Em espírito e em verdade Publicado em 17/11/05 às 12:40 Por Ed René Kivitz Em sua conversa com a mulher samaritana, Jesus denuncia que muitos há que adoram o que não conhecem, e, portanto, sua adoração é inóqua e ineficaz: não mata a sede, isto é, não satisfaz o anseio de realização espiritual. A experiência espiritual cristã afirma que é imprescindível o discernimento a respeito de quem é Jesus: "Se conheceras o dom de Deus e quem é o que te pede: dá-me de beber, tu lhe pedirias, e ele te daria água viva" (Jo 4.10). Todo aquele que deseja beber água da vida e ter em seu interior uma fonte a jorrar para a vida eterna deve conhecer a Jesus (Jo 4.13,14; 7.37-39) e ouvir Suas palavras, pois as palavras de Jesus são espírito e vida (Jo 6.63). Em outras palavras, "Deus é espírito, e importa que seus adoradores o adorem em espírito e em verdade" (Jo 4.24). A legítima experiência espiritual cristã, a experiência de adoração, acontece sob a ministração do Espírito Santo (Jo 14.17; Fp 3.3; Ef 6.18 ), somente possível para aqueles que nasceram da água e do Espírito pela fé em Jesus Cristo, que é a Verdade (Jo 3.1-16; 14.6). Neste caso, a adoração cristã não é apenas uma questão de "paixão infinita", mas também uma questão de conhecimento do Deus que se revela na história, na Bíblia e absolutamente em Jesus de Nazaré (Hb 1.1-4). A expressão religiosa popular brasileira, com suas crendices e seus ídolos, traz a mim um misto de tristeza e esperança. Tristeza semelhante àquela que o apóstolo Paulo expressa ao afirmar que os que têm zelo de Deus, mas não têm entendimento, ainda carecem de salvação (Rm 10.1,2). Mas, nestes dias de intensa busca espiritual, meu coração enche-se de esperança, pois creio em um Deus misericordioso e salvador. A Bíblia conta a história de um homem temente a Deus, piedoso, que fazia muitas esmolas e orava com fervor (At 10.2). A parte da história que mais me comove é a afirmação de Pedro, apóstolo: "Cornélio, a tua oração foi ouvida, e as tuas esmolas, lembradas na presença de Deus" (10.31). O extraordinário é que a experiência espiritual de Cornélio era incompleta até ouvir a pregação apostólica a respeito de Jesus de Nazaré (10.34-43). E
Deus providencia para que esta pregação alcance Cornélio e toda a sua casa. Enfim, parece claro que Deus dá ao homem que O procura um jeito de encontrá-Lo. Ou, se você preferir, o homem que procura Deus já foi achado por Ele. Portanto, à semelhança do apóstolo Paulo, oremos pelos que buscam Deus com paixão infinita ajoelhados diante dos ídolos, a fim de que Deus mesmo lhes dê o conhecimento da verdade em Jesus. E oremos por aqueles que se ajoelham diante de Jesus, para que Deus lhes dê a paixão infinita. Fonte: Eclésia - ano 5 - nº 49
A oração simples Publicado em 28/01/08 às 9:21 Por: Ed René Kivitz Não existe oração errada. Aliás, a oração errada é aquela que não é feita. A Bíblia Sagrada ensina que se deve orar a respeito de tudo. Orar por qualquer motivo, qualquer hora, qualquer lugar, sempre que o coração não estiver em paz. Tão logo o coração experimente apreensão, preocupação, medo, angústia, enfim, seja perturbado por alguma coisa, a ação imediata de quem confia em Deus é a oração. O apóstolo Paulo diz que não precisamos andar ansiosos por coisa alguma, mas em tudo, pela oração e súplicas, com ação de graças, devemos apresentar nossos pedidos a Deus, tendo nas mãos a promessa de que a paz de Deus que excede todo o entendimento, guardará nossos sentimentos e pensamentos em Cristo Jesus (Filipenses 4.6,7). A expressão "coisa alguma' inclui desde uma vaga no estacionamento do shopping center quanto o fechamento de um negócio, o desejo de que não chova no dia da festa quanto a enfermidade de uma pessoa querida. Esta experiência de oração é chamada de oração simples: orar sem censura filosófica ou teológica, orar sem se perguntar "é legítimo pedir isso a Deus?" ou "será que Deus se envolve nesse tipo de coisa?". Simplesmente orar. A garantia que temos quando oramos assim é a paz de Deus em nossos corações e mentes. A Bíblia não garante que Deus atenderá nossos pedidos exatamente como foram feitos: pode ser que a vaga no estacionamento não seja encontrada e que chova no dia da festa. A oração não se presta a fazer Deus trabalhar para nós, atendendo nossos caprichos e provendo o nosso conforto. Já que a causa da oração simples é a ansiedade, a resposta de Deus é a paz. O resultado da oração não é necessariamente a mudança da realidade a respeito da qual se ora, mas a mudança da pessoa que ora. A mudança da situação a respeito da qual se ora é uma possibilidade, a mudança do coração e da mente da pessoa que ora é uma realidade. Deus não prometeu dizer sim a todos os nossos pedidos, mas nos garantiu dar paz e nos conduzir à serenidade. Não prometeu nos livrar do vale da sombra da morte, mas nos garantiu que estaria lá conosco e nos conduziria
em segurança através dele. O maior fruto da oração não o atendimento do pedido ou da súplica, mas a maturidade crescente da pessoa que ora. Na verdade, a estatura espiritual de uma pessoa pode ser medida pelo conteúdo de suas orações. Assim como sabemos se nossos filhos estão crescendo observando o que nos pedem e o que esperam de nós, podemos avaliar nosso próprio crescimento espiritual através de nossos pedidos e súplicas a Deus. As orações revelam o que realmente ocupa nossos corações, o que realmente é objeto dos nossos desejos, o que nos amedronta, nos desestabiliza e nos rouba a paz. O apóstolo Paulo diz que quando era menino, falava como menino, pensava como menino e raciocinava como menino. Mas quando se tornou homem, deixou para trás as coisas de menino (1Coríntios 13.11). Não existe oração certa e errada. Mas existe oração de menino e oração de homem. Oração de menina e oração de mulher. A diferença está no coração: coração de menino e de menina, ora como menino e menina. A nossa certeza é que Deus também gosta de crianças. Ed René Kivitz é teólogo, com mestrado em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo, e pastor presidente da Igreja Batista de Água Branca, SP. É também palestrante e escritor, e dentre suas obras mais conhecidas estão Vivendo com propósitos e Outra Espiritualidade, ambas publicados pela Editora Mundo Cristão. Fonte: www.galilea.com.br
Presentes no Mundo Publicado em 03/07/06 às 21:39 Por Ed René Kivitz "Prega o evangelho durante todo o tempo: se necessário, use as palavras" (São Francisco de Assis) Cristãos devem fazer diferença. Não fosse a presença cristã, o mundo estaria não apenas em decadência ainda mais acelerada, como também, absolutamente impossibilitado de conhecer a Deus. No Sermão do Monte o Senhor Jesus oferece as bases do testemunho cristão no mundo. (Mt 5.1416). A finalidade do testemunho é a glória de Deus: "para que glorifiquem a vosso Pai que está nos céus". O conteúdo do testemunho são as boas obras: "para que vejam as vossas boas obras". Mas o pré-requisito para o testemunho é a luz : "assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras, e glorifiquem a vosso Pai, que está nos céus". O conceito cristão de boas obras é muito abrangente. Paulo escreve a Tito afirmando que o Senhor Jesus "se deu a si mesmo por nós para nos remir de toda iniqüidade, e purificar para si um povo todo seu, zeloso de boas obras".
(Tt 2.14). O texto mais esclarecedor, entretanto, é Efésios 2.1 -10, ele diz que não somos salvos por causa de obras, mas "para as boas obras, que Deus preparou de antemão para que andássemos nelas". "Boas obras" entram em contraste com "delitos e pecados" nos quais andávamos antes de Cristo (2.1). E este "contraste é completo. É um contraste entre dois estilos de vida (o mau e o bom) e, por trás deles, dois senhores (o diabo e Deus)", comenta John Stott em "A mensagem de Efésios",. ABU Editora, 1986. p.57).
Sendo assim, "boas obras" não são apenas uma alusão à solidariedade e à caridade. "Boas obras" dizem respeito à totalidade da vida do cristão. Referem-se a tudo quanto um cristão faz: "quer comais quer bebais, ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para a glória de Deus"(1Co 10.31). Voltando ao Sermão do Monte, a leitura superficial do texto sugere que as boas obras dos cristãos são a luz que os homens vêem para que possam glorificar a Deus. O Senhor Jesus, entretanto, afirmou que os homens somente conseguiriam ver as boas obras caso a luz resplandecesse. O brilho da luz possibilita a visibilidade das boas obras. Os cristãos é que são luz, não são as sua boas obras. O que os cristãos são, ilumina o que os cristãos fazem. O Senhor Jesus se utiliza das Bem-Aventuranças para descrever quem é o cristão. Em seguida, afirma que pessoas com aquela essência (luz) agindo no mundo (boas obras) causariam um impacto inescondível, o que resultaria em glória para Deus, que está nos céus. Em outras palavras, o que "fazer" somente resulta em glória para Deus quando iluminado pelo "ser". Essa constatação traz pelo menos três implicações para a ética cristã.
O Ser Precede o Fazer Na ética cristã, o ser precede o fazer, sob pena de que o fazer caia no vazio ou, pior, em contradição com o ser, além de ser um peso excessivo para quem faz. A ação cristã despida de caráter anterior que a qualifique é incipiente porque não é possível de ser registrada. A mensagem mais forte suplanta a mais fraca, e nesse caso, a mais forte diz respeito ao ser, de modo que o fazer sem o ser cai no vazio. O ser precede o fazer. O cristão, portanto, deve agir tendo cuidado das intenções, do caráter e dos meios que possibilitam a ação. O cristão deve agir, mas deve antes certificar-se de que seu estilo de vida credencia sua ação e fala. A contradição entre o ser e o fazer faz lembrar a mãe que belisca a criança no colo. É a chamada "mensagem de duplo vínculo": o carinho do colo e a agressão do beliscão. A contradição entre as mensagens gera confusão psíquica e emocional. O cristão que age em desacordo com o
que é lança uma mensagem difícil de ser acreditada. O ser precede o fazer. O cristão portanto age em conseqüência de que, tal qual árvore, é fruto. A impossibilidade do mundo natural não acompanha a realidade da ação humana: laranjeiras não dão limões, mas pessoas ruins podem agir com bondade, egoístas podem doar, invejosos podem aplaudir e rancorosos podem abraçar. A violência contra si mesmo é dotada de conseqüências funestas. Quem abre mão sem antes experimentar a mansidão, por exemplo, carrega consigo um crônico sentimento de perda. O ser precede o fazer para que a ação não seja esvaziada, confundida nem pesada. O Ser Esclarece o Fazer Na ética cristã, o ser esclarece o fazer. Não são poucos os exemplos de ações semelhantes com repercussões desiguais. A força da mensagem está respaldada pela intensidade da militância. Martin Luther King Jr., Nelson Mandella, Malcom X, tiveram suas mensagens amplificadas pelo fato de que suas vidas estiveram e estão comprometidas com a causa esposada. A identificação solidária com pobres não vale nada na boca de teólogos de gabinete. Não é por menos que o apóstolo Paulo insistiu em ser seguido no que falou e mostrou. O evangelho não é algo para ser ouvido é para ser visto. Aprendera isso do seu Mestre, que ensinava com a autoridade peculiar, àqueles, cujas ações e palavras, são como água a jorrar do fundo do ser. O Ser, Faz Finalmente, na ética cristã, o ser, faz. Nada mais óbvio. Quem é misericordioso age com solidariedade. Quem é pacificador aproxima pessoas. E assim por diante. O mais notável, entretanto, é que a ação genuinamente cristã é decorrente. Veja, por exemplo, que Jesus de Nazaré não apenas serviu, ele se fez servo. Sua ação que priorizava o outro, em detrimento de si mesmo, não era uma auto-violência mas uma expressão natural do ser. São Francisco estava certo. Conseguiu interpretar o espírito iluminado cristão: "Prega o evangelho durante todo o tempo: se necessário, use as palavras".
Deus é Inocente Publicado em 01/06/05 às 17:11 Por Ed René Kivitz "Se o céu existe, Deus tem muito o que explicar". Essa afirmação do ator Robert DeNiro faz eco em meu coração.
Também experimento o incômodo de deixar Deus sub judice diante do sofrimento humano. Não me conformo diante das injustiças da vida. O argumento de que todos somos maus e, em última análise, ninguém mereceria ser poupado do mal, não me satisfaz. Acredito que coisas ruins acontecem às pessoas boas e acalento, silencioso, uma certa contrariedade quando coisas boas acontecem aos ruins. E também creio que a maioria das pessoas não merece a tragédia que sofre - o casal que perde o filho recém-nascido; o adolescente que fica tetraplégico após um mergulho displiscente; a mulher que se vê mutilada pelo câncer; o pai de família que percorre as ruas na indignidade do desemprego. São situações cotidianas que me fazem dormir mal sob o peso do veredito: Deus tem mesmo muito que explicar. Mas trago no coração uma certeza que apazigua a alma, dá coragem para viver e me anima à solidariedade, ainda que tímida e pouco suficiente: o céu existe. Não sei como é, nem onde fica. Não sei quando acontece. Mas que existe, existe. O presente estado das coisas não é a versão final da obra de Deus. Uma coisa é o mundo em que vivemos; outra, aquele em que viveremos eternamente. E a respeito das coisas que acontecem neste mundo e não deveriam acontecer, mas que não acontecerão no mundo vindouro, Deus já Se explicou. O Pai Se pronunciou em alto e bom som, há mais de 2 mil anos, na cruz do Calvário, onde foi morto Jesus de Nazaré, o Cristo, unigênito de Deus. A tradição cristã afirma que "Deus prova seu amor para conosco em que Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores". Quem duvida do amor de Deus deve olhar para o Calvário. No dia em que o sofrimento se agiganta e a visão do amor de Deus fica ofuscada pelas lágrimas da dor, a cruz é o grito apaixonado de Deus. O teólogo britânico John Stott disse que, na cruz de Cristo, Deus justifica não apenas a humanidade, mas a Si mesmo. Na cruz de Cristo, Deus Se levanta diante de todos os que O acusam de ser injusto, tirano, indiferente ao sofrimento e à dor humanas, e pronuncia a sentença de inocência sobre Si mesmo. O madeiro é a prova irrefutável do amor de Deus. Na cruz há quatro afirmações que provam o amor e definem a inocência de
Deus. Na cruz de Cristo, Deus se solidariza com as vítimas do mal e da malignidade. Através da morte de Jesus Cristo, seu Filho, Deus afirma: "O mal também me feriu"; "O sofrimento chegou também à minha casa"; "As lágrimas pelo padecimento injusto também rolam dos meus olhos". Aqueles que imaginam que o Deus que habita em luz inacessível vive confortavelmente no ar condicionado do céu, enquanto Suas criaturas penam contra o diabo na terra do sol, estão absolutamente enganados. Na cruz de Cristo, Deus sofre conosco. Sofre por nós. Padece em nosso lugar. Deus sabe o que é padecer - seu Filho é homem de dores, ovelha muda entre seus sanguinários tosquiadores. Na cruz de Cristo Deus atravessou não apenas o vale da sombra da morte; atravessou a própria morte. Na cruz de Cristo, Deus é declarado inocente porque não é contado entre os promotores do mal, mas entre os que sofrem os danos da malignidade. Na cruz de Cristo, Deus afirma: "Não olhem para mim como se eu ordenasse o mal"; "Quando estiver sofrendo, não me conte entre os que lhe causam a dor". Quase posso escutar o Senhor dizendo à mãe que chora a filha atropelada: "Não me tome como quem passou por cima. Eu estava embaixo, sendo esmagado sob o peso da roda que me dilacerava a carne e a alma". Na cruz de Cristo, Deus sofre o mal. Ali, o Senhor é exposto como vítima, e não como algoz que causa dor e sofrimento. Na cruz de Cristo, os verdadeiros promotores da morte são publicamente desmascarados. Cai o pano. E todo mundo pode ver que Deus não está com mãos sujas de sangue inocente - na cruz de Cristo, Deus é a mão inocente que sangra. No episódio do Calvário, o Pai é declarado inocente porque fica evidente que a causa do sofrimento é o pecado da raça humana. Os pecadores pendem das cruzes laterais; mas a do meio sustém um inocente. Na cruz de Cristo, Deus afirma: "Vocês deflagraram o mal, soltaram a besta fera. Vocês macularam o Paraíso". O aviso "No dia em que pecares, certamente morrerás" ainda ecoa pelo universo. A presença da morte é evidência de pecado; e o pecado é responsabilidade
da raça. A cruz de Cristo somente se explica porque o pecado a faz necessária. Naquele dia em que Deus provava Seu amor para conosco, éramos de fato ainda pecadores. Na cruz, Deus é O que morre, e não O que mata. Na cruz de Cristo, pende o justo morrendo a morte dos injustos. O veredito está lançado - há pecado; pois que haja morte. O salário do pecado é a morte, disse o apóstolo. A justiça do Deus três vezes santo há que ser satisfeita. Deus está diante de Seu dilema eterno: matar ou morrer. E sua opção é definitiva, desde antes da criação do mundo - morrer. Deus faz a escolha e anuncia sua disposição de amor absoluto: se alguém tem que morrer para que a justiça volte a brilhar, que viva a raça humana. "E que morra eu", diz o Senhor. O primeiro dos dilemas é criar ou não criar. O segundo é criar com liberdade ou sem liberdade. O terceiro é assumir o ônus da liberdade ou deixar este ônus nas mãos da criatura. Deus faz as escolhas que O machucam, que lhe causam dor, que o fazem sofrer, que o diminuem. Simone Weil diz que "Deus e todas as Suas criaturas é menos do que Deus sozinho". O Senhor escolhe criar um ser livre, pois se não fosse livre não seria à imagem do Criador. E escolhe arcar com ônus da liberdade que concede à Sua criatura. Na cruz de Cristo está Deus entregando a Sua vida, voluntariamente, em favor dos pecadores. O mal deflagrado pela raça humana levanta sua sombra sobre o trono de Deus. E o próprio Deus Se levanta como um Cordeiro que a Si mesmo se doa, pois sua escolha foi morrer, ao invés de matar. Na cruz de Cristo está o Deus que morre para que todos tenham vida. Vida completa, abundante vida. Extraído da revista ECLÉSIA - ANO 9 - EDIÇÃO 96.
Princípios Bíblicos de Liderança Publicado em 22/04/04 às 23:39 Por Ed Rene Kivitz Como ter um ministério eficaz, mesmo sendo pastor de uma
Igreja pequena e pobre... O tamanho de seu ministério não é medido pelo número de pessoas a quem você serve, mas pelo número de pessoas servidas pelas pessoas a quem você serve", ensinoume Bruce Wikinson há alguns anos atrás. Na verdade este é o princípio de liderança de Efésios 4.11-16 nas suas três afirmações básicas: 1. A Igreja do Senhor Jesus cresce e se solidifica quando todas as suas partes (santos) estão ligados entre si e trabalhando bem; 2. As partes (santos) somente estarão harmonizadas e desempenhando cada qual o seu papel se forem capacitadas para tanto. 3. A responsabilidade por capacitar as partes (santos) para atuar repousa sobre os apóstolos, evangelistas, profetas e pastores-mestres. Em outras palavras, a função pastoral não é fazer, mas "fazer fazer" e, principalmente, subsidiar os que fazem para que façam bem feito. Isto diz o apóstolo Paulo claramente: "Deus escolheu alguns para serem apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas e ainda outros para pastores e mestres da Igreja. Ele fez isso para preparar o povo de Deus para o serviço cristão, afim de construir o corpo de Cristo" (Ef 4.11-12). Até aqui não há qualquer novidade, pois o princípio é o mesmo usado pelo Senhor Jesus quando de seu ministério terreno. Robert Coleman afirma que Jesus não se preocupou com as multidões, mas sim com os homens a quem as multidões seguiriam. O auditório de domingo à noite não estimulava tanto Jesus quanto os encontros de discipulado durante a semana. O Cristianismo virou o mundo de ponta cabeça em razão da qualidade intrínseca de um nazareno e sua capacidade de olhar nos olhos de homens comuns: sem tecnologia, sem um grande templo, sem agressividade na arrecadação financeira, sem promoção da indústria do milagre, sem programa de rádio e televisão, e sem bandas para entusiasmar o povo no louvor. Apenas contato-contágio, multiplicando homens, dos quais o mundo não era digno, que por sua vez fariam contato e contagiariam outros. Quando atualmente ouvimos falar de ministérios eficazes e abrangentes, logo imaginamos uma enorme estrutura por trás de um semideus. Pastores retornam dos encontros cheios de entusiasmo e logo "caem na real" lamentando a escassez de líderes, as dificuldades financeiras e a carência de recursos para ampliar o ministério. Se o alvo é alcançar multidões, a queixa está correta e o melhor que as instituições paraeclesiásticas poderiam, fazer pelo Brasil, seria arrecadar fundos no exterior. Mas se o alvo é discipular homens fiéis e idôneos para o princípio contatocontágio,
então não há razão para lamentações e frustrações. O mais recente best seller da administração foi escrito por Jerry Forras e James Collins. Chamase "FEITAS PARA DURAR" (Editora Rocco), e apresenta princípios de liderança capazes de manter uma empresa viva após a morte de seu primeiros visionários. Jerry e James disseram que líderes de verdade não dão soluções, dão ferramentas. Isto é, não dizem as horas, ensinam a construir relógios. Isto é, não fazem, providenciam que seja feito. Isto é, não reúnem seus funcionários para declarações solenes do horário do dia, mas multiplicam pessoas capazes de dizer que horas são. Sabem que o tamanho de sua contribuição ao mundo não se pode medir pelo número de pessoas a quem estes disserem as horas, mas pelo número de pessoas que puderem saber as horas quando ele não estiver por perto. Bem, confesso que estou em dúvida: não sei se James e Jerry pesquisaram empresas visionárias ou os princípios de liderança do Senhor Jesus e do apóstolo Paulo. Na verdade, acho mesmo que foram aqueles camaradas que construíram impérios como Disney, IBM, American Express, Ford, Boeing, Johnson & Johnson, 3M e WalMart, que eram leitores do Novo Testamento, aliás, prática bastante negligenciada pelas lideranças evangélicas contemporâneas. Ed Rene Kivitz é pastor da Igreja Batista de Água Branca e autor de três livros, "Nasce uma Igreja" (Ed. Sepal), "Koinonia" e "Quebrando os Paradigmas" (Ed. Abba Press).
A oração de uma palavra só Publicado em 25/09/08 às 24:55 Por: Ed René Kivitz As pessoas que convivem comigo dificilmente me descreveriam como um homem de oração. Mas peço licença a Paulo, apóstolo, para usar suas palavras em minha defesa –"Ninguém me considere insensato! Ou então suportai-me como insensato, a fim de que também eu me possa gloriar um pouco. O que vou dizer, não o direi conforme o Senhor, mas como insensato, certo que estou de ter motivo de me gloriar". Sou um daqueles denunciados por William James, que ora simplesmente porque não consegue evitar a oração. Minha vida de oração não se explica por outra razão senão o mais profundo desespero. Durante muito tempo carreguei a culpa de orar por razões diversas – a busca da santidade, o amor ao Senhor (o famoso e piedoso "buscar a Deus por quem Deus é") ou mesmo aquela intercessão generosa, solidária e compassiva. Mas encontrei consolo nas palavras de Thomas Merton: "A oração é uma expressão de quem somos". A oração nunca me fez sentido. Para falar a verdade, ainda não faz.
Também não consigo compreender a mecânica ou dinâmica processual da oração. Jamais consegui me ajoelhar aos pés de um deus deliberativo, que recebe as petições e súplicas das mãos do "anjo protocolador" e as despacha à luz de critérios misteriosos. Não consigo imaginar um deus pensando se responde ou não à súplica de uma mãe no corredor do hospital ou considerando se atende ou não ao clamor de uma comunidade que pede chuva. Alguém deve imaginar que Deus ouve as orações, avalia a questão e depois dá ordens aos seus anjos conforme sua perfeita vontade: "Gabriel, faça com que aquele advogado desista da compra do apartamento, pois decidi que vou deixar que o casal que orou esta manhã feche o negócio"; ou "Miguel, dê um jeito de aquele menino esquecer o agasalho e ter que voltar para buscar, porque a mãe dele está orando e eu vou poupá-lo do acidente que está para acontecer na esquina da escola". Se o leitor acredita que as coisas de fato acontecem desta maneira, nada contra. Não tenho qualquer argumento para afirmar que Deus não faça ou não possa atender orações desse tipo. Respeito seu ponto de vista, até porque não duvido que você tenha inúmeras histórias de orações cujas respostas de Deus o levam a acreditar que as coisas funcionam assim mesmo. Quando comecei a pensar nessas coisas, minha experiência de oração mudou muito, e para melhor. Tudo começou quando Jesus me ensinou a invocar a Deus usando a expressão Abba. Os historiadores, Joachim Jeremias por exemplo, afirmam que abba era a palavra do dialeto siroocidental aramaico que uma criança usava para se referir ao seu pai. O Talmud, comentário rabínico da Torah, diz que "quando uma criança saboreia o trigo, aprende a dizer abba e imma", querendo dizer que "papai" e "mamãe" são as primeiras palavras de um pequeno recém-desmamado que está aprendendo a falar. Na verdade, a melhor tradução para abba seria "papa" ou mesmo "pa", algo como o mero balbuciar, assim como para imma, seria "mama" ou simplesmente "ma". O fato é que abba era um termo infantil, anterior à construção conceitual, despido de significados culturais, ainda não elaborados na mente, mas perfeitamente compreensível ao coração. A criança que pronuncia abba ou imma não detém qualquer conceito de pai ou mãe, não sabe o significado de expressões como pessoa, identidade, individualidade. Ignora o que é família, casal, irmão, irmã – quanto mais conceitos abstratos como sociedade ou comunidade. Tudo quanto uma criança que pronuncia abba sabe é que existe apenas um a quem se refere assim. Diante de muitos braços estendidos em sua direção, a criança identifica quem são seu abba e sua imma. é como se, intuitivamente, pensasse assim: "Esse é meu abba, essa é minha imma; posso ir no seu colo ou lançar-me em seus braços. Ali estou suprida e segura". Joachim Jeremias relata que Jesus se dirigia a Deus "como uma criancinha
fala a seu pai, com mesma simplicidade íntima, o mesmo abandono confiante". Jeremias considerou este Abba "ipsissima vox de Jesus", isto é, maneira própria e original de falar do Filho de Deus. Os apóstolos assim compreenderam, e Paulo vai dizer mais tarde que o clamor Abba é ipsissima vox dos filhos de Deus, adotados na comunhão do Espírito Santo. Muito provavelmente, Abba é a palavra com que Jesus invoca Deus Pai quando do seu brado final e triunfante do alto da cruz: "Abba, nas tuas mãos entrego o meu espírito". Logo, a expressão da mais absoluta confiança está presente no momento da mais profunda solidão e senso de abandono e desamparo. Eis a fé, como disse Martin Buber, como "adesão a Deus". Não a uma imagem de Deus, um conceito, uma idéia do divino. Mas uma adesão a Deus, uma adesão que transcende imagens, conceitos, idéias e também sensações e percepções. A fé como adesão a Deus tal qual a adesão de uma criança desmamada no colo de sua mãe: além, ou aquém, da consciência racional, que decodifica e disseca o Senhor como um cadáver sobre a mesa da academia. Mas, ao mesmo tempo, trata-se de fé como adesão adulta, madura, capaz de transitar além, ou aquém, das sensações e percepções, ciente tão somente de que Deus está, Deus é, e que seus braços acolhem. A oração de uma palavra só, Abba, é pronunciada na mais tenra infância e na mais extrema maturidade. Entre os dois momentos da pronúncia do Abba está a prepotência de quem acredita compreender e manipular o Deus 'que habita em luz inacessível'. Diante do Abba, a oração deixa de ser um arrazoado inteligente, ou uma ladainha de murmurações e súplicas que serão depois catalogadas em colunas de "respondidas na data tal". Diante do Abba, a oração é mais parecida com um suspiro, um gemido profundo, ou uma efusão de lágrimas; também é semelhante a um salto de alegria incontida, um literal derramar do coração. O Abba é aquele que transcende nossos dogmas, nossos sentidos e nossas manipulações. Mas é aquele que compreende e acolhe o que não dizemos pela simples razão de não sabermos o que dizer, ou como dizer. é aquele que recebe o peso dos nossos corações simultaneamente depositados aos pés da cruz e entregues em suas amorosas mãos, devolvendo ao aflito "a paz que excede a todo o entendimento". Caso lhe seja possível compreender a oração com um estar diante daquele a respeito de quem pouco ou quase nada sabemos, exceto que é nosso Abba; se a oração é para você expressar diante dele o que lhe pesa no coração, através de gemidos profundos e um singelo balbuciar Abba, num salto de fé que transporta para além das sensações, percepções e conceitos; ou caso considere que um simples suspiro balbuciando Abba implica a mais profunda e legítima oração, então não apenas você vai orar mais, muito mais, como também – e principalmente – nunca mais será a mesma pessoa.
Fonte: www.cristianismohoje.com.br
As casas e as verdades Publicado em 28/05/08 às 13:16 Por: Ed René Kivitz Assim como uma casa se faz com tijolos, mas uma pilha de tijolos não é uma casa, também uma verdade cristã se faz com versículos – mas um amontoado de versículos não equivale necessariamente a uma verdade bíblica. Era uma manhã ensolarada e a caminhada já se estendia. A cidade estava logo ali. Antes da chegada, a fome. E depois da fome, uma figueira. Jesus se aproxima da planta esperando colher algum fruto. Mas encontrou apenas folhas. Não teve dó nem piedade – amaldiçoou a figueira, e deixou seus discípulos assombrados. Depois deu uma bronca em todo mundo e vaticinou: quem tiver fé, ainda que do tamanho de um grão de mostarda, vai mandar esse monte sair do lugar e ele vai obedecer. No meio dessa coisa toda, Jesus ainda encontra tempo para, literalmente, chutar o balde dos comerciantes do templo, que haviam transformado a casa do Pai em covil de ladrões. O que uma cidade, uma figueira, um monte, um templo e a fé estão fazendo juntos nesta cena? Aliás, observe. Caso não tenha percebido, eles estão juntos. Não são episódios estanques, separados: o da figueira, o do templo e o aforismo sobre a fé. São peças de um quebra-cabeças que, montadas, deixam claro como o sol do meio-dia o que Jesus estava querendo dizer. Já, já, a gente chega lá. Mas quero contar outra história. Certa ocasião, Cristo se deparou com um homem dominado por espíritos malignos. “Legião”, disseram, ao responder qual era seu nome. Diante do Filho do Deus Altíssimo, os demônios pediram que Jesus os deixasse entrar nos porcos, perto de dois mil. Jesus consentiu. Em seguida, os porcos se lançaram ao lago de Genezaré e se afogaram. O pessoal da região ficou louco da vida com Jesus e pediu que ele fosse embora daquele lugar. Não tenho dúvidas de que você já ouviu e leu centenas de meditações baseadas nestes dois episódios da caminhada de Jesus com seus discípulos. Provavelmente, alguém já disse que seus problemas são como aquele monte citado pelo Mestre, e que podem ser superados pela fé. Não importam quais sejam seus embaraços, seus problemas, suas angústias e as razões do seu sofrimento; basta ter fé. Afinal, a fé remove montanhas, isto é, com fé a gente vence qualquer dificuldade. Também deve ter ouvido a respeito da autoridade de Jesus sobre os espíritos malignos, o que é absolutamente verdadeiro. E não é pouca autoridade, não. O Senhor deu conta de expulsar dois mil demônios de um homem de uma vez só. Eles fizeram fila e saíram um de cada vez. Então, imagine o que Cristo não é capaz de fazer com um demoniozinho tupiniquim! Principalmente, no palco de uma igreja evangélica. Com base na história do gadareno e sob a intercessão das mãos estendidas dos fiéis, os pastores se enchem de coragem e repetem sua fórmula infalível: “Sai desse corpo que não te pertence”. Será que estes episódios se prestam apenas a ensinar a respeito do poder da fé para vencer dificuldades na vida e acerca da autoridade de Jesus sobre o diabo e seus asseclas? Ou haveria algo mais nas entrelinhas das narrativas? Fico com a segunda alternativa: os Evangelhos – decerto, a Bíblia toda –contêm linguagem cifrada, códigos
secretos que comunicam verdades profundas, perfeitamente percebidas pelos circunstantes, porém raramente alcançadas pelos leitores contemporâneos. Mas, e a figueira, a cidade, o templo? O que fazer com essas figuras? Vamos lá. Primeiro, o caso da figueira. Sabemos que essa árvore é um símbolo que identifica a nação de Israel. Assim também a cidade, o templo, e o monte. A cidade é Jerusalém, onde está o Templo de Salomão, no monte Sião. Jesus faz a limpa, cumprindo a profecia de Malaquias – “Logo virá ao seu templo o Senhor, a quem vós buscais” – e a de Zacarias: “E, naquele dia, não haverá mais mercadores na casa do Senhor dos exércitos”. Jesus deixa claro que Israel é uma figueira estéril, sem frutos, o que é demonstrado pela profanação do Templo e deturpação de sua religião. A nação é amaldiçoada; Sião deixará de ser o centro da revelação de Deus e Israel será preterida por um povo com quem Deus celebrará uma nova aliança – em Jesus, e não mais em Moisés: “É evidente que pela lei ninguém será justificado diante de Deus, porque o justo viverá da fé”. A fé que remove montanha não é a fé individual, aquela porção de fé de cada crente, mas coletiva, do povo da nova aliança: “Mas a Escritura encerrou tudo debaixo do pecado, para que a promessa pela fé em Jesus Cristo fosse dada aos crentes. Mas, antes que a fé viesse, estávamos guardados debaixo da lei, e encerrados para aquela fé que se havia de manifestar. De maneira que a lei nos serviu de aio, para nos conduzir a Cristo, para que pela fé fôssemos justificados. Mas, depois que veio a fé, já não estamos debaixo de aio. Porque todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus. Sabei, pois, que os que são da fé são filhos de Abraão”. O monte removido pela fé não é a dificuldade particular de cada crente, mas Sião, o monte santo, que não se abala – ou melhor, não se abalava, até que Israel rejeitou o Messias, que conforme a Escritura, veio para os seus, mas não foi recebido por eles. Em Cristo, a Igreja – o povo da fé – recebe todos os títulos que pertenciam a Israel: “Geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido”. A fé remove o Monte Sião. Portanto, da próxima vez que alguém lhe disser que a fé remove montanhas, diga que já removeu. Sião não é mais o que era. A figueira secou. E nasceu a Igreja, povo de Deus, povo da fé. A mesma coisa acontece com a história do endemoninhado gadareno. Os espíritos imundos chamam a si mesmos de Legião, numa clara e explícita referência ao poderio militar romano. Assim como os opressores egípcios se afogaram no Mar Vermelho, quando com mão forte Yahweh libertou Israel pelas mãos de Moisés, também os opressores romanos estavam se afogando no Mar da Galiléia, sob as ordens daquele que ousou pronunciar “ouvistes o que foi dito por Moisés; eu, o Messias, porém, vos digo”. Da próxima vez que alguém lhe disser que Jesus é maior que os demônios, concorde. Mas acrescente – ele é também maior que Moisés. E maior que o Egito, a Babilônia, a Pérsia. É também maior que Roma. Maior que os espíritos malignos que agem nas entranhas do mundo, que jaz no maligno. E, porque maior que tudo e todos, é Senhor e libertador, aqui e agora, ali e além; Rei de um reino que não terá fim. Assim como uma casa se faz com tijolos, mas uma pilha de tijolos não é uma casa, também uma verdade cristã se faz com versículos – mas um amontoado de versículos
não equivale necessariamente a uma verdade bíblica. Uma casa é resultado de um processo inteligente de ordenação harmoniosa de tijolos, todos agrupados conforme determinado projeto. Assim também, a verdade do Evangelho possui sua lógica. Fora dessa lógica intrínseca, versículos não passam de tijolos. Fonte: Revista Cristianismo Hoje
Governo evangélico, jamais! Publicado em 09/02/06 às 16:30
Por Ed René Kivitz* O ideal de um Estado teocrático é a pedra no sapato dos projetos políticos desenvolvidos ao longo da história cristã. Desde a conversão de Constantino e a conseqüente identificação do cristianismo como "religião oficial do Império", passando pela Genebra de Calvino e Farei, as relações entre fé cristã e projetos políticos visam, via de regra, submeter o Estado à Igreja, fazendo com que o poder civil público sirva como instrumento facilitador e garantidor da religião. A idéia subjacente nesta relação é que "Deus é o Senhor, a Igreja deseja adorá-lo, e o Estado obriga a fazê-lo", como interpretou o historiador Seeberg. Tais ideais estão na origem da Terra Brasilis: o primeiro ato cívico e governamental realizado em solo brasileiro foi uma missa, e as forças colonizadoras que atuaram no Brasil foram escandalosamente marcadas pela catequização. Esta matriz que se propaga desde o século 4 forneceu a base do catolicismo brasileiro praticado na intercessão entre Igreja Romana e poder público, onde os bispos católicos interferiram quase em caráter oficial nos rumos do país. Em resposta ao monopólio católico em relação aos fóruns governamentais e formação da cultura política brasileira, alimentados pelo sonho do Estado teocrático e deslumbrados com seu crescimento numérico — que resulta um significativo contingente eleitoral -, nós evangélicos colocamos as mangas de fora e começamos a acreditar que chegou a nossa vez: é hora, e já é tarde, de elegermos um presidente da República. Com significativas vitórias nas urnas nos pleitos eletivos de vereadores, deputados, senadores, prefeitos e governadores, e razoável visibilidade no cenário federal, com uma expressiva bancada (que já foi chamada de cambada), as lideranças eclesiásticas se articulam mais uma vez na pretensão de alçar um evangélico ao cargo máximo da nação. Ser evangélico; articular uma plataforma política alinhada com lideranças evangélicas; governar com os evangélicos; conduzir o Legislativo de acordo com os interesses das igrejas evangélicas; lotear o Executivo entre os evangélicos; manipular o Judiciário com a ética evangélica; definir políticas públicas visando ao favorecimento do avanço evangélico, e tantas outras justificativas em pauta, não qualificam qualquer candidatura à presidência da República. Na verdade, desqualificam. Quando Martin Luther King Jr. escreveu desde Birmingham afirmando que "a injustiça em algum lugar é uma ameaça à justiça em todos os lugares", estava fazendo eco às palavras de Abraham Lincoln ao Congresso Nacional Americano: "Ao darmos liberdade aos escravos, estamos garantindo a liberdade aos que são livres". Traduzindo e atualizando, podemos compreender que, ou o governo é para todos, por meio de todos, em benefício de todos, mediante a cooperação de todos, em todos os níveis, ou as bases do totalitarismo estão deflagradas ou mantidas.
Todo e qualquer discurso totalitário é execrável. Uma sociedade democrática deve se constituir e desenvolver através das tensões e cooperações de todos os seus segmentos representativos em termos de raças, credos, sexos e classes. Emilio Monti sustenta que não existe soberania se ela não é exercida pelo soberano, e não há dúvida que no Estado democrático o uso do termo soberano é sinônimo de povo. E o povo não tem cor, ou melhor, tem todas as cores. Nesse caso, devemos fazer coro com Paul Freston quando afirma que a tarefa do governo não é implementar a moralidade, mas sim a justiça. Podemos ir mais longe, afirmando que a tarefa do governo também não é impor uma religião. De minha parte, ficaria arrepiado se ouvisse um discurso político do tipo "espírita vota em espírita", "agora todo mundo tem que ser gay", "os umbandistas merecem isenção fiscal", ou "é proibido pregar o Evangelho na televisão". Devemos crer que os fóruns legislativos sejam compostos por blocos e representantes de vários e indistintos setores e segmentos da sociedade civil. É justo que todos os cidadãos se vejam defendidos nas instâncias normativas da convivência social. Mas é inadmissível que o Executivo e o Judiciário estejam comprometidos com quaisquer segmentos da sociedade. A democracia implica em a riqueza produzida ser justamente compartilhada, a teia cultural diversamente construída e evidenciada, a cadeia produtiva amplamente socializada. Quando empunhamos a bandeira da justiça social nos levantamos contra toda e qualquer forma de favoritismo nas relações entre os habitantes da polis. Defendemos a igualdade de direitos e sustentamos que as autoridades ordenadas por Deus devem agir como seus ministros para o benefício do cidadão, promovendo o bem e coibindo o mal. Não queremos um governo evangélico; queremos um governo justo. E, ao que tudo indica, justiça e ética evangélica se largaram as mãos em alguma esquina do passado. Evidentemente, numa sociedade cada vez mais distante dos ideais de justiça e ética propugnados pelo cristianismo, também queremos fazer ouvir a voz do Cristo, que andou por toda parte fazendo o bem. Mas não podemos cair na armadilha da possibilidade de sermos influência dentre as forças que constróem a polis, antes de sermos uma cidade edifícada sobre os montes. Enquanto as igrejas evangélicas não se estabelecerem como micro-sociedades alternativas, jamais poderão pretender apresentar-se como alternativas para a sociedade. Quero crer na possibilidade e viabilidade de um cristão evangélico na presidência da República. Presidente evangélico, quem sabe. Governo evangélico, jamais. Fonte: Revista Eclésia - Ano VI - Número 69 *Ed René Kivitz é teólogo, consultor, conferencista e escritor. É autor de vários livros, dentre eles "Quebrando paradigmas"; "Stress e espiritualidade integral" e "Vivendo com Propósitos". É pastor da Igreja Batista da Água Branca-SP, fundador e diretor presidente da Galilea Consultoria e Treinamento. Ed René será um dos preletores de plenárias do 33º Encontro Sepal para Pastores e Líderes. Para saber mais do Encontro Sepal clique Aqui
A cidade edificada sobre o monte Publicado em 10/01/06 às 16:16 Por Ed René Kivitz Este mundo vai de mal a pior, e aqueles que acreditam que o mundo vai melhorar precisam ler a Bíblia outra vez. Ou fazer teologia novamente. Quem acredita que "o dia de justiça, o dia de verdade, o dia em que haverá na terra paz, em que será vencida a morte pela vida, e a escravidão enfim acabará" refere-se às possibilidades de estruturação social está iludido. A teologia da missão integral da Igreja deu passos significativos para que o
assistencialismo evoluísse para a solidariedade emancipadora. Na verdade, a bandeira da responsabilidade social da Igreja levantada pelo movimento chamado evangelical foi além do velho paradigma "dar o peixe e ensinar a pescar" e profetizou a necessidade da transformação das estruturas sociais, isto é, lutar pela igualdade de condições entre os pescadores: instrução a respeito de pescaria, acesso aos apetrechos de pesca e às margens dos rios. A visão sistêmica que compreende a interação entre o indivíduo e a sociedade não dá margem para outra postura que não a implicação social da evangelização. Ponto para os herdeiros de Lausanne.* Os discursos a respeito da Igreja como agência de transformação histórica e os apelos para que as cidades sejam conquistadas para Cristo foram, entretanto, inseridos nas agendas dos políticos cristãos, distorcendo o próprio propósito do Senhor Jesus para sua Igreja e seu Reino. Boa parte da chamada Igreja Evangélica brasileira (cada dia gosto menos desta expressão) padece de um crasso erro hermenêutico, a saber, a transposição simples das promessas do Velho Testamento para o contexto social e histórico atual. Quero dizer que a promessa de Deus ao povo de Israel ("Se o meu povo que se chama pelo meu nome se humilhar, e orar, e buscar a minha face, e se converter dos seus maus caminhos, então eu ouvirei do céu e sararei a sua terra") jamais pode ser aplicada ao Brasil e significar que a terra a ser sarada é a nação brasileira. Deus tinha um povo, e o seu povo tinha uma terra, um projeto de Estado, uma ética social e uma agenda litúrgica em unidade coerente. Isto é, o povo de Israel, habitando na terra da promessa, organizado num Estado regido pela Lei divina em suas múltiplas dimensões e sujeito ao único e verdadeiro Deus, seria luz para todas as nações. Hoje, Deus ainda tem um povo: a Igreja (e se você ainda acredita que o povo de Deus é a nação de Israel, leia Gálatas novamente). Mas este povo, a Igreja, não tem uma terra delimitada como espaço geográfico, tipo território nacional. Mais do que isso, quando o povo de Deus fala em "organização social", não está falando de um estado de direito, uma ordem social temporal, mas sim do Reino eterno de Deus. E o Reino de Deus não é um reino a ser instaurado na história, mas sim sinalizado na história. A Igreja não vive sob a promessa de que a sociedade pode ser sarada. A Igreja vive sob o imperativo de oferecer-se ao mundo como humanidade e sociedade redimida, que se estrutura, de maneira alternativa, e através de suas relações internas anuncia profeticamente o Reino que virá. Como aprendi com os evangelicais, a Igreja é responsável por manifestar aqui e agora a maior densidade possível do Reino que será estabelecido ali e além. Mas esta manifestação histórica do Reino de Deus, entretanto, não se dá pela cristianização da sociedade ou, como pretendem alguns, pela tomada do poder temporal pela Igreja Evangélica.
A igreja, leia-se comunidade cristã local, é uma cidade edificada sobre o monte, uma luz na escuridão, que, inserida na sociedade corrompida e vivendo em meio a uma geração perversa, que se opõe a Deus e é inimiga da cruz, funciona como um sinal do Reino que virá. Não se iluda, esperando que o Brasil inteiro um dia fique iluminado. Ele, assim como todo o mundo, continuará em trevas. Mas em meio a estas trevas, viva em comunidade, uma comunidade que "vive o que prega para que possa pregar o que vive". Isso significa que os cristãos devem se recolher de sua inserção social? Eu não disse isso. Aliás, o Senhor Jesus disse que a luz acesa não pode ser colocada embaixo da cama. *Congresso Mundial de Evangelização, realizado na Suíça em 1974, cujas conclusões teológicas, publicadas no Brasil pela ABU Editora, sintetizam a teologia da missão integral, ou movimento evangelical. Fonte: Revista Eclésia - Ano V - Nº55