substitui o é como por é: Ela é [bela como] uma rosa; O olho [olha como se] escuta. Mas que comparação? Se esta se referir a realidades homogêneas, sua abreviação não redundará em metáfora: Pedro é [alto como] um gigante; João é [baixo como] um anão. Trata-se antes de hipérboles por meio de sinédoques. É o mesmo se eu disser: Esta água está [fria como] uma pedra de gelo. p. 122. Em resumo, se desenvolvermos a metáfora e lhe restituirmos seu como, teremos uma figura de comparação especial, que os antigos chamavam de eikon, simile, e que, como os ingleses, chamaremos de símile. O símile é uma comparação entre termos heterogêneos: Ela canta como um rouxinol, que se abrevia em metáfora como O rouxinol. p. 122. Tropos complexos: hipálage, enálage, oximoro, hipérbole Desses três tropos básicos derivam outros. p. 123. A hipérbole é a figura do exagero. Baseia-se numa metáfora (Estou morto de cansaço), ou numa sinédoque (As massas laboriosas, para certo número de trabalhadores). p. 123. Temos aí a estrutura da hipérbole: auxese quando amplia em sentido positivo (esse gigante); tapinose, em sentido negativo (esse anão), sendo sempre o significado figurado bem maior ou bem menor que o significado próprio. p. 123. A nosso ver, a função semântica da hipérbole é dizer que de fato não conseguimos dizer, é dar a entender que aquilo de que estamos falando é tão grande, tão bonito, tão importante (ou o contrário) que a linguagem não poderia exprimir. Donde o papel fundamental da hipérbole na retórica religiosa, visto que só ela pode designar aquilo que não se pode denominar. p. 124. Se, em vez de dizer Estou morto, eu disser Estou meio cansado, estarei substituindo a hipérbole pela litote, que não é uma hipérbole ao contrário, como a tapinose, mas o contrário da hipérbole. Figura do etos, por mostrar o orador modesto, prudente, comedido, a litote possibilita outras figuras, como a insinuação, o eufemismo e sobretudo a ironia. p. 124. A hipálage é um deslocamento de atribuição. p. 124. A enálage é um deslocamento gramatical: do adjetivo para o advérbio, como em Vote certo; de uma pessoa para outra e de um tempo verbal para outro, como em O que estaremosfazendo?, por "o que você está fazendo?" A enálage torna as coisas mais presentes, embora também mais confusas; em Pensar francês, de Pétain, qual era exatamente o sentido de "francês"? p. 124.

O oxímoro é a mais estranha das figuras; consiste em unir dois termos incompatíveis, fazendo de conta que não são. p. 125. Perelman-Tyteca vêem no oximoro uma dissociação condensada, por exemplo entre a aparência - criminosa - e a realidade - santamente. p. 125. Finalmente, dois tropos complexos, simétricos. p. 125. Um deles é a metáfora expandida, seqüência coerente de metáforas, que aliás permite a personificação e... o humor; como por exemplo a metáfora também citada por Prandi. p. 125. Outro é a metalepse, que é para a metonímia o que a metáfora expandida é para a metáfora: uma sequência coerente. p. 125. De fato, todas as figuras de sentido são redutoras, por focalizarem certo aspecto e sobretudo certo valor do objeto que apontam em detrimento dos outros. Donde seu papel argumentativo. p. 125. Figuras de construção Algumas procedem por subtração, outras por repetição, outras por permutação. p. 126. Figuras por subtração: elipse, assíndeto, aposiopese ou reticência A elipse consiste em retirar palavras necessárias à construção, mas não ao sentido. p. 126. Parece que a elipse é antes um meio de criar figuras do que propriamente uma figura. p. 126. O assíndeto é uma elipse que suprime os termos conectivos, tanto cronológicos (antes, depois) quanto lógicos (porém, pois, portanto). O assíndeto é ao mesmo tempo expressivo, pelo efeito surpresa (Vim, vi, venci), e pedagógico, pois deixa por conta do auditório o trabalho de restabelecer o elo que falta, e isso o arregimenta, torna-o cúmplice do orador, a despeito de suas reticências. p. 126. A aposiopese, ou reticência, interrompe a frase para passar ao auditório a tarefa de completá-la; figura por excelência da insinuação, do despudor, da calúnia, mas também do pudor, da admiração, do amor, sua força argumentativa advém do fato de retirar o argumento do debate para incitar o outro a retomá-lo por sua conta, a preencher por sua conta os três pontos de suspensão. p. 127. Figuras de repetição: epanalepse, antítese Chamamos de epanalepse a figura de repetição pura e simples. Propõe duplo problema, o da correção e o da utilidade. p. 127. Não se deve confundir epanalepse com antanáclase, que é a repetição de uma palavra com sentidos diferentes, nem com a perissologia, repetição de uma mesma idéia com palavras diferentes. Dá-se o nome de antítese à oposição filosófica de teses ou a uma oposição retórica, que sobressai graças à repetição; AABA, AACA, etc. A antítese é a oposição no mesmo. p. 127. Figuras diversas: quiasmo, hipérbato, anacoluto, gradação O quiasmo é uma oposição baseada numa inversão, ABBA, e não mais na repetição. p. 128. O anacoluto perturba a sintaxe da frase. p. 129. A nosso ver, o anacoluto não constitui um erro, mas é a incursão do código da língua oral no código da língua escrita, o que torna a expressão mais pessoal e a argumentação mais viva. O hipérbato, ou inversão retórica, é um caso particular de anacoluto. p. 129.

Finalmente, a gradação consiste em dispor as palavras na ordem crescente de extensão ou importância. p. 129. Figuras de pensamento Só dizem respeito à relação entre ideias. Mas essa definição dos antigos levaria a excluí-las do campo das figuras, e mesmo da retórica, que se caracteriza pela íntima ligação entre língua e pensamento. A nosso ver, essas figuras são identificadas por três critérios. Em primeiro lugar, não se referem a palavras ou à frase, mas ao discurso como tal; o trocadilho implica algumas palavras, enquanto que a ironia engloba todo o discurso; um livro inteiro pode ser irônico. Em segundo lugar, dizem respeito à relação do discurso com seu referente; ou seja, pretendem expressar a verdade: enquanto a metáfora não é verdadeira nem falsa, a alegoria poderá ser verdadeira ou falsa. Finalmente, uma figura de pensamento pode ser lida de duas maneiras: no sentido literal ou no sentido figurado. Uma andorinha só não faz verão: a verdade do sentido meteorológico implica a verdade do sentido humano. p. 129, 130. Alegoria: figura didática? A alegoria é uma descrição ou uma narrativa que enuncia realidades conhecidas, concretas, para comunicar metaforicamente uma verdade abstrata. Ela é a estrutura do provérbio, da fábula, do romance de tese, da parábola. p. 130. A verdadeira alegoria, cujos termos são todos metafóricos, apresenta duas leituras possíveis: "Pedra que rola não cria limo" também pode ser lido em sentido figurado: quem viaja muito não cria amigos. Note-se que, na Escócia, Rolling stones gather no moss tem, ao contrário, sentido positivo: quem viaja não cria cascão, está sempre novo. p. 130, 131. Nesse caso, trata-se de uma curiosa didática, pois com ela se acaba perdendo tempo. p. 131. Na realidade, se a alegoria é didática, não é por tornar as coisas mais claras ou mais concretas; ao contrário, é por intrigar. A alegoria da Caverna e a parábola do Semeador intrigam os discípulos, que sentem que o texto quer dizer alguma coisa a mais do que está dizendo, mas não sabem o quê; esperam a explicação do mestre, explicação que não estariam desejando se o mestre a tivesse dado sem preparação prévia. Existe uma pedagogia muito antiga, a do mistério, que consiste em retardar a solução para incitar o discípulo a buscá-la, para motivá-lo a aprender. É nesse sentido que a alegoria é "didática". Donde seu papel também argumentativo: ela alicia as pessoas, no sentido de que, se estas aceitarem o foro (a letra), serão obrigadas a aceitar também o tema (espírito). p. 131. Ironia, graça e humor Na ironia, zomba-se dizendo o contrário do que se quer dar a entender. Sua matéria é a antífrase, seu objetivo o sarcasmo; trata-se realmente de uma figura de pensamento, pois tem dois sentidos. p. 132. Figura do patos e do etos - põe do seu lado quem ri -, a ironia também é figura do logos, por ressaltar um argumento de incompatibilidade pelo ridículo. p. 133. A graça, em retórica, é a ironia que vem a calhar, a réplica arguta, que é a mais eficaz. Quanto ao humor, não é uma espécie de ironia; é o contrário da ironia. Esta denuncia a falsa seriedade em nome de uma seriedade superior - a da razão, do bom senso, da moral -, o que coloca o ironista bem acima daquilo que ele denuncia ou critica: não é o saber que faz de Sócrates um mestre, mas sua ironia. p. 133. Figuras de enunciação: apóstrofe, prosopopeia, preterição, epanortose

A apóstrofe consiste em dirigir-se a algo ou alguém diferente do auditório real, para persuadi-lo mais facilmente. O auditório fictício pode ser um ser presente, mas na maioria das vezes está ausente: são mortos, antepassados, a pátria, os deuses, qualquer coisa p. 133. A prosopopéia consiste em atribuir o discurso a um orador fictício: antepassados, mortos, leis, como Sócrates em Críton, que é interpelado pelas leis de Atenas. p. 134. A preterição, muito próxima da aposiopese, consiste em dizer que não se vai falar de alguma coisa, para melhor falar dela. p. 134. A epanortose consiste em retificar o que se acaba de dizer. p. 134. A contrafisão é uma espécie de optativo que sugere o contrário do que diz: Tenham filhos então! A epítrope ou permissão é uma figura de indignação que finge aceitar um ato odioso de alguém para sugerir que esse alguém seria capaz de cometê-lo. p. 134. Figuras de argumento: conglobação, prolepse, apodioxe, cleuasmo A prolepse antecipa o argumento (real ou fictício) do adversário para voltá-lo contra ele: Dizer-nos que ... A conglobação acumula argumentos para uma única conclusão. A expolição retoma o mesmo argumento com formas diferentes. A pergunta retórica apresenta o argumento em forma de interrogação. O cleuasmo consiste no desgabo que o orador faz de si mesmo, para angariar confiança e simpatia do auditório. p. 135. A apodioxe é a recusa argumentada de argumentar, quer em nome da superioridade do orador (Não tenho lições para receber ... ), quer em nome da inferioridade do auditório (Não cabe a vocês dar-me lições ... ). p. 135. Mas a mais explosiva provavelmente é a hipotipose (ou quadro), que consiste em pintar o objeto de que se fala de maneira tão viva que o auditório tem a impressão de tê-lo diante dos olhos. Sua força de persuasão provém do fato de que ela "mostra" o argumento, associando o patos ao logos. p. 136. É como perguntar: por que falar? Sempre que queremos expressar sentimentos ou idéias abstratas, recorremos às figuras. E o filósofo, o jurista, o teólogo não escapam dela tanto quanto o homem (e a mulher) comum. Falar sem figuras, sim, seria o verdadeiro desvio, provavelmente mortal. O problema não é livrar-se das figuras - o que equivale a livrar-se da linguagem; o problema é conhecê-las e compreender seu perigoso poder, para não ser vítima dele; para tirar proveito dele. p. 137.

Capítulo VII LEITURA RETÓRICA DOS TEXTOS O que propomos aqui nada mais é que a própria retórica, em sua filiação interpretativa; aborda o texto com a seguinte pergunta: em que ele é persuasivo? Portanto, quais são seus elementos argumentativos e oratórios? Nossa leitura é retórica também por sua atitude em relação ao texto. Certos métodos dizem-se puramente objetivos, abordando o texto com "neutralidade". Outros são partidários declarados da desconfiança, e se, como nós, procuram no texto procedimentos retóricos, é para mostrar que são mistificadores. Outros, enfim, como a hermenêutica, considerando o texto sagrado, como fazem teólogos e juristas, explicam-no com o único objetivo de entendê-lo, e postulam que ele tem razão sistematicamente, de tal modo que, se o comentador encontrar nele erros ou contradições, terá sido porque não o entendeu. A leitura retórica, por sua vez, não objetiva dizer que o texto tem razão ou deixa de tê-la. Nem por isso é neutra, pois não hesita em fazer juízos de valor, em mostrar que tal argumento é forte ou fraco, que tal conclusão é legítima ou errônea. Critica e pondera, sem se abster de admirar, tendo como postulado que o texto, tanto em sua força quanto em suas fraquezas, pode ensinar alguma coisa. A leitura retórica é um diálogo. p. 139.

Questões preliminares Perguntas que precisamos fazer ao texto: lugares da interpretação. p. 140. Orador: Quem? Quando? Contra o quê? Por quê? Como? Primeira pergunta: quem fala? Ao contrário de certas análises estruturais, a leitura retórica assume a responsabilidade dessa pergunta, considerando úteis quaisquer informações referentes à vida do autor e à sua doutrina. Mas essas informações raramente são indispensáveis. E, assim, a leitura retórica postula que o texto tem autonomia e é entendido por si mesmo. E ainda que seja útil conhecer a doutrina do autor para compreender seu pensamento, é inútil elucidar cada uma de suas afirmações com citações tomadas no restante de sua obra. Quanto mais se puder interpretar o texto em si mesmo, melhor. Na verdade, a pergunta indispensável é: quando? É preciso conhecer a época do discurso, nem que seja para evitar contra- sensos nos termos. p. 140. Outra pergunta: contra quem? Isso porque é raro que um discurso persuasivo não seja ipso facto dissuasivo, que não ataque, pelo menos implicitamente, uma opinião, uma doutrina, um autor. p. 140. Contra quem, logo por quê? O discurso tende a persuadir de algo, mas esse algo pode ser múltiplo. O texto muitas vezes tem um objetivo imediato e outro distante, o mais importante. p. 141. Finalmente, como o autor se manifesta em seu discurso? Esse é o problema da enunciação. p. 141. Cumpre mencionar dois casos notáveis. O primeiro é aquele em que o eu do discurso não é o de seu autor: isso se observa na citação ou na prosopopéia. O segundo é o caso em que não há eu algum, em que o discurso se apresenta como puro enunciado, assim como os textos escritos por juristas ou geógrafos. Mas a ausência de marcas de enunciação não significa ausência de enunciação; os textos mais objetivos na forma às vezes são os mais tendenciosos. p. 141. Auditório e acordo prévio A quem se está falando: em outras palavras, qual é o auditório real do discurso? Sabe-se que, na apóstrofe, não se trata do auditório aparente. p. 142. A quem: essa pergunta não é feita apenas pelo intérprete, mas por certo também pelo orador. Pois a regra de ouro da retórica é levar em conta o auditório. Ora, os auditórios distinguem-se de diversas maneiras. Em primeiro lugar pelo tamanho, que pode ir de um único indivíduo (por exemplo, numa carta) a toda a humanidade. p. 142. Em segundo lugar, pelas características psicológicas decorrentes de idade, sexo, profissão, cultura, etc. Em terceiro lugar, pela competência. Ninguém se dirige a um grupo de médicos como se fosse um grupo de doentes, a um grupo de especialistas como se fosse um público leigo. A competência distingue não só os conhecimentos necessários como também o nível de argumentação e até o vocabulário. Em quarto lugar, pela ideologia, seja ela política, religiosa ou outra. Pois não é só o argumento que muda segundo a ideologia; o vocabulário também. Orador, auditório: é impossível que um se dirija ao outro se não houver entre ambos um acordo prévio. De fato, não há diálogo, nem mesmo argumentação, sem um entendimento mínimo entre os interlocutores, entendimento referente tanto aos fatos quanto aos valores. Pode-se até dizer, sem paradoxo, que o desacordo só é possível no âmbito de um acordo comum. p. 142. Nas questões em que não haja nenhum acordo inicial, pode haver violência ou ignorância recíproca, não controvérsia. p. 143. Pode-se objetar que é difícil interpretar um discurso quando se ignora o acordo prévio que ele pressupõe. Mas esse acordo é revelado pelo próprio texto: pelo não-dito, pela ausência das provas que seriam de esperar, por suas fórmulas estereotipadas, alusões, expressões como: "é certo que", "todos sabem", "deve-se admitir", etc. Também neste caso o texto explica o texto. p. 143.

Pergunta mais importante: como diz? p. 143 A questão do gênero: Pascal e La Fontaine Uma questão capital na leitura retórica é a do gênero, que comanda estreitamente o conteúdo persuasivo do discurso. O gênero agrupa obras que apresentam características fundamentais em comum: tragédia, poema lírico, tese, etc. Sem dúvida é impossível fazer uma classificação exaustiva dos gêneros, porém o mais útil para a leitura retórica é a comparação. Se quisermos determinar as características de um gênero, precisamos perguntar o que o distingue do gênero mais próximo; por exemplo o melodrama da tragédia, a novela do romance, a aula da conferência. Nossa tese, inspirada no livro de Angenot, Le discours pamphlbaire, é de que o gênero enseja não só injunções de estilo, extensão e vocabulário, mas também injunções ideológicas. p. 143. O gênero circunscreve o pensamento. p. 144. Pois a escolha de um gênero não é apenas a escolha de um estilo e de uma argumentação. É necessariamente uma escolha ideológica, que acarreta certa visão do mundo e do homem. p. 152. Questões sobre o texto Segundo Aristóteles, há dois tipos, duas estruturas argumentativas, e apenas duas: o exemplo, que vai do particular ao geral, do fato à regra, sendo portanto uma indução, e o entimema, que vai do geral ao particular, sendo portanto uma dedução. p. 154. O que prova o exemplo? Em retórica, o exemplo (paradeigma) tem sentido bem mais amplo que o do nosso banal "exemplo". É uma indução dialética, que vai do fato ao fato, passando pela regra subentendida. p. 154. Em primeiro lugar, o exemplo é realmente demonstrativo quando se pode mostrar que os casos são em número limitado, e que a regra se aplica a todos. Mas na argumentação o conjunto dos casos na maioria das vezes é ilimitado; portanto, a indução não é possível; não se pode passar de maneira lógica de todos os tiranos conhecidos para o tirano em geral, principalmente porque a palavra "tirano" não é unívoca: Dionísio não era tirano como era Hitler! O exemplo não permite provar que uma proposição é universal; só pode provar que uma proposição não é universal, que não pode começar com sempre nem com nunca. p. 155. A função lógica do exemplo é negativa, serve para infirmar. p. 155. Mas na argumentação serve também para confirmar, função positiva que não tem na demonstração: a de tomar plausível um enunciado, como vimos com Aristóteles. p. 155. Entimema Passemos agora à vertente dedutiva da argumentação, ao silogismo. Pode-se considerar o silogismo como uma velharia escolar, mas isso não impede que ele esteja sendo feito o tempo todo, como o alter da prosa. p. 155. O silogismo utilizado pela argumentação cotidiana chama-se entimema; emprega-se esse termo para distingui-lo do silogismo demonstrativo. As premissas do entimema não são proposições evidentes, mas nem por isso são arbitrárias; elas são endoxa, proposições geralmente admitidas, portanto verossímeis. p. 155.

Entimema, silogismo do verossímil, mas também silogismo abreviado, cujas premissas enunciadas - como no caso do texto de Aristóteles - são apenas as necessárias. p. 156. Silogismo abreviado: premissa maior é omitida. p. 156. Quando uma premissa é evidente para todos, é supérfluo enuncia-la. p. 156. O intertextual, o intratextual e o motivo central Sem chegarmos a afirmar, como Kibédi-Varga, que todo discurso responde a uma pergunta, admitiremos que ele sempre replica - explicitamente ou não - a outros discursos, seja apoiando-se neles, seja refutandoos, seja completando-os. p. 157. Simplesmente distinguiremos o intertextual do intratextual. Este último é a presença explícita de outro discurso no discurso. Presença que se manifesta de duas maneiras. Primeiro pela citação, que pode servir para apoiar o orador, constituindo então um verdadeiro argumento de autoridade, ou então pode servir de destaque, de prova contra o adversário: "Vejam o que ele ousa dizer!" Finalmente, pode servir de documento de análise, como ocorre em nossos textos. Depois pela fórmula, cuja autoridade, ao contrário, vem do anonimato. p. 157. A fórmula pode ser adagio, provérbio, máxima, slogan; este último, por sua vez, pode ser publicitário, político ou ideológico, como Inimigo hereditário, Faça o amor e não a guerra, Black is Beautiful. Em todos os casos a fórmula é uma frase curta, incisiva, fácil de guardar, cuja função é resumir um pensamento complexo, dando-lhe mais força justamente por ser resumido. Cerne do discurso, a fórmula contém o fecho daquilo que é retórico. p. 157. Em suma, a fórmula é um argumento condensado que se torna peremptório graças à forma, à concisão e à felicidade estilística. Tudo o que se pode fazer é opor-lhe outra fórmula. p. 158. Finalmente, diante de um texto, sempre há interesse em perguntar se ele não tem um motivo central. Entendemos por motivo central um procedimento retórico, figura ou argumento, que serve de princípio organizador para o texto, que permite dizer: é ironia, é alegoria, é argumento de autoridade, etc. p. 158. Capítulo VIII COMO IDENTIFICAR OS ARGUMENTOS? A bem da verdade, já encontramos uma classificação dos argumentos, a de Aristóteles, que os divide em: indutivos (exempio) e dedutivos (entimema); será preciso criar mais uma? Sim, porque Aristóteles não trata da forma da argumentação, da relação entre as premissas. O TA, ao contrário, estuda o conteúdo das próprias premissas, define tipos de argumentos (lugares) que permitem propor uma premissa, mais precisamente uma premissa maior, à qual se pode depois subsumir o caso em questão. p. 163. O TA distingue então quatro tipos de argumentos: - os quase lógicos, do tipo "um tostão é um tostão"; - os que se fundam na estrutura do real, como o argumento a Fortiori; - os que fundam a estrutura do real, como a analogia; - os que dissociam uma noção, como o distinguo entre a aparência e a realidade. p. 163. Os elementos do acordo prévio Vimos que não há argumentação possível sem algum acordo prévio entre o orador e seu auditório. p. 164.

Fatos, verdades, presunções O acordo repousa primeiramente sobre fatos, e fatos já são argumentos. p. 164. No entanto, a noção de fato está longe de ser clara. O que é fato? A única resposta possível é: uma verificação que todos podem fazer, que se impõe ao auditório universal, que parece ser o caso de nosso "fato estatístico". p. 164. Contudo, como todo argumento, o fato pode ser contestado. Como? Primeiramente recorrendo a pessoas competentes: especialistas mostraram que o fato em questão é apenas aparente, assim como se provou que não é o Sol que gira em tomo da Terra. Depois, mostrando que o fato em questão é incompatível com outros fatos, comprovados. Finalmente, contestando o valor argumentativo do fato, sua "interpretação". p. 164. As verdades são ainda menos diretas; são nexos necessários, como e = 1/2 GP, ou então são prováveis, como uma lei tendencial. As presunções têm função capital, pois constituem o que chamamos de "verossímil", ou seja, o que todos admitem até prova em contrário. Por exemplo, não está provado que todos os juízes são honestos e competentes, mas admite-se isso; e, se alguém desmente em tal ou tal caso, cabe-lhe o ônus da prova. O verossímil é a confiança presumida. Em todo caso, a presunção varia segundo os auditórios e as ideologias. p. 165. Os valores e o preferível Os valores estão simultaneamente na base e no termo da argumentação. Mais ainda que os fatos, variam segundo o auditório. É certo que há valores universais, mas estes são formais; toda sociedade admite o justo e o belo, mas com conteúdos bem diferentes. De qualquer modo, essa pretensão ao universal é, em si mesma, um argumento; quem grita: "Franceses primeiro!" dirá que "isso é justo". Será então preciso renunciar aos juízos de valor para atingir a objetividade? Nos domínios da argumentação - jurídico, político, estético, ético, etc. - é impossível, pois neles todas as questões (inocente ou culpado; útil ou nocivo; belo ou feio; bem ou mal) são formuladas em termos de valor. Digamos que, assim como os fatos, os valores são presumidos; todos admitem sem provas, hoje em dia, que o desemprego é uma calamidade, e a quem sustentasse umjuízo de valor contrário competiria provar. Perelman-Tyteca distinguem dois tipos de valores. Os valores abstratos, como a justiça ou a verdade, que se fundam na razão; assim: "Devemos preferir a verdade aos amigos" (Aristóteles). E os valores concretos, como França, Igreja, que exigem virtudes como obediência, fidelidade: prefiro minha mãe à justiça, dizia Camus. Na verdade, quem diz valores diz hierarquia de valores. p. 165, 166. Os lugares do preferível Como justificar as escolhas? Recorrendo a valores ainda mais abstratos, que o TA denomina lugares do preferível. Esses lugares expressam um consenso generalíssimo sobre o meio de estabelecer o valor de uma coisa. Podem ser divididos em três espécies. p. 166. 1) Lugares da quantidade: é preferível aquilo que proporciona mais bens, o bem maior, o mais durável, ou ainda o que propicia o "mal menor". p. 166. 2) Os lugares da qualidade têm sentido contrário. Desse modo, o único passa a ser o preferível; enquanto se despreza o banal, o intercambiável, "a sociedade de consumo", valoriza-se o raro, o precário, o insubstituível. A norma já não é o normal, é o original, até mesmo o marginal, o anômalo. p. 166. 3) Os lugares da unidade de algum modo sintetizam os dois anteriores: o que é um, ou efeito de um único, é por isso mesmo superior. P. 166. A nosso ver, os outros lugares identificados pelo TA se integram nos acima descritos, ou deles derivam: o lugar da ordem pertence ao da unidade; o lugar do existente, ao da quantidade (o que existe é superior à

"quimera"); o lugar da essência, ao da qualidade: superioridade do essencial em relação ao acidental, ao fortuito; fala-se assim, por exemplo, de um "belo caso" para se referir a uma doença interessante. p. 166. Figuras e sofismas concernentes ao acordo prévio Cabe mencionar, finalmente, dois sofismas referentes ao acordo prévio. O primeiro é a ignoratio elenchi, ignorância do contra-argumento oposto, ou ainda do verdadeiro assunto de debate. Esse sofisma pode ser voluntário e tático, ou então passional: "Discute-se acaloradamente, e muitas vezes um não entende o outro" (Port-Royal, p. 243). Essa ignorância é um erro de argumentação, pois contribui para impossibilitar o debate. O segundo sofisma, ainda mais corrente, é a petição de princípio. Segundo o TA, não se trata de um argumento, mas de um "erro de argumentação" (p. 153), que consiste em argumentar como se o auditório admitisse a tese que se está tentando levá-lo a admitir, quando, justamente, ele não a admite! p. 167. Primeiro tipo: argumentos quase lógicos Essa expressão pode surpreender, pois afinal um argumento é lógico ou não é! Mas sabemos que a argumentação rejeita a lei do tudo ou nada. Na realidade, cada um dos argumentos quase lógicos é aparentado com um princípio lógico, como a identidade ou a transitividade; e, assim como eles, são a priori, no sentido de que não fazem apelo à experiência. Mas, ao contrário dos princípios lógicos da demonstração, podem ser todos refutados demonstrando-se que não são "puramente lógicos" (cf. § 45 s.). p. 168. Contradições e incompatibilidade: o ridículo A contradição pura, do tipo "é branco e não branco", é raríssima na argumentação, que não pode recorrer à prova por absurdo. O que se encontra, em compensação, são incompatibilidades, que variam segundo os meios e as culturas. p. 168, 169. Pode-se rejeitar esse argumento de duas maneiras: lógica, dissociando os conceitos por distinguo; empírica, buscando uma conciliação pela ação. p. 169. A incompatibilidade está vinculada à retorsão, que consiste em retomar o argumento do adversário mostrando que na verdade este é aplicável contra ele mesmo. p. 169. O caso mais célebre é a autofagia, argumento que consiste em mostrar que o enunciado do adversário se destrói por si mesmo. p. 169. O ridículo está para a argumentação assim como o absurdo está para a demonstração: é preciso ressaltar uma incompatibilidade. p. 169. Identidade e regra de justiça Na identidade baseiam-se a regra de justiça: tratar da mesma maneira os seres da mesma categoria; o precedente: a admissão de um ato autoriza a cometer atos semelhantes; a reciprocidade: Olho por olho. p. 170. Argumentos quase matemáticos: transitividade, dilema, etc. Outros argumentos quase lógicos apóiam-se em fórmulas matemáticas. Assim é a transitividade: Os amigos de meus amigos são meus amigos, que se pode até desenvolver algebricamente. p. 170, 171. Outro argumento é a divisão: divide-se um todo - a tese por provar - em partes, e, depois de mostrar que cada uma delas tem a propriedade em questão, conclui-se que o todo tem essa mesma propriedade. p. 171.

Na divisão repousa o dilema, raciocínio que prova que os dois termos de uma alternativa levam à mesma conseqüência, sendo esta a tese. p. 171. O argumento ad ignorantiam mostra que todos os casos possíveis devem ser excluídos, salvo um, que é justamente a tese por provar, cuja admissão se pede por falta de coisa melhor; mostra-se que todos os candidatos a um posto são inaceitáveis, salvo um (o próprio), ao qual se concederá então o beneficio da dúvida. p. 171, 172. Definição Definição é um caso de identificação, pois com ela se pretende estabelecer uma identidade entre o que é definido e o que define, de tal modo que se tenha o direito de substituir um pelo outro no discurso, sem mudar o sentido, de dizer tanto homem quanto animal racional. Na realidade, essa identidade só é perfeita nas línguas artificiais - como a álgebra - ou ainda para os termos técnicos: peças de máquinas, por exemplo. Na argumentação, consideraremos quatro tipos de definição. p. 172. 1) Normativa, que na verdade é una denominação, pois impõe como convenção o uso de una palavra, como por exemplo o termo falsificar na epistemologia de Popper. Não é nem verdadeira nem falsa; basta ater-se a ela em toda a argumentação. 2) Descritiva (ou "real"), que pretende enunciar o uso - sentido corrente - do termo definido. Falsificar já não tem o sentido de Karl Popper, mas o do dicionário: "Alterar voluntariamente com intuito de fraudar." 3) Condensada, definição descritiva que se restringe às características essenciais. 4) Oratória (cf. p. 233), definição imperfeita, pois o que define e o que é definido não são realmente permutáveis: "Guerra é toda a nação num esforço de vitória”. p. 172. Na realidade, toda definição é um argumento, pois impõe determinado sentido, geralmente em detrimento dos outros. p. 173. Segundo tipo: argumentos fundados na estrutura do real Os argumentos do segundo tipo já não se apoiam na lógica, porém na experiência, nos elos reconhecidos entre as coisas. Aqui, argumentar já não é implicar, é explicar: "O adversário diz isso porque tem interesse em dizê-lo" (argumento ad hominem). Inversamente, estima-se que, quanto mais fatos una tese explicar, mais provável será ela. p. 173. Sucessão, causalidade, argumento pragmático Pode-se argumentar constatando uma sucessão constante nos fatos, e deles inferindo um nexo causal; se um exército sempre tem excelentes informações sobre o inimigo, infere-se: que seu serviço de inteligência é excelente e que sempre será assim. Mas não se trata de uma demonstração científica. Em primeiro lugar, o argumento é apenas provável, e o sofisma está sempre à espreita: post hoc, ergo propter hoc, "sequência, portanto consequência". O mais importante é que o argumento na verdade quer estabelecer um juízo de valor, mostrar o valor do efeito a partir do valor da causa, ou o inverso. p. 173. O argumento pragmático deriva disso: é "o argumento que permite apreciar um ato ou um acontecimento em função de suas consequências favoráveis ou desfavoráveis" (TA, p. 358). p. 173, 174. O argumento pragmático goza de tal verossimilhança que de imediato presume confiança. Em outras palavras, a quem o contestar incumbirá justificar. p. 174. Verdade é a crença que nos presta serviço. p. 174.

Suas fraquezas? Em primeiro lugar, geralmente ele opta pelas consequências; o banqueiro falará da rentabilidade de um investimento, e não de sua segurança. Importante: esse argumento elimina os valores superiores: só porque triunfa, uma causa é boa? Finalmente, como Sócrates objetava a Górgias (texto 1): o que é realmente útil ou realmente nocivo? O argumento pragmático só é válido quando já se sabe isso, ou então quando não se tem outro meio de conhecer esse realmente. p. 174. Finalidade: argumento de desperdício, de direção, de superação A finalidade, rejeitada pela ciência, desempenha papel capital nas ações humanas, e dela é possível extrair vários argumentos, todos fundados na ideia de que o valor de uma coisa depende do fim cujo meio é ela, argumentos que não exprimem o porquê, mas o para quê. p. 174. É o argumento do desperdício: declara-se que é preciso continuar a guerra porque, caso contrário, todos os mortos teriam tombado em vão; que é preciso continuar a emprestar aos países superendividados, caso contrário a bancarrota deles anularia qualquer possibilidade de quitação; ou ainda que todos têm o dever de empregar seus "talentos" inatos; que é preciso votar para não deixar de expressar sua opinião, etc. O argumento de direção consiste em rejeitar uma coisa - mesmo admitindo que em si é inofensiva ou boa porque ela serviria de meio para um fim que não se deseja. É o argumento da reação em cadeia, da perda do controle: se você ceder desta vez aos terroristas ... Em que esse argumento se distingue do argumento do precedente? O precedente fundamenta um direito, enquanto a direção prevê um fato. p. 175. No argumento da superação, ao contrário, a finalidade desempenha papel motor. Ele parte da insatisfação inerente ao valor: nunca ninguém é bom demais, justo demais, desinteressado demais. O ideal inacessível mostra em cada conquista um trampolim para uma conquista superior, num progresso sem fim. p. 175. Duas observações sobre a finalidade. A primeira é que acontece criá-la para atender às necessidades da causa, como quando se invoca um "perfil do posto" que foi traçado em função do candidato que se quer nomear, ou se inventam "objetivos da guerra" bem depois que a guerra começou. A segunda é que um contra-argumento eficaz consiste em mostrar que o valor invocado não passa de meio: ele só estuda para ganhar mais, só está apaixonado para ganhar o dote ... O para destrói o valor. É o argumento pragmático ao inverso. p. 175, 176. Coexistência: argumento de autoridade, argumento “ad hominem” Pode-se extrair o argumento de uma relação de coexistência entre as coisas. O TA dá a esse termo um sentido muito forte: relação do atributo com a essência, ou ainda dos atos com a pessoa. O argumento da essência consiste em explicar um fato ou em prevê-lo a partir da essência cuja manifestação é ele. p. 176. O argumento de pessoa é uma aplicação do argumento acima. Baseia-se no nexo entre a pessoa e seus atos, nexo que permite presumir os atos dizendo que se "conhece a pessoa", julgá-los dizendo que "são típicos dela", que "ela não vai mudar". p. 176. O argumento de autoridade (§ 70) justifica uma afirmação baseando-se no valor de seu autor: Aristoteles dixit, Aristóteles disse. Argumento muito desacreditado no mundo moderno, injustamente porém. Primeiro, ele nada tem que ver com dogmatismo: todo argumento pode ser dogmático, conforme seja usado; o de autoridade é uma "técnica" como outra qualquer. Depois, essa técnica - quer sejamos tradicionais, quer inovadores - muitas vezes é indispensável. p. 177. A ciência parece excluir o argumento de autoridade. No entanto, ele está sempre presente: Lei de Joule; como mostra a experiência de X; isso porque o pesquisador não pode descobrir nem verificar tudo, precisa confiar em alguém. E em filosofia? Como diz Nietzsche; já não se pode afirmar depois de Freud ... ; Heidegger ensinou que ... Na verdade o mais racionalista dos filósofos não pode encontrar tudo

sozinho, partindo do zero eomo Descartes ... Finitude do pesquisador, do pensador. Ignorá-la seria o pior dogmatismo. p. 177. Pode-se contraditar o argumento de autoridade com técnicas de ruptura. Através de fatos, por exemplo, mas estes também são estabelecidos por uma autoridade; assim, em estatística, quem tem a palavra é o IBGE. Através de outra autoridade: pode-se opor Marx a Lênin, a Bíblia a Bíblia. Então, já não é a autoridade que decide, é a razão que escolhe; mas escolhe outra autoridade. p. 177, 178. O argumento ad hominem é o argumento de autoridade invertido. Consiste em refutar uma proposição recorrendo a uma personalidade odiosa: "Era o que dizia Hitler!" Ou então ressaltando as fraquezas de quem o enuncia: Se ele afirma isso é porque tem interesse ... como podem acreditar, se ele escreve no Le Figaro (ou no L'Humanité)? p. 178. Os nexos simbólicos são outra estrutura do real, fundamentada na pertinência, mas de ordem puramente social e cultural, pois os símbolos mudam segundo o meio. Todo orador deve levar em conta os símbolos de seu auditório se não quiser falar no vazio. p. 178. Duplas hierarquias e argumento “a fortiori” Das estruturas do real extrai-se um argumento muito complexo, porém muito eficaz, a dupla hierarquia, que consiste em estabelecer uma escala de valores entre termos, vinculando cada um deles aos de uma escala de valores já admitida. Por exemplo, se quisermos saber a importância que um jornal atribui às diversas notícias, compararemos o corpo respectivo dos títulos dedicados a cada uma delas. Aristóteles prova assim o "preferível", utilizando a coexistência sujeito-atributo. p. 178, 179. Naturalmente, a argumentação só funciona se o auditório estiver de acordo com a primeira hierarquia, que serve de argumento; se ele puser os deuses acima dos homens, a alma acima do corpo, o homem acima dos pássaros. p. 180. Portanto, pode-se refutar uma dupla hierarquia de duas maneiras. Primeiramente contestando o nexo entre as duas hierarquias. Depois, contestando a hierarquia de valores supostamente admitidas. p. 180. Terceiro tipo: argumentos que fundamentam a estrutura do real Os argumentos do terceiro tipo também são empíricos, mas não se apoiam na estrutura do real: criam-na; ou pelo menos a completam, fazendo que entre as coisas apareçam nexos antes não vistos, não suspeitados. p. 181. Exemplo, ilustração, modelo No TA o exemplo tem papel bem mais restrito que em Aristóteles; é o argumento que vai do fato à regra. p. 181. Como invalidar um exemplo? Com um outro, que o contradiga; a catedral, obra de uma multidão de homens, porém esplêndida, invalida a regra de que as obras perfeitas são as de um só homem. Mas pode-se responder de duas maneiras. Primeiro, restringindo o campo da regra: ela vale para as casas, não para as igrejas! Depois, prevendo a exceção que se julga infirmá-Ia; assim, o milagre não desmente em nada o determinismo da natureza, caso contrário deixaria de ser milagre. p. 181, 182. A ilustração é um exemplo que pode ser fictício e cuja função não é provar a regra, mas dar-lhe "presença na consciência" e reforçar assim a adesão (§ 79). p. 182. Todavia, a ilustração e o "ilustrado" apresentam- se como duas aplicações particulares de uma mesma regra: a provação é pedagógica; portanto, são do mesmo gênero, ao passo que a analogia implica termos heterogêneos.

O modelo é mais que exemplo; é um exemplo dado como algo digno de imitação. p. 182. O modelo é um argumento? Sim, pois serve como norma; é ele que determina do "afastamento", o "desvio". Pode-se refutar recusando-o (por exemplo, preferir Sócrates a Paulo), mas também mostrando que o adversário não está extraindo dele o verdadeiro sentido. p. 182. O antimodelo indica, muitas vezes de modo fortemente emotivo, o que não se deve imitar: o mau músico, o hilota bêbado, que era exibido diante dos jovens espartanos para levá-los a repugnar o alcoolismo. Fundamenta o argumento a contrario: "Vejam o que X fez; os resultados foram catastróficos." p. 183. Comparação e argumento do sacrifício Quando classificamos a comparação entre os argumentos do terceiro tipo, afastamo-nos do TA, que a coloca entre os argumentos quase lógicos por alegar que a medida é um ato matemático. Nós, porém, alegamos que o que se mede é sempre empírico, e ligamos a comparação ao ato de fundar as estruturas do real. p. 183. Por que a comparação é argumento? Por permitir justificar um dos termos a partir do outro ou dos outros. Justifica-se o montante de um salário, uma nota de exame, uma pena, por meio da comparação com outras da mesma categoria. Na realidade, o argumento só é rigoroso se comparar realidades do mesmo gênero, que podem, portanto, ser submetidas ao mesmo estalão: este candidato obteve dois pontos a mais que a média, este salário é 30% inferior ao estabelecido por lei. p. 183. O argumento do sacrifício é um tipo de comparação; consiste em estabelecer o valor de uma coisa - ou de uma causa - pelos sacrifícios que são ou serão feitos por ela. p. 184. Analogia e metáfora Raciocinar por analogia é construir uma estrutura do real que permita encontrar e provar uma verdade graças a uma semelhança de relações. p. 185. O foro é em geral retirado do domínio sensível e concreto, apresentando uma relação que já se conhece por verificação. O tema é em geral abstrato, e deve ser provado. p. 185. A analogia é sempre um pouco redutora, no sentido de anular tudo o que a relação exclui. p. 186. É desse modo que se pode refutar a analogia. Contesta-se que a semelhança de relações seja uma prova: comparação não é razão. p. 186. O que nos parece capital nessa teoria da analogia é a distinção entre ela, o exemplo e a comparação, afirmando que a analogia sempre lida com realidades heterogêneas ou, na língua de Greimas, com "isotopias" diferentes. A prateleira não é do mesmo gênero da hierarquia, nem o morcego é do mesmo gênero da inteligência! Por isso, a analogia não é uma comparação, que dá ensejo à contagem e à medida. p. 186. Em todo caso, afirmar que a analogia é uma semelhança entre relações heterogêneas já tem uma grande vantagem: explicar a estrutura e a função argumentativa da metáfora. p. 186. De fato, segundo o TA (§ 87), a metáfora é uma analogia condensada que expressa certos elementos do tema ou do foro, omitindo os outros. Aliás, para o próprio Aristóteles a metáfora deriva da analogia (cf. Poética, 1457 b, e Retórica, 1406 b). p. 187. Por que a metáfora é argumento? Por condensar uma analogia. Mas nesse caso ela não é menos convincente do que seria a própria analogia? De modo mais geral, essa teoria da metáfora não será redutora, como acha

Paul Ricoeur, por esvaziar tudo o que a metáfora comporta de poesia, de invenção? A essas duas perguntas pode-se responder que a metáfora não é menos convincente, porém mais que a analogia, precisamente pela mistura que opera entre foro e tema, tornando perceptível a união dos termos heterogêneos. p. 187. Consequência: só se refuta realmente uma metáfora com outra. p. 188. A metáfora argumenta estabelecendo contato entre dois campos heterogêneos: o segundo, o foro, introduz no primeiro uma estrutura que não aparecia à primeira vista. Mas é redutora por ressaltar um elemento comum em detrimento dos outros, por ressaltar uma semelhança mascarando diferenças. p. 188. Quarto tipo: argumento por dissociação das noções Absurdo ou “distinguo” Os argumentos do quarto tipo (cf. TA, § 89 s.) consistem em dissociar noções em pares hierarquizados, como aparência/ realidade, meio/fim, letra/espírito, etc. Distinguem-se assim de todos os outros argumentos, que associam as noções. p. 189. Em seguida, a dissociação modifica profundamente as realidades que separa. p. 189. Finalmente, a dissociação tem como objetivo essencial dirimir incompatibilidades, e é exatamente isso que a torna convincente e durável. É preciso escolher entre o absurdo e o distinguo. p. 189. O quarto tipo constitui o argumento filosófico por excelência, pelo menos desde Platão. p. 190. O par aparência-realidade Partiremos do par por excelência, a dissociação entre aparência e realidade. p. 190. Resumindo, em tudo o que parecia uno o argumento de dissociação introduz uma dualidade e cria um par hierarquizado. p. 190. Apesar de não se limitar à filosofia, esse distinguo constitui seu método por excelência. Até mesmo o materialista oporá o mundo real, a matéria científica, às aparências; até mesmo o empirista oporá a experiência real ao sonho e à ilusão. p. 190. Outros pares Muitos outros pares são constituídos pela analogia com o par aparência/realidade, que permite identificar em cada um o termo 1 e o termo 2. Vejamos os pares mais freqüentes em nossa cultura: meio/fim, consequência/princípio, ato/pessoa, acidente/ essência, ocasião/causa, relativo/absoluto, subjetivo/objetivo, múltiplo/uno, normal/normativo, individual/universal, particular/geral, teoria/prática, linguagem/pensamento, letra/espírito... (cf. TA, p. 562). Em cada um deles, o termo 2 - fim, princípio, pessoa, etc. - é dado como superior ao termo 1. Todavia, essas hierarquias nada têm de invariáveis, mesmo em nossa cultura. O romantismo preferiu o subjetivo ao objetivo, o indivíduo ao universal. O pensamento moderno inverte igualmente certas hierarquias; para o pensamento antigo e clássico, o par é movimento/imobilidade. Mas no pensamento moderno, depois de Hegel, Nietzsche e Bergson, o termo 1 passa a ser imóvel, e o termo 2 é a mudança, considerada ontologicamente superior a ele. Um par pode ser expresso com elipse, por apenas um de seus termos. Assim, só se menciona o termo 2, mas com um artigo: A solução, ou com um adjetivo: A história autêntica, ou com um advérbio: universalmente verdadeiro, ou com maiúscula: o Ser, ou com um hífen pretensamente etimológico: eksistência. Pode-se também omitir o termo 2 marcando o termo 1 com aspas: "objetividade ", "direito ", para mostrar que se trata de pretensão. Um par também pode ser expresso por figuras. p. 191.

Artifício e sinceridade Uma atitude que é possível tornar odiosa ou ridícula é a perversão da relação meio/fim: ser generoso para que os outros digam, estar apaixonado para fazer carreira; surge então um novo par pela inversão do primeiro, o par artifício/sinceridade. Esse par acabou servindo de argumento contra a própria retórica (cf. TA, § 96), que é reduzida a um conjunto de "artifícios", ou seja, de meios totalmente estranhos ao fim em vista, e que valeriam também para um fim contrário. Somos persuadidos por argumentos "fortes", "plausíveis", etc., mas, como o seu único objetivo é persuadir, dizemos que o orador utilizaria também argumentos falsos, insinceros, desde que se mostrassem mais eficazes. E nesse caso qualquer retórica, qualquer argumentação passa a ser suspeita de não passar de artifício. Então, ocorre uma dissociação no seio do próprio discurso. p. 193. Na verdade, essa dissociação, em si, é profundamente retórica. A sinceridade, que consiste em só se dizer o que se pensa de verdade, é um valor ético. Mas, desde que alguém queira expressar- se com sinceridade, desde que queira persuadir os outros daquilo em que acredita, estará - querendo ou não, e talvez principalmente sem querer - no domínio da retórica. De que maneira esta pode superar a suspeita de artifício? Por meio de melhores artifícios! Primeiro, encontrando o tom “justo”, ou seja, apropriado ao assunto em questão e adaptado ao que se pensa, a "conveniência" dos antigos retores. Depois, por meio de certas figuras, como a hesitação, a epanortose ("ou melhor"), o anacoluto, a epanalepse (ai, ai, ai!), que conferem "tom" de sinceridade ao discurso. A retórica é uma arte que, como toda arte, atinge a perfeição quando se faz esquecer. p. 193. Para terminar, lembraremos os dois princípios que nossas análises trouxeram à tona. O primeiro é que não há argumento infalível, pois todo argumento pode ser contraditado por outro argumento. O segundo é que a argumentação não é inerentemente falaciosa; se todo argumento pode tornar-se sofistico por erro de prova, é porque ele também pode deixar de se tornar sofistico, falando-se então, de pleno direito, em objetividade da argumentação. Em outras palavras, não se espera de um argumento apenas que ele seja eficaz, isto é, que seja capaz de persuadir seu auditório; espera-se que ele seja justo, isto é, capaz de persuadir qualquer auditório, de dirigir-se ao auditório universal. Em que condições isso é possível? Quando o argumento se expõe deliberadamente à discussão, à contra-argumentação. E aqui encontramos o grande princípio: o que salva a retórica é que o orador não está sozinho, que a verdade é encontrada e afirmada na prova do debate. Tanto com os outros quanto consigo mesmo. p. 194. Capítulo IX EXEMPLOS DE LEITURA RETÓRICA O discurso é um conjunto coerente de frases, que têm uma unidade de sentido e que falam de um mesmo objeto. p. 195. A unidade do texto é, ao contrário, obra de seu comentador; é ele que o destaca no interior do discurso; e, para nós, todo texto é um excerto. p. 195. Lembremos as regras principais da leitura retórica. Primeiro, ela consiste em fazer perguntas ao texto, dando-lhe todas as oportunidades de responder. Em segundo lugar, essas perguntas, ou lugares de leitura, referem-se o máximo possível ao conjunto do texto: qual é sua época, seu gênero, seu auditório real, seu motivo central, sua disposição, etc.? Se possível, evita-se o comentário linear, que logo vira paráfrase. Em terceiro lugar, a leitura retórica busca o vínculo íntimo entre o argumentativo e o oratório. Em quarto lugar, ela pretende ser um diálogo com o texto. p. 195. À GUISA DE CONCLUSÃO

1) Definimos a retórica, a partir da tradição, como arte de persuadir pelo discurso, o que equivale a dizer que é uma arte funcional, cujos elementos - plano, argumentos, figuras, etc. - têm valor pelo serviço que prestam. p. 227. 2) Afirmamos que retórica é a união íntima entre estilo e argumentação, e que, desse modo, um discurso é retórico à medida que é fechado e não parafraseável. Significa dizer que um discurso retórico não tem estruturas profundas; sendo inseparáveis sua forma e seu conteúdo, deixaríamos de entendê-lo se procurássemos por trás da forma um sentido para o qual ela não passasse de vestidura. O sentido está na superfície, e a superfície faz sentido. p. 227. 3) Não hesitamos em fazer um elogio da retórica, o que, evidentemente, é uma tese. Pois, mesmo que não entendamos a retórica no sentido vulgar, mesmo que a tomemos por aquilo que ela mesma pretende ser, nem por isso ela estará imune a críticas. Argumentaremos uma última vez a partir dessas críticas. Arte e naturalidade A arte é necessária à expressão, arte sem a qual ninguém seria crível ou, mais simplesmente, compreendido. Mas que arte não se confunda com artificio. Digamos que, em parecendo artificial, o discurso é ineficaz. O artificio é a ruína da arte, é a figura que não dá certo, é o estratagema que dissuade precisamente por ser percebido como tal. É próprio da arte, ao contrário, passar despercebida. E isso é dissimulação? Às vezes. Mas às vezes também revelação de um pensamento justo e sincero que não se afirmaria sem essa arte, sem a retórica. Finalmente, a desconfiança em relação à retórica poderia perfeitamente ser desconfiança em relação à linguagem, que só traduziria o pensamento traindo-o. Não será essa no fundo a atitude dos grandes contendores da retórica, como Platão e Descartes? A esses temíveis pensadores oporemos seu próprio exemplo, que mostra que o pensamento, em vez de preexistir à linguagem, nasce de um trabalho na linguagem, e que aprender a expressar-se também é aprender a pensar. p. 228. A ilusão do livro do mestre Aqui surge outra objeção: a retórica não está a serviço da verdade. A prova é que a invenção retórica, em vez de ser busca sincera da verdade, não passa de inventário de argumentos e de sentimentos capazes de levar sua causa ao triunfo. Assim, a "arte oratória" só está a serviço do incerto, às vezes do falso, sempre da aparência. Por acaso essa mesma arte não proclama que está em busca do verossímil, e não do verdadeiro? Essa crítica repousa, a nosso ver, numa idéia falaciosa da verdade, que chamaremos de ilusão do livro do mestre. Raciocina-se como se todos os problemas da vida - judiciários, políticos, econômicos, pedagógicos, éticos - tivessem uma solução escrita em algum lugar, na terra ou no céu, em nossa consciência ou em nosso coração, numa espécie de livro do mestre que basta abrir para encontrar a resposta certa. Infelizmente, não é isso o que acontece; na maioria das vezes, a verdade só é "estabelecida" ulteriormente, depois de muitas dúvidas, debates, trabalhos; principalmente quando se trata das verdades que mais nos importam, que mais paixões despertam, que mais esperanças suscitam. Evidentemente, sabemos que a causa de Sócrates era justa, tanto quanto a de Joana d' Arc ou do capitão Dreyfus. Sabemos, mas os contemporâneos não tinham como saber; e, em cada caso desses, a causa só se mostrou justa graças a seus defensores e à sua retórica. p. 229. Da polêmica ao diálogo Para terminar, voltemos aos Tópicos de Aristóteles livro árduo e desconcertante, capaz de mostrar porém que nos domínios não pertencentes à ciência pura só se chega à verdade coletivamente, num debate em que cada um representa – no sentido próprio da palavra "representar" - sua parte o melhor possível, até que a verdade, ou seja, o mais verossímil, se imponha a todos. O diálogo é então realmente heurístico: encontra alguma coisa. p. 231.

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