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Richard E. Palmer

HEDMENÊUTICA

O SABER DA FILOSOFIA

edições 70

Uma visão histórica, sintética e densa, do problema e da constituição da Hermenêutica e das implicações filosóficas fundamentais da interpretação. R. Palmer analisa e expõe com argúcia as linhas básicas do pensamento de alguns dos principais hermeneutas: Scheleierm acher, Dilthey, H eidegger e Gadamer.

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O SABF.R DA FILOSOFIA 1 — A E PISTE M O LO G IA G aston Bacheland ID E O L O G IA E R A C IO N A LID A D E NAS C IÊ N C IA S DA VIDA Georgcs Canguilhem 3 - A FILO SO FIA C R ÍT IC A DE KA NT Gillcs Deleuze 4 — 0 NO VO E S P ÍR IT O C IE N T ÍF IC O G aston Bachclard 5 — A FIL O S O FIA C H IN ESA Max Kaltenm ark 6 - A FIL O S O FIA DA M A TE M Á TIC A A m brosio G iacom o M anno 7 - PR O LEG Ó M EN O S A TO D A A M E T A FÍS IC A FU TUR A Im m anuel Kant 8 - RO USSEAU E M ARX Galvano Dclla Volpe 9 — BREVE H ISTÓ R IA DO A TEÍSM O O C ID E N T A L Jam es Throw er 10 — FIL O S O FIA DA FÍSIC A M ario Bunge II — A T R A D IÇ Ã O IN T EL EC TU A L DO O C ID EN TE J. Bronowski c Brucc Mazlish 12 - A LÓ G ICA CO M O C IÊ N C IA H IST Ó R IC A G alvano Dclla Volpe 13 — A H IST Ó R IA DA LÓ GICA — DE A R ISTÓ TE LES A B ERTRA N D RUSSEL R obert Blanché 14 — A RA ZÃO Gilles-G aston Granger 15 - H E R M E N Ê U T IC A Richard E. Palmcr 16 — A FIL O SO FIA A N TIG A Em anuele Severino 17 - A FILO SO FIA M OD ERN A Em anuele Severino 18 — A FILO SO FIA C O N TE M P O R Â N E A E m anuel Severino 19 — EX PO SIÇ Ã O E IN TE R PR E T A Ç Ã O DA FIL O SO FIA T E Ó R IC A DE KANT Felix G rayeff 20 - T E O R IA S DA LIN G U A G EM , T E O R IA S DA A P R EN D IZA G EM M assim o Piattelli-Palm arini (org.) 21 — A REV O L U Ç Ã O NA C IÊ N C IA 1500-1700 A . Rupert Hall 1— IN T R O D U Ç Ã O À FILO SO FIA DA H IST Ó R IA DE HEG EL Jean Hyppolite 23 — AS FIL O S O FIA S DA C IÊ N C IA Rom H arre 24 - G A LILEU E N E W T O N LIDO S P O R E IN ST EIN Françoise Balibar 25 — AS RA ZÕES DA C IÊ N C IA L udovico G ey m o n at/G iu lio Giorello 26 — A FILO SO FIA DE DESCA RTES Jo h n C ottingham 27 — IN TR O D U Ç Ã O A H E ID EG G ER G ianni Vattim o 2 -

HERMENÊUTICA

Título original: HERMENEUT1CS - INTERPRETATION THEORY in Schleiennacher, Dilthey, Heidegger and Gadamer © Northwestern University Press, 1969 Tradução de Maria Luísa Ribeiro Ferreira Capa de Edições 70 Todos os direitos reservados para língua portuguesa por Edições 70, Lda. Depósito legal n° 96840/96 ISBN: 972-44-0340-8 EDIÇÕES 70, LDA. Rua Luciano Cordeiro, 123 - 2.” Esq.° - 1069-157 LISBOA / Portugal Telefs: (01) 3158752 - 3158753 Fax: (01) 3158429 Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzida no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado, incluindo fotocópia e xerocópia, sem prévia autorização do Editor. Qualquer transgressão à lei dos Direitos do Autor será passível de procedimento judicial.

Richard E. Palmcr

HERMENÊUTICA 79491

edições 70 SISTEMA INTEGRADO DE BiBLIOTECAS Pe. Inocente Radrizzam Centro UnivtfcitíHlo '>•!" ( <■iwl<«

PREFÁCIO

Poderíamos ter chamado a este livro: «O que é a hermenêu­ tica?» ou «O significado da hermenêutica», pois ele é, entre outras coisas, um registo da busca feita pelo seu autor no que respeita à compreensão de um termo imediatamente desconhecido para a maior parte das pessoas cultas e ao mesmo tempo potencialmente significativo para uma série de disciplinas relacionadas com a inter­ pretação, especialmente com a interpretação de textos. Este estudo emergiu de um projecto mais específico, que dizia respeito ao significado que a teoria de Bultmann sobre a interpre­ tação bíblica teve para a teoria literária: durante este estudo tornou-se evidente a necessidade de uma clarificação fundamental do que fossem o desenvolvimento, significado e âmbito da própria hermenêutica. Uma clarificação desse tipo tornou-se de facto num pré-requisito para o projecto original. À medida que prosseguia nesse trabalho preliminar, as possibilidades ricamente sugestivas de uma hermenêutica geral e não teológica (que, de facto, constituem a base da teoria de Bultmann e da «nova hermenêutica») levaram-me a focar apenas uma forma pré-teológica de hermenêutica, enquanto diz respeito à teoria da interpretação literária. Porque as fontes primitivas neste campo relativamente des­ conhecido são essencialmente em alemão, vi-me obrigado a expô-las de um modo bastante extenso. E porque a própria definição do termo hermenêutica se tornou tema de uma acerba controvérsia, foi necessário abordar com certa profundidade o problema da defi­ nição, antes de discutir os quatro teóricos de maior nome neste campo. Por fim, reservou-se para um segundo volume o exame deta­ lhado das implicações da hermenêutica na teoria literária, facto que constituíra em primeiro lugar a justificação deste projecto, embora o primeiro e os dois últimos capítulos deste trabalho possam dar ao leitor interessado uma sugestão do que em seguida virá. 9

Talvez seja bom acrescentar uma nota técnica a explicar a minha escolha do termo hermeneutics (hermenêutica) (*). James M. Robinson em The New H ermeneutic sugeriu que. não há qual­ quer justificação filológica para colocarmos um s no fim da palavra; nem «aritmética» nem «retórica» requerem um 5 e ambas designam um campo geral. Mais ainda, «hermeneutics» é um feminino singular noutras línguas modernas — hermeneutik em alemão; herméneutique em francês — e vem do latim hermeneutica. Robinson aventou que a queda do s (no termo inglês) poderia também sugerir uma nova orientação na teoria hermenêutica, aquilo que veio a desig­ nar-se por a Nova Hermenêutica. Não ponho em causa a irrefutabilidade filológica do argumento defendido por este eminente teólogo americano. A minha utilização do s em «hermeneutics» também não deve ser encarada como uma rejeição da posição hermenêutica representada pela Nova H erm e­ nêutica. Pelo contrário, os contributos de Heidegger e de Gadamer para a hermenêutica (hermeneutics) constituem os fundamentos da Nova Hermenêutica e proponho afastar-me de uma abordagem hermenêutica estritamente filológica, realçando o carácter frutífero da perspectiva mais fenomenológica que estes autores defendem face ao problema hermenêutico. Contudo, por razões meramente práticas, decidi-me a deixar o term o hermeneutics no seu estado de pecado filológico: a palavra é já de si suficientemente estra­ nha e desconhecida, sendo desnecessário acrescentar-se-lhe mais esta dificuldade. Também ao reter o s há uma maior flexibilidade na utilização do termo. Podemos, por exemplo, referir genericamente o campo da hermenêutica (hermeneutics) e a teoria específica de Bultmann, designando-a como a hermenêutica de Bultmann (Bultm ann’s her­ meneutic). Para além disto, há o facto de a form a adjectiva poder ser «hermenêutica» («hermeneutic or hermeneutical») como na teoria hermenêutica ou na teologia hermenêutica. Porque «hermenêutica» tende a soar como um adjectivo, a menos que seja acompanhado do artigo «a» ou de qualquer outro modificador, e porque o s sugere «regras» e «teoria», continuei a utilização estandardizada. Agradeço ao American Council of Learned Societies a bolsa que me concedeu (Post — Doctoral Study Fellowship) e que me permitiu passar o ano de 1964-1965 no Institut für Hermeneutik, na Universidade de Zurique e na Universidade de Heidelberg. Os meus especiais agradecimentos vão para o Professor G erhard Ebeling,

(*) O autor utiliza o termo hermeneutics e não hermeneutic. A nota visa justificar esta distinção. Optámos em português pela designação genérica de hermenêutica. (N. da T.) 10

então director do Instituto, e para o seu assistente Fricdricli IIn te l, pelo facto de me terem permitido estudar e dactilografar o trubalho a qualquer hora, não falando já da sua constante ainabilidudc c assistência. Em Heidelberg, o Professor Gadamer permitiu amavel­ mente que eu assistisse ao seu «Hegelkreiss» e que apresentasse uma comunicação «Die Tragweite von Gadamers Wahrheit und Methude fü r die Literaturauslegung»; as críticas e reflexões pessoais feitas pelo Professor Gadam er nessa ocasião foram da maior utilidade. Também gostaria de lhe agradecer o facto de me ter apresentado a Heidegger e de agradecer ao Professor Heidegger a reacção favo­ rável que teve à minha ideia de utilizar a sua teoria da compreensão como a base de uma abordagem fenomenológica da interpretação literária. Os meus agradecimentos vão também para os administradores do Mac M urray College, pelo subsídio suplementar que me conce­ deram e que permitiu que a minha família se deslocasse comigo para a Europa. Também lhes agradeço a recente ajuda no que respeita às despesas de dactilografia do manuscrito final. Os colegas que se seguem tiveram a amabilidade de ler e cri­ ticar partes do manuscrito: Lewis S. Ford (Raymond College), Severyn Bruyn (Boston College), William E. Umbach e William W. Main (Universidade de Redlands), John F. Smolko (Catholic University of America), Gordon E. Michalson (School of Theology, Claremont), K arl Wright, J. Weldon Smith, Gisela Hess, Philip Decker e Ruth O. Rose (todos do Mac M urray College) e James M. Eddie (Northwestern University). Os meus especiais agradeci­ mentos vão para os colegas que leram integralmente o manuscrito em qualquer das suas fases de elaboração: Calvin Schrag (Univer­ sidade de Perdue), Theodore Kisiel (Canisius College), R uth Kovacs (Mac M urray College) e de um modo especial Roger Wells (jubilado de Bryan M awr e actualmente em Mac Murray), cujas suges­ tões editoriais muito apreciei. O autor deseja agradecer a Miss Victoria Hargrave e a Mrs. Glenna Kerstein, da biblioteca de Mac M urray, a sua assistência incansável. Também agradece aos seguin­ tes estudantes de Mac M urray College pelas sugestões prestadas e pelo trabalho de dactilografia: Jackie Menefee, Ann Baxter, Shamin Lalji, Sally Shaw, Peter Brown e R on Heiniger. Por fim, m inha m ulher e os meus filhos suportaram sem uma queixa todo o tempo que roubei à sua companhia. A minha mulher fez a revisão de provas de todo o manuscrito. Também estou grato a Edward Surovell, da Northwestern University Press, pela leitura criteriosa que fez do meu manuscrito. R. E. P. Mac M urray College Janeiro, 1968 11

PRIM EIRA PA RTE

SOBRE A DEFINIÇÃO, ÂMBITO E SIGNIFICADO DA HERMENÊUTICA

1

INTRODUÇÃO

Hermenêutica é uma palavra que cada vez mais se ouve nos círculos teológicos, filosóficos e mesmo literários. A Nova Herme­ nêutica emergiu como um movimento dominante na teologia protestante europeia, defendendo a hermenêutica como o ponto central dos actuais problemas teológicos f ) . Houve três conferências sobre hermenêutica de âmbito internacional, na Drew University O e é possível encontrar várias obras recentes em inglês sobre herme­ nêutica num contexto teológico (3). M artin Heidegger, num conjunto de ensaios recentemente publicados, discute o carácter persistente­ mente hermenêutico do seu próprio pensamento, no que respeita tanto ao primeiro como ao último Heidegger (*). A própria filo­ sofia, afirma Heidegger, c (ou devia ser) «hermenêutica». E, em 1967, o esplêndido isolamento da crítica literária americana no que respeita à hermenêutica foi destruído pela obra de E. D. Hirsch Validity in Interpretation. O tratado de Hirsch é um ensaio com­ pleto sobre hermenêutica, constituindo um desafio às ideias domi­ nantes da crítica actual. Segundo Hirsch, a hermenêutica pode e (') Ver a posição de Gcrhard Ebeling, que defende ser a hermenêutica o Brennenpunkt (ponto central) dos problemas teológicos de hoje. O Em 1962, 1964 e 1966. As comunicações da Conferência de 1962 foram publicadas em NH. Os encontros de 1966 foram publicados — «Inlerpretation: The Poetry of Meaning», ed. Stanley R. Hooper and David L. Millcr. A obra «The later Heidegger and Theology», ed. James M. Robinson e John B. Cobb, Jr. está intimamente relacionada com as conferências. (3) Acrescentando-se a NH, e mais recentemente a Robert W. Funk, nLanguage, Hermeneutic and Word of God», veja-se o «Journal of Theology» e as «Church series of books» editadas por Robert W. Funk e Gerhard Ebeling, especialmente «The Bultmann School of Biblical Interpretation: New Directions»? e «History and Hermeneutics». (') «Aus einem Gesprãch von der Sprache», US esp. 95-99, 120-32, 136, 150-55. 15

deve servir de disciplina fundamental, preliminar a toda a inter­ pretação literária. Com estas reivindicações contemporâneas da importância cen­ tral de hermenêutica em três disciplinas humanísticas — teologia, filosofia e interpretação literária — torna-se cada vez mais evidente a importância que este domínio assumirá nas fronteiras do pensa­ mento americano nos próximos anos. Mas o termo não é uma palavra usual quer na filosofia quer na crítica literária; e mesmo em teologia o seu uso aparece muitas vezes num sentido restrito que contrasta com um uso largamente feito na «nova hermenêu­ tica» teológica contemporânea. Daí o colocar-se frequentemente a questão: que é a hermenêutica? O Webster Thircl New Inter­ national Dictionary define-a como: o estudo dos princípios meto­ dológicos de interpretação e de explicação; hermenêutica específica: o estudo dos princípios gerais de interpretação bíblica. Uma defi­ nição deste tipo poderá satisfazer aqueles que apenas pretendam uma compreensão operatória da própria palavra; os que pretendam alcançar uma ideia do campo da hermenêutica exigirão muito mais. Infelizmente, não há por enquanto em inglês nenhum tratam ento completo de hermenêutica enquanto disciplina geral, não teológica. No entanto, há uma necessidade premente no sentido de uma abordagem introdutória à hermenêutica num contexto não teoló­ gico, orientado para a clarificação do sentido e do âmbito do termo. O presente trabalho pretende ir ao encontro desta necessidade. Dar-se-á ao leitor uma ideia da fluidez da hermenêutica e dos problemas complexos que se ligam à sua definição. Discutir-se-So os problemas básicos que preocuparam quatro dos maiores pensa­ dores sobre este tema. Também rerão dadas referências bibliográ­ ficas básicas para uma exploração ulterior. Contudo, para o seu autor, este livro situa-se no contexto de um outro projecto — o de se orientar numa abordagem mais ade­ quada da interpretação literária. Na teoria hermenêutica alemã, podemos encontrar as bases filosóficas para um conhecimento radi­ calmente mais amplo dos problemas da interpretação literária. Assim, o objectivo de explorar a hermenêutica subordina-se neste livro a uma outra finalidade: delinear a matriz das razões no âmbito das quais os teóricos literários americanos poderão significativa­ mente retom ar a questão da interpretação, num nível filosófico anterior a todas as considerações de aplicação a técnicas de análise literária. Pondo a questão de um modo programático, a finalidade deste livro é apelar para que a interpretação literária americana reexplore num contexto fenomenológico a pergunta: o que é inter­ pretação? Por fim, este estudo aponta uma orientação específica para o problema: a abordagem fenomenológica. Vê na herm enêu­ 16

tica fenomenológica, contra outras formas, o contexto mais ade­ quado para a questão ser explorada. Na perspectiva da finalidade programática deste estudo rela­ tivamente à interpretação literária, as duas secções que se seguem apresentam algumas observações preliminares sobre a situação da crítica literária americana e sobre a necessidade de uma reavaliaçflo filosófica do pensamento literário americano.

Algumas conseqüências do senso comum. A objectividade na critica literária americana Filosoficamente falando, a interpretação literária em Inglaterra e na América actua de um modo geral num contexto realista (*). Tende a pressupor, por exemplo, que a obra literária está simples­ mente «lá fora», no mundo, essencialmente independente daqueles que a captam. A percepção que cada um tem da obra é considerada separadamente da própria obra, e a interpretação literária tem como tarefa falar da «própria obra». De igual modo, as intenções do autor são consideradas enquanto rigidamente separadas da obra; a obra é em si mesma «um ser», um ser com os seus próprios poderes e a sua dinâmica. Um intérprete moderno típico defende geralmente a obra literária como «um ser autônomo» e vê a sua tarefa como a de alguém que penetra nesse ser autônomo por meio da análise textual. A separação preliminar de sujeito e objecto, tão axiomática no realismo, torna-se o fundamento filosófico e o con­ texto da interpretação literária. Os frutos extraordinários de um contexto deste gênero tornam-se patentes na arte altamente desenvolvida das recentes análises de texto. Esta arte não tem ponto de comparação na história da interpretação literária ocidental, no que respeita a poder técnico e a subtileza. Chegou, no entanto, a hora de pôr em causa o fun­ damento dos pressupostos sobre os quais assenta. E isto faz-se melhor, não do interior da própria perspectiva realista, mas saindo dela e inspeccionando-a. A fenomenologia é uma orientação do pensamento europeu que submeteu as concepções realistas da percepção e da interpretação a uma crítica radical. Ao fornecer a chave para uma reavaliação dos pressupostos sobre os quais se baseia a interpretação literária inglesa e americana, a fenomeno­ logia poderia fornecer o ímpeto para um próximo e decisivo avanço na teoria e na prática da interpretação americana. Um estudo da fenomenologia to m a especialmente visível a semelhança essencial entre o realismo e a perspectiva «científica» (s) Ver Neal Oxenhandler, «Ontological Criticism in America and France», HLR, LV (1960) 17-18. 17

mostrando até que ponto a interpretação literária caiu num modo científico de pensar: a sua objectividade operatória, a sua conceptuulização estática, a sua ausência de sentido histórico, o seu amor l>ela análise. Porque, com todas as suas pretensões humanísticas e a defesa inflamada que faz da poesia «numa era de tecnologia», a crítica moderna literária tornou-se cada vez mais tecnológica. Imitou-se cada vez mais a abordagem do cientista. O texto de uma obra literária (mau grado a sua «existência autônoma») tende a ser encarado como um objecto — um «objecto estético». O texto é analisado num a total separação relativamente a qualquer sujeito percepcionante, e a «análise» é considerada como sendo virtual­ mente sinônima de «interpretação». Mesmo a recente aproximação com a crítica social, numa espécie de formalismo iluminado, apenas alarga a definição do objecto, incluindo na análise o seu contexto social (*). A interpre­ tação literária de um modo geral é ainda essencialmente encarada como um exercício de «dissecação» conceptual (é uma imagem bio­ lógica) do objecto (ou «ser») literário. É claro que como este ser ou objecto «estético», pensamos que dissecá-lo é sempre muito mais «humanizante» do que dissecar um sapo num laboratório; no en­ tanto, a imagem do cientista, que isola um objecto para ver como ele é feito, tornou-se o modelo dominante na arte da interpretação. Nas aulas de literatura, diz-se mesmo aos estudantes que a expe­ riência pessoal que têm de um trabalho extraliterário é uma espécie de falácia irrelevante para q análise da obra Ç). Os professores, uni­ dos em convênio gigantesco, lamentam ritualmente o facto de os seus alunos acharem a literatura «irrelevante»; mas a concepção tecnológica que têm da interpretação, com a sua metafísica de um realismo envolvente, promove realmente a própria irrelevância que eles tão ineficazmente lamentam. «A ciência manipula as coisas e desiste de viver nelas», diz-nos o falecido fenomenologista francês Maurice Merleau-Ponty (!). Isto resume numa frase o que aconteceu à interpretação literária americana. Esquecemos que a obra literária não é um objecto manipulável, completamente à nossa disposição; é uma voz humana que vem do passado, uma voz à qual temos de certo modo que dar vida. O diálogo, e não a dissecação, abre o universo da obra literária. A objectividade desinteressada não é adequávcl à compreensão de uma obra literária. É claro que o crítico moderno defende a paixão — e mesmo a capitulação perante «a exis­ tência autônoma da obra» —, mas, não obstante, vai trabalhando a (*) í>, precioso o capítulo final da obra de Walter Sutton «Modem Am e­ rican Crillcism» (a crítica como um acto social). (’) listou a pensar na bem conhecida «falácia afectiva» como foi, por mrmplo, apresentada na obra de William K. Wimsatt Jr., «The Verbal Icon». (') «liyr and Mind», tradução Carleton Dallery, in Merleau-Ponty «The 1'rlriiin v nI 1‘trctption and other Essays», ed. James M. Edie, pág. 1S9. 18

obra, considerando-a como um objecto de análise. Contudo, iti obras literárias serão consideradas mais perfeitamente não enquanto objectos de análise mas como textos que falam, criados por seres humanos. H á que arriscar o nosso «mundo» pessoal se queremos penetrar no mundo vivo de um grande poema lírico, de um romance ou de uma obra. E para isso, não precisamos de qualquer método científico disfarçado, ou de qualquer «anatomia de uma crítica», com tipologias e classificações muito brilhantes e subtis f ) , mas sim de uma compreensão humanística daquilo que implica a interpre­ tação de uma obra.

Interpretação literária, hermenêutica e Interpretação de obras A tarefa da interpretação e o significado da compreensão são diferentes (uma mais indefinível, outra mais histórica) no que res­ peita a uma obra e no que respeita a um «objecto». Um «objecto» é sempre selado com um toque humano; a própria palavra o sugere, porque uma obra é sempre a obra de um homem ou de Deus. Por outro lado, um «objecto» pode ser uma obra ou pode ser um objecto natural. Usar o termo «objecto» relativamente a uma obra é tornar obscura uma distinção importante, pois temos necessidade de enca­ rar a obra não como objecto mas como obra. A crítica literária precisa de procurar um «método» ou «teoria» especificamente ade­ quados à decifração da marca hum ana num a obra, ao seu «signi­ ficado». Este processo de «decifração», esta «compreensão» do signi­ ficado de uma obra, é o ponto central da hermenêutica. A herme­ nêutica é o estudo da compreensão, é essencialmente a tarefa de compreender textos. As ciências da natureza têm métodos para compreender os objectos naturais; as «obras» precisam de uma her­ menêutica, de uma «ciência» da compreensão adequada a obras enquanto obras. É certo que os métodos de «análise científica» podem e devem ser aplicados às obras, mas ao proceder deste modo estamos a tratar as obras como objectos silenciosos e naturais. Na medida em que são objectos, são redutíveis a métodos científicos de interpretação; enquanto obras, apelam para modos de compreensão mais subtis e compreensíveis. O campo da hermenêutica nasceu como esforço para descrever estes últimos modos de compreensão, mais especificamente «históricos» e «humanísticos». Como veremos nos próximos capítulos, a hermenêutica chega à sua dimensão mais autêntica quando deixa de ser um conjunto de artifícios e de técnicas de explicação de texto e quando tenta ver o problema hermenêutico dentro do horizonte de uma avaliação (") Especialmente a obra de Northorp Frye «Anatomy of Criticism». 19

geral da própria interpretação. Deste modo, implica dois pólos de atenção, diferentes e interactuantes: 1) o facto de compreender um texto e 2) a questão mais englobante do que é compreender e interpretar. Um dos elementos essenciais para uma teoria hermenêutica ade­ quada e, consequentemente, para uma teoria adequada da interpre­ tação literária, é uma concepção da própria interpretação que seja suficientemente lata (” ). Consideremos por um momento a ubiquidade da interpretação e a generalidade da utilização da palavra: O cientista chama «interpretação» à análise que faz dos dados; o crítico literário chama interpretação à análise que faz de uma obra. Chamamos intérprete ao tradutor de uma língua estrangeira; um comentador de notícias «interpreta» as notícias. Interpreta­ mos — por vezes erradam ente — uma observação de um amigo, uma carta de familiares, ou um sinal da estrada. Na verdade, desde que acordamos de manhã, até que adormecemos, estamos a «interpre­ tar». Ao acordar, olhamos para o despertador e interpretamos o seu significado: lembramos em que dia estamos e ao compreender o significado desse dia estamo-nos já a lem brar do modo como nos situamos no mundo e dos planos de futuro que temos; levantamo-nos e temos que interpretar as palavras e os gestos das pessoas que con­ tactam os na nossa vida diária. A interpretação é, portanto, talvez o acto essencial do pensamento humano; na verdade, o próprio facto de existir pode ser considerado como um processo constante de interpretação. A interpretação ultrapassa o mundo lingüístico em que o homem vive, pois a própria existência dos animais depende dela. Estes sen­ tem o modo como se situam no mundo. Um pouco de comida em frente de um chimpanzé, de um cão ou de um gato será interpre­ tado pelo animal em termos das suas próprias necessidades e da sua própria experiência. Os pássaros conhecem os sinais que os levam a voar em direcção ao Sul. É claro que há uma interpretação constante a muitos níveis lin­ güísticos, tecidos pela convivência humana. Joachim Wach diz-nos que podemos conceber a existência hum ana sem linguagem, mas não a podemos conceber sem uma compreensão m útua de um homem para outro — ou seja, não a podemos conceber sem inter­ pretação. No entanto, a existência hum ana (“ ) tal como a conhe­ cemos implica sempre a linguagem e, assim, qualquer teoria sobre interpretação hum ana tem que lidar com o fenômeno da linguagem. E entre os mais variados meios simbólicos de expressão usados pelo homem, nenhum ultrapassa a linguagem quer na flexibilidade e (“ ) Ver o meu artigo «Toward a Broader Concepl of Interpretation» ISN (Novembro 1967), 3-14, e a minha resenha de VII in JAAR, XXXVI (Setembro 1968) 243-46. O1) V I, 1.

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poder comunicativos, quer na importância geral que desempenha (” ). A linguagem molda a visão do homem e o seu pensamento — simul­ taneam ente a concepção que ele tem de si mesmo c do seu mundo (não sendo estes dois aspectos tão separados como parecem). A própria visão que tem da realidade é moldada pela linguagem (1J). Muito mais do que pensa, o homem veicula através da linguagem as várias facetas da sua vida — aquilo que venera, aquilo que ama, os comportamentos sociais, o pensamento abstracto; mesmo a forma dos seus sentimentos é conforme com a linguagem. Se considerar­ mos este tema em profundidade, torna-se visível que a linguagem é o «medium» no qual vivemos, nos movemos e no qual temos o nosso ser (“ ). A interpretação é, portanto, um fenômeno complexo e universal. E no entanto até que ponto o crítico literário compreende este fenô­ meno de um modo complexo e profundo? Temos que nos interrogar se os críticos não tenderão a equacionar análise e interpretação. Temos que nos interrogar se acaso as asserções realisticamente meta­ físicas e as suposições que estão na base de quase todas as formas da crítica m oderna não apresentarão uma visão da interpretação, simplificada e mesmo distorcida. Uma obra literária não é um objecto que compreendemos através da conceptualização ou da aná­ lise; é um a voz que devemos ouvir, e «ouvindo-a» (mais do que vendo-a) comprendemo-la. Como sugeriremos nos capítulos seguin­ tes, a compreensão é simultaneamente um fenômeno epistemológico e ontológico. A compreensão literária tem que se enraizar em modos de compreensão mais latos e primordiais que têm a ver com o nosso próprio ser-no-mundo. Portanto, compreender uma obra literária não é uma espécie de conhecimento científico que foge da existência para um mundo de conceitos; é um encontro histórico que apela para a experiência pessoal de quem está no mundo. A hermenêutica é o estudo deste último tipo de conhecimento. Pretende juntar duas áreas da teoria da compreensão: o tema da­ quilo que está envolvido no facto de compreender um texto e o tema de o que é a própria compreensão, no seu sentido mais fundante e «existencial». Enquanto corrente de pensamento alemão, a hermenêutica acabou por ser profundamente influenciada pela fenomcnologia alemã e pela filosofia existencial. E é claro que- o signi­ ficado que tem para a interpretação literária americana é realçado pela aplicação desse pensamento aos problemas da interpretação dc textos. O esforço constante de lidar com o fenômeno da compreensão naquilo em que ele ultrapassa a m era interpretação textual, dá à (IJ) Ver Ernst Cassirer, «Philosophy of Symbolic Forms» e o capítulo sobre lliiKUUKcm na sua obra «Essay on Man*. (•*) Ver Benjamin Whorf, «Language, Thoughl and Reality». (“ ) Ver mais adiante os capítulos sobre Heidegger e sobre Gadamer. 21

hermenêutica um significado potencialmente lato no que se refere a todas as disciplinas habitualmente designadas por humanidades. A hermenêutica, enquanto se define como estudo da compreensão das obras humanas, transcende as formas lingüísticas de interpre­ tação. Os seus princípios aplicam-se não só a obras escritas, mas também a quaisquer obras de arte. Visto isto, a hermenêutica é fundam ental em todas as humanidades — em todas as disciplinas que se ocupam com a interpretação das obras do homem. É mais do que meramente interdisciplinar, porque os seus princípios in­ cluem um fundamento teórico para as humanidades (“ ); os seus princípios deviam colocar-se como um estudo essencial para todas as disciplinas humanísticas. O contraste acima feito entre uma compreensão científica e aquilo a que chamámos uma compreensão histórica ou hermenêu­ tica, torna mais claro o carácter distinto da tarefa interpretativa nas humanidades. E, por contraste, também clarifica o carácter de interpretação nas ciências. Através de um estudo da teoria herme­ nêutica, as humanidades alcançam uma medida mais cheia de autoconhecimento e uma melhor compreensão do carácter da sua tarefa. O presente estudo'tenta, no entanto, lançar os fundamentos filo­ sóficos para explorar o significado da hermenêutica na interpretação literária. Esses fundam entos deverão ser uma compreensão ade­ quada do que é a própria hermenêutica. Na busca dessa compreen­ são, este livro começa com as raízes grçgas da moderna palavra «hermenêutica», traçando depois o desenvolvimento de certas con­ cepções da teoria hermenêutica (tanto quanto se chamou a si pró­ pria hermenêutica) nos tempos modernos. Finalmente, explora com certo pormenor os problemas que inquietaram quatro dos principais pensadores dessa área. A busca não é de modo algum exaustiva, mas preliminar; não entra na utilização da hermenêutica na teo­ logia contemporânea O , nem tenta discutir o incremento deste tema que actualmente ocorre em França (17). Os capítulos finais dão realmente algumas indicações sobre o significado da hermenêutica fenomenológica no que respeita à interpretação literária, mas o pre­ sente estudo é encarado essencialmente como uma introdução filo­ sófica à hermenêutica, podendo servir simultaneamente de funda­ mento para um segundo volume que discuta a hermenêutica na sua relação com a teoria literária.

C“ ) Ver HAMG e AAMG. C*) A nota 3 acima mencionada faz uma listagem de referências nesse campo. (,T) Com uma pequena excepção que é a discussão no capitulo cinco de D. I. de Ricoeur; ver também a sua «Exislence et Hermeneutique» Dialogue, IV (1965-6) 1-25, e a sua obra «La Structure, Le Mot, VEvènement», M EW I, (1968), 10-30. 22

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H ERM EN EU EIN E HERM ENEIA: O SIGNIFICADO MODERNO DO SEU ANTIGO USO

As raízes da palavra hermenêutica residem no verbo grego hermeneuein, usualmente traduzido por «interpretar», e no substantivo liermeneia, «interpretação». Uma exploração da origem destas duas palavras e das três orientações significativas básicas que elas veiculavam no seu antigo uso esclarece consideravelmente a natureza da interpretação em teologia e em literatura e servirá no actual con­ texto de introdução válida para a compreensão da hermenêutica moderna. Hermeneuin e hermeneia, nas suas várias formas, aparecem inúmeras vezes em muitos dos textos que nos vieram da Antiguidade. Aristóteles no Organon considerou que o tema merecia um trata­ do importante, o famoso Peri hermeneias, «Da interpretação», (’). A palavra aparece na sua forma substantiva em «Édipo em Co­ lono», e muitas vezes em Platão. Encontram-se inúmeras forrnas do termo na maior parte dos escritores antigos mais conhecidos, como Xenofonte, Plutarco, Eurípedes, Epicuro, Lucrécio e Longino (J). Poder-se-ia consagrar um estudo frutífero ao contexto de cada ocor­ rência, para determ inar em cada caso os matizes de significado; neste capítulo, apenas notaremos a associação das palavras com o deus Hermes, apontaremos três vertentes essenciais do seu signifi­ cado e sugeriremos algo sobre o seu actual sentido, especialmente no que respeita à interpretação literária e bíblica.

(') Aristóteles. The Basic Works, págs. 40-61. Tem interesse uma tradução roccnte do tratado: Aristóteles, «Da interpretação», com comentário de S. Tomás do Aquino e de Caetano, tradução e introdução de Jean T. Oecterle. (a) Hermeneia e hermêneuein, G E L . Ver também Johannes Bhem, Ermrncuo, ermeneia in TDNT II, 661-66. 23

As origens e as três orientações significativas

de «hermeneuein» e «hermeneia» A palavra grega hermeios referia-se ao sacerdote do oráculo de Delfos. Esta palavra, o verbo hermeneuein e o substantivo her­ meneia, mais comuns, remetem paar o deus-mensageiro-alado Hermes, de cujo nome as palavras aparentemente derivaram (ou vice-versa?). E é significativo que Hermes se associe a uma fun­ ção de transm utação — transform ar tudo aquilo que ultrapassa a compreensão hum ana em algo que essa inteligência consiga compreender. As várias formas da palavra sugerem o processo de trazer uma situação ou uma coisa, da inteligibilidade à com­ preensão. Os Gregos atribuíam a Hermes a descoberta da linguagem e da escrita — as ferram entas que a compreensão humana utiliza para chegar ao significado das coisas e para o transm itir aos outros. M artin Heidegger, que vê a própria filosofia, enquanto «inter­ pretação», relaciona explicitamente a filosofia-como-hermenêutica com Hermes. Hermes «traz a mensagem do destino; hermeneuein é esse descobrir de qualquer coisa que traz uma mensagem, na medida em que o que se m ostra pode tornar-se mensagem. Uma tal descoberta torna-se num a explicação do que já fora dito pelos poetas, que são eles próprios, segundo Sócrates no diálogo platônico «Io n» (534 e) «mensageiros (Botschafter) dos deuses», hermenes eisin tòn tehon (J). Assim, levada até à sua raiz grega mais antiga, a ori­ gem das actuais palavras «hermenêutica» e «hermenêutico» sugere o processo de «tornar compreensível», especialmente enquanto tal pro­ cesso envolve a linguagem, visto ser a linguagem o meio por exce­ lência neste processo. Este processo de «tornar compreensível», associado a Hermes enquanto ele é mediador e portador de uma mensagem, está implí­ cito nas três vertentes básicas patentes no significado de herme­ neuein e hermeneia, no seu antigo uso. As três orientações, usando a form a verbal (hermêneuein) para fins exemplificativos, significam: 1) exprimir em voz alta, ou seja, «dizer»; 2) explicar, como quando se explica uma situação, e 3) traduzir, como na tradução de uma língua estrangeira C). Os três significados podem ser expressos pelo verbo português «interpretar», e no entanto cada um representa um sentido inde-

(») U S 121-122. (') Relativamente a estas três orientações significativas, ver o precioso artigo de Gerhard Ebeling «Hermeneutik» R G G III, 242. 24

pendente e relevante do termo interpretação. A interpretação ptule pois referir-se a três usos bastante diferentes: uma recitaçflo oral, uma explicação racional e uma tradução de outra língua quer para grego quer para português. Podemos, no entanto, notar que o «processo Hermes» originário, está em acção: nos três casos, há algo de diferente, de estranho e de separado no tempo, no espaço ou na experiência, que se torna familiar, presente e compreensível; há algo que requer representação, explicação ou tradução e que é, de certo modo, «tornado compreensível», «interpretado». Para começar, podemos notar que a interpretação literária en­ volve dois desses processos e muitas vezes um terceiro. A literatura apresenta algo que deve tornar-se compreendido. O term o do texto pode estar longe de nós no tempo, espaço, linguagem e pode haver outros obstáculos à sua compreensão. Isto também se aplica à compreensão de um texto bíblico. A tarefa da interpretação deverá ser tornar algo que é pouco familiar, distante e obscuro em algo real, próximo e inteligível. Os diferentes aspectos deste processo interpretativo são vitais e essenciais quer para a literatura quer para a teologia. Examinemos, pois, cada um deles no que respeita ao seu significado na interpretação literária e teológica. (É interes­ sante notar como a maior parte dos críticos literários ignoram as abordagens interpretativas existentes na teologia cristã contem­ porânea.)

Hermeneuein como «dizer» A primeira orientação fundam ental do sentido de hermeneuein é «exprimir», «afirmar» ou «dizer». Isto relaciona-se com a função anunciadora de Hermes. Do ponto de vista da teologia, tem signi­ ficado uma polêmica etimológica que nota estar a forma inicial herme próxima do latim sermo, «dizer», e do latim verbum, pala­ vra (’)• Isto sugere que o sacerdote ao apresentar a Palavra está a «anunciar» e a «afirmar» algo; a sua função não é meramente explicar, mas sim proclamar. O sacerdote, tal como Hermes, e tal como o sacerdote de Delfos, traz notícias fiéis da divindade. Naquilo que diz ou proclama, ele é, tal como Hermes, um- men­ sageiro de Deus para com o homem. Mesmo o simples dizer, afirmar ou proclamar é um acto importante de interpretação. Ainda dentro desta primeira orientação significativa, há um matiz vagamente diferente, sugerido pela frase «expressar», que ainda mantém um sentido de «dizer», mas que é um dizer que é (’) Ibidem. James M. Robinson nota, N H 2-3, que hermêneia era tam­ bém usado antigamente para designar um trabalho de formulação lógica ou de elocução artística, aquilo a que hoje se chama «interpretação oral». 25

cm si próprio interpretação. Por esta razão, somos orientados pelo modo como uma coisa se exprime — o «estilo» de uma «perfor­ mance». Usamos este cambiante da palavra «interpretação» quando nos referimos à interpretação que um artista faz de uma canção ou que um maestro faz de uma sinfonia. Neste sentido, a interpre­ tação é uma forma de dizer. De igual modo, a dicção oral ou o canto são interpretações. No tempo dos gregos, hermeneia podia referir-se por exemplo a uma recitação oral de Homero. No Ion de Platão, o jovem intérprete recita Homero e através das suas entoações «interpreta-o», exprimindo-o e mesmo explicando-o subtilmente, transm itindo mais do que ele próprio cons­ tata ou compreende. Assim, torna-se tal como Hermes, num veículo da mensagem homérica. É certo que Homero era ele próprio um intermediário entre os deuses e o homem, um «intérprete» que nas palavras de Milton, «justificava os caminhos de Deus para o homem». Assim, Homero era um intérprete, no sentido mais primitivo da palavra, pelo facto de que antes dele as palavras não tinham ainda sido ditas. (É óbvio que as lendas já existiam; daí poder-se dizer que ele apenas «inter­ pretava» e enunciava as lendas.) Dizia-se que o próprio Homero fora inspirado pelos deuses; no seu «dizer», era um intérprete deles. O dizer e a recitação oral enquanto «interpretação» recordam aos literatos um nível que muitos deles tendem a desprezar ou mesmo a esquecer. E, no entanto, a literatura faz derivar muito do seu dinamismo, do poder da palavra falada. Desde tempos imemo­ riais que as grandes obras da linguagem são feitas para serem ditas em voz alta e para serem ouvidas. Os poderes da linguagem falada deveriam recordar-nos um importante fenômeno: a fraqueza da linguagem escrita. A linguagem escrita não tem a «expressividade» primordial da palavra falada. Todos sabemos que a passagem de uma língua a escrito a vai fixar e conservar, dando-lhe estabilidade, constituindo as bases da história (e da literatura), mas ao mesmo tempo sabemos que a enfraquece. N a sua Carta Sétima e também no Fédro, Platão enfatiza a fraqueza e inutilidade da linguagem escrita. Toda a linguagem escrita apela para uma reconversão na sua form a falada; apela para um poder perdido. Escrever uma língua é «uma alienação da língua» relativamente à sua vivacidade — é uma Selbstentfremdung der Sprache (*), um autodistanciamento da fala. (A palavra alemã para língua, Sprache, é sugestiva dessa forma primordial da linguagem que é a de ser falada.) As palavras orais parecem ter um poder quase mágico, mas ao tornarem-se imagens visuais perdem muito desse poder. A literatura usa palavras de modo a tirar o máximo partido da sua «eficácia», mas, no entanto, muito do seu poder se esgota quando a audição (•) Ver W M 370-71. 26

se converte num processo visual de leitura. Naturalmente que não podemos hoje recuar para uma transmissão oral da literatura (e há vantagens numa transmissão escrita), mas não deveríamos esquecer que a linguagem na sua forma originária é mais ouvida do que vista e de que há boas razões que fazem com que a linguagem oral seja mais facilmente «compreendida» do que a linguagem escrita. Consideremos o facto da leitura em voz alta. A interpretação oral não é um a resposta passiva aos signos no papel, à maneira de um fonógrafo que toca um disco; é um tema criativo, 6 uma «per­ formance», semelhante à de um pianista que interpreta uma peça musical. Qualquer pianista poderá dizer-nos que uma partilura musical é como uma casca. Para interpretar a música é preciso chegar ao «sentido» das frases. O mesmo se passa com a leitura da linguagem escrita. Um intérprete oral tem apenas um envólucro do original — «contornos» de sons sem indicação do tom, ênfase ou atitude, e no entanto tem que reproduzir sons vivos. Mais uma vez, aquele que reproduz tem que chegar ao sentido das palavras, de modo a exprimir, mesmo que seja uma só frase. Mas como se passa esta misteriosa apreensão de sentido? O processo é um para­ doxo confuso: para lermos algo torna-se necessário compreender previamente o que vai ser dito e, porém, esta compreensão deverá vir da leitura. O que aqui começa a emergir é um complexo processo dialéctico implicado em toda a compreensão, na medida em que torna uma frase significativa e, de certo modo, numa orien­ tação oposta, lhe fornece o alvo e o relevo. Só estes conseguirão tornar significativa a palavra escrita. Assim, a interpretação oral tem duas vertentes: é necessário compreender algo para o podermos exprimir e, no entanto, a própria compreensão vem a partir de uma leitura-expressão interpretativa. Para quem profissionalmente esteja ligado à «interpretação lite­ rária», particularmente para os professores de literatura, que sen­ tido terá o facto da linguagem falada ser considerada em si mesma como um fenômeno interpretativo? Fundamentalmente torna-se ne­ cessário reexaminar o papel da interpretação oral em todo o ensino da literatura. Pois não será a leitura de produções literárias (pelo estudante) uma «performance» análoga à interpretação musical? Precisamos de nos interrogar sobre quantas produções literárias foram escritas directamente para serem lidas em silêncio. Os roman­ ces foram-no nitidamente e alguns poemas recentes assentam oca­ sionalmente sobre efeitos visuais; no entanto, mesmo nestes casos, não é verdade que muitas vezes (e com toda a justiça) imaginamos os sons à medida que os lemos? Por exemplo, ao ler um romance de Dostoiévsky, não é que ou­ vimos o diálogo por meio de uma «audição interna?» Não será pois o sentido inseparável das entoações auditivas fornecidas de acordo com «o círculo do sentido contextual» que se construiu no processo 27

de leitura da obra? (Isto, como veremos, é na realidade o «círculo hermenêutico».) Aqui está novamente a vertente oposta da dialéctica: o leitor fornece a «expressão» de acordo com a sua com­ preensão do texto. A tarefa da interpretação oral não é de modo algum uma mera técnica que exprima um sentido totalmente co­ piado; é uma tarefa filosófica e analítica e nunca pode divorciar-se do problema da própria compreensão. Mais especificamente, «o problema da compreensão», especialmente o da compreensão da linguagem, é intrínseco a toda a «interpretação literária». É este problema que constitui o tema da hermenêutica. Tomemos isto como princípio: Toda a leitura silenciosa de um texto literário é uma form a disfarçada de interpretação oral. E os princípios de compreensão que se aplicam numa boa interpretação oral também se aplicam à interpretação literária como um todo. Uma crítica literária que aspira a ser um «Enabling Act» (*), colo­ ca-se em parte como um esforço para compensar a fraqueza e a total debilidade da palavra escrita; tenta devolver à obra as dimen­ sões do discurso oral. Consideremos a segunda questão: Não é ver­ dade que um crítico literário avaliará diferentemente uma versão oral de um soneto e um a versão escrita do mesmo? No caso da interpretação oral, não estará ele na verdade a oferecer uma inter­ pretação rival, uma comparação imaginária com a sua própria inter­ pretação? No caso de ser escrita, não estará à procura de outras palavras escritas (e por conseguinte igualmente castrantes, retendo o seu conteúdo básico conceptual, visual e não auditivo) para subs­ tituir o que se perdeu com o som das palavras? Não estará ele num certo sentido a fornecer aquilo que uma boa interpretação oral fornece por meio da pura sonoridade? Especialmente na «nova crítica», é habitual imaginar que o texto fala por si, sem a ajuda de dados biográficos, históricos ou psico­ lógicos. O próprio texto tem o seu «ser» nas palavras, no seu arranjo, nas suas intenções, e nas intenções da obra enquanto ser de uma determinada espécie. Se assim é, não será que o crí­ tico — que idealmente não domina mas que antes se rende ao ser da obra (e é assim que deverá ser) — ajuda a restaurar a perda implícita nas palavras escritas? Quando o crítico tom a patentes os elementos conceptuais (as suas ferramentas) não estará a construir um contexto significativo (um «círculo hermenêutico») a partir do qual sairá uma «performance» oral mais apropriada, mesmo que disfarçada de leitura silenciosa mais profundamente interpretativa? Isto ainda cumpre a intenção da Nova Crítica que é preservar a integridade da existência da própria obra, da «heresia da paráfrase», pois ela trabalha para que o texto fale por si mesmo. A esta luz, a (*) Decreto que conferiu à Igreja Estabelecida (Established Church) uma certa autonomia. (N. da T.) 28

Nova Crítica sem dúvida que concordaria que uma crítica verda­ deira, «autônoma», é a que se orienta para uma leitura oral mais adequada do próprio texto, de modo a que o texto possa existir outra vez como um acontecimento significativo no tempo, um ser que irradie pela sua verdadeira natureza e integridade. A interpretação oral ajuda a crítica literária a lembrar-se da sua intenção secreta, quando considera (de um modo mais cons­ ciente) a definição da «existência» de uma obra, não como uma coisa estática e conceptual, não como uma «essência» atemporal que se coisificou enquanto conceito expresso por palavras, mas antes como um a existência que realiza o seu poder de existir en­ quanto acontecimento oral no tempo. A palavra tem que deixar de ser palavra (i. e. visual e conceptual) e tornar-se «evento»; a existência de uma obra literária é uma «palavra evento» que acon­ tece enquanto «performance» oral O - Uma crítica literária ade­ quada orienta-se para a interpretação oral da obra na qual se concentra. Nada há na «autonomia existencial» da obra literária que contradiga este princípio; pelo contrário, a autonomia da exis­ tência está de acordo com ele ('). O poder da palavra oral é também significativo nessa religião centrada no texto que é o Cristianismo. Tanto São Paulo como Lutero são famosos por dizerem que a salvação vem pelos ouvidos. As epístolas de São Paulo foram compostas para serem lidas em voz alta e não silenciosamente. Lembremo-nos que a leitura rápida e silen­ ciosa é um fenômeno moderno trazido pela Imprensa. A nossa era de velocidade fez da «leitura rápida» uma virtude; é-nos extrem a­ mente custoso imprimir a semivocalização das palavras numa criança que aprende a ler. E, no entanto, isto era perfeitamente normal em épocas passadas. Santo Agostinho afirma que era assim que lia. A teologia cristã tem que se lembrar de que a «teologia da Palavra» não é uma teologia da palavra escrita mas sim da palavra falada, a Palavra que nos confronta na «linguagem evento» das palavras faladas. As Escrituras (especialmente na teologia de Bult­ mann) são Kerygma, uma mensagem que deve ser proclamada. É certo que a tarefa da teologia é explicar a palavra na língua e no contexto de cada época, mas deverá também exprimir e proclamar a Palavra no vocabulário da época. O esforço de propagação da Bíblia impressa, auto-anular-se-á se a Bíblia for vista basicamente como um contrato, como um documento legal ou como uma expli­ cação conceptual do mundo. A linguagem bíblica actua de um modo totalmente diferente de um manual de construção ou de uma O Usei aqui intencionalmente o vocábulo familiar de teologia do «evento discursivo» (speech-event theology); ver W F 295 n.° 313, 31 8 - 9 e passim. (*) Algumas teorias modernas da interpretação oral orientam-se para a centração numa palavra evento. Ver Don Geiger, «The Sound, Sense and Per­ formance of Literature». 29

folha informativa; «Informação» é uma palavra significativa aponta para uma utilização da linguagem diferente da que se encontra na Bíblia. Apela para a faculdade racional e não para a personalidade no seu todo; para compreendermos uma informação não temos que recorrer à nossa experiência pessoal nem que tomar qualquer risco — e a informação não é muito afectada por uma leitura silen­ ciosa. Mas a Bíblia não é informação; é uma mensagem, uma «pro­ clamação», e é suposto lê-la em voz alta e ouvi-la. Não é um conjunto de princípios científicos; é uma realidade de uma ordem diferente da verdade científica. É uma realidade que deve ser com­ preendida como um relato histórico, é um acontecimento para ser ouvido.' Um princípio é científico; um acontecimento é histórico. A racionalidade de um princípio não é a de um evento. Neste sen­ tido mais profundo da palavra «histórico», a literatura e a teologia são, enquanto disciplinas, mais estritamente «históricas» do que «científica» (9). Os processos interpretativos adequados à ciência, são diferentes dos processos interpretativos adequados aos aconte­ cimentos históricos, ou dos acontecimentos que a teologia e a literatura pretendem compreender. A presente abordagem da primeira orientação significativa do antigo uso de hermeneuein — interpretação como dizer e como ex­ primir — levou à afirmação de alguns princípios fundamentais de interpretação, quer em literatura quer em teologia. Levou-nos à form a e função primordiais da linguagem como som vivo, detentor do poder de uma fala significativa. A linguagem, enquanto emerge de um não ser, não é signo mas som. Perde algum do seu poder expressivo (e por conseguinte do seu significado) quando se reduz a imagens visuais — o mundo silencioso do espaço. Por conseguinte, a teologia e a interpretação literária devem reconverter a escrita em discurso. Os princípios de compreensão que permitem esta con­ versão constituem uma preocupação dominante da moderna teoria hermenêutica.

Hermeneuein como «explicar» A segunda orientação significativa de hermeneuein é «explicar». A interpretação como explicação dá ênfase ao aspecto discursivo da compreensão; aponta para a dimensão explicativa da interpre­ tação, mais do que para a sua dimensão expressiva. No final de contas, as palavras não se limitam a dizer algo (embora também o façam e isso seja um movimento fundam ental da interpretação); elas explicam, racionalizam e clarificam algo. Podemos exprimir

(s) Ver Car! Michalson «The Rationality of Failh». 30

uma situação sem a explicar; exprimi-la é interprctá-la, mas cxpli cá-la é também uma forma de «interpretação». Consideremos hIku mas das dimensões desta segunda e mais óbvia forma de interpre tação e o seu significado actual. As mensagens crípticas do oráculo de Delfos não interpretavam um texto preexistente; eram «interpretações» de uma situação. (As próprias mensagens precisavam de ser interpretadas.) Levavam algo a exprimir-se (o que é a primeira e primordial orientação significa­ tiva) mas o que levavam a exprimir-se era ao mesmo tempo a explicação de algo — algo previamente inexplicado. Levavam o «sig­ nificado» de uma situação à sua formulação verbal; explicavam-no, por vezes, por meio de palavras que escondiam tante quanto revela­ vam. Diziam em palavras, algo sobre uma situação, sobre a realidade. O significado não estava escondido no estilo ou na maneira de dizer; não era isso que constituía a sua preocupação dominante. Tratava-se antes de uma explicação, no sentido de dizer algo sobre qualquer outra coisa. Asskn, enquanto que num sentido os oráculos apenas diziam ou enunciavam, enquanto explicação orientavam-se para um segundo momento interpretativo — explicar ou dar conta de algo. O tratado de Aristóteles «Peri hermeneias» define a interpretação como «enunciação». Uma definição deste tipo sugere a primeira orientação significativa, «dizer» ou «anunciar». No entanto, se o texto for aprofundado, como actualm ente o podem fazer aqueles que lêem inglês, devido a um a recente tradução com um extenso comentário de S. Tomás (’°), a segunda orientação também se pode aplicar. Aristóteles define hermeneia referindo-se à operação da mente que formula juízos que têm a ver com a verdade ou falsidade das coisas. Neste sentido, a «interpretação» é a operação fundamental do intelecto quando formula um juízo verdadeiro sobre uma coisa. Um pedido, uma ordem, uma pergunta ou uma imprecação não são juízos, segundo Aristóteles, mas derivam de juízos. Constituem for­ mas secundárias de frases que se aplicam a situações que o intelecto originalmente percebeu sob a forma de juízo. (É típico em Aristó­ teles o facto do intelecto se aperceber do significado sob a forma de juízo.) O juízo originário «a árvore é castanha» precede qualquer juízo que exprima um desejo ou uma utilização da mesma. Por conseguinte, as «interpretações» não são juízos que tendam para uma utilização — como é um pedido ou uma ordem — mas antes juízos sobre algo que é verdadeiro ou falso. Aristóteles define-os como «um discurso onde há verdade ou falsidade» (17 a 2). Uma conseqüência desta definição de interpretação é que tanto a retó­

(” ) Ver a nota (I). 31

rica como a poética estão fora do âmbito do tratado de interpre­ tação, visto que tendem a comover o ouvinte (17 a 5). A enunciação (interpretação) não pode, segundo Aristóteles con­ fundir-se com a lógica, porque a lógica provém da comparação de juízos formulados. A enunciação é a formulação dos próprios juízos, não é um processo de raciocínio que parte do conhecido para o desconhecido. De um modo geral, Aristóteles divide as operações básicas da mente em 1) compreensão simples dos objectos 2) ope­ rações de composição e de divisão, 3) operações de raciocínio partindo do conhecido para o desconhecido. A enunciação, tal como é discutida na obra Da interpretação é apenas lida com o segundo sentido: a operação construtiva e divisiva de formular juí­ zos susceptíveis de verdade ou falsidade. A enunciação não é por­ tanto lógica, retórica ou poética, mas mais fundamental; é a enunciação da verdade (ou falsidade) de uma coisa enquanto juízo. O que fazer com esta definição específica de interpretação, restrita mas contudo frutífera? Em primeiro lugar, é significativo o facto de a enunciação não ser «a compreensão simples dos objectos» mas de lidar com os processos implicados na construção de um juízo verdadeiro. Actua ao nível da linguagem mas ainda não é lógica; a enunciação alcança a verdade de uma coisa e incorpora-a como juízo. O telos do processo não é agir sobre as emoções (a poética) ou provocar uma actuação política (retórica) mas sim tornar com­ preensível o juízo. A enunciação, ao procurar exprimir a verdade de algo tal como um juízo proposicional, inclui-se nas operações da mente mais altas e puras, na teoria mais do que na prática; preocupa-se mais com a verdade e falsidade do que com a utilidade. Não se tratará então da primeira orientação significativa e não da segunda? Ou seja, mais do que exprimir ou dizer, não se tratará antes de explicar? Talvez assim seja; mas temos que ver que a expressão diz respeito ao estilo, temos que notar que dizer era quase como que uma operação divina: anunciava o divino mais do que enunciava o racional. A enunciação para Aristóteles, não é uma mensagem da divindade mas uma operação do intelecto racional. E como tal, começa imperceptivelmente a transformar-se em explicação. Come­ çamos já a compor e a dividir para encontrar a verdade de um juízo; porque o dizer é pensado como juízo, começa já a afirmar-se o elemento racional, a verdade torna-se estática e informativa, é um juízo sobre uma coisa que corresponde à sua essência. Já a verdade é «correspondência» e o dizer é «juízo»; imperceptivelmente, a ver­ dade do «acontecer» transforma-se na verdade estática de princípios e de juízos. E, no entanto, Aristóteles teve razão ao situar o momento da interpretação mais cedo do que os processos de análise' lógica. Isto chama a atenção para um erro do pensamento moderno, que tende 32

demasiado depressa a fixar automaticamenle a interpretação no momento da anáüse lógica. Os processos lógicos são também inter­ pretação, mas a «interpretação» prioritária e fundante tem que ser lembrada. Por exemplo, um cientista chamará interpretação às análises de dados que faz; também seria correcto cham ar inter­ pretação à sua visão dos dados. Mesmo no momento cm que os dados se tornaram juízos, ocorreu interpretação. Do mesmo modo um crítico literário chamará interpretação à análise que faz de uma obra; seria igualmente correcto chamar interpretação ao modo como ele vê a obra. Todavia, a «compreensão» que serve de base à interpretação já molda e condiciona a interpretação — é uma interpretação preli­ minar, mas uma interpretação que provocará toda a diferença (mudança) porque coloca o palco para uma interpretação subse­ quente. Mesmo quando um intérprete literário se volta para um poema e diz: «Isto é um poema, vou compreendê-lo fazendo isto ou aquilo», ele iá interpretou a sua tarefa e consequentemente já moldou a sua visão do poema ("). E com o seu método, já moldou 0 significado do objecto. Na verdade, método e objecto não podem separar-se: o método já delimitou o que veremos. Já nos disse o que o objecto é enquanto objecto. Por este facto, todo o método é já interpretação; é, no entanto, apenas uma interpretação e o objecto, visto com um método diferente, será um objecto diferente. Portanto, a explicação tem que ser vista no contexto de uma explicação ou interpretação mais funda, a interpretação que já ocorre no modo como nos voltamos para o objecto. A explicação apoiar-sc-á certamente nas ferram entas da análise objectiva, mas a selecção das ferram entas relevantes é já uma interpretação da tarefa compreensiva. A análise é interpretação; sentir a necessidade de análise é também uma interpretação. Assim, a análise não é realmente uma interpretação básica mas sim uma forma derivada; montou primeiro o palco com uma interpretação essencial e pri­ mária, antes mesmo de começar a trabalhar com os dados. E isto infelizmente é tão verdade no que respeita à «análise noticiosa» que interpreta os acontecimentos do dia, como para a análise cien­ tífica de laboratório ou para a análise literária feita na sala de aula. O carácter derivado da lógica, enquanto dependente de propo­ sições, é suficientemente claro; o carácter caracteristicamente deri­ vado da explicação ou análise não é tão óbvio, mas não é menos real. Um uso interessante da palavra hermenêutica aparece no Novo 1cstamento, em Lucas 24, 25-27. Jesus ressuscitado aparece: (“ ) Isto é uma fraqueza inerente ao gênero crítica, por exemplo à trab^iIIh. Hü observações brilhantes sobre este tipo de crítica, aplicadas a Ésquilo, nrn H. D. F. Kitto, «Form and Meaning in Drama» e mais recentemente na mm « Poitsis».

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E disse-lhes: «Ó homens loucos, lentos em acreditar no que os profetas disseram! Então não era necessário que Cristo sofresse tudo isto antes de ser glorificado?» E começando pelos livros de Moisés e por todos os profetas interpretou-lhes (diermeneusen) tudo o que acerca dele se dizia nas Escrituras. Repare-se que Cristo apelou para as faculdades dos discípulos: «Então não era necessário?» Depois desvendou o significado dos textos colocando-os no contexto do seu sofrimento redentor e colo­ cando esse sofrimento no contexto das profecias do Antigo Testa­ mento. Embora a utilização que o Novo Testamento faz do Antigo Testamento tenha interesse em si mesma, deixemos de parte o problema teológico e interroguemo-nos sobre o que o exemplo sugere sobre a interpretação enquanto explicação. A citação é nitidamente um exempio de explicação, porque Jesus estava a fazer algo mais do que repetir ou reafirm ar os textos antigos; explicou-os e explicou-se a si mesmo em função deles. Aqui a interpretação envolve a busca de um factor externo, Cristo, para designar o «sentido» dos textos antigos. Só na presença deste factor é que os textos se tor­ nam significativos. Por outro lado, Cristo é também visado para m ostrar que só à luz dos textos o seu sacrifício se torna significa­ tivo enquanto cum primento histórico do profetizado Messias. O que é que isto sugere do ponto de vista hermenêutico? Sugere que o significado tem a ver com o contexto; o processo explicativo fornece o palco da compreensão. Um acontecimento só se torna significativo dentro de um contexto específico. Mais ainda: Cristo ao relacionar a sua m orte com a esperança num Messias, relaciona este acontecimento histórico com as esperanças pessoais e intenções dos seus ouvintes. O seu significado torna-se o de um Redentor pessoal e histórico. O significado está numa relação com os pró­ prios projectos e intenções dos ouvintes; não é algo que Jesus pos­ sua em si próprio, fora da história e fora da relação que tem com os ouvintes. Podemos dizer que um objecto não tem sentido fora de uma relação com alguém e que a relação determina o signifi­ cado. F alar de um objecto independentemente de um sujeito que o perceba é um erro conceptual causado por um conceito realisticamente inadequado, quer da percepção quer do mundo; mas mesmo aceitando esse conceito, será pertinente falar de sentido e de signifado fora de sujeitos que percepcionem? Os teólogos gostam de realçar o aspecto pro nobis (para nós) de Cristo, mas podemos afirm ar que em princípio todas as expli­ cações são «para nós», toda a interpretação explicativa assume inten­ ções naqueles a quem a explicação se dirige. Outro modo de dizer isto é afirmar: a interpretação explicativa torna-nos conscientes de que a explicação é contextual, é «horizon­ tal», (horizonal). Deve processar-se dentro de um horizonte de sig­ 34

nificados e intenções já aceites. Em hermenêutica, esta área de uma compreensão pressuposta, é designada por pré-comprccnsão. Pode­ mos frutiferam ente perguntar que pré-compreensão é necessária para podermos conhecer o texto (dado). Jesus forneceu aos seus ouvintes os elementos necessários para compreenderem os textos proféticos; isso fazia parte da explicação necessária. Mesmo assim, tinha que assumir uma pré-compreensão do que era a profecia e daquilo que ela poderia significar para eles antes de poder explicar-se perante os seus ouvintes. Poderíamos perguntar qual o horizonte interpretativo que um grande texto literário habita e, depois, como é que o horizonte do próprio mundo de intenções, esperanças e pré-interpretações de um indivíduo se relaciona com ele. Esta fusão de dois horizontes deve ser consi­ derada um elemento básico de toda a interpretação explicativa. Uma forma de interpretação literária que, como foi sugerido, tem como meta uma interpretação oral mais completa, não des­ prezará as dimensões explicativas da interpretação. Longe disso, o enquadram ento do horizonte no qual se coloca a compreensão é o fundamento de uma interpretação oral verdadeiramente comu­ nicativa. (Lembremos que interpretação oral é o que todos fazemos quando ao ler um texto procuramos fornecer todas as nuances do seu significado; pode não ser em público ou mesmo em voz alta.) Para que o intérprete faça uma «performance» do texto tem que o compreender; tem que previamente compreender o assunto e a situação antes de entrar no horizonte do seu significado. Só quando consegue meter-se no círculo mágico do seu horizonte é que o intérprete consegue compreender o seu significado. Esse é o tal misterioso «círculo hermenêutico» sem o qual o sentido do texto não pode emergir. Mas há aí um a contradição. Como pode um texto ser compreendido, quando a condição para a sua compreensão é já ter percebido de que é que o texto fala? A resposta é que, de certo modo, por um processo dialéctico, há uma compreensão parcial que é usada para compreendermos cada vez mais, tal como ao m anusear as peças de um «puzzle» adivinhamos o que dele falta. Uma obra literária fornece um contexto para a sua própria compreensão; um problema fundamental em hermenêutica é expli­ car como é que um horizonte individual se pode acomodar ao hori­ zonte da obra. É necessário um certo conhecimento prévio, sem o qual não haverá qualquer comunicação. No entanto, esse conhe­ cimento tem que ser alterado no acto de compreensão. A função de uma interpretação explicativa na interpretação literária pode ser vista neste contexto, como um esforço para colocar os fundamentos numa pré-compreensão que permita compreender o texto. À medida que consideramos estas duas orientações da interpre­ tação (dizer e explicar), a complexidade do processo interpretativo e o modo como ele se baseia na compreensão começam a aparecer. 35

A interpretação como «dizer», relembra a natureza da leitura como «performance»; contudo, mesmo na «performance» que é ler um texto literário, o actor tem que o «compreender». Isto implica expli­ cação; mas aqui, mais uma vez a explicação se fundamenta numa pré-compreensão, de modo a que anteriorm ente a qualquer expli­ cação significativa ele tem que entrar no horizonte do tema e da situação. Ele tem que, na própria compreensão do texto, agarrar esse texto e ser agarrado por ele. A sua posição neste encontro, a pré-compreensão do material e da situação a que tem que chegar, num a palavra, todo o problema da fusão do seu horizonte com­ preensivo com o horizonte compreensivo que vem ao encontro dele no texto, nisto consiste a complexa dinâmica da interpretação. É o «problema hermenêutico». Considerar os elementos acima indicados do problema interpretativo, não é, como alguns poderiam pensar, cair no «psicologismo». Porque a perspectiva em que a acusação de «psicologismo» e a atitude de antipsicologismo (pressuposta na acusação) ganham algum sentido, pressupõe de base uma separação e um isolamento do objecto e depois considera depreciativamente a reacção «subjectiva» como se ela estivesse no campo intangível dos «sentimentos». No entanto, a discussão aqui apresentada não lidou com sentimentos mas com a estrutura e a dinâmica da compreensão, com as condi­ ções em que o significado pode surgir na interacção do leitor com o texto, com o modo como qualquer análise pressupõe já uma definição formada da situação. Dentro do enquadramento destas considerações, vemos como é verdadeira a observação de Georges Gurvitch — que objecto e método nunca podem separar-se (“ ). É claro que isto é uma verdade estranha ao modo realista de ver.

Hermeneuein como «traduzir» As implicações da terceira orientação do significado de herme­ neuein são quase tão sugestivas para a hermenêutica e para a teoria da interpretação literária como as outras duas. Nesta orientação, «interpretar» significa «traduzir». Quando um texto é na própria língua de um autor, o choque entre o mundo do texto e o do seu autor pode passar despercebido. Quando o texto é numa língua estrangeira, o contraste de perspectivas e horizontes não pode ser ignorado. No entanto, como veremos, os problemas daquele que interpreta línguas não são estruturalm ente diferentes dos do crítico literário que trabalha com a sua própria língua. Permitem-nos ver mais claramente a situação presente em qualquer interpretação de texto. (1J) Georges Gurvitch, «Diatectique el Sociologie». 36

A tradução é uma forma especial do processo básico intcrpre tativo de tornar compreensível. Neste caso, tornamos compreensível o que é estrangeiro, estranho ou ininteligível, utilizando como medium a nossa própria língua. Tal como o deus Hermes, o tradutor é um mediador entre um mundo e outro. O acto de traduzir não é uma simples questão mecânica de encontrar sinônimos. Os resul­ tados ridículos das máquinas tradutoras tornaram isso por de mais evidente. O tradutor é um mediador entre dois mundos diferentes. A tradução torna-nos conscientes do facto de que a própria língua contém uma interpretação. A tradução torna-nos conscientes de que a própria língua contém uma visão englobante do mundo, à qual o tradutor tem que ser sensível, mesmo quando traduz expres­ sões individuais. A tradução apenas nos (orna mais totalmente conscientes do modo como as palavras na realidade moldam a nossa visão do mundo, mesmo as nossas percepções. Não há dúvida de que a língua é um repositório de uma experiência cultural; existi­ mos nesse medium e através dele; vemos através dos seus olhos. A tradução da Bíblia pode servir de ilustração aos problemas da tradução em geral ("). A Bíblia chega-nos de um mundo distante no tempo, espaço e língua, um mundo estranho que temos que interrogar (e que nos interroga). De certo modo, o horizonte do nosso universo compreensivo deve encontrar-se e fundir-se com o horizonte compreensivo do texto. Mediado não só pela língua mas também pela história (um espaço de tempo de dois mil anos), o Novo Testamento deve falar com palavras que sejam do nosso mundo, que constituam o nosso medium para ver o que existe. Como podemos esperar compreender acontecimentos que se passa­ ram num contexto totalm ente diferente da moderna cidade secular de comunicação de massas, de conflitos mundiais, gás, napalm, armas atômicas e guerra bacteriológica? Devemos manter a acção literal do Novo Testamento ou apresentar o que seria o seu equi­ valente nos tempos modernos? Eugene Nida, por exemplo, no seu livro sobre ciência da tradução, cita o exemplo da frase caracte­ rística de S. Paulo: «Cumprimentai-vos uns aos outros com um santo beijo.» O beijo era o cumprimento habitual nos termos do Novo Testamento mas não o é nos dias de hoje. Uma versão do século XX deverá dizer: «Cumprimentai-vos uns aos outros com um "caloroso aperto de mão?» Este exemplo é um problema menor, comparado com as ques­ tões mais fundas do choque entre toda a visão do mundo do Novo Testamento e a visão do mundo moderno, científica e pós-deística. É exactamente este o problema que o teólogo alemão Rudolf Bult­ mann tentou encarar com o seu projecto controverso de desmito(ls) Eugene A. Nida, «Toward a Science oi Translating: with special reference to Principies and Procedures Involved in Bible Translating». 37

logização. Bultmann nota que a mensagem bíblica se coloca no contexto de uma concepção cosmológica em que os céus são colo­ cados em cima, a terra no meio e o mundo subterrâneo em baixo — é um universo de três níveis. A resposta a tal situação é afirm ar que a mensagem do Novo Testamento não está dependente da sua cosmologia. Esta é apenas o contexto de uma mensagem sobre a obediência pessoal e a transformação num «homem novo». A desmitologização é uma tentativa de separar a mensagem essencial da «mitologia» cosmológica na qual nenhum homem moderno pode acreditar. Sejam quais forem os méritos teológicos da desmitologização enquanto solução para este dilema interpretativo, o próprio projecto aponta para um problema profundo: Como devemos «compreender» o Novo Testamento? O que é que estamos a tentar compreender? Até onde temos que penetrar no mundo histórico do pensamento e da experiência próprios do Novo Testamento antes de o podermos interpretar? Será de algum modo possível encontrar equivalentes para a «compreensão» do Novo Testamento? Será que o nosso mundo mudará tanto num século que o Novo Testamento se tor­ nará ininteligível? Já hoje é mais difícil para os jovens dos centros urbanos compreender Homero, devido aos componentes da vida homérica — barcos, cavalos, charruas, lanças, machados, odres de vinho — serem artigos que eles apenas conhecem de livros ou de museus. Isto não é sugerir que Homero esteja fora de moda mas sim que o esforço para o compreendermos se torna cada vez mais difícil à medida que mecanizamos o nosso modo de vida. Desmitologizar não é um problema meramente teológico; ocorre com menos mas ainda significativa premência quando tentamos perceber qualquer obra antiga. A actual teologia da «morte de Deus» é uma outra form a de desmitologizar, mas clarifica um pouco mais o problema da compreensão moderna da antiga tragédia grega: Como é que por exemplo podemos considerar significativa uma peça de Sófocles, se o antigo Deus da metafísica morreu e se o Deus vivo das relações entre os homens ainda não nasceu? Será essa peça de teatro um monumento a um Deus morto ou a um conjunto de deuses mortos? Será, tal como disse o crítico Raleigh acerca do Paraíso Perdido, um «monumento a ideias mortas»? Como é que uma peça grega deverá ser traduzida para uma língua moderna? Ou como é que devem ser compreendidos os antigos termos? Como devemos evitar que as obras antigas se assemelhem a meras comédias? O que muitos professores de clássicas têm feito, é verdadeiramente desmitologizar quando defendem a relevância de um trabalho na base do seu perene significado humano. Mesmo assim, este «significado humano» tem que ser interpre­ tado em termos de auditores modernos (a fase explicativa de inter­ pretação), e para proceder deste modo temos que ser mais precisos 38

na determinação de como é que uma coisa é significativa. Uma abordagem da interpretação literária que se concentre na enume­ ração de imagens de um ou de outro tipo, ou que se focalize na forma de uma obra. ou que faça uma análise temática de uma obra ou de várias, deixa passar de facto o problema da «signifi­ cação». Uma abordagem literária que encare a obra como um objecto afastado dos sujeitos que a percepcionam, automaticamente foge ao problema daquilo que na verdade constitui o significado humano de um a obra. No entanto, é possível que a crítica literária americana acorde uma manhã, descobrindo que, ao pôr de lado a questão de tornar hum anam ente relevante uma grande obra atra­ vés da interpretação da mesma, os exercícios complicados que faz no domínio da imagem, da forma e da análise temática, acabaram por se transform ar num passatempo insípido para professores de inglês. As suas dissecações perderam interesse; tal como Deus, a «literatura morreu»; m orreu porque os seus intérpretes estão mais interessados em conhecer a sua estrutura e a sua função autônoma do que em mantê-la viva e humanamente significativa. A literatura (ambém pode m orrer, m orrer de fome pela ausência de uma rela­ ção com o leitor. As interpretações teológica e literária terão que ser hum anam ente significativas para os dias de hoje, caso contrário perderão todo o valor. Os professores de literatura têm que se tornar peritos em «tra­ dução», mais do que em «análise»; a sua tarefa é transform ar o que é estranho, pouco comum e obscuro, em algo que tenha signi­ ficado, que «fale a nossa língua». Isto não significa pressionar os clássicos e apresentar Chaucer num inglês do século XX: significa reconhecer o problema da existência de um conflito entre hori­ zontes, significa prepararmo-nos para lidar com ele, mais do que varrê-lo para debaixo do tapete, concentrando-nos em jogos analí­ ticos. A visão do mundo implícita num poema ou pressuposta por ele e portanto essencial para a sua compreensão, não devia ser tratada como uma espécie de falácia de uma crítica histórica ultra­ passada. Por exemplo, um pré-requisito essencial para compreender a Odisséia é o reconhecimento básico de que as coisas naturais são dotadas de vida e de intenções, de que o universo é uma questão de terra e de água até onde o podemos enxergar, de que cada processo natural é o resultado da vontade de um ser sobrenatural, c de que os deuses são chefes sobre-humanos com todas as fra­ quezas dos seres humanos, sendo, no entanto, seres que actuam mima versão mais elevada do código do herói grego, centrado na honra. Só quando avançamos neste mundo que já não é o nosso mundo real, é que nos centramos no homem dos estratagemas ili­ mitados, esse herói que se aventura arrojadam ente nas garras da morte, esse inventor de contos que conseguia contar uma história 39

de modo a (quase) enganar a sua protectora Atena, esse pesquisador insaciável de conhecimentos perigosos, Odysseus. O génio das aná­ lises textuais de Erich Auerbach (lidando por exemplo com a cica­ triz de Odysseus) não reside apenas na sua lealdade e capacidade de resposta ao modo como a história é contada, mas também no seu reconhecimento de que o sentido de realidade subjacente é uma chave para a compreensão (“ ). Assim, o sentido de realidade e o modo de estar no mundo patente na obra devem ser um ponto central para uma interpretação literária «capaz», a base para uma leitura da obra que pode «agarrar-nos» (e «ser agarrada») pela sig­ nificação hum ana da sua acção. A metafísica (definição da reali­ dade) 'e a ontologia (característica de estar no mundo) de uma obra são fundantes para uma interpretação que torna possível uma compreensão significativa. A tradução consciencializa-nos, pois, do choque entre o nosso universo de compreensão e aquele em que a obra actua. Enquanto que a barreira da língua torna mais visíveis estes dois universos compreensivos, eles estão presentes em qualquer interpretação de uma obra escrita na nossa própria língua, e em qualquer diálogo autêntico, especialmente entre interlocutores separados por dife­ renças geográficas. Na literatura inglesa, mesmo um espaço de cem anos produz algumas transformações na língua, de modo que os problemas de interpretar Wordsworth, Pope, Milton, Shakespeare ou Chaucer implica o encontro de dois mundos contrastantes, no plano histórico e no plano lingüístico, e para americanos que nunca visitaram Inglaterra a separação é ainda maior. É-nos necessário um esforço de imaginação histórica e de «tra­ dução» só para considerarmos o mundo da Inglaterra de Words­ worth, na orla da industrialização mas ainda essencialmente rural. Ver a Itália de Dante e mudar-nos para esse mundo ao compreen­ dermos a Divina Comédia não é só uma questão de mera tradução lingüística (embora a tradução nos diga muito); é uma questão de tradução histórica. Mesmo com a melhor tradução inglesa, o pro­ blema da compreensão implicado no encontro com um horizonte distinto da compreensão da existência hum ana está sempre presente. A desmitologização é um reconhecimento deste problema em ter­ mos de interpretação bíblica; mas em princípio, como se observou, a desmitologização deve ocorrer com qualquer leitura de documentos históricos ou textos literários, mesmo que a desmitologização não tente roubar a originalidade da sua imediatez dramática. Resu­ mindo, uma explicação da visão do mundo implícita na própria linguagem, c depois na utilização da linguagem numa obra literária, é um desafio fundamental para a interpretação literária.

(H) «Odysseus Scar», Mimcsis, págs. 1-20. 40

A hermenêutica moderna encontra na tradução c na teoria da tradução um reservatório imenso para explorar o «problema hermenêutico». N a verdade, a hermenêutica no seu estádio histó­ rico primitivo sempre implicou a tradução lingüística, quer como hermenêutica filológica clássica quer como hermenêutica bíblica. O fenômeno da tradução é o próprio cerne da hermenêutica: nele se confronta a situação básica da hermenêutica, de ter que compor o sentido de um texto, trabalhando com instrumentos gramaticais, históricos e outros para decifrar um texto antigo. E, no entanto, tal como dissemos, esses instrumentos apenas são formalizações explícitas de factores implicados em qualquer confrontação com um texto lingüístico, mesmo na nossa própria língua. Há sempre dois mundos, o mundo do texto e o mundo do leitor, e por conse­ qüência há sempre a necessidade de que Hermes «traduza» de um para o outro. Esta discussão sobre a origem de hermeneuein e hermeneia e as três orientações significativas do seu antigo uso ocorreu no contexto do problema hermenêutico em geral. Assim serve de introdução a alguns dos problemas essenciais e alguns dos conceitos de hermenêutica que aparecerão nos capítulos seguintes. As defi­ nições modernas de hermenêutica darão ênfase quer a uma quer a outra orientação do rico manancial de significado existente nas raízes gregas das quais derivou o termo «hermenêutica». É bom que o campo da hermenêutica volte constantemente ao significado das três orientações significativas da interpretação como dizer, como explicar e como traduzir.

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SEIS DEFINIÇÕES MODERNAS DE HERM ENÊUTICA

Porque evoluiu nos tempos modernos, o campo da hermenêutica tem sido definido pelo menos de seis maneiras diferentes. Desde ó começo que a palavra significou ciência da interpretação, referindo-se especialmente aos princípios de uma exegese de texto adequada. Mas o campo da hermenêutica tem sido interpretado (numa ordem cronológica pouco rigorosa) como: 1) uma teoria da exegese bíblica; 2) uma metodologia filológica geral; 3) uma ciência de toda a compreensão lingüística; 4) uma base metodo­ lógica dos Geisteswissenschaften; 5) uma fenomenologia da exis­ tência e da compreensão existencial; 6) sistemas de interpretação, simultaneamente recolectivos e inconoclásticos, utilizados pelo homem para alcançar o significado subjacente aos mitos e símbolos. Cada uma destas definições é mais do que um estádio histórico; cada uma delas indica um «momento» importante ou uma abor­ dagem ao problema da interpretação. Podiam ser chamadas de ênfase bíblico, filológico, científico, geisteswissenchaftliche, exis­ tencial e cultural (*). Cada uma representa essencialmente um ponto de vista a partir do qual a hermenêutica é encarada; cada uma (') Todos estes adjectivos classificativos são de certo modo inadequados e não satisfatórios; uso-os de um modo experimental e provisório para indicar a alteridade entre as seis diferentes abordagens. A hermenêutica bíblica tem muitas orientações diferentes; só no século dezoito incluía a gramática, a his­ tória, o pietismo e outras escolas, e continuou a ser maximizada até aos dias de hoje. A hermenêutica «Filológica» também gozou de um desenvolvimento complexo no século dezoito. A «científica» é de certo modo ilusória no que se refere a Schleiermacher pretendendo apenas sugerir a tentativa feita por este autor de dar à hermenêutica uma base universal e sistemática. A geisteswissenschaflliche refere-se ao projecto de Dilthey A «existencial» cobre as concepções hermenêuticas de Heidegger e de Gadamer. Por último a «cultural» sugere imperfeitamente a riqueza das aplicações que Ricoeur faz da hermenêutica na sua procura de uma filosofia mais adequada, centrada na interpretação dos símbolos. A hermenêutica jurídica é, de um modo geral, omitida. 43

esclarece aspectos diferentes mas igualmente legítimos do acto da interpretação, especialmente da interpretação de textos. O próprio conteúdo da hermenêutica tende a ser remodelado com estas m udan­ ças de perspectiva. Um esboço destes seis momentos ilustrará este tema e servirá de breve introdução histórica à definição da herme­ nêutica.

Hermenêutica como teoria da exegese bíblica O significado mais antigo e talvez ainda o mais difundido da palavra' «hermenêutica» refere-se aos princípios da interpretação bíblica. H á uma justificação histórica para esta definição, visto que a palavra encontrou o seu uso actual precisamente quando surgiu a necessidade de regras para uma exegese adequada das Escrituras. Provavelmente, o primeiro registo da palavra enquanto título de um livro foi a obra de J. C. D anhauer, Hermeneutica sacre sive rnethodus exponendarum sacrarum litterarum, publicada em 1654 f). Mesmo só pelo título do livro, percebemos que a hermenêutica se diferencia da exegese enquanto metodologia da interpretação. A distinção entre o com entário real (exegese) e as regras, métodos ou teoria que o orientam (hermenêutica) data desta utilização pri­ mitiva e permanece fundamental para uma distinção da herme­ nêutica, quer na teologia quer, quando a definição foi ulteriormente alargada, relativamente à literatura não bíblica. Depois do aparecimento da obra de Danhauer, o termo parece ter surgido cada vez mais frequentemente, especialmente na Ale­ manha. Aí, houve círculos protestantes que sentiram vivamente a necessidade de manuais de interpretação que ajudassem os sacer­ dotes na exegese das Escrituras, dado que os sacerdotes estavam desligados de qualquer recurso à autoridade da Igreja para decidirem sobre questões de interpretação. Assim houve um ímpeto forte no desenvolvimento de padrões viáveis e independentes para interpretar a Bíblia; entre 1720 e 1820, não passava um ano que não aparecesse algum novo manual para ajudar os pastores protestantes (’)• Na Inglaterra e mais tarde na América, a utilização da palavra «hermenêutica» seguiu a tendência geral de referência a uma exegcsc especificamente bíblica. O primeiro uso registado no Oxford Enulish Dictionary rem onta a 1737: «Tomar tais liberdades com as Sagradas Escrituras, que não são de modo algum permitidas por

(”) F.bcling, «Hermeneutik», R G G III, 243. (J) Ver Ibid., 242; Heinrici, «Hermemeutik», R P T K VII, 719; e E. I lolwrhül/., «Interprctation», ERE VII, 390-95. 44

quaisquer regras de uma hermenêutica sóbria e justa.» (*) Um século mais tarde, Longfellow, no Hyperion, põe o Irmão BcrnunU) a falar sobre «os meus papéis e a minha grande obra dc ílcrm c nêutica Bíblica» (5). Quando a utilização da palavra se alargou para se referir a tex tos não bíblicos, repare-se que os textos são obscuros, como se pre­ cisassem de métodos especiais para deles extrair um significado oculto. Por exemplo, a referência a uma «aprendizagem da musa hermenêutica» num caso (W. Taylor, 1807) (6), sugere uma inter­ venção deste gênero, tal como «o método hermenêutico de um significado profundo e oculto» (D. H unter, traduzindo a obra dc Reuss, Historical Canon, 1884) (7). De igual modo, a firmação dc Edward Burnett Tylor em Primi:ivc Culture (1871): «Nenhuma lenda, nenhuma alegoria ou rima infantil está a salvo da herme­ nêutica de um teórico radical da mitologia» (*). Portanto, no seu uso em inglês, a palavra pode referir-se a uma interpretação não bíblica, mas nesses casos, o texto é de um modo geral obscuro ou simbólico, requerendo um tipo especial de interpretação para que se alcance o seu significado escondido. A definição mais geral de hermenêutica manteve-se como sendo a de uma teoria da exegese das escrituras. Enquanto que o próprio termo «hermenêutica» apenas data do século XVI], as operações de exegese textual e as teorias da interpretação— religiosa, literária, legal — remontam à antiguidade. Assim, uma vez aceite a palavra como designando uma teoria da exegese, o campo que cobre estende-se geralmente (poderíamos dizer que retroactivamente) na exegese bíblica, aos tempos do Antigo Testamento, quando havia regras para se interpretar adequadamente a Torah (9). Existe uma relação hermenêutica importante entre o Novo e o Antigo Testamento pois Jesus explica-se a si próprio aos Judeus, em termos de profecia bíblica. Os estudiosos do Novo Testamento detectam nos Evangelhos (especialmente no Evange­ lho de S. João) (10) e nas epístolas de S. Paulo, operações para

(*) V, 243. (’) Henry Wadsworth Longfellow, «Prose Works», II, 309. «Hyperion» é um romance em prosa, uma das duas únicas obras de ficção em prosa que Longfellow pretendia conservar. (•) O E D V, 243. C) Ibid. (*) «Primitive Culture», I, 319. (“) O artigo final de Ebeling, acima citado, divide o desenvolvimento da hermenêutica biblica em sete períodos históricos: Pré-cristão, Cristão Primitivo, Patrística, Medieval, Reforma e Ortodoxo, Moderno, Contemporâneo. Também nos dá referências bibliográficas abundantes para cada período. (*“) Ver Frederik W. Herzog, «Historico-Ontological Hcrmeneutic in thc Fourth Gospel», «Understanding God», págs. 65-68. 45

interpretar Jesus aos seus ouvintes de acordo com um certo sistema de compreensão. A «teologia» já está em acção; num certo sentido, a própria teologia enquanto intérprete histórica da mensagem bíblica, é já hermenêutica. A história da hermenêutica bíblica podia tra ­ çar-se: através da Igreja primitiva; dos patriarcas; da interpretação medieval quadruplicada da Bíblia; da luta de Lutero contra os sistemas de interpretação místicos, dogmáticos, humanísticos e outros; do aparecimento do método histórico-crítico no século XV III e do complexo de forças em actuação durante este período, que­ rendo remodelar a interpretação das Escrituras; do contributo de Schleiermacher; da escola da história das religiões relativamente à interpretação; do aparecimento da teologia dialéctica nos anos de 1920 e da Nova Hermenêutica na teologia contemporânea. Não podemos apresentar aqui uma história com tantos pormenores; limitar-nos-emos a apontar simplesmente dois pontos, um sobre a natureza da hermenêutica indicada pelo exemplo da hermenêutica bíblica, e outro sobre a questão do âmbito da hermenêutica. Sem entrarm os em pormenores, será interessante notarmos a tendência geral da hermenêutica bíblica de confiar num «sistema» de interpretação a partir do qual as passagens individuais possam ser interpretadas. Mesmo na «hermenêutica» protestante há uma procura de um «princípio hermenêutico» que sirva de guia (u). O texto não é interpretado em si mesmo; de facto, pode ser que isto seja um ideal impossível. Por exemplo, no Iluminismo, o texto bíblico é um receptáculo de grandes verdades morais; no entanto, essas verdades encontram-se nele porque se moldou um princípio interpretativo que as encontrasse. Nesse sentido, a hermenêutica é o sistema que o intérprete tem para encontrar o significado oculto do texto. A outra questão envolve o campo da hermenêutica. Mesmo se assegurarmos a legitimidade de incluir retroactivamente na herme­ nêutica bíblica toda a teoria da exegese do tempo do Antigo Tes­ tam ento ao nosso tempo há sempre a questão de saber se a her­ menêutica inclui uma teorização explícita — regras de exegese niti­ damente expressas — ou uma teoria não formulada, implícita, da exegese, revelada através de uma prática. O teólogo G erhard Ebeling, por exemplo, fez um estudo sobre «a hermenêutica de Lutero» (” ). Lidar-se-á aqui apenas com as afirmações de Lutero no que respeita à interpretação bíblica, ou também com a sua prática exegética revelada pela análise dos seus sermões e de outros escritos? O estudo de Ebeling inclui ambas as perspectivas. (" ) Ver «Dai hermeneutische Prinzip der theologischen Exegese», F H 111 - 118 .

(” ) nEvangelische Evangelienauslegung: Eine Untersuchung zu L uthen Hermeneutik». 46

Isto aumenta grandemente o âmbito da hermenêutica blblun, < ■ de imediato a tarefa de escrever, por exemplo, uma histórlu tia hermenêutica bíblica alarga-se da consideração dc fontes relativa mente controláveis que discutem o problema hermenêutico, m> exame dos sistemas de interpretação implícitos em todos os grandes comentadores da Bíblia, desde os tempos antigos até aos nossos dias (13). Uma história deste tipo, transforma-se essencialmente em história da teologia (“ ). Levando as implicações deste âmbito mais lato da hermenêutica (enquanto sistema simultaneamente implícito e explícito de interpre­ tação) para uma definição de hermenêutica que se aplique à litera­ tura bíblica e não bíblica, o perímetro da hermenêutica não-bíblica torna-se historicamente tão vasto que fica incontrolável. Quem por exemplo poderia pensar em escrever uma história da hermenêutica assim definida? O sistema interpretativo implícito em todo o comen­ tário de texto (jurídico, literário, religioso) no pensamento ociden­ ta l — de resto porque não incluir também os sistemas Orientais? — teria que ser incluído. Na sua obra-prima de dois volumes (“ ) Emílio Betti deu um a contribuição essencial para a apresentação de um cruzamento de várias disciplinas interpretativas numa perspectiva actual de interpretação; no entanto, este esforço possante é ape­ nas uma fracção daquilo que uma tal «história da hermenêutica» implicaria. Podemo-nos ainda interrogar se, quer uma história completa da hermenêutica quer uma síntese inclusiva das muitas diferentes teo­ rias disciplinares da interpretação (partindo do princípio que ambas as perspectivas seriam possíveis) constituiriam, na verdade, uma res­ posta adequada ao problema hermenêutico actual. Ambos os pro­ jectos olham para o que já foi realizado, no passado ou no presente, e como tal, representam um esforço de conservação e de consolida­ ção. Mas para inovar e para avançar com perspectivas ainda inexis­ tentes, é preciso mais do que uma perspectiva histórica, ou científica. Tão necessário como cada uma das perspectiva referidas (e ninguém (ls) Há vários e excelentes estudos sobre hermenêutica bíblica que nos dão pormenores históricos, como por exemplo: E. C. Blaokman, «Biblical Interpretation»; Frederic W. Farrar, «History of Inlerpretalion»; Robert M. Grant, «A Short History of lhe Inlerpretation of lhe Bible»; Stephen Neill, «The Interpretation of lhe New Testament»; 1861-1961-, B. Smalley, «The Study of lhe Bible in the Middle Ages»\ e James D. Wood, «The Inlerpretation of lhe Bible». Em alemão, há a obra recente de Lothar Steiger, «Die Hermeneutik ais dogmatische Problem» recomendável pelo tratamento que faz da hermenêutica teológica desde Schleiermacher. (14) Ver Gerhard Ebeling, «Kirchengeschichte ais Geschichte der Auslegung der Heiligen Schrift». (“ ) T G I, traduzido para alemão pelo seu autor e reduzido a um terço como AAMG. Ver também o contributo de Joachim Wach para este projecto, V, uma história da hermenêutica no século dezanove, em três volumes. 47

nega o valor que têm) é uma compreensão mais funda do fenômeno da própria interpretação, uma compreensão que seja filosoficamente adequada, quer epistemológica quer ontologicamente. As histórias da teoria da interpretação em disciplinas específicas são certamente vitais para a busca contínua de uma compreensão mais funda da interpretação, como são as sínteses das várias abordagens disciplinares; mas não são em si mesmas, suficientes.

A hermenêutica como metodologia filológica O desenvolvimento do racionalismo e, concomitantemente, o advento da filologia clássica no século dezoito teve um efeito pro­ fundo na hermenêutica bíblica. Surgiu então o método histórico-crítico na teologia (>s); tanto a escola de interpretação bíblica «grama­ tical» como a «histórica», afirmavam que os métodos interpretativos aplicados à Bíblia, eram precisamente os que se aplicavam às outras obras. Por exemplo, Ernesti, no seu manual de hermenêutica de 1761, defendia que «o sentido verbal das Escrituras deve ser determinado do mesmo modo como é considerado noutros livros» (” ). Com o aparecimento do racionalismo, os intérpretes sen­ tiram-se obrigados a tentar ultrapassar juízos prévios. «A norma da exegese bíblica, segundo Spinoza, consiste na luz da razão, comum a todos os homens» (” ). «As verdades acidentais da história nunca se poderão transform ar em provas de verdades necessárias da razão» disse Lessing (’*); assim é um desafio à interpretação tornar a Bíblia relevante para o homem racional do Iluminismo. Este desafio, tal como K urt Frõr observou no seu livro sobre hermenêutica bíblica, levou à «intelectualização das afirmações bí­ blicas» (20). Porque as verdades acidentais da história eram encara­ das como inferiores às «verdades de razão», os intérpretes bíblicos defendiam que a verdade das Escrituras estava acima do tempo e da história; a Bíblia não diz ao homem nenhuma verdade que ele (*•) Ver Hans-Joachim Kraus, «Geschichte der historisch-kritischen Erforsehung der Alten Testaments von der Reformation bis zur Gegenwarth», esp. cap. 3, págs. 70-102. (H) F. W. Farrar, «History of Interpretation», pág. 402, citando Johan August Ernesti IINT. Fizeram-se duas traduções inglesas do tratado, no co­ meço do século xix (Ver Bibliografia). (**) «Traclatus iheologico-policitus», (1670) cap. VII; citado em Ebeling «Hermeneutic», RGGIII, 245. ('•) Ober den Beweis des Geistes und der Kraft» (1777): «Zufãllige Geschlchtswahrheiten kõnnen der Beweis von notwendingen Vernuftswahrheiten nie wrrden», citado cm Kurt Frõr, Biblische Hermeneutik: Zur Schriftauslegung in Predlgt und llnterricht, pág. 26. Ver «On the Proof of the Spirit and of Power», In Lessing's Theological Writings, ed. Henry Chadwick, págs. 51-56. (,0) Ibid. 48

não pudesse ter reconhecido pelo uso da razão. Trata-se npcniis >l< uma verdade racional e moral, revelada antes dc tempo. A titrrfu da exegese era pois entrar profundamente no texto, usando as fri ramentas da razão natural e encontrando aquelas grandes verdades morais que os escritores do Novo Testamento pretendiam, verdades escondidas sob diferentes termos históricos. Essas escrituras defen diam a suficiência de uma compreensão histórica manifesta, sus ceptível de captar o espírito (Geist) subjacente à obra e dc o tra ­ duzir em termos aceitáveis para uma razão esclarecida. Podemos cham ar a isso um a form a esclarecida de «desmitologização», embora o termo no século vinte signifique interpretar e não simplesmente purgar os elementos míticos no Novo Testamento. Para além da fé Iluminista nas «verdades morais» que levou ao que hoje parece uma distorção da mensagem bíblica, d e um modo ; t c ral, as conseqüências na hermenêutica e na investigação bíblica foram salutares. A interpretação bíblica fez desenvolver tccnicas de análise gramatical de grande requinte (**), e os intérpretes compromete­ ram-se mais do m;e nunca rum conhecimento teta! do contexto histórico das narrações bíblicas. J. S. Semler defende por exemplo que o intérprete «deve ser capaz de falar sobre esses temas (bíblicos) de um modo adaptado às diferentes épocas e às diferentes circuns­ tâncias» (” ). A verdadeira tarefa do intérprete torna-se uma tarefa histórica. Com todos estes progressos, os métodos da hermenêutica bíblica tornaram-se essencialmente sinônimos de uma teoria secular da interpretação — isto é, da filologia clássica. E. pelo menos, desde o Iluminismo até aos nossos dias os métodos de investigação bíblica têm estado sempre ligados à filologia. Assim a designação «Herme­ nêutica Bíblica» substituiu a de hermenêutica enquanto referência à teoria da exegese bíblica. O termo «hermenêutica», inalterável, tor­ nou-se virtualmente idêntico a um a metodologia filológica. Num outro capítulo exploraremos mais especificamente o conteúdo da filologia no começo do século dezanove, discutindo dois grandes filólogos do tempo de Schleiermacher, Friedrich August Wolf e Friederich Ast. Aqui basta-nos simplesmente dizer que a concepção de uma hermenêutica estritamente bíblica, se transformou gradual­ mente na de uma hermenêutica considerada como conjunto de regras gerais da exegese filológica, sendo a Bíblia um objecto entre outros de aplicação dessas regras.

(” ) Ernesti, IINT, é um exemplo excelente. (” ) Ver H.-J. Kraus, op. cit., págs. 93-102, sobre Semler. O sentido das Escrituras é satisfeito, dizia Semler, quando «der historisch Verstehende nun auch imstande ist, von diesen Gegenstànden auf eine solche Weise jetzt zu reden, ais es die verànderte Zeit und andere Umstande der Menschcn neben uns erfordem». 49

A hermenêutica como ciência da compreensão lingüística É característica de Schleiermacher ter repensado a hermenêu­ tica como «ciência» ou «arte» da compreensão. Visto que lhe dedi­ cámos todo um capítulo, aqui apenas notaremos que uma tal con­ cepção de hermenêutica implica uma crítica radical do ponto de vista da filologia, pois procura ultrapassar o conceito de hermenêu­ tica como conjunto de regras, fazendo uma hermenêutica sistemati­ camente coerente, uma ciência que descreve as condições da com­ preensão,. em qualquer diálogo. O resultado não é simplesmente uma hermenêutica fiíológica mas uma «hermenêutica geral» (allgemeine Hermeneutik) cujos princípios possam servir de base a todos os tipos de interpretação de texto. Esta concepção de uma hermenêutica geral marca o começo da «hermenêutica» não disciplinar, tão im portante para a presente discussão. Pela primeira vez a hermenêutica define-se a si mesma como estudo da sua própria compreensão. Quase podemos dizer que o que aqui é típico da hermenêutica emerge historicamente do seu parentesco com a exegese bíblica e com a filologia clássica.

A herm enêutica como base metodológica p ara as «geisteswissenschaften» Wilhelm Dilthey foi um biógrafo de Schleiermacher e um dos grandes filósofos do século passado. Dilthey viu na hermenêutica a disciplina central que serviria de base a todas as Geisteswissenscha­ ften (i. e. todas as disciplinas centradas na compreensão da arte, comportamento e escrita do homem). Dilthey defendia que a interpretação das expressões essenciais da vida humana, seja ela do domínio das leis, da literatura ou das Sagradas Escrituras, implica um acto de compreensão histórica, uma operação fundamentalmente diferente da quantificação, do domínio científico do mundo natural; porque neste acto de compreensão his­ tórica está em causa um conhecimento pessoal do que significa ser­ mos humanos. Acreditava ser necessário nas ciências humanas uma outra «crítica» da razão, crítica que faria para a compreensão his­ tórica o que a crítica kantiana da razão pura tinha feito para as ciências naturais — «uma crítica da razão histórica». Num estádio primitivo do seu pensamento, Dilthey procurou fundam entar a sua crítica numa versão transform ada da psicologia; mas, como a psicologia não era uma disciplina histórica, os seus esforços foram dificultados desde o começo. Dilthey encontrou na hermenêutica — disciplina centrada na interpretação, e especifica­ mente na interpretação de um objecto sempre histórico, um 50

texto — a base mais humana e histórica para o seu próprio esforço de formulação de uma metodologia verdadeiramente luimanística das Geisteswissenschaften.

A hermenêutica como fenomenologia do Dascin e da compreensão existencial Martin Heidegger, ao tratar do problema ontológico, voltou-se para o método fenomenológico do seu mentor, Edmund Husscrl, e empreendeu um estudo fenomenológico da presença quotidiana do homem no mundo. Esse estudo Ser e Tempo (1927), é hoje reco­ nhecido como a sua obra-prima, como a chave para toda a com­ preensão adequada do seu pensamento. Chamou à análise apre­ sentada em Ser e Tempo uma «hermenêutica do Daseim>. Neste contexto, a hermenêutica não se refere à ciência ou às regras da interpretação textual nem a uma metodologia para as Geisteswissenschaften mas antes à explicação fenomenológica da própria existência humana. A análise de Heidegger indicou que a «compreensão» e a «interpretação» são modos fundantes da exis­ tência humana. Assim a hermenêutica heideggeriana do Dasein, transforma-se também em hermenêutica, especialmente na medida em que apresenta uma ontologia da compreensão; a sua investigação é de carácter hermenêutico, quer nos conteúdos quer no método. O aprofundamento que Heidegger faz da hermenêutica e das características hermenêuticas em Ser e Tempo é um outro ponto de viragem no desenvolvimento e na definição quer da palavra quer do campo da hermenêutica. A hermenêutica é relacionada de uma só vez com as dimensões ontológicas da compreensão (e com tudo aquilo que isso implica) e simultaneamente com a fenomenologia específica de Heidegger. O professor Hans-Georg Gadamer, seguindo a liderança de Heidegger, desenvolveu as implicações do contributo de Heidegger para a hermenêutica (tanto as do Ser e Tempo, como as de ulteriores obras) num trabalho sistemático sobre hermenêutica filosófica (W ahrheit und Methode 1960). Gadam er traça detalhadamente o desenvolvimento da hermenêutica, de Schleiermacher até Dilthey e Heidegger, fornecendo o primeiro relato histórico adequado da hermenêutica englobando a perspectiva do contributo revolucionário de Heidegger e reflectindo sobre ele. Mas Wahrheit und Methode é mais do que uma história da hermenêutica; é um esforço dc relacionação da hermenêutica com a estética e com a filosofia do conhecimento histórico. Apresenta de uma forma bem estruturada a crítica heideggeriana da hermenêutica, no velho estilo dc Dilthey, c retrata parte do pensamento hermenêutico de Hegel c dc llcidcgger, no conceito de consciência «historicamente operativa», 51

actuando dialecticamente com a tradição enquanto transmitida atra­ vés do texto. A hermenêutica avança ainda mais um passo entrando na sua fase lingüística, com a controversa afirmação de Gadamer de que «um ser que pode ser compreendido é ilnguagem.» A hermenêu­ tica é um encontro com o Ser através da linguagem. Ultimamente, Gadamer defendeu o caracter lingüístico da própria realidade hu­ m ana, e a hermenêutica mergulha nos problemas puramente filo­ sóficos da relação da linguagem com o Ser, com a compreensão, a história, a existência e a realidade. Ela coloca-se no centro dos problemas filosóficos de hoje; não pode fugir às questões epistemológicas e ontológicas pois a própria compreensão é defendida como um tema epistemológico e ontológico.

A hermenêutica como um sistema de interpretação: recuperação de sentido «versus» iconoclasmo Paul Ricoeur em De 1'Imerprétaiion (1965) adopta uma defini­ ção de hermenêutica que remonta a uma centração na exegese tex­ tual considerando-a o elemento distinto e central na hermenêutica. «Por hermenêutica entendemos a teoria das regras que governam uma exegese, quer dizer, a interpretação de um determinado texto ou conjunto de sinais susceptíveis de serem considerados como textos» (” ). A psicanálise, e particularmente a interpretação dos sonhos, é muito obviamente uma form a de hermenêutica; todos os elementos de uma situação hermenêutica estão nela contidos: o sonho é o texto, um texto cheio de imagens simbólicas, e o psica­ nalista usa um sistema interpretativo para produzir uma exegese que traga à superfície o significado oculto. A hermenêutica é o processo de decifração que vai de um conteúdo e de um significado manifestos para um significado latente ou escondido. O objecto de interpretação, i. e., o texto no seu sentido mais lato, pode ser cons­ tituído pelos símbolos de um sonho ou mesmo por mitos e sím­ bolos sociais ou literários. O estudo de Ricoeur distingue entre símbolos unívocos e equí­ vocos; os primeiros são signos de sentido único, como os símbolos

(” ) «Ainsi, dans la vaste sphère du langage, le lieu de la psychanalyse se précise: c’est à ia foi le lieu des simboles ou du double sens et celui ou s’affrontent les diverses manières d’interpréter. Cette circonscription plus vaste que la psychanalyse, mais plus étroite que la théorie du langage total qui lui sert d‘horizon, nous 1’appellcron désormais le ‘champ herméneutique’; nous entendrons toujours par herméneutique la théorie des règles qui président à une cxégèse, c’est à dire à 1’interprétation d’un texte singutier ou d’un ensemble de signes susceptible d’être considéré comme un texte» (Dl 18). 52

da logica simbólica, enquanto os últimos são o verdadeiro ccnlro da hermenêutica. Porque a hermenêutica tem a ver com textos simbólicos com múltiplos significados; estes podem constituir uma unidade semântica que tem (como os mitos) um significado super­ ficial totalmente coerente, tendo ao mesmo tempo uni significado mais fundo. A hermenêutica é o sistema pelo qual o significado mais fundo é revelado, para além do conteúdo manifesto. Contudo, a operação de encontrar um sentido oculto em sonhos e em lapsos de linguagem, demonstra na realidade uma desconfiança na superfície, ou realidade manifesta; o empreendimento de Freud foi tornar-nos desconfiados do conhecimento consciente que temos de nós mesmos, e em última instância pedir-nos que destruíssemos os nossos mitos e ilusões. Mesmo as nossas crenças religiosas, como Freud pretende demonstrar em O Futuro de uma Ilusão, são de facto ilusões infantis. A função da hermenêutica freudiana é por­ tanto iconoclástica. Isto leva Ricoeur a sustentar que nos nossos dias há dois síndromas muito diferentes da hermenêutica; um, representado pela desmitologização de Bultmann, lida amorosamente com o símbolo esfor­ çando-se por recuperar o significado que nele se oculta; o outro procura destruir o símbolo enquanto representação de uma reali­ dade falsa. Destrói máscaras e ilusões num esforço racional e inces­ sante de «aesmitificação». Ricoeur destaca como exemplo desta última forma de hermenêutica, três grandes desmitificadores: Marx, Nietzsche e Freud. Cada um destes três homens interpretou como falsa a superfície da realidade e avançou com um sistema de pen­ samento que destruiu essa realidade. Os três combateram activamente a religião; para os três, o pensamento verdadeiro era um exercício «de suspeita» e de dúvida. M inaram a confiança piedosa que o indivíduo depositava na realidade, nas suas próprias crenças c motivações; cada um defendeu uma transform ação de pontos de vista, um novo sistema interpretativo do conteúdo manifesto dos nossos mundos — uma nova hermenêutica. Devido a estas duas abordagens antitéticas da actual interpre­ tação dos símbolos, Ricoeur defende que não pode haver regras universais para a exegese, apenas teorias separadas e opostas, rela­ tivas às regras de interpretação. A desmitologização trata o símbolo ou o texto como uma abertura para uma realidade sagrada; os desmitificadores tratam os mesmos símbolos (ou seja, os textos bíblicos) como um a falsa realidade que deve ser destruída. A abordagem que Ricoeur faz de Freud é ela própria um exer­ cício brilhante do primeiro tipo de interpretação, pois recupera e Interpreta o significado de Freud de um modo inovador para o momento histórico actual. Ricoeur tenta contemplar tanto a racio­ nalidade da dúvida como a fé de uma interpretação passada, numa 53

filosofia reflexiva que não se refugia em abstracções nem degenera cm simples exercício de dúvida, um a filosofia que aceita o desafio hermenêutico de mitos e símbolos e que tematiza reflexivamente a realidade que está por detrás da linguagem, do mito e do símbolo. A filosofia hoje já se centra na linguagem; já é, num certo sentido, hermenêutica; o desafio é fazê-la criativamente hermenêutica.

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A LUTA CONTEM PORÂNEA SOBRE HERM ENÊUTICA: BETTI «VERSUS» GADAM ER

As seis definições de hermenêutica atrás abordadas, inter-relacionadas e muitas vezes sobrepostas, transpcrtam -nos de 1654 até aos nossos dias. As seis ainda se encontram, em graus variáveis, no spectrum do pensamento hermenêutico contemporâneo; no entanto, hoje há uma nítida polarização. Temos, por um lado, a tradição de Schleiermacher e de Dilthey, cujos partidários encaram a herme­ nêutica como um corpo geral de princípios metodológicos que subjazem à interpretação. E temos, por outro, os seguidores de Hei­ degger que vêm a hermenêutica como uma exploração filosófica das características e dos requisitos necessários a toda a compreensão. Os representantes mais conhecidos destas duas posições básicas são Emílio Betti, autor de uma obra sobre teoria da interpretação (’) e Hans-Georg Gadamer cuja Wahrheit und Methode foi breve­ mente discutida no capítulo anterior. Betti, na tradição de Dilthey, pretende dar-nos uma teoria geral do modo como «as objectivações» da experiência hum ana podem ser interpretadas; defende veemente a autonomia do objecto de interpretação e a possibilidade de uma «objectividade» histórica na elaboração de interpretações válidas. Gadamer, na seqüência de Heidegger, orienta o seu pensamento para a questão mais filosófica do que é a interpretação em si mesma; defende de um modo igualmente convincente que a compreensão é um acto histórico e que como tal está sempre relacionada com o presente. Sustenta que é ingênuo falarmos de «interpretações objectivamente válidas», pois fazê-lo implicaria ser possível uma com­ preensão que partisse de um ponto de vista exterior à história. Os teólogos da desmitologização — Rudolf Bultmann e os dois líderes da Nova Hermenêutica, Gerhard Ebeling e Ernst Fuchs podem associar-se enquanto aliados da abordagem de Gadamer,

(■) T G I e A A M G. 55

essencialmente heideggeriana e fenomenológica. Esta identificação da Nova Hermenêutica com Gadamer é explícita e recíproca; na sua obra C) Gadamer cita aprovadoramente Ebeling e Fuchs, e os teólogos aconselham os seus discípulos a que estudem cuidadosa­ mente a obra de Gadam er (’). Também os teólogos e filósofos que criticam a Nova Herm enêutica, tal como W olfhart Pannenberg ('), a relacionam explicitamente com a posição de Gadamer. Betti ata­ cou Bultmann, Ebeling e Gadamer como sendo inimigos da objectividade histórica no seu panfle'o de 1962, Die Hermeneutik ais allaemeine M ethodik der Geisteswissenschaften, e E, D. Hirsch, posteriormente, repetiu e de certo modo ampliou o protesto num artigo sobre a teoria da interpretação em Gadamer (5). Certamente que é um problema discutível saber quem ataca e quem defende, ou saber quem é que iniciou o ataque. Poderia pare­ cer que Betti e Hirsch criticam toda a visão hermenêutica de Hei­ degger e da Nova Hermenêutica ('). E, no entanto, há vozes de ataque e de defesa, apelando para um retorno à «objectividade», reafirmando que o estudo da história implica o abandono do ponto de vista actual do historiador; a hermenêutica, alegam, deve fun­ cionar de modo a fornecer os princípios de uma interpretação objectiva. Gadam er sustenta, em autodefesa, que está simplesmente ligado à descrição do que é, a cada acto de compreensão; está a fazer ontologia e não metodologia OO problema surge pelo facto da ontologia de Gadamer pôr em causa a possibilidade de um conhecimento histórico objectivo. Do ponto de vista de Betti, Heidegger e Gadam er são cs críticos des­ trutivos da objectividade, que pretendem mergulhar a hermenêu­ tica num pântano de relatividade, sem quaisquer regras. É a in‘egridade do próprio conhecimento histórico que está a ser atacada e é preciso defendê-la com firmeza. (’) W M 313. (3) O Professor Ebeling orientou um seminário semestral sobre esta obra na Universidade de Zurique, pouco depois de ela ter sido publicada. Guardou-se o protocolo habitual do curso (actas). Este terá interesse numa avaliação da relação Ebclins/Gadamer. (4) Ver «Hermeneutics and Universal History» H H 222-5; originalmente ZT hK LX (1963) 90-121. (5) HAMG; e Hirsch «Gadamer’s Theory of Interpretation» RM XVIII (1965), 488-507, reimpressa em VII 245-64. (•) Betti discute Bultmann, Ebeling e Gadamer em HAMG, e Hirsch refere-se á WM de Gadamer como a «summa» da Nova Hermenêutica em teologia. Õ) Carta a Betti, incluída cm HAMAG 51 n. Esta carta é posteriormente citada no artigo de Gadamer, «Hermeneutik und Historismus», PhR IX (1962), 248-9. O assunto é clarificado no Prefácio da segunda edição dc WM. Ver também a discussão de Robinson sobre sobre esta importante carta em NH 76. Ver Niels Thulstrup, «An Observation Concerning Past and Present Herme­ neutics» OL XXII 24-44, para uma comparação entre Gadamer e Betti. 56

Para compreendermos os ataques das objecções de Betti e de Hirsch à hermenêutica de Bultmann, Ebeling c Gadamer, tornu nc necessário esboçar muito ao de leve as abordagens feitas por Bultmann e por dois dos seus discípulos, Gerhard Ebeling c lirnst Fuchs.

A hermenêutica em Bultmann, Ebeling e Fuchs Rudolf Bultmann é sobejamente conhecido como um dos maiores teólogos protestantes deste século. Embora o seu nome esteja as mais das vezes associado ao controverso projecto de des­ mitologização, a sua fam a como eminente estudioso do Novo Tes­ tamento estava já confirmada muito antes de publicar o seu famoso ensaio Jesus Chríst and Mythology, em 1941 (*). Contudo, as linhas essenciais da sua orientação existencialista em teologia, eram já patentes desde 1926, no seu JesusC) e con­ tinuaram desde então. Esta orientação é ela própria um esforço que pretende confrontar de um modo mais significativo o problema hermenêutico da interpretação do Novo Testamento com o homem do século xx. «Desmitologizar» é talvez um termo infeliz. Pode sugerir que o Novo Testamento, tal qual está, é encarado como falso (i. c. mítico) e que a sua mensagem terá que ser acomodada à nova visão do mundo pós-deística. Traça-sé demasiado facilmente o retrato de um teólogo engenhoso, pronto a deitar fora os elementos míticos como não sendo significativos e a apresentar uma Bíblia resumida onde só se m anteriam os elementos mais dignos de crédito. Ora não é isto que se passa. Pelo contrário, a desmitologização não pre­ tende apagar nem ignorar os elementos míticos do Novo Testa­ mento, mas sim realçar neles o seu significado original e salvífico. Longe de ser um esforço de acomodação dos Evangelhos a uma mentalidade moderna, a desmitologização ataca a literaüdade super­ ficial patente num ponto de vista moderno, ataca a tendência que os leigos, e mesmo os teólogos têm de considerar a linguagem como mera informação e não como o meio pelo qual Deus confronta os homens com a possibilidade de um autoconhecimento radicalmente novo (não grego, não naturalista, não moderno). A desmitologização

(*) As obras mais importantes de Bultmann estão traduzidas em inglês, como por exemplo «The History of the Synoptic Tradition (1921); «Jesus and lhe Word (1926); e «Theology of lhe New Testament», I (1941) e II (1951). 11;\ também duas colecções de artigos: «Essays: Philosophical and Theological»; o «Exislence and Faith», trad. e ed. Schubert M. Ogden. (As datas entre parfinlc»ls são das edições alemãs e não das traduções.) (*) Ver especialmente págs. 11-19; «Introduction, Viewpoinl and Mcthod». 57

não 6 um instrum ento de desmitificação racionalista e iconoclástico à m aneira de Freud, Nietzsche ou M arx (para mencionarmos a dis­ tinção de Ricoeur entre desmitificação e desmitologização); não procura atacar e destruir o símbolo mítico, antes o encara como abertura para o Sagrado. Interpretar o símbolo é relem brar o seu sentido original e autêntico, agora escondido. A tônica da desmitologização de Bultmann reside na transfor­ mação do conhecimento de cada um. No que respeita ao autoconhecimento existencial, Bultmann está nitidamente em dívida para com Heidegger, a quem esteve estreitamente ligado em meados de 1920 na Universidade de M arburgo, quando este coligia Ser e Tempo. A influência que Heidegger teve sobre Bultmann é tão conhecida que por vezes é mesmo vista de um modo exagerado. Contudo, enquanto que a tentativa de construir uma analogia total entre os conceitos de Heidegger e os de Bultmann (como John M acquarrie fez) (10) pode ser devida tanto ao carácter inconsciente­ mente religioso do modelo ontológico de Heidegger, como à dívida de Bultmann, é justo dizer-se que Heidegger foi uma força decisiva no pensamento de Bultmann no que respeita ao problema herme­ nêutico. Isto reflecte-se na desmitologização, que é essencialmente um projecto hermenêutico da interpretação existencial. Assim, por exemplo, não só o conceito que Bultmann tem do homem como ser histórico orientado para o futuro, está muito perto do que se defende em Ser e Tempo como há também pelo menos três aspectos específicos em que a teologia de Bultmann segue Hei­ degger: 1.° N a distinção entre a linguagem usada como mera infor­ mação que se deve interpretar objectivamente como um facto e a linguagem plena de contributos pessoais e de poder de impor obe­ diência que se assemelha ao conceito heideggeriano do carácter derivativo das asserções (especialmente lógicas) ("). 2.° Na ideia de que Deus (o Ser) confronta o homem enquanto Palavra, enquanto linguagem, que se assemelha à tônica crescente dada por Heidegger ao carácter lingüístico do Ser quando se apresenta ao homem, 3.9 Também no conceito de que o Kerygma como a palavra das pala­ vras, fala por uma autocompreensão existencial. O Novo Testa­ mento em si ríiesmo, diz Bultmann, visa um novo (autêntico) conhe­ cimento de nós próprios; a função de proclamar o Novo Testamento é trazer este novo conhecimento ao homem moderno a quem ele hoje se dirige. A Palavra do Novo Testamento é, portanto, algo como uma actualização da chamada de consciência que Heidegger descreve em Ser e Tem po (1J). C°) «An Existencialist Theology: A Comparison of Heidegger and Bult­ mann*. (*>) S Z § 33. (») Ibid., § 60.

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Certamente que a chamada de atenção para uma nova maneira de nos conhecermos a nós próprios é uma afronta ao nosso modo actual de estar no mundo. Bultmann não tem qualquer desejo de afastar «o escândalo» do Novo Testamento, pretende sim colocar esse escândalo no seu devido lugar: não é considerando literalmente os mitos como verdades de fé, não é acreditando numa informação cosmológica manifestamente falsa, mas sim apelando para uma obe­ diência radical, para uma abertura à Graça, à liberdade na fé. A discussão que Bultmann faz do problema hermenêutico indica especificamente que para ele a hermenêutica é sempre definida em termos de exegese de um texto, transmitido historicamente. Por muito que deva a Heidegger, continua a ver a hermenêutica mais como uma filosofia que deve orientar a exegese, do que como uma teoria da compreensão «per se». Em The Problem of Hermeneutics (1950), reafirma a insistência liberal dos Protestantes na total liber­ dade de investigação — o método histórico-crítico — e vai ao ponto de dizer novamente que a Bíblia está sujeita às mesmas con­ dições de compreensão, aos mesmos princípios filológicos e histó­ ricos aplicáveis a qualquer outro livro (“ ). O «problema hermenêu­ tico» embora sempre relacionado com a exegese, é encarado não enquanto distinta e especificamente teológico mas como um pro­ blema existente em toda a interpretação de textos, seja ela de documentos jurídicos, obras históricas, literatura ou Escrituras. É claro que a dificuldade do problema está em definir o que constitui a compreensão histórica de um texto. Para Bultmann, a questão hermenêutica é «como compreender os documentos histó­ ricos deixados pela tradição», que por seu lado assenta na questão: «Quais as características do conhecimento histórico?» O'1) É a este problema que dedica a segunda parte das suas Gifford Lectures (1955) e é precisamente a análise que nelas apresenta que Betti mais tarde irá violentamente pôr em causa (1!). Bultmann assinala que toda a interpretação da história ou todo o documento histórico é orientado por um certo interesse, que por sua vez se baseia numa certa compreensão preliminar do assunto. A «questão» molda-se a partir deste interesse e desta compreensão. Sem eles nenhum a questão se form ularia e não haveria qualquer interpretação. Por conseguinte, toda a interpretação é guiada pela «pré-compreensão» do intérprete (” )• [Mais uma vez esta análise da (13) «Die Interpretation der biblischen Schriften unterliegt nicht anderen Bedingungen des Verstehens ais jede andere Literatur». G&V II, 231. O artigo apareceu como «Das Problem der Hermeneutik» ZT h K XLVII (1950), 47-69, e mais tarde traduzido em «Essays: Philosophical and Theological», págs. 234-61. (») HE 110. (1J) Ver HAMG 19-36. ('•) HE 113. Ver a crítica de Betti a «essa palavra ambígua que é melhor evitar». HAMG 20-21.

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compreensão se relaciona nitidamente com a delimitação feita por Heidegger de Vorhabe, Vorsicht e Vorgriff (") em Ser e Tempo, como condições prévias de interpretação.] Aplicado à história, isto significa que o historiador escolhe sempre um certo ponto de vista, o que por seu lado significa que ele é essencialmente receptivo ao aspecto do processo histórico aberto às questões que surgem a partir desse ponto de vista. Por muito objectivo que pretenda ser ao abor­ dar um tema, o historiador não pode escapar à compreensão que dele tem: «Já na escolha de um ponto de vista está em acção aquilo a que posso chamar o encontro existencial com a história. A história só ganha sentido quando o próprio historiador está dentro da histó­ ria e toma parte nela» ('*). Bultmann cita então R. G. Collingwood para o facto de que os eventos têm que ser refeitos na mente do historiador. Eles são, portanto, objectivos e conhecidos apenas porque também são subjectivos (’*). Dado que o significado apenas surge da relação que o intérprete tem com o futuro, segundo Bultmann torna-se impossível falar de um significado objectivo — quer dizer destituído de qualquer ponto de vista — e como hoje já não se afirm a que se sabe o fim e a meta da história «a questão do sentido da história (como um todo) deixa de ter significado» (J0). Podemos aqui ver como actua de um modo radical o «princípio de Heisenberg» ou teoria de campo; isto é, que o objecto ao ser observado é subtilmente alterado, pela simples condição de estar a ser observado. O historiador é uma parte do próprio campo que observa. O conhecimento histórico é ele próprio um evento histó­ rico; o sujeito e o objecto da ciência histórica não existem indepen­ dentemente um do outro (” ). Isto, de acordo com Bultmann tem implicações na fé cristã, especialmente porque através do momento escatológico, o cristão é elevado para além da história e reingressa nela com um novo futuro. Por conseguinte a história reveste-se de um significado novo. Podemos aqui referir que Bultmann procura ir mais longe que Collingwood no conceito que defende de escatologia, usando uma abordagem teológica (escatológica) para a ques­ tão do sentido da história (” ). Mas a argumentação central de Bultmann é clara (e é esse mesmo problema que Betti põe em causa): em história não podemos falar de sentido objectivo porque a história não pode ser conhecida excepto através da subjectividade do próprio historiador.

(lr) SZ § 32. Vorhabe, Vorsicht e Vorgriff podem ser traduzidos um pouco literalmente por posse prévia, visão e concepção. (“ ) HE 119. (l9) R- G. Collingwood, «The Idea of History», pág. 218. («) HE 120. (Jl) Ibid., 133. (” ) Ibid-, 136.

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Gerhard Ebeling e Ernst Fuchs seguem Bultmann quando colo cam o problema hermenêutico no centro do seu pensamento. Tnl como ele continuam a agarrar-se à nítida disparidade entre a visflo moderna do real e a visão em que assenta o Novo Testamento. Como Bultmann, opõem-se à visão literal da linguagem e continuam a tentativa feita por este, de restaurar para a Palavra o seu poder original. Como ele, centralizam-se no significado do Novo Testa­ mento enquanto testemunho mais do que no seu carácter factual; acentuam que o intérprete está sempre no meio da história que ele quer interpretar e que o sentido da história está em relação com a compreensão que o intérprete tem do futuro. Ebeling e Fuchs levaram ainda mais longe as concepções de Bultmann relativamente à história, à linguagem e à desmitologiza­ ção, dando-lhes uma interpretação ainda mais radical. Se a herme­ nêutica de Bultmann se centra na autocompreensão existencial do homem e vai directamente para a análise do que isso significa em termos da Palavra revelada, Ebeling e Fuchs voltam-se para a pró­ pria linguagem e para a sua relação com a realidade. O problema hermenêutico nessa perspectiva não é simplesmente uma questão de ajustar a proclamação da Palavra à realidade que ela veicula em termos de uma autocompreensão existencial; é lingüístico, i. e.. «como é que uma palavra (palavra evento) que aconteceu, chega a ser compreendida» (” ). Como Ebeling sustenta em Word of God and Hermeneutics: «a existência é existência através da palavra e na palavra; (...) a interpretação existencialista significaria interpre­ tação do texto relativamente à palavra evento» C21). Tanto Ebeling como Fuchs fizeram da palavra evento o centro do seu pensamento teológico. Este foi designado por «teologia da palavra evento». A hermenêutica, dizem eles, tem que encontrar o seu apoio na palavra evento; «o objecto da hermenêutica» diz Ebeling, «é a palavra evento enquanto tal» (” ). Contudo, a herme­ nêutica não procura compensar qualquer deficiência da Palavra Bíblica através da paráfrase, antes tenta facilitar «a função her­ menêutica» (de provocar a ocorrência da compreensão) da própria palavra. É a própria palavra que abre e mediatiza a compreensão: «O fenômeno primário no domínio da compreensão não é çi com­ preensão da linguagem mas a compreensão através da linguanem.» (” ) Ou ainda, para reavivar o caracter lingüístico de tal teo­ logia: «A hermenêutica enquanto teoria da compreensão deve portanto ser a teoria da palavra.» (” ) Fuchs põe a questão de

(") (*) (” ) (") (”)

WF 313. Ibid., 331. Ibid., 319. Ibid., 318; citado em HAMG 36. WF 319.

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um modo sucinto no começo da sua H erm eneutik: «A Herm e­ nêutica no campo da teologia é a doutrina da fé da linguagem (Sprachlehre).» (” ) Do ponto de vista de uma definição de hermenêutica há duas questões com interesse nesta abordagem. Primeiro, a referência à «função hermenêutica» das palavras rem onta ao sentido mais pri­ mitivo de interpretação como mediação directa da compreensão, atribuindo assim à hermenêutica a finalidade de «remoção dos obstáculos à compreensão» ("). Isto é, uma focalização salutar dos objectivos da hermenêutica, embora não altere o facto de tendermos a utilizar, consciente ou inconscientemente, sistemas de interpre­ tação, mesmo nos actos de mediação mais directos. O segundo ponto refere-se ao historicismo: a focalização na linguagem evento que continua a sustentar o «carácter lingüístico» da realidade, encara a história não como um museu de factos mas como uma realidade que se exprime por palavras. Assim, as perguntas adequadas não são tanto «Quais eram os factos?» ou «Como podemos explicar este facto?», mas «O que é que se exprimiu neste facto ou neste mito?», «O que é que está a ser mediatizado?» (3°). O historicismo em teo­ logia dá origem a um uso incorrecto da linguagem, a uma «visão falsificada da palavra» que a abstrai do evento que é a palavra viva e a trata como um mero enunciado. Daí resulta o falhanço do intérprete em compreender a palavra revelada, à luz das suas carac­ terísticas de palavra evento ("). A ênfase dada em teologia à palavra evento, tem como con­ seqüência irazer a filosofia da linguagem para o centro da herm e­ nêutica. A finalidade da hermenêutica ainda é uma finalidade prá­ tica, de remoção de obstáculos à palavra evento, mas a focalização do problema hermenêutico está sem dúvida na interconexão da linguagem com o pensamento e com a realidade. Dado que a her­ menêutica não pode ser considerada separadamente da moderna epistemologia, da metafísica e da filosofia da linguagem, ultrapassa nitidamente os limites de um conjunto de meras regras práticas de interpretação. Ao afastar-se da objectividade realista dos «factos históricos» chamou a crítica para o terreno da teologia, especial­ mente a partir de W olfhart Pannenberg (” ) e para fora da teologia, a partir de Emilio Betti.

(«) (") (” ) (>') (” )

WF 318-19. WF 318-19. Ibid., 295. Ibid. «Hermeneutics and Universal History» HH 122-152.

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A hermenêutica de Betti Emílio Betti, historiador de Direito, fundou em 1955 um ms tituto para a teoria da interpretação (” ). Publicou em 1962 um livrinho com o título Hermeneutik ais allgemeine M ethodik der Geiteswissenschaften. Surgido pouco depois da obra-prima de Gadamer, de 1960, este ensaio avança com uma crítica nítida e inequívoca à abordagem que Gadam er fizera a este tema — tal como às abordagens de Bultmann e de Ebeling. Em termos muito simples, as objecções que Betti faz à obra de Gadamer são: cm primeiro lugar, que esta não serve como metodologia ou como auxiliar de metodologia dos estudos humanísticos e, em segundo lugar, que ela põe em risco a legitimidade de nos referirmos ao estatuto objectivo dos objectos de interpretação e que portanto torna discutível a ob.iectividade da própria interpretação. O livrinho começa com um lamento: A hermenêutica como problemática geral da interpre­ tação. essa grande disciplina geral que tão nobremente se originou no período Romântico" como preocupação comum a todas as disciplinas, que ocupou a atenção de muitos espí­ ritos eminentes do século dezanove — como por exemplo Humboldt na filosofia da linguagem, August Wilhelm von Schlegel o grande historiador literário. Bõckh o filólogo e enciclopedista, Savigny o jurista, e historiadores como Niebuhr, R anke e Droysen — essa venerável forma mais antiga de hermenêutica parece estar a desaparecer da moderna consciência alemã (” ). Numa sua primeira obra enciclopédica — Teoria' generale delia interpretazione (S!) — Betti procurou renovar a tradição alemã, já antiga mas ricamente significativa. Os leitores alemães tiveram acesso ao pensamento geral de Betti desde 1954, quando ele publicou o seu curto «manifesto hermenêu­ tico » — Z ur Grundlegung einen allgemeinen A uslegungsleher (!e), uma antecipação densamente documentada do seu magnus opus de 1955, do qual surgiu finalmente uma tradução em 1967 (” )• Esta obra de m aior fôlego, produto de sete ou mais anos de tra­ balho, remonta à sua conferência inaugural de Maio de 1948. De facto, o manifesto de 1954 é uma versão alargada desta primeira apresentação. Em 1962, Betti escreveu com tristeza que, apesar

(” ) Ver HAMG 6-7 n. (») HAMG. (” ) TGI. (") Apareceu originalmente em «lesischrijt für Ernst Rabel», II, 79-168, publicado no mesmo ano. (” ) AAMG.

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da sua publicação de 1954, na Alemanha dera-se pouca impor­ tância ao seu trabalho (” ). Pelo contrário, o fascínio pela filosofia heideggeriana continuou a exercer influência na teologia protestante e na filosofia, surgindo uma visão completamente diferente de hermenêutica. Este desenvolvimento não estava na grande corrente da tra­ dição que remonta a Schleiermacher passando por Humboldt, Steinthal, Lazarus Bockh, Dilthey, Simmel, Litt, Joachim Wach e Nicolai H artm ann. Foi esta corrente que ocupou a atenção de Betti na sua resolução de retom ar o projecto de formulação de uma teoria metodológica geral da interpretação (” ). Foi a influência da feno­ menologia e da ontologia heideggerianas, ligadas ao interesse geral pela filosofia da linguagem, que constituiu a força condutora do interesse renovado que os alemães demonstraram pela hermenêutica (Gadamer afirma que um outro impulso dado ao seu pensamento foi o profundo descontentamento que experimentou relativamente à teoria estética dominante nos anos de 1930 e seguintes) O9). Como vimos, em teologia, o desenvolvimento da hermenêutica estava intimamente ligado à desmitologização. A desmitologização é a maneira de defrontar o problema profundo de tornar a Bíblia relevante e significativa para os actuais ouvintes da Palavra. Enquanto historiador de Direito, o interesse de Betti não partiu do desejo filosófico de uma avaliação mais adequada da verdade de uma obra de arte (como aconteceu com Gadamer) ou de um desejo de chegar a uma compreensão mais funda do Ser (como aconteceu com Heidegger) ou da obrigação de alcançar a total compreensão da palavra bíblica (como em Bultmann e em Ebeling). Betti queria distinguir os diferentes modos de interpretação das disciplinas humanas e formular um corpo básico de princípios com os quais se interpretasse as acções do homem e os objectos. Se há que fazer uma distinção entre o momento de compreender um objecto por si mesmo e o momento de ver o significado exis­ tencial do objecto através da nossa própria vida e do nosso futuro, então podemos dizer que este último ponto de vista é nitidamente a preocupação de Gadamer, de Bultmann e de Ebeling, enquanto a preocupação de Betti tem sido determ inar a natureza da inter­ pretação «objectiva». Betti de modo algum pretende om itir da interpretação o mo­ mento subjectivo ou mesmo negar a sua necessidade em toda a interpretação humana. Mas o que pretende afirm ar é que. qualquer (“ ) HAMG 6. (" ) Ibid. (w) Dc acordo cora observações feitas por Gadamer sobre a gênese de WM, muna abordagem que segue a minha comunicação *Die Tragweile von Gadumrrs II'M fiir dir Literaiurauslegung». Heidelberg, 14 de Julho de 1965.

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que seja o papel da subjectividade na interpretação, o o h ja lo mantém-se objecto e podemos tentar fazer dele e realizar com clr uma interpretação objectivamente válida. Um objecto fala, c pode ser ouvido de um modo correcto ou incorrecto, precisamente por que nele há um significado objectivamente verificável. Se o objecto não é diferente do seu observador, e se não fala por si mesmo, para quê então escutá-lo? (4I) Betti defende que a recente hermenêutica alemã se tem dc tal modo ocupado com o fenômeno do Sinngebung (a função do intér­ prete na atribuição de sentido ao objecto) que acabou por se equa­ cionar com a interpretação. No começo de Die Hermeneutik ais allgemeine M ethodik der Geiteswissenschaften (1962), Betti sus­ tenta que é seu objectivo, em primeiro lugar clarificar a distinção entre Auslegung (interpretação) e Sinngebung. Precisamente porque esta interpretação é ignorada, diz Betti, toda a integridade de resul­ tados objectivamente válidos nas humanidades (die Objectivitàt der Auslegungsergebnisse) é posta em risco. A defesa que Betti faz da objectividade é ilustrada com alguns exemplos de regras de hemenêutica e com objecções à posição dc Gadamer. Para Betti, o objecto a interpretar é uma objectivação do espírito humano (Geist) expressa de uma forma sensível. A inter­ pretação, portanto, é necessariamente um reconhecimento e uma reconstrução do significado que o seu autor foi capaz de incorporar, usando um determinado tipo de materiais. Isto significa evidente­ mente que o observador tem que ser traduzido para uma subjec­ tividade que lhe é estranha e, por meio da inversão do processo criativo, tem que voltar à ideia ou à «interpretação» que é incor­ porada no objecto O . Assim, como Betti observa, é perfeitamente absurdo falar de uma objectividade que não envolva a subjectividade do intérprete. Porém, a subjectividade do intérprete deve pene­ trar a estranheza e a alteridade do objecto, ou então o intéprete apenas consegue projectar a sua própria subjectividade no objecto de interpretação. Assim é fundamental (é mesmo a primeira regra de toda a interpretação), afirm ar a autonomia essencial do objecto (“ ). Uma segunda regra é a do contexto do sentido, ou seja, a totalidade no interior da qual as partes individuais são interpretadas. Há uma relação íntim a de coerência entre as partes individuais de um discurso devido a uma totalidade sobreposta, construída com as partes individuais C14). Numa terceira regra geral, Betti reconhece (“ ) HAMG, 35. («) Ibid., 11-12. (4>) Ibid., 14. (**) «Kanon des slnnhaften Zusammenhanges (Grundsatz der Ganzholt)» OU «Kanon der Totalitãt», ibid., 15. 65

■ o «carácter tópico» (Actualitãt) do significado, isto é, a relação com a própria posição e com os actuais interesses do intérprete que toda a compreensão envolve. O intérprete de um aconteci­ mento passado, necessariamente o interpretará em termos daquilo que experienciou. Do lado subjectivo não há fuga possível à compreensão e à experiência de cada um. Betti está longe de ima­ ginar que a comprensão é uma questão de receptividade passiva; antes a considera sempre como um processo de reconstrução que envolve a própria experiência que o intérprete tem do mundo (“ ). Pode-se mesmo dizer que Betti reafirma «em princípio» o conceito de compreensão prévia enunciado por Bultmann. Para este, devido à historicidade da compreensão prévia, a ideia de que é possível ter um conhecimento histórico objectivo é uma «ilusão do pensar objectivado» (die lllusion emes objektivierenden Denkens) (“ ). Diz Betti: «O texto a que um pré-conhecimento dá sentido não existe simplesmente para fortalecer a opinião que pre­ viamente sustentávamos; pelo contrário, temos que partir do prin­ cípio de que o texto tem algo a dizer-nos, que nós ainda ignoramos mas que existe, independentemente da acção de o compreendermos. É precisamente aqui que ganha luz a discutibilidade de uma foca­ lização subjectiva; esta é obviamente influencida pela filosofia exis­ tencial contemporânea e luta pela junção de uma explicação (Auslegung) e de uma compreensão (Sinngebung), tendo como con­ seqüência o facto de que a objectividade dos resultados do processo interpretativo nas humanidades, é totalmente posta em causa» (")• As críticas de Betti a Gadamer levantam sérias objecções à «intersubjectividade» existencial e à historicidade da compreensão, defendendo que Gadamer não conseguiu produzir métodos norm a­ tivos que permitissem distinguir uma interpretação certa de uma interpretação errada, e de que ele considera conjuntamente pro­ cessos muito diferentes de interpretação (**). Betti defende que o historiador não está muito preocupado com uma relação prática com o presente, estando sim submerso contemplativamente no texto que está a estudar; por outro lado, o advogado na relação que sus­ tenta com um texto, tem em mente a sua aplicação prática ao presente. Como conseqüência, os dois processos de interpretação têm características diferentes; a afirmação de Gadamer de que cada interpretação implica uma aplicação ao presente, é verdade para uma interpretação legal mas não para uma interpretação histórica (“ ). (" ) ('•) <‘r) (*■) (*•)

Ibid.. 19-22. HE, 121. HAMG, 35. Ibid., 43-44. Ibid., 45-49. 66

Gadamer respondeu a estas objecções numa carta a llrltl Declarou não estar a propor um método mas sim a tentar csnvvci aquilo que é... «Procuro pensar os acontecimentos para além du conceito de método da ciência moderna, de um modo explicit» mente universal» (s0). Betti publicou a carta de Gadamer como notu de rodapé do próprio panfleto onde ataca Gadamer. É evidente que Betti não ficou satisfeito com a resposta. Para ele, Gadamer per­ deu-se numa subjectividade existencial sem quaisquer regras. No prefácio ã edição de Wahrheit und Methode de 1965, Gadamer mais uma vez responde a Betti, dando agora relevo ao carácter não subjectivo da compreensão. A tônica ontológica da sua obra (que Betti deplora) leva Gadam er a encarar o funcionamento da «consciência historicamente operante» (” ) não como um processo subjectivo mas sim ontológico: «O significado da minha investigação não é, de modo algum, apresentar uma teoria geral da interpretação com especificações que avaliem os diferentes métodos das disciplinas particulares, como E. Betti tão excelentemente fez, mas sim procurar o que há de comum em todas as vias de compreensão e mostrar que ela nunca é um procedimento subjectivo relativamente a um dado ‘objecto’ mas que petrence à história operacional (Wirkungsgeschichte) — quer dizer, ao ser daquilo que é compreendido» (” )• A questão visada por Gadam er será ulteriormente examinada nos capítulos dez e onze, mas torna-se agora nítido o contraste fundamental entre Betti e Gadamer. Deparam-se-nos duas con­ cepções, muito diferentes quanto ao âmbito e à finalidade da her­ menêutica, quanto aos métodos e tipos de pensamento que lhe são próprios e quanto ao carácter essencial da disciplina como campo de estudo. Mediante duas definições muito diferentes, assentanto em fundamentos filosóficos distintos, os dois pensadores definem a hermenêutica com vista a objectivos também muito diferentes. Betti, seguindo Dilthey na busca de uma disciplina de base para as Geisteswissenschaften, procura o que é prático e útil para o intérprete. Pretende normas que distingam uma interpre­ tação certa de uma interpretação errada, que diferenciem um tipo e outro de interpretação. Gadamer, seguindo Heidegger, faz per­ guntas tais como: Qual é o carácter ontológico da compreensão? Que espécie de encontro com o Ser está implicado no processo hermenêutico? Como é que a tradição e a transmissão do passado, entram no acto de compreensão de um texto histórico e o podem moldar?

(” ) Ibid., 51 n. (’*) «Wirkungsgeschichtliches Bewusstsein»; ver WM 325-60. (” ) Ibid., Prefácio à 2.» ed., XVII. 67

Que dizer deste conflito de definições? Como desenvolverei no próximo capítulo, as duas posições não são totalmente antagônicas. Pelo contrário, os dois pensadores trabalham em diferentes aspectos do problema hermenêutico. Obviamente que há que fazer uma opção básica entre uma perspectiva realista e uma perspectiva fenomenológica; no entanto, podemos adm itir que para a herme­ nêutica como um todo, ambas as posições filosóficas permitem importantes abordagens ao problema hermenêutico.

E. D. Hirsch — A hermenêutica como lógica da validação Em 1967, E. D. Hirsch publicou Validade na Interpretação, o primeiro tratado completo de hermenêutica geral escrito em inglês. Sem dúvida que nos anos vindouros, este trabalho virá a ocupar um lugar entre as obras americanas mais significativas sobre teoria da interpretação. De um modo sistemático e com uma argu­ mentação cuidadosa, o livro põe em causa algumas das asserções mais apreciadas que desde há quatro décadas têm orientado a inter­ pretação literária. Por exemplo, Hirsch sustenta que a intenção do autor deve ser a norma pela qual devemos avaliar a validade de qualquer «interpretação» (explicação do significado verbal de uma passagem). Argumenta ainda que essa intenção é uma deter­ minada entidade sobre a qual podemos concluir uma evidência objectiva e que, quando estamos seguros da evidência, podemos fazer uma delimitação do significado que pode ser universalmente reconhecida como válida. O sonho de Dilthey de uma interpretação objectivamente válida, parece ter-se realizado. Evidentemente que «o significado verbal» de uma passagem enquanto determinada por uma análise filosófica intensiva (quer da obra quer de toda a evidência interna patente na intenção do seu autor) e o significado que a mesma obra possa ter hoje, são duas coisas diferentes. Mas a posição de Hirsch é precisamente esta: criar-se-á uma confusão sem limites se identificarmos «sentido ver­ bal» e «significado» (significação para nós). Este é o pecado que ele atribui a Gadamer, a Bultmann e aos teólogos da Nova H er­ menêutica (**). Na linguagem usada por Betti ao abordar este tema, Bedeutung (sentido) tem que ser considerado separadamente de Bedeutsamkeit (significado) (’*)• Caso contrário a filosofia ruirá e desaparecerá a possibilidade de obtermos resultados objectivos e válidos. É nessa distinção que reside a integridade da filologia e a possibilidade da objectividade. (” ) VII 246. (” ) HAMG 28-29. 68

O objectivo da hermenêutica, diz Hirsch, nflo 6 cnconlrni o «significado» que uma passagem pode ter para nós, mas sim i'l« rificar o seu sentido verbal. A hermenêutica é a disciplina filosófica que estabelece as regras com as quais podemos atingir determinuçflcs válidas do sentido verbal de uma passagem. Segundo Hirsch, Gada mer e os seguidores de Bultmann não só fizeram considerações erradas, extrínsecas à tarefa real da hermenêutica, como também professaram uma posição filosófica que vai ao ponto de perguntar se é mesmo possível esperar um sentido objectivamente determinável. Basicamente Hirsch argumenta que se defendemos que o sen­ tido de uma passagem (o seu sentido verbal) pode mudar, então não há qualquer norm a fixa para avaliarmos se a passagem está a ser correctamente interpretada. Só se alguém reconhecer o «sapatinho dc cristal» do primitivo sentido verbal pretendido pelo autor, haverá possibilidade de separar a «Gata Borralheira» das outras raparigas (” ). Isto faz de novo lem brar a objecção de Betti a Gadamer: que Gadamer não nos dá um princípio normativo estável pelo qual o sentido «correcto» de uma passagem possa ser valida­ mente determinado. Hirsch toma como norma o sentido verbal pretendido pelo autor e chega ao ponto de caracterizar o sentido verbal como imutável, reprodutível e fixo. Uma curta citação ilus­ trará o seu raciocínio, dando-nos também algo do sabor aristotélico da sua exposição: «Quando portanto afirmo que um sentido verbal é fixo, quero dizer que ele constitui um a entidade idêntica a si própria. Mais, pretendo também dizer que é uma entidade que se mantém sempre a mesma, de um momento para o outro — que é portanto imutável. Na verdade, estes critérios estavam já implicados na afirmação de que o sentido verbal é reprodutível, que ele é sempre o mesmo nos diferentes actos de interpretação. O sentido verbal é portanto aquilo que é e não qualquer outra coisa, man­ tendo-se sempre o mesmo. A isto chamo determinação (determinacy) ("). Aqui a hermenêutica atribui-se a si própria a tarefa de fornecer a justificação teórica para a determinação do objecto de interpre­ tação e de colocar normas com as quais o sentido determinado, imutável e idêntico a si mesmo pode ser compreendido. N atural­ mente que a tarefa é também dizer que bases temos para preferir­ mos um sentido e não qualquer outro; é esta a questão da validade. Do ponto de vista de Hirsch, hermenêutica que não lide com a validade não é hermenêutica mas qualquer outra coisa. Tal como Betti, levanta a objecção de que a corrente heideggeriana em her-

(*») VII 46. (" ) Ibid. 69

im-néuticu põe dc lado o problema da validade sem o qual não pode de modo algum haver uma ciência da interpretação e um método de obtermos interpretações correctas. À objecção de que a hermenêutica deveria lidar com o signi­ ficado que o texto hoje tem para nós e com as estruturas ou me­ canismos pelos quais o sentido verbal se torna significativo para nós, Hirsch responde que esse é o domínio da crítica literária e dc outras áreas afins ("). De um ponto de vista restrito, a herme­ nêutica é «o esforço filológico, modesto e antiquado que visa encon­ trar o que um autor pretendia» ("). Este é o único fundamento válido para a crítica (” ) mas não é crítica; é interpretação. A her­ menêutica bem pode fazer uso da análise lógica, da biografia e mesmo do cálculo de probabilidades (para determinar quais as mais prováveis entre várias interpretações possíveis), mas mantém-se essencialmente filologia. Contudo, mesmo com esta restrição, é ainda largamente significativa e interdisciplinar; é ainda uma disci­ plina de base que enuncia princípios gerais de interpretação para qualquer documento escrito, seja ele legal, religioso, literário ou mesmo culinário. Quer dizer desta última definição de hermenêutica como con­ junto de regras constitutivas do esforço, modesto mas no entanto básico, de determ inar o sentido verbal de uma passagem? O que mais nos choca nesta definição é aquilo que ela deixa de fora; a hermenêutica não tem a ver com o processo subjectivo de com­ preensão, como em Schleiermacher e Dilthey, nem com a relação que um sentido já compreendido possa ter com o presente (crítica) mas sim com o problema de uma arbitragem entre sentidos já compreendidos, de modo a tom ar posição entre possíveis interpre­ tações conflituais. É um guia para o filólogo, que tem que decidir entre várias possibilidades qual é o sentido mais adequado de uma passagem. Portanto para Hirsch, o problema hermenêutico não seria o da «tradução» — o de como preencher a distância histórica entre, digamos, o Novo Testam ento e os dias de hoje, de modo que o texto se possa tornar significativo para nós; o problema é simples­ mente o problema filológico de determ inar o sentido verbal pre­ tendido pelo autor. Certamente que Hirsch aceitaria como problema real, a relacionação do texto com o presente, mas negaria a per-

(” ) Ver especialmente a distinção crucial no capítulo 4 de VII, inti­ tulado «Compreensão, interpretação c crítica». A hermenêutica enquanto lógica da validação, exclui por um lado a «compreensão» e por outro lado a crítica; é uma ciência ou um conjunto de princípios destinados a uma averiguação válida do sentido verbal do texto; i. e. da sua interpretação. (” ) Ibid., 57. (»•) Ibid.

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tença de tal problema ao campo da hermenêutica. É claro que para tomar esta posição ele tem que afirm ar que o sentido verbal 6 algo independente, imutável e determinado, que podemos estabelecer com uma certeza objectiva. Tal concepção de sentido verbal assenta em pressupostos filosóficos específicos, essencialmente realistas, talvez os do primeiro Husserl das «Investigações Lógicas» que Hirsch cita para justificar que o mesmo objecto intencional pode ser foco de muitos actos intencionais diferentes (M). Neste caso, o objecto mantém-se o mesmo, uma ideia ou uma essência independente. Embora a crítica detalhada dos pressupostos de Hirsch ultra­ passe o âmbito deste trabalho, é necessário observar que, quando o problema hermenêutico é definido simplesmente como problema filológico, então todo o complexo problema do pensamento actual sobre a compreensão histórica é posto de lado como irrelevante para a determinação prática do sentido verbal. A hermenêutica torna-se um conjunto de princípios filológicos de interpretação que o professor de línguas, o padre ou o advogado podem usar sem perder tempo com problemas actuais sobre filosofia da linguagem, fenomenologia, epistemologia ou antologia heideggeriana. Quem tem que se im portar com Hegel, Heidegger ou Gadamer para coligir dados sobre a «verdadeira intenção», o «sentido verbal imutável» do Lycides de M ilton? Que fazer do problema da compreensão do que Lycides pode ou deve significar para nós hoje em dia? Isso é assunto para o crítico literário, diz Hirsch. Mas é claro que o crí­ tico literário «não desdenhará» a tarefa técnica modesta, efectuada pelo «intérprete» — «a única base da crítica»— tal como o intér­ prete aprecia a pureza primitiva do sentido imutável, supra-histórico, isolado do seu significado actual. De facto, o problema hermenêutico não é simplesmente um problema filológico, e não é possível relegar para o limbo a his­ tória e as definições aristotélicas, o grosso da teoria da compreen­ são em Schleiermacher, Dilthey, Heidegger e Gadamer, para não falarmos já dos contributos (quer dentro quer fora da teologia) dados para uma definição da compreensão histórica. Hirsch defende que o sentido verbal é de facto separável do significado, visto que l.!) podemos de facto distinguir o que a obra significou para o seu autor e o que ela significa para nós e 2.°) de outro modo, tornar-se-ia impossível um sentido objectivo e repetível. Mas até que ponto este argum ento é satisfatório? O facto de um objecto mental podes ser encarado sob várias perspectivas não o torna historica­ mente imutável e eterno; e argum entar que de outro modo a objectividade seria impossível, é um círculo vicioso, visto que o

(*•) Ver o interessante apendice III dc Hirsch «An Excursis on Typo.s», ibid. 265-74.

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que está eni causa é a possibilidade de um conhecimento an-histórico e objectivo. Contudo, toda a validade do tratado de Hirsch depende da validade desta distinção entre sentido e significado. Contudo, será que a compreensão actua do modo mecânico que Hirsch pretende? Ou será esta separação entre sentido e significado uma operação estritamente reflexiva, construída depois do acto de compreensão? Não será talvez esta forma de hermenêutica uma crítica de texto disfarçada — uma metodologia para distinguir refle­ xivamente entre uma e outra forma de compreensão? Não será apenas um sistema ou estrutura para o crítico ou o filólogo usar quando avalia se um dos poemas de Wordsworth a Lucy (para usar o exemplo citado por Hirsch) reflecte uma visão da vida sombria ou positiva? Certamente que uma tal teoria hermenêutica não propõe mas antes pressupõe uma teoria de como é que a própria compreensão ocorre. (E é preciso questionar até que ponto esta teoria da com­ preensão é adequada.) Digamos que ela só começa depois da com­ preensão. Como Hirsch nota: «O acto de compreensão é primei­ ram ente uma adivinha genial (ou completamente errada), e não há métodos para fazer adivinhar, como não há regras para produzir intuições. A actividade metodológica da interpretação começa quando começamos a testar ou a criticar as nossas adivinhas.» O Ou mais explicitamente: «A disciplina da interpretação compreende a produção de ideias e a verificação das mesmas... Baseia-se não num a metodologia da construção mas antes numa lógica da vali­ dação» (°). Para Hirsch, a hermenêutica já não é teoria da inter­ pretação; é lógica de validação. É a teoria pela qual podemos dizer: «O que o autor pretendeu dizer foi isto e não aquilo.» Hirsch alcançou brilhantemente o seu objectivo: construiu um sistema único de chegar a um sentido objectivamente verificável. Mas a que preço? Em primeiro lugar, para que o significado se m antenha o mesmo, defende que a intenção do autor deve ser sempre a norma ou a regra. Em segundo lugar, para que esse significado seja objectivo, terá que ser reprodutível e imutável. Assim, Hirsch defende que o sentido verbal, enquanto sentido, é sempre o mesmo, sendo separado e separável do sentido que tem para nós quando o interpretamos. Mas será possível aceitar estas asserções? Muitas delas assentam em posições basicamente aristotélicas e numa teoria do sentido, que se coloca ela própria sobre bases filosóficas. A redefinição que Hirsch faz de hermenêutica como sendo uma lógica de validação terá realmente contribuído para uma compreen­

(•') Ibid., 207. (") Ibid.

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são do problema hermenêutico em toda a sua amplitude c com­ plexidade, ou terá apenas simplificado o problema? Ebeling defende que «o objecto da hermenêutica é a palavra evento enquanto tal»; assim a herm enêutica chega de um modo profundo à questão da realidade e à natureza da nossa participação na linguagem. O que acontece a essa visão do problema hermenêutico? Poderá ser rele­ gado para qualquer outro campo, como a filosofia da linguagem? O à-vontade com que Hirsch ignora as implicações da teoria da compreensão e da filosofia da linguagem leva a que pensemos que a especialização que ele propõe para hermenêutica é desaconselhável. O problema hermenêutico da teologia actual seria muito mais limitado se propusesse simplesmente estabelecer o provável significado verbal pretendido pelo autor! Mas imediatamente surge a questão de qual é, por exemplo, a natureza do significado da figura de São Paulo; estaria ele a tentar comunicar uma nova maneira de nos compreendermos? E as normas para chegarmos a esta conclusão estarão no próprio Paulo? Se essas normas fossem supostamente encontradas, com que bases poderíamos decidir se eram ou não válidas? Estamos novamente no presente. E é justamente esse ponto que tem que ser realçado; mesmo as regras de e para a objectividade são m anufacturadas a partir de um fabrico histórico actual. Reconhecer isto é reconhecer algo da complexidade do pro­ blema hermenêutico, uma complexidade que o intérprete é subtil­ mente encorajado a ultrapassar, devido a uma definição restritiva de hermenêutica. E assim continua o problema hermenêutico. De um lado estão os defensores da objectividade e da validação, que consideram a hermenêutica como a fonte teórica das normas de validação; do outro estão os fenomenólogos do evento da compreensão, que realçam o carácter histórico desse «evento», e consequentemente as limitações de todas as pretensões a um «conhecimento objectivo» e a uma «validade objectiva»

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SIG N IFICA D O E ÂMBITO DA HERM ENÊUTICA

Que concluir relativamente às seis definições em causa e ao conflito contemporâneo entre duas concepções radicalmente dife­ rentes quanto ao âmbito e à finalidade de hermenêutica? Podere­ mos categorizar num só termo todas essas definições (algumas das quais contraditórias) e essas duas concepções conflituais de her­ menêutica? Penso que a resposta é afirmativa. As seis definições esclarecem aspectos diferentes mas todos eles importantes do problema herme­ nêutico. E há lugar para uma hermenêutica orientada para o mé­ todo e para a validade, tal como há lugar para uma hermenêutica centrada na historicidade da compreensão — mesmo que as duas se baseiem em pressupostos aristotélicos e não estejam de acordo no problema da objectividade. Pode haver diferenças entre as várias formas de hermenêutica, mas há também muitas semelhanças subjacentes. As diversas orientações na teoria hermenêutica ilustram ;m si mesmas um princípio hermenêutico: a interpretação é molJada pela questão a partir da qual o intérprete aborda o seu tema. é bom que reconheçamos que as diferentes orientações da herme­ nêutica, não são mais do que tematizações de respostas às questões ju e os diferentes intérpretes levantaram. Dado que Hirsch procura o tipo de hermenêutica que fornece interpretações válidas, o problema da validade molda logo desde o início o curso das interrogações. O que acontece então quando a pergunta orientadora já não é «Como obter interpretações válidas?» mas sim «Qual a natureza da própria compreensão?». A preocupa­ ção com a validade dos juízos leva à questão de quais os elementos implicados na compreensão que deverão ser ignorados; de igual modo, uma centração na natureza essencial de toda a compreensão tenderá a deixar de lado o aparecimento necessário de sistemas que permitam distinguir uma interpretação válida de uma não válida. 75

Ambas as questões são pertinentes, e a sua exploração contribui para a compreensão do problema hermenêutico. Creio que o problema hermenêutico, como um todo, é dema­ siado im portante e demasiado complexo para se tornar oropr'edade de uma única escola de pensamento. Definições de hermenêutica unívocas e restritivas podem servir fins delimitados, mas devemos ter cuidado em não as tornar absolutas. É claro que é válido o debate sobre problemas específicos, como por exemplo sobre as características da compreensão histórica e da objectividade; mas a exigência feita por Betti e Hirsch de que a hermenêutica de Gada­ mer deve fornecer uma norma objectiva que distinga as interpre­ tações válidas das não válidas, não responde à intenção básica do pensamento de Gadamer: examinar a dinâmica da própria com­ preensão. Se Gadamer tivesse querido mostrar uma falha de objec­ tividade desse tipo, podia ter perguntado porque é que Betti omite a discussão do caracter ontológico da linguagem ou porque é que Hirsch não faz uma avaliação adequada do facto complexo que é a própria compreensão. Tais críticas implicariam uma teoria que fizesse aquilo que nunca é feito em primeiro lugar; são debates essencialmente indirectos sobre a natureza e o âmbito da própria hermenêutica. Em si mesmas não invalidam a teoria oposta. A her­ menêutica, apesar do conflito contemporâneo, deve manter-se um campo de estudo e uma área problemática com continuidade, aberta aos contributos de muitas e diversas tradições, algumas das quais estão mesmo por vezes em conflito.

O duplo foco de hermenêutica: o fenômeno da compreensão e o problema hermenêutico O desenvolvimento histórico da hermenêutica como um campo independente parece compreender dois focos diferenciados: um visa a teoria da compreensão em sentido geral, o outro visa o que está implicado na exegese dos textos lingüísticos, o problema herme­ nêutico. Estes dois focos não precisam de ser quer reciprocamente eliminatórios quer absolutamente independentes. No entanto, é me­ lhor tratá-los separadamente, de modo que um possa esclarecer o outro. Ao apoiar-se numa teoria geral da compreensão lingüística a hermenêutica mantém-se fiel ao seu passado grandioso, com Schleiermacher e Dilthey: É propensa a examinar qual a natureza da compreensão e a colocar de um modo genérico a questão: O que é compreender? O que acontece quando afirmo que «compreendo»? Esta última interrogação destina-se especificamente realçar o carác­ ter eventual da compreensão. U m a teoria da compreensão torna-se extremamente significativa quando considera a experiência vivida 76

— o evento da compreensão — como seu ponto de partida. Deste modo, o pensamento orienta-se para um facto, um evento em toda a sua concreticidade, mais do que para uma ideia; torna-se uma fenomenologia do evento da compreensão Uma fenomenologia da compreensão deste tipo não pode ser encarada de um modo estreito e doutrinário, mas sim enquanto se abre a todos os outros campo» que possam contribuir para uma apropriação mais funda do que 6 ’■ compreensão e de como é que ela ocorre, tais como a epistcmologia, ontologia, a fenomenolgia da percepção, a teoria da aprendizagem a filosofia dos símbolos, a análise lógica e assim por diante. O segundo foco, designado como «problema hermenêutico» é uma instância específica do evento da compreensão: envolve sempre a linguagem, a confrontação com um outro horizonte humano, um acto de penetração histórica do texto. A hermenêutica precisa de entrar cada vez mais fundo neste acto complexo da compreensão; tem que lutar para formular uma teoria da compreensão lingüística e histórica tal como funciona na interpretação do texto. Uma teoria deste tipo deve harmonizar-se e relacionar-se com uma fenomeno­ logia geral da compreensão; ao mesmo tempo, ela própria dará contributo para um campo tão geral. Esta interpretação lata do problema hermenêutico encara o evento da compreensão de um texto como incluindo sempre um momento de relação com o presente; de facto, a ausência desta relação tornar-se-ia imediatamente um problema hermenêutico. A visão do problema hermenêutico apresentada por Hirsch deixaria de lado o próprio momento da compreensão e centrar-se-ia na necessidade de julgar entre vários tipos de compreensão; a herme­ nêutica já não é uma fenomenologia da compreensão, mas sim uma lógica da validação. A finalidade da hermenêutica reduzir-se-ia a uma mera determinação de «o que é que o autor pretendia dizer», excluindo a questão de como é que isso se torna significativo para nós. Enquanto que a lógica de validação tem que ser considerada como uma parte legítima do problema hermenêutico, o problema hermenêutico, entendido no seu sentido mais lato, coloca um desafio fundamental: o de «agarrar» e ser «agarrado» pela significação do texto. O problema mais fundo é portanto em primeiro lugar o de conseguir um diálogo significativo com um texto, c deve basear-se na definição mais completa possível do que significa compreender um texto; não é simplesmente uma arbitragem entre interpretações rivais.

Potencial contributo que outras áreas dão à hermenêutica Quando os focos da hermenêutica se definem pela inclusão de uma fenomenologia geral da compreensão e de uma fenomenologia 77

específica do evento da interpretação do texto, então o âmbito da herm enêutica torna-se realm ente vasto. No entanto, como foi dito o âmbito do problema hermenêutico é tal que a hermenêutica não se pode isolar como um campo fechado e especializado. N a verdade, um dos grandes impedimentos do desenvolvimento histórico da her­ menêutica não especializada foi o facto de ela não se radicar em nenhum a disciplina estabelecida. Enteada da teologia, fruto imper­ feito da filologia, a hermenêutica não teológica só agora aparece como área determinada. Mas como o interesse por este tf ma foi movimentado pela Nova Hermenêutica, por Betti, Gadamer. Hirsch, Ricoeur e o último Heidegger, há razões para esperar um futuro melhor. Se assim for, a hermenêutica pode realmente estar num estádio inicial do seu desenvolvimento como disciplina geral. É certo que a exploração daquilo que outras áreas poderiam dar à teoria herme­ nêutica ainda mal começou de um modo sistemático. O excelente estudo de Ricoeur sobre Freud mostra o contributo frutífero que pode dar a exploração de um sistema interpretativo. A obra monu­ m ental de Betti cobre um corte transversal das disciplinas interpretativas humanísticas. O ensaio de Gadamer sobre hermenêutica filosófica pode encarar-se como revelação do impacte frutífero da análise ontológica de Heidegger sobre a compreensão. No entanto, há muitos outros campos que precisam de ser explo­ rados pelo significado que poderiam ter para a teoria hermenêutica. Por exemplo, as muitas áreas de estudo relacionadas com a lingua­ gem, tais como a lingüística, a filosofia da linguagem, a análise lógica, a teoria da tradução, a teoria da informação e a teoria da interpretação oral (discurso). A crítica literária — não só a sua variante fenomenológica em França e as obras de Roman Ingarden, como também a Nova Crítica contextualista e a crítica do mito — precisam dc ser exploradas pelo significado que têm para uma teoria geral da interpretação. E a fenomenologia da linguagem é indispen­ sável para a teoria hermenêutica, não só os trabalhos recentes de Merleau-Ponty, Gusdorf, Kwant e outros, mas também o contributo de Husserl, incluindo as primitivas Logische Untersuchungen. É um facto que muitas áreas, não especificamente relacionadas com a linguagem, apresentam uma importância potencial conside­ rável para a hermenêutica. Não podemos ignorar todo o problema da filosofia da mente e o debate sobre epistemologia no nosso século. A obra de Cassirer nesta área, tal como a sua filosofia geral das formas simbólicas, é im portante para a teoria hermenêutica. As várias formas de fenomenologia — da percepção, da compreensão musical, da estética — ajuaam a mostrar a temporalidade e as raízes existenciais da compreensão. A filosofia da interpretação do direito, da história e da teolo­ gia especialmente a recente Nova Hermenêutica e o projecto pri­ 78

mitivo de desmitologização — todos eles trazem clcmcnlos impor­ tantes ao fenômeno da interpretação. As questões da novidade c da criatividade na estética tal como foram exploradas por liausm un c outros, são contribuições relevantes para a tarefa hermenêutica de compreender o que está fora do nosso actual horizonte de com­ preensão. Toda a questão da metodologia na filosofia da ciência, as experiências com métodos de observação participativa cm Socio­ logia, a psicologia da aprendizagem e da imaginação, todas elas são ricamente sugestivas para novas orientações do pensamento sobre esse processo a que chamamos interpretação. Poderíamos nomear muitas outras áreas, mas estas são suficientes para sugerir que a hermenêutica se poderia tornar num cruzamento interdisciplinar para o pensamento significativo que permitisse a alguns destes cam­ pos perspectivar as suas áreas problemáticas própria num contexto mais compreensivo. São necessários muitos estudos concretos para desenvolver e clarificar o significado destas áreas para a teoria her­ menêutica. A presente obra não pode levar isso a cabo, mas incluí­ mos na secção C da Bibliografia algumas obras dos campos men­ cionados. Proponho-me nos capítulos seguintes clarificar de certo modo a amplitude e a complexidade do problema hermenêutico, e apontar para um conceito de hermenêutica mais lato do que qualquer um até agora em vigor na língua inglesa. As obras do Professor Hirsch tornaram acessível uma definição altamente restritiva da interpre­ tação, em termos de lógica da validação. Muitas das recentes obras que explicam a Nova Hermenêutica, tendem a abordá-la num con­ texto essencialmente teológico. O aparecimento do livro de Gada­ mer em inglês, será decisivo para o alargamento do conceito cor­ rente de hermenêutica. Contudo, espero que o presente ensaio ajude a clarificar o significado desse acontecimento previsto, pois a herme­ nêutica deve ser considerada como mais do que uma lógica da validação filológica, como mais do que um novo movimento vital, dentro da teologia contemporânea. É uma área ampla centrada no evento da compreensão textual com todas as suas ramificações. As presentes abordagens do tema são insuficientes para sugerir as possibilidades de uma hermenêutica basicamente filológica, como foi sugerido pela tônica fenomenológica neste campo, em Heidegger c em Gadamer. Será talvez possível colocar os fundamentos de uma concepção mais ampla de hermenêutica e iniciarmos uma apreciação do seu significado potencial, através da apresentação da hermenêu­ tica, em quatro pensadores que professam a mesma abordagem lata por mim defendida.

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SEGUNDA PA RTE

QUATRO GRANDES TEÓRICOS

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DOIS PRECURSORES DE SCHLEIERM ACHER

Para podermos apreciar a natureza e magnitude do contributo de Schleiermacher para o desenvolvimento da teoria hermenêutica, é necessário atendermos ao estado da hermenêutica no seu tempo, e particularmente às concepções avançadas por dois grandes eru­ ditos da filologia coeva, Friedrich Ast e Friedrich August Wolf. Schleiermacher desenvolveu o seu conceito de hermenêutica a partir de tentativas iniciais formuladas sob forma de aforismos, em 1805 e 1806, num diálogo mais ou menos explícito com Ast e Wolf. Na abertura das suas conferências sobre o tema, em 1819, apelou para uma nova concepção de hermenêutica, referindo-se logo nas primeiras frases a dois célebres filólogos (*); aliás, o título das suas Akademiereden de 1829 era «Sobre o conceito de herme­ nêutica nas suas relações com as Indicações de F. A. Wolf e com o manual de Ast» (J). Assim, o conhecimento de algo da obra de Wolf e de Ast torna-se um pré-requisito para a compreensão de Schleiermacher. Como veremos, muitas das suas concepções conti­ nuaram a ser importantes em hermenêutica, dignas só por si da atenção de todo aquele que pretende penetrar nas várias orienta­ ções e na complexidade da hermenêutica como um todo.

Friedrich Ast Friedrich Ast (1778-1841) publicou dois trabalhos de relevo sobre filologia em 1808: Grurtdlinien der Grammatik, Hermeneutik (') Die Hermeneutik ais Kunst des Verstehens existirI noch nichl atlgemein sondern nur mehere specielle Hermeneutiken. Asts Erkl., S. 172, Wolf S. 37 (H 79). (a) Über den Begrijj der Hermeneutik, mit Bezug au/ /•’. A. Wolfs Andeulungen und Asts Lehrbuchs, ibid., 123.

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und K ritik (Elementos básicos de G ramática, de Hermenêutica e de Crítica) e Grundriss der Philologie (Esboços de Filologia). Dado que Schleiermacher se refere ao primeiro, a presente discussão irá focá-lo. Grundlinien der Grammatik, H ermeneutik und K ritik esclarece a finalidade e o objecto do estudo filológico e foi origi­ nalmente concebido como uma introdução a Grundriss. Para Ast, o objectivo essencial é captar o «espírito» da antiguidade, revelado com nitidez na herança literária (3). As formas externas da antigui­ dade, apontam todas para uma forma interna, para uma unidade intrínseca do ser, harmoniosa nas suas partes, podendo ser desig­ nada como o Geist da antiguidade. A filologia não é uma questão de manuscritos poeirentos e de pedantismo gramatical árido; não aborda o factual e o empírico como fins em si mesmos mas como meios para alcançar o conteúdo externo e interno de uma obra, como uma unidade. Essa unidade aponta para uma unidade maior do «espírito», fonte de uma unidade intrínseca de obras indivi­ d u ais— uma ideia obviamente derivada do conceito de Volksgeist de Herder, tratando-se aqui do Volksgeist da antiguidade grega ou romana. Devido a este encontro com o «espírito», o estudo da filologia tem valores «espirituais»; serve uma finalidade «pedagógico-ética»: assemelhar-se aos gregos. «A antiguidade não só é o paradigma (M ustef) da cultura artística e científica mas sim da vida em geral,» (*) Mas não podemos captar o espírito da antiguidade sem termos em conta as palavras que usa; a linguagem é o principal meio de transmissão do espiritual. Temos que estudar os escritos da antigui­ dade, e para o fazer precisamos de gramática, o que justifica o pri­ meiro termo do título: G rammatik. Acrescentaremos ainda que a leitura dc um autor antigo pressupõe alguns princípios fundamen­ tais para o compreendermos e explicarmos correctamente «e assim o estudo das línguas antigas tem que estar sempre ligado à herme­ nêutica» (5). Aqui a hermenêutica é claramente separada do estudo da gramática. Ela teoriza o modo como se extrai o significado espi­ ritual (geistige) do texto. A nossa participação comum no Geist é a causa que permite apreender o significado de escritos transmitidos desde a antiguidade. Geist é o ponto central de toda a vida e é o princípio que perm anentem ente a enforma (*). Ast pergunta: «Ser-nos-ia possível compreender os pontos de vista, os sentimentos e as ideias mais estranhos e menos conhecidos se tudo aquilo que é

(’) VI, 33. A breve discussão que faço de Ast e de Wolf i largamente devedora dos capítulos de Joachim Wach em V I: 31-62 sobre Ast e 61-62 sobre Wolf. (<) Ibid., 36. (5) Ibid., 37. («) GGHK 7; citado em VI, 38.

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e pode ser não estivesse de um modo primordial ligado ao ( lrl.il)’ É ele que os revela, como uma luz eterna quando se reporte cm milhares de cores» OO conceito de unidade espiritual das humanidades (Elnheit
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Aplicado a uma ode de Píndaro, este triplo padrão funciona do seguinte modo: o primeiro nível refere-se ao objecto (Gegenstand) que nesta ode particular é o Kampfspiele (a luta) cantada pelo poeta; o segundo nível (gramatical) refere-se à apresentação plástica na linguagem (não é uma mera análise gramatical); o terceiro nível (o geistige) refere-se ao seu espírito, resplandecente de amor patriótico, de coragem e de heróicas virtudes. Os níveis histórico, gramatical e geistige são essencialmente aquilo a que podemos chamar o tema, a form a e o espírito da obra. E o espírito da obra revela quer o espírito geral da época quer a individualidade (o «génio») do seu autor; é de facto uma mistura de ambos, que interactuam e m utua­ mente Se esclarecem (1J). Ast distingue entre níveis de compreensão, como os que foram apresentados e níveis de explicação. Contudo, paralelamente aos níveis de compreensão histórica, gramatical e geistige há três níveis de explicação: a hermenêutica de letra (Her­ m eneutik des Buchstabens), a hermenêutica do sentido (Hermeneu­ tik des Sinnes) e a hermenêutica do espírito (Hermeneutik des Geistes). A hermenêutica da letra é concebida dum modo batsante mais lato, pois inclui quer a explicação de palavras (que aparentemente envolve a compreensão gramatical) quer a explicação do contexto factual (Versthen der Sache) tal como a do cenário histórico (com­ preensão histórica). Este primeiro tipo de hermenêutica exige não só um conhecimento factual do meio histórico como também um conhecimento da língua, das suas transformações históricas e das suas características individuais. A hermenêutica do sentido ou do «significado» refere-se à exploração do génio da época e do autor. Determ ina o sentido pois toma uma direcção específica devido ao lugar em que ocorre (die Bedeutung in dem Zusammenhang einer gegebenen Stelle). Por exemplo, um juízo em Aristóteles pode ter um sentido diferente de um juízo literalmente muito semelhante em Platão (*’) e mesmo dentro da mesma obra, duas passagens lite­ ralm ente semelhantes podem variar no seu sentido ou significado consoante o lugar que ocupam relativamente à obra como um todo. Devido à complexidade de tais determinações, é preciso que haja um conhecimento da história literária, da form a particular que foi utilizada, e da vida e outras obras do autor, de modo a que se possa captar exactamente o sentido de um a determinada passagem. O terceiro nível, a hermenêutica do espírito, procura a ideia que controla (Grundidee, ideia fundante) a visão da vida (.4mchauung, ponto de vista, especialmente em autores históricos), e a concepção básica (B egriff, especialmente em obras filosóficas) que encontra a sua expressão ou incorporação na obra. No caso de

(” ) GGHK 1*3-84; VI. 4g. ('*) GGHK 1ÍS-9Í; VI. 5é.

u

procurarmos «a mundividência», há uma multiplicidade na reve­ lação da vida; no entanto, quando procuramos a «concepção bá­ sica», por detrás da multiplicidade encontramos a unidade da forma. Para Ast, o conceito de uma ideia controladora representa uma com­ binação dos outros dois momentos significativos, mas só os grandes autores e artistas conseguem esta síntese total c harmoniosa na qual o conteúdo conceptual e a mundividência se situam num comple­ mento equilibrado no interior da ideia controladora. Visto que a ênfase dada à ideia é um aspecto muito comum ao pensamento romântico alemão, não nos surpreende encontrá-la na hermenêutica de Ast. Merece crítica o facto dc que, para Ast, a reconciliação harmoniosa da «mundividência» com a «ideia fundante» leva à transcêndência do temporal: «Toda a temporalidade se dissolve numa explicação geistige» (” ). Assim, o interesse român­ tico pela história subordina-se à ideia, tal como se subordinam a admiração romântica pelo génio e pela individualidade; todos eles são manifestação do Geist. A defesa heideggeriana no século xx, do carácter radicalmente histórico da realidade humana (c assim da própria realidade) é estranha aos pressupostos idealistas dc Ast. Nem no contexto dos pressupostos racionalistas do Umnlnismo, nem nos pressupostos dos Românticos, a história se tornou realmente histórica; ela é apenas um material bruto do qual se dedu/ uma verdade intemporal ou um Geist intemporal. Há uma outra ideia no pensamento de Ast, que anuncia futuras orientações em hermenêutica: o conceito do processo dc compreen­ são como Nachbildung, reprodução. Nos Grundlinicn Ast encara o processo de compreensão como uma repetição tio processo cria­ tivo. Esta visão do modo como a compreensão ocorre e essencial­ mente semelhante à de Schlegel, Schleiermacher e mais tarde Dilthey e Simmel. O significado hermenêutico disto está na relação da explicação com o processo criativo como um todo: a interpretação e o problema interpretativo devem obviamente ser relacionados com os processos do conhecimento e da criatividade ( om este con­ ceito de compreensão enquanto Nachbildurig, a hermenêutica ultra­ passa significativamente a hermenêutica filológica e teológica da época anterior, ligando-se agora a um aspecto do processo do conhe­ cimento relacionado com a teoria da criação artística, pois a com­ preensão reproduz o processo artístico da criação. Anteriormente, a interpretação não tinha sido considerada na sua relação com uma teoria da criação artística. Joachim Wach vai ao ponto dc dizer que

(») GGHK 199; VI. 57. «7

o estabelecimento desta relação foi um dos principais contributos
Friedrich August Wolf Friedrich August W olf (1759-1824) foi o mais brilhante e o melhor conhecido dos dois filólogos. Foi também o menos sistemá­ tico, pois embora as Grundlinien de Ast constituam uma espécie de sistema, Wolf pouco se importou com sistemas. Nas suas Vorlesung über die Enzyklopádie der Altertumwissenschaft, definiu a herm e­ nêutica como «ciência das regras pelas quais se reconhece o sen­ tido dos signos» (“ ). N aturalm ente que as regras variavam com o objecto, e assim há um a hermenêutica para a poesia, para a his­ tória e para o direito. W olf defendia que cada regra deveria ser obtida através da prática; a hermenêutica torna-se assim um a pes(“ ) «Herder führt zucrst in grõssercm Still eine literarkrltisch-ãsthetische Betrachtung der Bibel durch ... Bis dahin allerdings hatte mans wenig auf die /.usammcnhange von Interpretation und Theorie des Schaffens geachtet: hier lmt vor Boeckh von aliem Humboldt gewirkt, Ich sehe gerade darin einen Teil von Asls Bedeutung für die Geschichte der hermeneutischen Theorie, dass ich philologlschc Vorgãnger zu nennen wüsste — auf diese Zusamonenhãnge hinKcwlcscn hat» (VI, 52). ('•) «Die Wissenschaft von den Regeln, aus denen die Bedeutung der Zelchcn erknnnt wird» (VEA 290; VI, 67).

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Para Wolf, o objectivo da hermenêutica é «captar o pensa­ m ento escrito ou mesmo oral de um autor como ele desejaria ter sido captado» ("). A interpretação é diálogo, diálogo com um autor. E certam ente que não caímos no psicologismo quando sugerimos que uma obra é um esforço de comunicação, e que o objectivo da hermenêutica é a comunicação perfeita, isto é, a captação do tema ou da ideia do autor como ele gostaria de ter sido captado. Wolf defende que o intérprete deve estar «temperamentalmente apto» para compreender o tema, de modo a poder explicá-lo a outros. Dverá ter um talento geral de empatizar com pensamentos alheios; deverá ter «essa leveza de espírito» que «depressa sintoniza com outros pensamentos» (**). Sem uma aptidão para o diálogo, para entrar no universo m ental de uma outra pessoa, a explicação — e consequentemente a hermenêutica — 6 impossível. Tal como em Ast, a explicação tem que basear-se na compreen­ são, e a compreensão distingue-se da explicação. O sentido de uma imagem é captado directamente na compreensão. Avançamos um passo quando damos uma explicação oral ou escrita dessa imagem. Segundo Wolf compreendemos para nós mesmos mas explicamos p a r a os outros. Logo que determinamos que a nossa tarefa é expli­ car, temos também que saber para quem se esboça a explicação. A forma e o conteúdo de uma explicação variará consoante a inter­ pretação se dirigir a um novato cheio de entusiasmo, a um leitor desinteressado ou a um sagaz erudito interessado nos mínimos cambiantes. Mas tal como Wolf diz, numa pitoresca mistura de alemão e latim Niemand Kann interpretari, nisi subtiliter inlellexeril A hermenêutica tem portanto inevitavelmente duas vertentes: a compreensão (verstehenden) e a explicação (erklarenden). Tal como Ast, W olf propõe uma hermenêutica tripla; mas falta-lhe a metafísica do Geist no seu terceiro estádio. Ou por outra é mais prático do que Ast. Os três níveis ou espécies de interpretação são: interpretatio grammatica, histórica e philosophica (” ). A gra­ mática lida com tudo aquilo que a compreensão da língua pode fornecer para ajudar na interpretação. A hermenêutica histórica preocupa-se não só com os factos históricos da época mas também com um conhecimento factual da vida do autor, dc modo a chegar a um conhecimento daquilo que o autor sabia. Obviamente que os factos históricos gerais são importantes, mesmo quando se trata O7) «(Die) geschriebene oder auch bloss mündlich vorgetragene Gcdanken emes ander ebenso zu fassen, wie er sie gefasst haben w ill.» ( V E A 293 ; V I , 6 8.) (■•) VEA 273; VI, 72. (■•) VEA 273; VI, 74. (*) VEA 290-95; VI, 77-78. 89

ilc conhecer os caracteres físicos e geográficos de um país. Resu­ mindo, o intérprete deverá possuir todo o conhecimento histórico possível. O nível filosófico da interpretação serve de verificação lógica ou de controle para os outros dois níveis. Em toda a obra de Wolf é dada ênfase ao que é prático e factual; no entanto, não há qualquer básica sistemática na confusão das regras de abordagem dos diferentes problemas. As regras mantêm-se como um agregado de observações sobre as dificuldades específicas da interpretação. Esta breve abordagem à hermenêutica de Ast e de Wolf ajuda a introduzir a hermenêutica filológica da época de Schleiermacher. Embora 'o eminente Ernesti e o seu seguidor Morus, escrevessem em latim, tanto Ast como Wolf escreveram em alemão. Os elemen­ tos de interpretação «gramatical» colocados por Ernesti, são ainda essenciais em Ast e Wolf; mas talvez devido ao uso do alemão, a captação da realidade histórica tem mais cambiantes e é mais pro­ fundo o interesse que nela se põe. Com a passagem para o alemão, há um aprofundam ento dos níveis histórico e filosófico de inter­ pretação. Esta orientação para o aspecto filosófico é transposta para Schleiermacher, para que a interpretação gramatical ainda é básica; no entanto, a insistência na consistência filosófica acentua-se à medida que a herm enêutica se orienta para uma interpretação psicológica e para uma fundamentação numa concepção sistemá­ tica das operações da compreensão humana no diálogo.

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7

O PROJECTO DE SCHEIERM ACHER DE UMA HERM ENÊUTICA GERAL

«A hermenêutica como arte da compreensão não existe como uma área geral, apenas existe uma pluralidade de hermenêuticas especializadas.» (') Esta asserção programática com a qual Schleier­ m acher abriu as suas conferências de 1819 sobre hermenêutica, enuncia numa frase o seu objectivo fundamental: construir uma hermenêutica geral como arte da compreensão. Essa arte, afirma Schleiermacher, é na sua essência a mesma, seja o texto um documento jurídico, um escrito religioso ou uma obra de arte. É certo que há diferenças entre essas várias espécies de textos, e por essa razão cada disciplina tem as suas ferramentas teóricas para os seus problemas particulares; mas subjacente a essas diferenças há uma unidade fundamental. Os textos exprimem-se numa língua e assim utiliza-se a gramática para encontrar o sentido de uma frase; há uma ideia geral que interactua com a estrutura gramatical para form ar o sentido, seja qual for o tipo de documento. Se fossem for­ mulados os princípios de toda a compreensão da linguagem, certa­ mente que incluiriam uma hermenêutica geral. Uma hermenêutica desse tipo poderia servir de base e de centro a toda a hermenêu­ tica «especial». Mas, diz Schleiermacher, ainda não existe uma hermenêutica desse tipo. Em vez dela, existiriam várias «hermenêuticas» especiais, Em primeiro lugar a filológica, a teológica e a jurídica. E mesmo dentro da hermenêutica filológica, não haveria coerência sistemá­ tica. Pelo contrário, Friedrich August Wolf defendera que preci­ sávamos de uma hermenêutica diferente para a história, para a poe­ sia e para os textos religiosos e consequentemente para as subvariantes dentro de cada uma destas classificações. Para Wolf a her­ menêutica era um a coisa muito prática: um corpo de sabedoria para

(*) H 79. Ver cap. 6, nota 1.

fl

abordar os problemas específicos da interpretação. Há regras e conselhos para os problemas de interpretação mais diversos, talha­ dos para a lingüística particular e para as dificuldades históricas levantadas pelos textos antigos em hebreu, em grego e em latim. A hermenêutica era um corpo teórico que ajudava na tarefa de tradução de textos antigos, mas a teoria tinha-se vindo simples­ mente a acum ular à medida que mais elementos eram considerados importantes na compreensão dos textos antigos. A grande herme­ nêutica de Ast tinha um a orientação mais filosófica mas ainda procurava ser enciclopédica, baseando-se num idealismo metafísico, inaceitável para Schleiermacher. Faltava ainda a disposição para exam inar o acto fundante de toda a hermenêutica: o acto de com­ preensão, o acto de um ser humano vivo, dotado de sentimentos e intuições. Em 1799, no seu famoso curso dirigido aos eruditos depreciadores da religião, já Schleiermacher tinha negado decisivamente que a metafísica e a moral constituíssem a base do fenômeno religioso. A religião não diz respeito ao homem que vive de acordo com um a ideia racional, mas sim àquele que vive, age e sente a sua situação de criatura dependente de Deus. De modo similar, a her­ menêutica foi defendida por Schleiermacher enquanto relacionada com o ser humano concreto, existente e actuante no processo de compreensão do diálogo. Quando começamos pelas condições que pertencem a todo o diálogo, quando nos afastamos do racionalismo, da metafísica e da moral, quando examinamos a situação concreta e actual implicada na compreensão, então arrancamos para um a hermenêutica viável que poderá servir de núcleo central de uma hermenêutica especial, tal como por exemplo a bíblica. Schleiermacher defendeu que a arte da exploração, que cons­ tituíra uma grande parte da teoria hermenêutica, estava fora da hermenêutica. «Logo que a exploração se torna mais do que o exterior da compreensão, torna-se arte de apresentação. Só aquilo a que Ernesti chama subtilitas intelligendi (acuidade da compreensão) pertence genuinamente à hermenêutica O . A explicação, em vez de arte da «compreensão» vai transformar-se imperceptivelmente em arte de formulação retórica. No diálogo, uma coisa é a operação de form ular e de o transform ar em discurso; outra, totalmente diferente, é a operação de compreender aquilo que é dito. SchleierO «Eigentlich gehort nur das zur Hermeneutik was Ernesti Prol. 4 [IINT] subtilitas inteligendi nennt. Denn die [subtilitas] explicandi sobald sie mehr ist ais die ãussere Seite des Verstehens ist wiederum ein Object der Her­ meneutik und gehort zur Kunst des Darstellens» (H 31). Este aforismo data provavelmente de 1805 e figura entre os primeiros comentários escritos de Schleiermacher sobre hermenêutica. Ao mesmo tempo é uma das suas intuições nials significativas, pois marca a hermenêutica como arte de compreensão, mais do que como arte de explicação.

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macher defende que a hermenêutica lida com este último típ c itn Esta distinção fundamental entre falar e compreender constitui a base para uma nova orientação em hermenêutica c abriu cuinl nho a uma base sistemática para a hermenêutica na teoria du compreensão. Se a hermenêutica já não se dedica essencialmente a clarificar os vários problemas práticos na interpretação dos ilifc rentes tipos de texto, então poderá tom ar o acto de compreensão como o seu verdadeiro ponto de partida: em Schleiermacher, a hermenêutica transforma-se verdadeiramente numa «arte da com­ preensão». E assim Schleiermacher coloca esta questão geral como ponto de partida da sua hermenêutica: como é que toda ou qualquer expressão lingüística, falada ou escrita, é «compreendida»? A situa­ ção de compreensão pertence a uma relação de diálogo. Em todas as situações desse tipo há uma pessoa que fala, que constrói uma frase com sentido, e há uma pessoa que ouve. O ouvinte recebc uma série de meras palavras, e subitamente, através de um pro­ cesso misterioso, consegue adivinhar o seu sentido. Este processo misterioso, um processo de adivinhação, é o processo hermenêutico. É o verdadeiro lugar da hermenêutica. A hermenêutica é a arte de ouvir. Voltamo-nos agora para alguns princípios desta arte ou processo.

A compreensão como um processo de reconstrução Para Schleiermacher, a compreensão enquanto arte é voltar de novo a experim entar os processos mentais do autor do texto. É o reverso da composição pois começa com a expressão já fixa e acabada e recua até à vida mental que a produziu. O orador ou autor construiu uma frase; o auditor penetra nas estruturas da frase e do pensamento. Assim a interpretação consiste em dois momentos interactuantes: o momento «gramatical» e o «psicológico» (no sentido lato de tudo aquilo que se inclui na vida psíquica do autor). O princípio em que assenta esta reconstrução, seja ela gramatical ou psicológica, é o do círculo hermenêutico.

O círculo hermenêutico Compreender é uma operação essencialmente referencial; com­ preendemos algo quando o comparamos com algo que já conhece­ mos. Aquilo que compreendemos agrupa-se em unidades sistemá­ ticas, ou círculos compostos de partes. O círculo como um todo define a parte individual, e as partes em conjunto formam o círculo. Por exemplo, uma frase como um todo é uma unidade. Compreen 93

demos o sentido de uma palavra individual quando a consideramos na sua referência à totalidade da frase; e reciprocamente, o sentido da frase como um todo está dependente do sentido das palavras individuais. Consequentemente um conceito individual tira o seu significado de um contexto ou horizonte no qual se situa; contudo o horizonte constrói-se com os próprios elementos aos quais dá sentido. Por uma interacção dialéctica entre o todo e a parte, cada um dá sentido ao outro; a compreensão é portanto circular. E por­ que o sentido aparece dentro deste «círculo», chamamos-lhe o «círculo hermenêutico». É claro que o conceito de círculo hermenêutico envolve uma contradição lógica; pois se temos que captar o todo antes de poder conhecer as partes, então nunca compreenderemos nada. E no en­ tanto afirmámos que as partes tiram o seu sentido do todo. Por outro lado, não podemos certamente começar com um todo, não diferenciado em partes. Será que o conceito de círculo hermenêutico não tem validade? Não; apenas temos que dizer que a lógica não valida totalmente as tarefas da compreensão. Há como que uma espécie de «salto» no círculo hermenêutico e compreendemos simul­ taneam ente o todo e as partes. Schleiermacher deixou lugar para um factor deste tipo quando considerou a compreensão em parte como uma questão comparativa, em parte como um a questão intuitiva e divinatória. Para actuar eficazmente o círculo hermenêutico implica um elemento de intuição. Com a sua imagem espacial, o círculo hermenêutico propõe uma área de compreensão partilhada. Visto que a comunicação é uma relação dialógica, presume-se desde o início uma comunidade de sentido, partilhada por quem fala e por quem ouve. Isto parece envolver outra contradição: aquilo que tem que ser compreendido já deve ser sabido. Mas não será esse o caso? Não será vão falar de am or a quem não conheceu o amor, ou das alegrias de aprender a quem renunciou a elas? Temos que previamente possuir, até certo ponto, um conhecimento do tema em causa. Isso pode ser designado como o conhecimento prévio, minimamente necessário à compreensão, sem o qual não podemos saltar para o círculo hermenêutico. Tomemos um exemplo comum, a experiência da ininteligibilidade inicial para quem lê um grande autor, digamos um Kirkegaard, um Nietzsche ou um Heidegger; o problema é captar a orientação global do autor, sem a qual as asserções indivi­ duais e mesmo as obras completas não têm significado. Por vezes uma simples frase esclarecerá e construirá num todo significativo tudo o que previamente era incoerente, precisamente porque sugere «toda a coisa» sobre a qual o autor tem vindo a falar. O círculo hermenêutico então opera, não só a nível lingüístico como também a nível do tem a em causa. Tanto o que fala como o que ouve devem partilhar a linguagem e o tema do seu discurso. 94

Tanto a nível do medium do discurso (linguagem) como du mulériii do discurso (tema), o princípio do conhecimento prévio ou o círculo hermenêutico — opera em todo o acto de compreensão.

Interpretação gramatical e interpretação psicológica No pensamento mais tardio de Schleiermacher há uma tendência crescente para separar a esfera da linguagem da esfera do pensa­ mento. A primeira é a província da interpretação «gramatical» enquanto que Schleiermacher começou por chamar ao segundo «técnico» (technische) designando-o mais tarde de «psicológico». A interpretação gramatical localiza a asserção de acordo com leis gerais e objectivas; o aspecto subjectivo da interpretação centra-se naquilo que é subjectivo e individual. De acordo com Schleierma­ cher, «tal como todo o discurso tem uma relação dupla, quer com a totalidade da linguagem quer com o pensamento do autor, tam­ bém em toda a compreensão de um discurso há dois momentos: a sua compreensão como algo extraído da linguagem e com um ‘facto’ no pensamento daquele que fala» (’). A interpretação «gra­ matical» pertence ao momento da linguagem e Schleiermacher encarava-a como um procedimento essencialmente negativo, geral e mesmo limitativo, no qual se coloca a estrutura em que opera o pensamento. Contudo, a interpretação psicológica procura a individualidade do autor, o seu génio particular. Para isso é neces­ sária uma certa adequação com o autor; não se trata de uma operação que estabeleça fronteiras, mas antes do lado verdadeira­ mente positivo da interpretação. Certamente que ambos os aspectos da interpretação são neces­ sários e de facto interactuam constantemente. Os usos individuais da língua acarretam mudanças na própria língua, e no entanto um autor defronta-se com uma língua sendo obrigado a imprimir nela a sua própria individualidade. O intérprete compreende a individua­ lidade do autor relativamente ao geral mas compreende-a também de um modo positivo, quase de um modo directo e intuitivo. Tal como o círculo hermenêutico envolve a parte e o todo, a inter­ pretação gramatical e psicológica como uma unidade, envolve o específico e o geral; este último tipo de interpretação é geral e limitativo, bem como individual e positivo. A interpretação grama­ tical mostra-nos a obra na sua relação com a língua, tanto na estru­ tura das frases como nas partes interactuantes de uma obra e também com outras obras do mesmo tipo literário; assim, podemos ver o princípio das partes e do todo, em acção na interpretação

(5) Ibid., 80.

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r gramatical. De igual modo, a individualidade do autor e da obra têm que ser vistas no contexto dos factos mais amplos da sua vida, contrastando com outras vidas e com outras obras. O princípio de interacção e de esclarecimento recíproco da parte e do todo é essencial para os dois aspectos da interpretação. Tudo isto pressupõe que a hermenêutica tem como m eta a reconstrução da experiência mental do autor do texto, um ponto que é particularm ente claro na afirmação de 1819: « arte [da interpretação] só pode desenvolver as suas regras fora de uma fórmula positiva que é: a reconstrução histórica, divinatória, objectiva e subjectiva de um a dada expressão lingüística (4). É óbvio que Schleiermacher pretende experim entar de novo aquilo que o autor experimentou e não vê a expressão lingüística separadamente do seu autor. Contudo, é bom assinalarmos que este experimentador de novo não precisa de ser encarado como «psicanálise» do autor; antes se limita a afirm ar que a compreensão é uma arte de recons­ truir o pensamento de outra pessoa. Por outras palavras, o objec­ tivo não é atribuir motivos ou causas aos sentimentos do autor (psicanálise) mas sim reconstruir o próprio pensamento de outra pessoa através da interpretação das suas expressões lingüísticas. N a realidade, a reconstrução plena da individualidade de um autor nunca pode derivar da análise das causas; tal facto ficaria sempre desesperadamente ao nível do geral. Para a interpretação psicológica é necessária uma abordagem basicamente intuitiva. A abordagem gram atical pode usar o método comparativo e pro­ ceder do geral para as particularidades do texto; a abordagem psicológica utiliza tanto o método comparativo como o «divinatório». O [método] divinatório é aquele em que nos transformamos no outro, de modo a captar directamente a sua individualidade (5). Neste momento da interpretação, saímos de nós próprios e transformamo-nos no autor, de modo a podermos captar numa plena imediatez, o seu processo mental. Contudo, o objectivo último não é «com­ preender» o autor de um ponto de vista psicológico; é antes ter acesso mais pleno àquilo que é significado no texto.

A compreensão hermenêutica como compreensão de estilo A abordagem da ênfase dada por Schleiermacher aos aspectos psicológicos e intuitivos pode levar-nos a esquecer a forte insis­ tência no papel central da linguagem, sempre presente nas suas

(4) Ibid., 87. (") Ibid., 109. 96

especulações sobre hermenêutica. Não só a gramática 6 um elemento indispensável na orientação e enfoque da nossa intcrprctuçAo, como também a revelação psicológica da individualidade sc expressa dc um modo essencial no estilo particular do autor. Por isso, nAo interessa se há um «talento» mais ou menos profundo para conhc cer individualmente outros seres humanos; a menos que esse talento se combine com o talento de uma intuição lingüística, quer na colocação das fronteiras gramaticais quer na penetração psicoló gica da individualidade de um autor através do seu estilo, nenhum conhecimento adequado resultará. Pelo estilo, conhecemos o homem em toda a sua individualidade; em 1819 Schleiermacher resumiu de um modo penetrante a importância do estilo: «A comprcensílo total do estilo é todo o objectivo da hermenêutica.» (*)

A hermenêutica como ciência sistemática A especulação hermenêutica de Schleiermacher tem como objectivo transform ar «o conjunto de observações» organizadas de um modo disperso, numa unidade sistematicamente coerente. De facto, as suas intenções foram mais longe: primeiro, postular a ideia de que a compreensão opera de acordo com leis que podem ser des­ cobertas; seguidamente, enunciar algumas das leis ou princípios a partir dos quais ocorre a compreensão. Esta esperança pode resu­ mir-se na palavra «ciência»; Schleiermacher não procurava um conjunto de regras como na hermenêutica primitiva, mas sim um conjunto de leis pelas quais a compreensão opera — uma ciência da compreensão que pudesse orientar o processo de extrair dum texto o seu sentido (7).

De uma hermenêutica centrada na linguagem a uma hermenêutica centrada na subjectividade A té 1959, a concepção dominante da hermenêutica de Schleier­ macher baseava-se necessariamente numa colectânea das suas obras, publicada postumamente editada pelo seu aluno e amigo Friederich (•) Ibid., 108. C7) Claro que a compreensão enquanto tal se mantém uma arte. Como Kichard R. Niebubr pertinentemente nota numa esclarecedora abordagem que faz à hermenêutica de Schleiermacher (pp. 72-134 da sua obra Schleiermacher On Christ and Religiort): o acto de interpretação era para Schleiermacher «algo de pessoal e criativo tanto como científico, era uma reconstituição ima­ ginária da personalidade do orador ou do escritor. Um tal esforço da empatia tem sempre que ultrapassar em muito os princípios da ciência filológica, pene­ trando no plano da arte» (79). Sobre este tema ver H. 82. 97

Lucke (*). Este volume, publicado em 1838, só em parte era for­ mado pelos próprios manuscritos do autor, sendo essencialmente constituído a partir de notas de estudantes. Embora Schleiermacher deixasse notas do seu próprio punho, que remontam a 1805, o volume de 1838 incluía poucas dessas notas anteriores a 1819. Nos últimos anos da década de cinqüenta (1950) Heinz Kimmerle examinou cuidadosamente os documentos não publicados de Schleiermacher, existentes na Biblioteca de Berlim e reuniu por ordem cronológica todos os escritos sobre hermenêutica redigidos pelo próprio punho de Schleiermacher. Pela primeira vez tornou-se possível traçar com precisão e confiança o desenvolvimento do próprio •pensamento de Schleiermacher sobre o projecto de uma «hermenêutica geral» (*)• Desta edição emerge não só um retrato mais completo da her­ menêutica de Schleiermacher como também de parte da sua obra até então desconhecida — um primeiro Schleiermacher centrado na linguagem, menos psicológico. Em cerca de vinte páginas de afo­ rismos sobre hermenêutica datando de 1805 a 1809 e nos primeiros esboços ainda tacteantes durante o período de 1810-1819, Schleier­ m acher propõe uma hermenêutica fundam entalmente centrada na linguagem. Aparentem ente, desde o começo que Schleiermacher tinha em mente uma hermenêutica geral, fundante, dividida em duas partes essenciais: a gramatical (objectiva) e a técnica (subjec­ tiva). É claro que o afastamento decisivo da objectividade filológica e o partir de condições que são do domínio do diálogo ainda vigoram nos escritos anteriores a 1819. No período entre 1810 e 1819, Schleiermacher escreve que a tarefa da hermenêutica «procede de dois pontos diferentes: a compreensão da linguagem e a com­ preensão daquele que fala» (l0). Um dos primeiros aforismos defen­ dia que temos que ter uma compreensão do homem para podermos compreender o que ele diz. No entanto, é a partir do seu discurso que chegamos a um conhecimento do homem (“ ). A hermenêutica é a arte de compreender o orador naquilo que é dito, mas a lin­ guagem ainda é a chave. Noutro dos primeiros aforismos diz ele: «Tudo o que se pressupõe em hermenêutica é apenas linguagem e é também só linguagem aquilo que encontramos na hermenêu­ tica; o lugar a que pertencem os outros pressupostos objectivos e subjectivos tem que ser encontrado através (ou a partir) da lin­ guagem.» (")

(•) H & K. (") Ver a importante introdução em H. 9-24 e o seu artigo A Teoria hermenêutica ou a ontologia hermenêutica, HH 107-21. (■•) H 56. (" ) Ibid., 44. (,J) Ibid., 38. 98

Este elemento decisivo na passagem dc uma hermenêutica centrada na linguagem para uma hermenêutica orientada para a psicologia, segundo Kimmerle, foi o primeiro abandono gradual da concepção da identidade do pensamento e da linguagem. Kim merle diz que a razão disso foi de tipo filosófico: Schleiermacher encarou como sendo a sua tarefa, a mediação entre o carácter intrínseco da filosofia transcendental especulativa e o carácter extrínseco de ciência positiva e empírica. Pressupôs uma discre pância entre a essência ideal, interna, e a aparência externa. Assim o texto não podia ser visto como manifestação directa dc um processo mental interno mas com algo dado às exigências empí­ ricas da linguagem. Por fim a tarefa da hermenêutica acabou por ser a de trans­ cender a linguagem, de modo a chegar aos processos internos. Ainda é necessário exam inar a linguagem, mas esta já não é con­ siderada como totalm ente equivalente ao pensamento. No entanto, em 1813 Schleiermacher ainda afirma: «Essencial e intrinsecamente, o pensamento e a sua expressão são exactam ente o mesmo.» (1S) E o facto de Schleiermacher até 1829 não se referir à sua herme­ nêutica como uma metodologia (Kunstlehre) evidencia a relutância que tinha em abandonar a concepção fundamental da identidade do pensamento e da expressão. Contudo abandonou esta concepção, e assim o processo mental reconstruído pela hermenêutica, não mais foi concebido como sendo intrinsecamente lingüístico mas sim como uma espécie de função interna e ardilosa da individualidade, separada da individualidade da linguagem. Neste ponto reforçou-se a visão contemporânea, de­ fendida por Kimmerle e Gadamer, de que Schleiermacher se desencaminhara e desistira da possibilidade mais fértil de uma herme­ nêutica verdadeiramente centrada na linguagem, caindo numa má metafísica (’*). É claro que Schleiermacher foi empurrado para estas conclusões não só pela sua própria metafísica idealista (,s) mas também pela hipótese de que a finalidade da hermenêutica era a reconstrução do processo mental do autor. Esta hipótese é no entanto discutível, pois um texto é percebido não por uma relação com qualquer vago processo m ental interno, mas pela relação com o assunto, com o tema, a que o texto se refere.

O5) Ibid., 21, (" ) Ver Schleiermachers Entwurf einer universalen Hermeneutik WM 172-85, esp. 179-83. Ver também a comunicação intitulada «O problema da Linguagem na Hermenêutica de Schleiermacher» que Gadamer fez na Con­ ferência sobre Schleiermacher, comemorando o segundo centenário do sou nascimento, em 29 de Fevereiro de 1968, na Vanderbilt Divinity School. (*5) Ver WM 179 relativamente aos conceitos de individualidade e génio, relativamente à hermenêutica de Schleiermacher.

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Schleiermacher na primeira fase do seu pensamento hermenêutico, sustentara uma posição mais próxima de concepções actuais, de­ fendendo firmemente serem o pensamento de um indivíduo, e mesmo todo o seu ser, essencialmente determinados pela linguagem, na qual é dada uma compreensão quer do seu ser quer do seu mundo. Só perante a contradição directa da sua posição sistemá­ tica mais lata é que Schleiermacher desistiu desta ideia, em detri­ mento do seu próprio projecto. O novo e fértil ponto de partida visível no seu pensamento primitivo — o de uma hermenêutica verdadeiramente centrada na linguagem, baseada nas condições reais necessárias para a compreensão de um parceiro num diálogo — é posto de lado. A hermenêutica torna-se psicológica, transforma-se na arte de determ inar ou de reconstruir um processo mental, um processo que não mais é tomado como sendo essencialmente lingüístico. O estilo ainda é visto como uma chave para a indivi­ dualidade do autor, mas consideramo-lo como apontando para uma individualidade não lingüística, da qual é uma manifestação meramente empírica.

O significado do projecto de Schleiermacher de uma nova hermenêutica Mau grado o elemento psicológico do último Schleiermacher, a sua contribuição para a hermenêutica marcou uma viragem na história desta disciplina. Porque a hermenêutica deixa de ser vista como um tema disciplinar específico do âmbito da teologia, da literatura ou do direito; é a arte de compreender uma expressão lingüística. Um dos primeiros aforismos, extremamente esclarececedor, afirm a que a hermenêutica é precisamente o modo como uma criança capta o significado de uma nova palavra (” ). A estru­ tu ra da frase e o contexto significativo são os seus guias, cons­ tituindo os sistemas de interpretação de uma hermenêutica geral. A hermenêutica é vista como partindo das condições de diálogo; Schleiermacher foi um hermeneuta dialogai que infelizmente não se apercebeu das implicações criativas da sua natureza dialógica. Cegou-o o seu desejo de leis e de coerência sistemática (1T). Foi no

(w) «Jedes Kind kommt nur durch Hermeneutik zur Wortbedeutung» (H 40). Gadamer chama a atenção para a afirmação de Schleiermacher de «Hermeneutik ist die Kunst, Missverstand zu vermeiden» (H & K 29; WM 173). (") Ver Niebuhr, op. cit., p. 81 ff., que encara o carácter dialógico do próprio pensamento de acordo com Schleiermacher. Niebuhr acentua a rolnçAo da hermenêutica de Schleiermacher com a sua obra Dialethik e com o mu interesse pela ética; dado que o intéprete «sente» o ser moral de um nutor; « própria interpretação torna-se um acto moral (p. 92). 100

entanto este efeito (do nosso actual ponto de vista) que deu uma nova orientação à hermenêutica, fazendo com que ela se tornasse ciência. Como veremos, Dilthey continuou esta orientação com a busca que empreendeu de um conhecimento «objectivamente válido» e com a sua hipótese de que a tarefa da hermenêutica é descobrir as leis e os princípios da compreensão. Estas hipóteses podiam ser criticadas como uma falha da compreensão histórica, dado que defendem ser possível ocupar um lugar acima ou fora da história, a partir do qual é possível divizar «leis» intemporais. Mas a orien­ tação para uma hermenêutica que toma como seu ponto de partida o problema do conhecimento foi um contributo fértil para a teoria interpre ativa. Só depois de muitos anos se avançou com a hipótese de que as constantes na compreensão, que Schleiermacher consi­ derava em termos científicos, poderiam ver-se melhor em termos históricos, isto é, em termos da estrutura intrinsecamente histórica da compreensão. Mais especificamente apreendeu-se a importância de uma pré-compreensão em toda a compreensão. Schleiermacher, e mesmo teóricos da hermenêutica que lhe são anteriores, apon­ taram para esta última concepção ao enunciar o princípio do círculo hermenêutico dentro do qual toda a compreensão ocorre. Assim Schleiermacher ultrapassou decisivamente a visão da hermenêutica como um conjunto de métodos acumulados por ten­ tativas e erros e defendeu a legitimidade de uma arte geral da compreensão anterior a qualquer arte especial de interpretação. Isto levanta a questão de qual deverá ser a relação adequada da interpretação literária actual com teorias gerais da compreensão, implícitas ou explícitas. Talvez possa defender-se que hoje devemos interpretar sem tentar saber o que é a interpretação, mas isto apenas defende o direito que temos de fazer algo sem realmente saber o que estamos a fazer. Podemos imaginar esta atitude por parte dos artífices que Sócrates interpelava quando andava por Atenas perguntando-lhes se sabiam o que estavam a fazer. Uma ignorância tão obstinada tem os atractivos mas não consegue levar a interpretação literária americana a ultrapassar a pirotecnia da Nova Crítica ou as contradições da actual «crítica do mito».. O que agora precisamos é de um novo princípio que pondere o que é ou não é pertinente para a interpretação, e para isso é preciso deter­ minar de um modo mais adequado o que é e o que faz a interpre­ tação. A interpretação literária actual deve cuidar mais da sua relação com a natureza geral de toda a compreensão lingüística. Exemplificando: é demasiado fácil abandonar, como sendo psicologizante, a preocupação com o que acontece quando alguém compreende uma expressão lingüística. Psicologizar, propriamente definido, refere-se ao esforço de ir para além da expressão lin­ güística, procurando as intenções e os processos mentais do seu Í01

autor. Certamente que Schleiermacher teve culpa disto, mas não podemos considerar como não válido o seu contributo, devido unicamente a este aspecto. É um facto que temos que acordar que as especulações não fundamentadas sobre os processos mentais do autor de uma expressão lingüística, são ilegítimos; mas penso que Schleiermacher tem razão ao considerar o problema interpretativo como inseparável da arte da compreensão, naquele que ouve. Só esta argumentação ajudaria a ultrapassar a ilusão de que o texto tem um significado independente e real, separável do evento que é compreendê-lo. U m a visão tão ingênua pressupõe a transparência essencial e a não historicidade da compreensão; supõe que temos um acesso privilegiado ao sentido do texto, fora do tempo e da história. Contudo, são precisamente estas suposições que estão em causa. Um outro elemento significativo da hermenêutica de Schleier­ macher é o conceito de compreensão «independentemente da sua relação com a vida». Isto será o ponto de partida para o pensa­ mento hermenêutico de Dilthey e de Heidegger. Porque Dilthey tom ou como seu objectivo compreender «a partir da própria vida» e Heidegger defendeu o mesmo objectivo e procurou alcançá-lo de um modo diferente e mais radicalmente histórico. Um pensamento complexo não interessa como indicativo processo mental do seu autor mas como algo em si mesmo, como uma experiência que é compreendida em relação com o nosso próprio horizonte de expe­ riência. Não precisamos cair num a atitude psicologizante para defender que a compreensão não pode ser concebida independen­ temente das relações significativas que tem com a nossa expe­ riência anterior. Contudo, há outras conseqüências da hermenêutica de Schleier­ macher que dão azo a preocupações. Por exemplo, considerar a compreensão como um ponto de partida pode levar erradamente a m isturar poesia e prosa ou a aceitar teorias sobre a psicologia fundamental ou sobre a natureza humana fundamental altamente discutíveis. A tendência existente para ignorar o problema que é a tradução numa língua estrangeira e a penetração numa época remota não pode ser encarada com ligeireza; no entanto, a foca­ lização de Schleiermacher na arte da compreensão tende a consi­ derar estes aspectos como se fossem menos problemáticos do que a própria compreensão. Gadam er chama a atenção para estes e para outros problemas da hermenêutica de Schleiermacher, con­ cluindo com uma afirm ação contundente: «O problema para Schleiermacher não era o da obscuridade na história mas o da obscuridade no Tu (thou) (“ ). Uma concentração deste tipo nas

('•) WM 179. 102

condições psicológicas do diálogo, pode conduzir ao desprezo pelo elemento histórico da interpretação e mesmo à ignorância do papel central que a linguagem tem na hermenêutica. A concentrnçno no diálogo juntam ente com a visão errônea de que o processo de compreensão é um processo de «imitação» ou de «reconstrução» levou Schleiermacher às concepções erradas da última fase da sua hermenêutica. Contudo, Schleiermacher é justamente considerado como o pai da moderna hermenêutica enquanto disciplina geral. Joachim Wacl) nota que, no último troço do século xix os técnicos da herme­ nêutica das mais variadas disciplinas e orientações foram deve­ dores do pensamento hermenêutico de Schleiermacher, de tal modo que as teorias hermenêuticas mais importantes na Alemanha do século xix, trazem a sua marca. Entre eles apenas abordaremos o contributo maximamente significativo de Wilhelm Dilthey.

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DILTHEY: A HERM EN ÊU TICA COMO FUNDAM ENTO DAS G EISTE SW ISSE N SC H A F TE N

Depois da morte de Schleiermacher em .1834 o projecto dc desenvolver uma hermenêutica geral esmoreceu. É certo que o problema hermenêutico nos seus vários aspectos ocupou a atenção de grandes nomes em diferentes campos, como por exemplo Karl Wilhelm von Humboldt, Heymann Steinthal, August Bockh, Leopold von Ranke, S. G. Droysen e Friedrich Karl von Savigny. Mas a consideração do problema tendeu a circunscrever-se aos limites de uma disciplina particular e a transformar-se em interpretação his­ tórica, filológica ou judicial, mais do que em hermenêutica geral como arte de compreensão. Contudo, perto dos finais do século, o talentoso filósofo e historiador literário, Wilhelm Dilthey (1833-1911) começou a ver na hermenêutica o fundamento para as Geisteswissenschaften — quer dizer todas as humanidades e as ciên­ cias sociais, todas as disciplinas que interpretam as expressões da vida interior do homem, quer essas expressões sejam gestos, actos históricos, leis codificadas, obras de arte ou de literatura. Dilthey tinha como objectivo apresentar métodos para alcançar uma interpretação «objectivamente válida» das «expressões da vida interior». Ao mesmo tempo reagiu drasticamente à tendência que os estudos humanísticos revelavam tomando as normas e os modos de pensar das ciências naturais e aplicando-as ao estudo do homem. Nem mesmo a tradição idealista era uma alternativa viável, pois sob a influência de Augusto Comte e dos seus estudos com Ranke, Dilthey determinou que a experiência concreta e não a especulação tem que ser o único ponto de partida admissível para uma teoria das Geisteswissenschaften. Dilthey percebeu verdadeiramente a in­ consistência epistemológica da pretensão à «objectividade» da «escola histórica» alemã, encarando-a como uma mistura acrítica das pers­ pectivas idealista e realista. A experiência concreta, histórica c viva tem que ser o ponto de partida e o ponto de chegada dits Geisteswissenschaften. É a partir da própria vida que temos que 105

desenvolver o nosso pensamento e é para ela que orientamos as nossas questões. Não tentemos encontrar ideias por detrás da vida. «O nosso pensamento não pode ir para além da própria vida.» (') H á um toque romântico nesta ênfase de regresso à própria vida, e não nos surpreende que Dilthey tenha publicado estudos sobre o movimento alemão Sturm und Drang, sobre Novalis, Goethe e Schleiermacher. M ergulha de tal modo na herança romântica que lhe eram demasiado óbvias as falhas do positivismo c do rea­ lismo, nas suas diferentes formas, negando todas elas a plenitude, imediatez e variedade da própria experiência viva. Sentimos em Dilthey alguns dos conflitos fundamentais do pensamento do séséculo x ix : o desejo romântico de imediatez e de totalidade mesmo quando o objectivo é procurar dados que sejam «objectiva­ mente válidos». A sua mente inquieta lutou contra o historicismo, contra o psicologismo e parcialmente ultrapassou-os, pois surge no seu pensamento uma compreensão da história muito mais funda do que a da escola histórica alemã; ao voltar-se para a hermenêu­ tica, a partir do ano de 1890, ultrapassou decisivamente a tendência psicologizante que tinha adoptado a partir de um estudo sobre a hermenêutica de Schleiermacher. Como nota H. A. Hodges no seu livro sobre Dilthey, há duas importantes tradições filosóficas até então nitidamente separadas e que convergem em Dilthey: o rea­ lismo empírico e o positivismo anglo-franceses, e a filosofia da vida e o idealismo alemães (J). A tentativa efectuada por Dilthey de forjar um fundamento epistemológico para as Geisteswissenschaften tornou-se o ponto de encontro de duas perspectivas essencialmente conflituosos de um a abordagem correcta do homem. Para compreendermos a hermenêutica de Dilthey, temos pri­ meiro que clarificar o contexto dos problemas e dos objectivos no qual lutava, tentando dar uma base metodológica às suas Geites­ wissenschaften. Isto envolve a compreensão do projecto 1) do con­ ceito de história em Dilthey e 2) da orientação filosófica dada à vida.

A tentativa de encontrar uma base metodológica para as «Geisteswissenschaften» O projecto de form ular uma metodologia adequada às ciências que se centram na compreensão das expressões humanas — sociais c artísticas — é primeiramente encarado por Dilthey no contexto de uma necessidade de abandonar a perspectiva reducionista e meca-

(') GS V. 5; VIII, 184. (■) PliWD, cap. 2.

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nicista das ciências naturais, e de encontrar uma abordagem ade­ quada à plenitude dos fenômenos. Por esse motivo, uniu ohru re­ cente sobre a teoria literária de Dilthey designou-a dc «ubordugcm fenomenológica» (3). Assim, a tarefa de encontrar base, para umu metodologia desse tipo foi vista como 1) um problema epislemológico, 2) uma questão de aprofundamento da nossa concepção da consciência histórica, e 3) uma necessidade de compreender expres­ sões a partir «da própria vida». Quando estes factores forem com preendidos, será nítida a distinção entre a abordagem feita pelas «ciências humanas» (Geisteswissenschaften) e a das ciências naturais, Para Dilthey, qualquer espécie de base metafísica para descrever o que se passa quando compreendemos um fenômeno humano é logo de início recusada, pois dificilmente levaria a resultados considera­ dos universalmente válidos. O problema está antes na especificação de qual o tipo de conhecimento e de qual o tipo de compreensão que particularm ente adequados para interpretar os fenômenos huma­ nos. Pergunta ele: Qual é a natureza do acto de compreensão que constitui a base de todos os estudos sobre o homem? Resumindo, ele não coloca o problema em termos metafísicos mas sim em ter­ mos epistemológicos. Num certo sentido, Dilthey continua o idealismo crítico de Kant mesmo não tendo sido um neo-kantiano mas sim um «filósofo da vida». Kant escrevera a «Crítica da Razão Pura» colocando os fun­ damentos epistemológicos das ciências. Dilthey atribuiu-se cons­ cienciosamente a tarefa de escrever uma «crítica da razão histórica» que colocasse os fundamentos epistemológicos dos «estudos humanísticos». Não pôs em causa a adequabilidade das categorias kantianas para as ciências humanas, mas viu no espaço, no tempo, no número etc., poucas possibilidades para a compreensão da vida interior do homem; nem mesmo a categoria da «sensibilidade» lhe parecia fazer justiça ao carácter interior e histórico da subjectividade humana. Dilthey afirmava: «Isto é uma temática de (ulterior) desen­ volvimento de toda a atitude crítica kantiana; mas colocando a categoria da auto-interpretação (Selbstbesinnung) em vez de uma teoria do conhecimento, uma crítica do histórico em vez de uma crítica da razão «pura». O «Chegamos ao conhecimento de nós próprios não através da introspecção mas sim através da história.» (’) O problema da com­ preensão do homem era para Dilthey um problema de recuperação de consciência da «historicidade» (Geschichtlichkeit) da nossa própria existência que se perdeu nas categorias estáticas da ciência. Temos (5) rature: (<) (5)

Kurt Müller-Vollmcr, Towards a Phenomenolofical Theory of LiteA Study of Wilhelm Dilthey's Poetik. GS V, XXI. Ibid., VII, 279.

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experiência da vida, não nas categorias mecânicas do «poder», mas nos momentos complexos, individuais do «sentido», na experiência directa da vida como totalidade e na captação amorosa do particular. Estas unidades de sentido exigem o contexto do passado e o hori­ zonte de expectativas futuras; são intrinsecamente temporais e fini­ tas e devem ser compreendidas em termos dessas dimensões — isto é, historicamente. (Esta historicidade será discutida mais tarde jun­ tam ente com a própria hermenêutica de Dilthey.) O problema da formulação de uma teoria das ciências humanas foi visto no horizonte da filosofia da vida de Dilthey. A filosofia da vida é a maior parte das vezes associada a três filósofos do último quartel do século xix: Nietzsche, Dilthey e Bergson. A utilíssima obra do Professor O. F. Bollnow (*) sobre o desenvolvimento da filosofia da vida faz um levantamento desta orientação geral do pensamento a partir do protesto efectuado no século xvin contra o formalismo, o racionalismo asséptico e mesmo o pensamento abstracto que despreza a totalidade da pessoa, a personalidade que vive, sente e quer em toda a sua plenitude. Assim Rousseau, Jakobi, Herder, Fichte, Schelling e outros pensadores do século xvm anteciparam a filosofia da vida no esforço que fizeram de chegar à plenitude vivida da existência humana no mundo. Nestes vários pensadores podemos ver a luta do filósofo da vida em prol de uma realidade não falseada pelos aspectos exteriores e pela cultura. A palavra «vida» era então um grito de batalha contra a fixidez e as determinações da convenção. Diz Bollnow, «Ela (a vida) refe­ ria-se aos poderes internos do homem, especialmente aos poderes irracionais do sentimento e da paixão, contra o poder predominante da compreensão racional» (7). Friedrich Schlegel referia-se à «filo­ sofia da vida» como sendo a apresentação viva da consciência hu­ mana e da vida hum ana contra as especulações abstractas e ininte­ ligíveis da «escola de filosofia». E Fichte tomou como base de toda a sua filosofia a antítese entre a fixidez do Ser e o poderoso fluxo da vida. Poderíamos alargar indefinidamente esta lista de pensadores com afinidades com a filosofia da vida, incluindo figuras como William James, M arx, Dewey, Pestalozzi, Plessner e Scheler. Bollnow dá um especial relevo a Georg Simmel (1858-1918), a Ludwig Klages (1872-1956) e a José Ortega y Gasset (1883-1955) 0 . Em todos eles encontram os a tendência geral de tentar regressar à plenitude da experiência vivida; e para a m aior parte deles isso é ao mesmo tempo uma oposição às tendências formais, mecânicas

C) L. O Ibid., 5. (•) Ibid., 144-50.

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e abstractas da civilização tecnológica. As forças da Mente (Cicist, no sentido em que Scheler utiliza o termo) ou do Scr (Sein, no sentido em que Fichte o utiliza) substituíram o que cru rigido c moribundo; as forças da vida (Leben) constituíam as fontes ilinft micas e inexauríveis de todas as formas de criatividade e de sentido. Em Dilthey esta antítese exprimia-se como crítica i»s formas dc pensamento naturalísticas, orientadas pela causalidade quando se aplicavam à tarefa de compreender a vida interior de um homem e a sua experiência. Dilthey defendia que a dinâmica da vida intr rior de um homem era um conjunto complexo de cogniçào, sen timento e vontade, e que estes factores não podiam sujeitar-se às normas da causalidade e à rigidez de um pensamento mecanicista e quantitativo. Invocar as categorias do pensamento da «Crítica du Razão Pura» para a tarefa de compreender o homem, impõe um conjunto de categorias abstractas exteriores à vida, de modo algum derivadas da vida. Essas categorias são estáticas, intemporais, abs­ tra c ta s— são o oposto da própria vida. O objectivo das ciências humanas não deveria ser a compreen­ são da vida em termos de categorias exteriores à vida, mas a partir de categorias intrínsecas, derivadas dela. A vida devia ser compreen­ dida a partir da experiência da própria vida. Dilthey notou desde­ nhosamente que «nas veias do sujeito cognoscente construído por Locke, Hume e K ant não corre verdadeiro sangue» (*). Há uma tendência nítida em Locke, Hume e K ant para restringir o «saber» à faculdade cognitiva, separando-o do sentimento e da vontade. Mais, a cogniçào é muitas vezes tratada como sendo separável do contexto essencialmente histórico da vida interior do homem; con­ tudo, a verdade é que percepcionamos, pensamos e compreendemos em termos de passado, presente e futuro, em termos de sentimentos, de exigências morais e de imperativos. H á uma necessidade óbvia de regresso às unidades significativas presente na experiência vivida. Regessar à «vida», para Dilthey, não significa regressar a uma qualquer base mística ou a uma qualquer fonte da vida, humana ou não humana, a alguma espécie de energia psíquica básica. A vida é antes encarada em termos de «sentido»; a vida é «a experiência humana conhecida a partir de dentro» ('*). Sentimos o sentimento metafísico de Dilthey na sua recusa em tratar o mundo fenoménico com uma mera aparência: «O pensamento não pode ir para além da vida.» (” ) As categorias da vida não se enraízam numa realidade transcendente mas na realidade da experiência vivida. Hegel exprimira a sua intenção de compreender a vida a partir da

(•) GS V, 4; também L 121. Ò*) L 12; ver GS VIII, 121: «Leben eiíasst hier Leben». O1) GS VIII, 184.

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própria vida; Dilthey coloca esta intenção num contexto antimetafísico— talvez não o tenha feito num contexto realista nem idea­ lista, mas sim num contexto fenomenológico. Dilthey segue Hegel defendendo que a vida é uma realidade «histórica»; contudo, a his­ tória para Dilthey não é nem uma meta absoluta nem uma mani­ festação do espírito absoluto mas sim uma expressão da vida. A vida é relativa e expressa-se de muitas maneiras; na experiência humana não é nunca absoluta.

Ciências humanas «versus» ciências naturais Em termos de método para um estudo do homem, que signi­ ficado tem o que acabámos de expor? Dilthey sustentou que «os estudos humanísticos» ou «ciências humanas» (Geisteswissenschaften) tinham que forjar novos modelos de interpretação dos fenômenos humanos. Estes tinham que derivar das características da própria experiência vivida; tinham que basear-se nas categorias de «sentido» e não nas categorias de «poder», nas categorias da história e não nas das matemáticas. Dilthey viu a distinção essencial, que existe entre os estudos humanísticos e as ciências naturais (12). Os estudos humanos não lidam com factos e fenômenos que silenciam o homem mas com factos e fenômenos que apenas são significativos pela luz que trazem aos processos internos do homem, à sua «experiência interna». A metodologia apropriada aos objectos naturais não é adequada à compreensão dos fenômenos humanos, excepto no estatuto que estes têm enquanto objectos naturais. Con­ tudo, os estudos humanísticos dão validade a algo que não é válido nas ciências humanas — a possibilidade de compreender a experiên­ cia interna de alguém através do processo misterioso de uma trans­ ferência mental. Diz Dilthey: «Exactamente porque pode ocorrer uma transposição real (quando um homem compreende outro homem), porque a afinidade e a universalidade do pensamento ... podem representar e form ar um m undo socio-histórico, os factos internos e os processos humanos podem distinguir-se dos dos animais (” ). Devido a esta «transposição real» que pode dar-se nos objectos que incorporam a experiência interna, o homem pode alcançar um grau e uma profundidade de compreensão, impossíveis relativamente a qualquer outro tipo de objectos. É óbvio que uma transposição deste tipo apenas ocorre porque há uma semelhança entre os factos da nossa experiência m ental e os que se passam (w) Ver Carl Michalson, The Rationality of Faith para uma exploração cuidadosa das espécies contrastantes de compreensão adequadas a essas duas áreas. Ver também GS V, 242-8; VII, passim. 0») GS V, 250. 110

com outra pessoa. Este fenômeno traz consigo a possibilidade de encontrar noutra pessoa os abismos mais fundos da nossa própria experiência; desse encontro pode advir a descoberto de um mundo íntimo mais pleno (“ ). Dilthey, seguindo Schleiermacher, vê esta transposição como uma reconstrução e uma experiência renovada do mundo experiencial íntimo de outra pessoa. Contudo, o interesse não está na outra pessoa, mas no próprio mundo, um mundo visto como um mundo «socio-histórico»; é o mundo dos imperativos morais internos, uma comunidade partilhada de sentimentos e reacções, uma experiência comum de beleza. Estamos aptos a penetrar neste mundo interno dos homens, não por meio da introspecção mas da interpretação, da compreensão das expressões da vida; isto é, através da dccifrução das marcas que o homem imprime aos fenômenos. Portanto, a diferença entre os estudos humanísticos e as ciências naturais, não está necessariamente nem num tipo de objecto dife­ rente que os estudos humanísticos possam ter, nem num tipo diferente de percepção; a diferença essencial está no contexto dentro do qual o objecto percepcionado é compreendido (” ). Os estudos humanísticos farão por vezes uso dos mesmos objectos ou «factos» das ciências da natureza, mas num contexto de relações diferentes, num contexto que inclui ou que refere uma experiência interna. A ausência de referência à experiência humana é característica das ciências naturais; a presença de uma referência à vida interior do homem está inevitavelmente presente nos estudos humanísticos. Diz-nos Dilthey: «Do mesmo modo, a diferença entre as ciências naturais e as humanas não está fundamentalmente determinada rela­ tivamente a um modo especial de conhecer mas difere nos conteú­ dos.» O O mesmo objecto e o mesmo facto podem conter dife­ rentes sis?emas de relação; os estudos humanísticos deviam tomar o objecto ou facto e usá-lo em «categorias» novas, não científicas, derivadas da própria vida. Por exemplo, um objecto poderia ser explicado em termos de categorias puram ente causais (i. e. dc um modo científico) ou em relação com aquilo que ele rios diz sobre a vida interior do homem, ou, mais objectivamente, sobre o mundo socio-histórico do homem que é simultaneamente produto c mani­ festação da experiência interna do homem. As ciências naturais não podem usar factos espirituais (geistige Tatsachen) sem que dei­ xem de ser ciências naturais; os estudos humanísticos podem usar factos físicos, mas o mundo externo apenas é considerado numa relação com o sentimento e com a vontade humana, e os factos

(14) Ibidem. (ls) Ibid., 248. (" ) Ibid., 253. 111

apenas são significativos na medida em que afectam o comporta­ mento e ajudam (ou impedem) fins humanos. Dilthey acreditava que «compreensão» era a palavra chave para os estudos humanísticos. A explicação é para as ciências. A abor­ dagem dos fenômenos que unifica o interno e o externo é a com­ preensão. As ciências explicam a natureza, os estudos humanísticos compreendem as manifestações da vida (I7). A compreensão conse­ gue captar as entidades individuais, mas a ciência tem sempre que encarar o individual como um meio de chegar ao geral, ao tipo. Especialmente nas artes, valorizamos o particular pelo seu próprio mérito e demoramo-nos amorosamente na compreensão dos fenô­ menos] na sua individualidade. Este interesse absorvente pela vida interior individual contrasta totalmente com a atitude e com o pro­ cedimento das ciências naturais. Dilthey sustenta que os estudos humanísticos devem ten tar form ular uma metodologia da com­ preensão que transcenda a objectividade reducionista das ciências e que regresse à plenitude da «vida», da experiência humana. Isto dá-nos uma concepção geral da visão de Dilthey sobre os estudos humanísticos. Será defensável esta descrição da separação entre a ciência humana e as naturais? Mesmo alguns dos mais firmes defensores de Dilthey tiveram que responder negativamente. Georg Misch, o seu executor literário, cedo reconheceu que uma reconciliação produtiva das duas abordagens era possível e desejável. Também Bollnow observou justamente que por muito úteis que essas distinções pudessem ser na autocompreensão teórica dos dois grandes ramos do conhecimento, teríamos que admitir que a «com­ preensão» não se limita aos estudos humanísticos nem os processos explicativos se limitam às ciências naturais. Antes trabalham con­ juntamente, em graus variáveis, em todos os verdadeiros actos de conhecimento. Ironicam ente podemos hoje constatar em que medida as concepções científicas e mesmo o historicismo de que Dilthey combateu, se insinuam realmente na sua concepção dos estudos humanísticos, pois a sua procura de um «conhecimento objectiva­ mente válido» é ela própria expressão do ideal científico de dados nítidos e claros. Este facto orientou imperceptivelmente o pensa­ mento de Dilthey para as metáforas e imagens intemporais e espacializadas de um a vida mental compatível com o pensamento cientí­ fico. Por outro lado, a herança de Schleiermacher levou-o a uma concepção da compreensão como reconstrução e a uma tendência psicologizante, da qual apenas se libertou quando fundam entou a sua teoria na herm enêutica e não num novo tipo de psicologia. Contudo, o projecto de compreender a vida em termos da pró­ pria vida, o desejo de aprofundar o aspecto histórico do conheci­

(,T) «Die Natur erkláhren wir, das Seelenieben verstehen wir» (ibid., 144). 112

mento, a crítica aguda a um cientismo que se insinua nos estudos humanísticos — tudo isto desempenhou um papel de relevo em hermenêutica, a partir de Dilthey. Vemos que com ele sc abriram alguns dos problemas e das finalidades fundamentais da hermenêu­ tica. Heidegger construiu sobre esses objectivos e recuou nitida­ mente até Dilthey, num esforço para ultrapassar as tendências cien­ tíficas do seu mestre, Edmund Husserl ('*).

A fórmula hermenêutica de Dilthey: experiência, expressão e compreensão «Uma ciência só pertence aos'estudos humanísticos», diz Dilthey, «se o seu objecto se nos to m ar acessível através de um processo baseado na relação sistemática entre vida, expressão e compreen­ são.» (19) Esta fórmula de «experiência, expressão c compreensão» está longe de ser explícita pois cada term o tem um sentido dislinlo nos termos da filosofia da vida de Dilthey. Vamos então explorar separadamente cada um dos termos. 1 — Experiência Em alemão há duas palavras para «experiência»: Erfahrimn c a mais técnica e recente Erlebnis. A primeira refere-se ã experiên­ cia em geral, como quando nos referimos à nossa «experiência» de vida. Dilthey usa o termo Erlebnis, mais específico c limitado, for­ jado a partir do verbo erleben (experimentar, especialmente cm circunstâncias individuais). O verbo erleben é um termo bastante recente, formado pela adição do prefixo er (geralmente usado como um prefixo enfático, que aprofunda o sentido da palavra principal). Assim o verbo «experimentar» é em alemão aparentado com o verbo «viver», uma forma enfática que sugere a imediatez da pró­ pria vida quando nos defrontamos com ela. Erlebnis enquanto subs­ tantivo singular era praticamente inexistente cm alemão antes de Dilthey o usar num sentido altamente específico, embora a forma plural, Erlebnisse apareça em Goethe, a quem sem dúvida alguma Dilthey o foi buscar. Uma Erlebnis ou ^experiência vivida» é definida por Dilthey como uma unidade sustentada por um significado comum: Aquilo que na cadeia do tempo forma uma unidade no presente porque tem um significado unitário, é a mais pequena entidade a que podemos chamar experiência. 0 ') Ver SZ § 77. (>») GS VII, 86; citado em PhWD 249.

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Indo mais longe, podemos considerar «experiência» cada unidade determinada das partes da vida ligadas por um sentido comum — mesmo quando as várias partes se sepa­ ram umas das outras por eventos que as interrompem (í0). Por outras palavras, a experiência significativa de uma pintura, por exemplo, pode ter envolvido muitos encontros separados pelo tempo e no entanto ser considerada uma «experiência» (Erlebnis). Uma experiência de am or romântico não se baseia num só encontro mas reúne eventos de vários tipos, tempos e lugares; no entanto, a unidade de sentido que têm enquanto «experiência» eleva-as da corrente da vida e junta-as numa unidade de sentido, i. e., numa experiência. Quais as características desta unidade de sentido? Dilthey ana­ lisa a questão com bastante pormenor e, para compreendermos a sua hermenêutica, é essencial compreendermos a que é que ele chama «experiência». Em primeiro lugar, a experiência não deve ser construída como o «conteúdo» de um acto reflexivo da cons­ ciência, pois então teria que ser algo de que tivessemos consciência; ora ela é antes o próprio acto; é algo no qual e pelo qual vivemos, é a própria atitude que temos para com a vida e na qual vivemos. Resumindo, é a experiência enquanto tal, tal como é dada de um modo pré-reflexivo na significação. Subsequentemente a experiência pode tornar-se objecto de reflexão, mas então deixa de ser expe­ riência imediata, torna-se objecto de um outro encontro. Assim a experiência mais do que discussão é urr acto de consciência; não tem que ser construída como algo que a consciência apreende e contra o qual se coloca (J1). Isto significa que a experiência não tem nem consegue ter cons­ ciência de si mesma, pois fazê-lo seria um acto reflectidamente consciente. Também não é um dado da consciência, pois a sê-lo teria que se defrontar contra o sujeito como um objecto que lhe tivesse sido dado. Assim a experiência existe antes da separação sujeito-objecto, separação que é ela própria um modelo usado pelo pensamento reflexivo. De facto, experienciar não se distingue do próprio percepcionar ou do apreender (innewerden). A Erlebnis representa aquele contacto directo com a vida a que podemos cha­ m ar «a experiência imediatamente vivida». A análise descritiva deste campo de difícil compreensão, ante­ rior ao pensamento reflexivo, é essencial tanto para os estudos humanísticos como para as ciências naturais, mas é particularmente importante para o primeiro, pois as próprias categorias da com­

(*>) GS VII, 194. C") Ibid., 139; PhWD 38-40. 114

preensão humanística e hermenêutica dela derivam. JÊ justamente este campo da consciência pré-reflexiva que é demarcado pela feno­ menologia de Husserle de Heidegger. À medida que Dilthey procura desenvolver o seu projecto metodológico numa relação íntima com a sua filosofia da vida, à medida que faz uma separação nítida entre o mero «pensar» e a «vida» (ou a experiência) vai colocando fun­ damentos para a fenomenologia do século xx. Assim, por exemplo, Dilthey defende que: «O modo como a ‘experiência vivida’ se me apresenta (à letra: «está ali para mim») é completamente diferente do modo como as imagens se colocam face a mim. A consciência da experiência e a sua constituição são a mesma coisa: não há separação entre o que está-ali-para-mim e o que eu experimento enquanto estando ali-para-mim. Por outras palavras, a experiência não se coloca como um objecto em face daquele que a experimenta, mas antes a sua própria existência para mim é indiferenciada da ‘qualidade’ que nela para mim está presente» (22). Contudo seria um erro grave pensar a experiência como se apontasse para qualquer espécie de realidade meramente subjectiva, porque a experiência é precisamente experiência daquilo que eslá-para-mim antes de se tornar objectiva (e consequentemente uma separação do subjectivo). É a partir desta unidade primitiva que Dilthey tenta forjar categorias que contenham e não que separem os elementos do sentimento, saber e vontade que surgem conjun­ tamente na experiência — categorias como por exemplo, «valor», «significado» «textura» e «relação». Dilthey encontra dificuldades na formulação destas categorias, contudo, a própria tarefa dc as formular é da maior importância. A sua selecção teve como meta adquirir um conhecimento objectivamente válido, e é esta meta que lhe levanta objecções que ele próprio não solicitara. Ao mesmo tempo, temos que adm irar a impaciência com que exigiu catego­ rias que exprimissem «a liberdade da vida e da história» (” ). A fer­ tilidade das suas intuições está na visão da experiência que coloca um campo anterior ao sujeito e ao objecto, um campo cm que o mundo e a experiência que dele temos são conjuntamente dados. Viu com toda a nitidez a pobreza do modelo do encontro humano com o mundo em termos de sujeito-objecto, viu como é superficial separar os sentimentos dos objectos, as sensações do acto total da compreensão. «Vivemos e movemo-nos», diz ele depreciativamente, «não numa esfera de sensações mas sim de objectos que se nos apresentam, não num a esfera de sentimentos mas sim de valor, de sentido, e assim por diante.» (**) Como é absurdo, diz-nos, separar C2) GS VII, 139. (“ ) Ibid., 203.

(*•) GS VI. 317. 115

as nossas sensações e sentimentos do contexto total de relações que surgem conjuntam ente na unidade da experiência. O utro aspecto que deu frutos em Dilthey foi a ênfase concedida à temporalidade do «contexto de relações» dadas na «experiência». A experiência não é algo de estático; pelo contrário, na sua uni­ dade de sentido, tende a alcançar e a abranger tanto a recolecção do passado como a antecipação do futuro no contexto total de «significado». O significado não pode ser imaginado a não ser em termos daquilo que esperamos que será o futuro, nem pode liber­ tar-se da dependência de materiais cedidos pelo passado. O passado e o futuro constituem portanto uma unidade formal com o carácter presente de toda a experiência, e este contexto temporal é o hori­ zonte inevitável dentro do qual qualquer percepção presente é inter­ pretada. Dilthey vai longe provando que a temporalidade da experiência não é algo imposto reflexivamente pela consciência (a posição que os kantianos tomariam, a mente como agente activo que impõe um a unidade à percepção), é antes o que já está implícito na pró­ pria experiência, aquilo que nos é dado. A este respeito, podemos considerar Dilthey como realista, mais do que idealista: a tempo­ ralidade da experiência é, como Heidegger diria, «equiprimordial» à própria experiência. Nunca é nada que se acrescente à expe­ riência. Suponhamos que alguém tenta captar conscientemente o decurso ou a progressão de uma vida (das Lebenstauf) por meio de um acto reflexivo. A unidade deste exercício particular é ins­ trutiva pois é quase como que um espelho do modo como essa unidade é actualmente dada conscientemente, a um nível pré-reflexivo. Dilthey descreve o seu próprio esforço ao agir desse modo: «O que acontece quando a ‘experiência’ (das Erlebnis) se torna objecto da minha reflexão? Estou acordado de noite (por exemplo) e preocupo-me com a possibilidade de, na minha velhice, poder completar o trabalho que comecei; penso e repenso no que hei-de fazer. H á nesta ‘experiência’ um conjunto estruturado de relações: a base da situação é constituída pela captação objectiva que dela faço, e sobre essa base constrói-se uma instância (Stellungsnahme), de preocupação ‘para com’ e de ‘dor sobre’ o facto captado objectivamente, juntam ente com uma tentativa de ultrapassar o facto. E tudo isto está ali — para — mim, nisso reside o seu (do facto) contexto estrutural. É claro que agora trouxe a situação para uma consciência discriminativa e dei relevo à relação estrutural — ‘isoleia-a’. Mas tudo aquilo a que aqui dei relevo está realmente contido na própria experiência e apenas foi esclarecido por este acto de reflexão.» (” )

(” ) GS VII, 139-40; parafraseando e não traduzido literalmente.

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O «sentido» de «um facto captado objectivamenle» 6 dado com o próprio facto, e o sentido é intrinsecamentc temporal, defi­ nido em termos do contexto da vida de cada um. Dilthey continua a passagem acima transcrita, defendendo que tal facto tem um «ignificado essencial para todo o estudo da realidade humana: «As par­ tes constitutivas que formam a visão da progressão da nossa vida (Anschauung des Lebens verlaufes) estão todas contidas no prAprUt viver.» Ç*) Podendo designar este facto como sendo a temporalidade interna da historicidade que não se impõe à vida mas que lhe 6 intrínseca. Dilthey defende um facto da m aior importância para a hermenêutica: A experiência é intrinsecamente temporal (quer dizer, histórica, no sentido mais fundo da palavra), e portanto a com­ preensão da experiência tem também que ser dada em categorias de pensamento proporcionalmente temporais (históricas). Dilthey, ao insistir na temporalidade da experiência tem pois defendido a fundamentação de todos os esforços subsequentes que afirmam a «historicidade» da existência humana no mundo. Histo­ ricidade não quer dizer concentração no passado, nem tem a ver com qualquer espécie de mentalidade tradicional que nos subordine a ideias mortas; historicidade (Geschichlichkeit) é essencialmente a afirmação da temporalidade da experiência humana tal como a descrevemos. Significa que compreendemos o presente apenas no horizonte do passado e do futuro; isto não é uma questão de esforço consciente, construindo-se sobre a estrutura da própria expe­ riência. Mas tornar explícita esta historicidade tem na verdade conseqüências hermenêuticas, pois a não historicidade da interpre­ tação já não pode ser assumida; não mais ficamos satisfeitos com uma análise que se apoie firmemente sobre categorias científicas fundamentalmente alheias à historicidade da experiência humana. Tornou-se por demais evidente que a experiência não pode ser com­ preendida em categorias científicas. A tarefa é nítida: fabricar as categorias «históricas» adequadas às características da experiência vivida. 2 — Expressão O segundo term o da fórmula experiência — expressão — com­ preensão — A usdruck — pode ser traduzido por «expressão». O uso deste termo não deve associar autom aticam ente Dilthey às teorias da expressão na arte, pois tais teorias são estruturadas em termos de sujeito-objecto. P or exemplo, ligamos quase automaticamente o termo «expressão» a «sentimento»; «exprimimos» os nossos senti­ mentos e uma teoria da expressão em arte encara geralmente a

(*) Ibid-, 140. 117

obra como uma representação simbólica de sentimentos. Wordsworth, um representante da teoria da expressão na criação poética, vê o poema como um transbordar espontâneo de sentimentos pode­ rosos. Quando Dilthey usa Ausdruck não se refere essencialmente a esse transbordar ou a esse sentir, mas a algo muito mais englobante. Para Dilthey, uma expressão não é essencialmente a encarnação dos sentimentos de uma pessoa, mas antes uma «expressão de vida»; uma expressão pode referir-se a uma ideia, a uma lei, a uma forma social, à linguagem — qualquer coisa que espelhe a marca da vida interior do homem. Não é essencialmente o símbolo de um sen­ timento. Talvez que Ausdruck se pudesse traduzir, não por «expressão» mas sim por «objectificação» da mente — conhecimento, sentimento e vontade — do homem. O significado hermenêutico da objectifica­ ção é que, devido a ela, a compreensão pode centrar-se numa expressão fixa e «objectiva» da experiência vivida em vez de lutar pela sua captação através da introspecção. Dilthey reconhece que a introspecção nunca poderia servir de base para os estudos humanos pois a reflexão directa sobre a experiência produz quer 1) uma intui­ ção que não pode ser comunicada, quer 2) uma conceptualização que é ela própria expressão de uma vida interior. A introspecção é pois um modo pouco seguro quer de nos conhecermos a nós pró­ prios, quer de conhecermos o homem pelos estudos humanísticos. Os estudos humanísticos têm que necessariamente centrar-se em «expressões de vida»; esses estudos, centrados numa objectificação da vida, são intrinsecamente hermenêuticos. Em que tipo de objec­ tos poderão centrar-se os estudos humanísticos? Dilthey é peremptó­ rio quanto ao âmbito destes: «Tudo aquilo em que o espírito humano se objectificou cai na área das Geisteswissenschaften. O limite des­ tas é tão lato como a compreensão, e a compreensão tem o seu verdadeiro objecto na objectificação da própria vida (” )■ 3 — A obra de arte como objectivação da experiência vivida Se o limite dos estudos humanísticos é tão vasto, onde encaixar a obra de arte, e mais especificamente, a obra de arte literária? Dilthey classificou as várias manifestações da vida ou da experiên­ cia interior humana («a vida» em Dilthey não é algo metafísico, não é um a parte profunda para além da própria experiência vivida; a experiência humana é aquilo para além do qual a reflexão não deveria querer ir) em três categorias fundamentais: 1) As ideias (i. e. conceitos, juízos, e formas mais amplas de pensamento), são

(” ) Ibid., 148.

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«meros conteúdos de pensamento», independentes do lugar, tempo e pessoa em que surgem; por esta razão, têm uma certa precisão sendo facilmente comunicáveis 2) As acções, são mais difíceis de interpretar; numa acção há uma certa meta, mas só com grande dificuldade podemos determ inar os factores que agem na decisão que levou ao acto. Uma lei, por exemplo, é um acto público ou comunitário mas aplicam-se-lhe as mesmas dificuldades; por exem­ p lo — ao praticar uma acção não podemos saber o que decidimos contra essa acção. 3) Finalmente há expressões de uma experiência vivida que vão desde as expressões espontâneas da vida interior, tal como exclamações e gestos, até às expressões convencional­ mente controladas incorporadas na obra de arte. Dilthey refere-se geralmente às primeiras duas categorias— idéias e acções — como «manifestações de vida» (Lebensausserungen), mas reserva para a terceira o termo mais específico de «expres­ sões de experiência vivida» (Erlebnisausdrücke). É nesta terceira categoria que a experiência interior hum ana chega à sua máxima expressão e nela a compreensão sofre o seu maior desafio. «Como é diferente a expressão de um a experiência vivida (da ideia ou do acto)! Existe uma relação especial entre esta, como expressão da própria vida, e a compreensão que a provocou. A ex­ pressão contém mais do contexto da vida anterior (seelischen Zusammenhang) do que qualquer introspecção pode perceber, pois surge das profundidades que a consciência nunca ilumina.» (2‘) É claro que a obra de arte, na sua flexibilidade e segurança ultrapassa de longe os meros gestos ou as exclamações pois os gestos podem ser imitados enquanto que a arte aponta para, ou exprime, a própria experiência, não sendo assim susceptível de imitação: «Nas grandes obras de arte liberta-se (sich loslõst) uma visão (ein Geistiges) do seu criador, o poeta, o artista, o escritor, c entra­ mos num campo em que aquele que se exprime não nos pode enga­ nar. Nenhuma obra de arte verdadeiramente grande tenta retratar uma realidade estranha ao conteúdo interno (geisligen Gehalt) do seu autor. De facto, não pretende dizer-nos nada sobre o seu autor. É verdadeira em si mesma, mantendo-se fixa, visível, duradoura.» (2“) Afasta-se o problema da simulação, presente nos gestos e em toda a actividade ou situação hum ana, com o seu jogo de interesses em conflito, pois a obra de arte não aponta dc modo algum para o seu autor, mas para a própria vida. É precisamente por esta razão que a obra de arte é aquele objecto dos estudos humanísticos em que podemos confiar, o mais duradouro e o mais fértil. Com este estatuto fixo e objectivo torna-se possível uma compreensão segura

(” ) Ibid., 207. C") Ibid. 119

c artística da expressão. «Assim, nos limites do conhecimento e da acção, surge um círculo ou campo em que a vida se revela com uma profundidade inacessível à observação, à reflexão ou à teo­ ria.» (") De todas as obras de arte, as da linguagem têm talvez maior poder de revelar a vida interior do homem. Devido à presença desses objectos fixos e imutáveis, neste caso as obras literárias, existe já um corpo de teoria sobre a interpretação dos textos: a hermenêuticd. Dilthey sustenta que os princípios da hermenêutica podem desbravar caminho a uma teoria geral da compreensão, por­ que «acima de tudo ... a captação da estrutura da vida interior baseia-se na interpretação de obras, obras em que a textura da vida interior se exprime plenamente» (“ ). Assim, para Dilthey, a hermenêutica adquire um significado novo e mais lato: torna-se teoria, não só da interpretação do texto mas do modo como a vida se revela e se exprime nas obras. Contudo, neste caso, a «expressão» não é a de uma realidade individual e puram ente pessoal, pois então não poderia ser perce­ bida por outra pessoa; quando a expressão é escrita utiliza a lin­ guagem, um meio que é comum àquele que compreende, e a com­ preensão ocorre em virtude de uma experiência análoga. Assim é possível postular a existência de estruturas gerais nas quais e pelas quais o conhecimento objectivo ocorre. E a expressão não é por conseguinte a de um a pessoa, como quando se trata de psi­ cologia, mas sim a de uma realidade social e histórica, revelada na experiência, a realidade social e histórica da própria experiência. 4 — A compreensão A «compreensão» (Versteheri) tal como as outras duas palavras chave da fórmula de Dilthey — experiência — expressão — com­ preensão—, é usada num sentido especial. Assim «compreensão» não se refere à compreensão de uma concepção racional, como por exemplo a de um problema matemático. O term o «compreensão» é reservado para designar a operação na qual a mente capta «a mente» (Geist) de outra pessoa. Não é de modo algum uma ope­ ração puramente cognitiva da mente, é aquele momento muito espe­ cial em que a vida compreende a vida: «Explicamos por meio de processos puramente intelectuais, mas compreendemos por meio da actividade combinada de todos os poderes mentais da apreensão.» (” ) O aforismo mais famoso do seu pensamento, expressa-se de um modo mais sucinto: «Explicamos a natureza; há que compreender o ho(" ) ibid. (51) Ibid., 322. (n ) GS V, 172. 120

mem.» (” ) A compreensão é portanto o processo mental pelo qual compreendemos a experiência humana viva. É o acto que constitui o nossa melhor contacto com a própria vida. Tal como a experiên­ cia vivida (Erlebnis), a compreensão tem uma plenitude que escapa à teorização racional. A compreensão abre-nos o universo das pessoas individuais, e portanto abre também possibilidades para a nossa própria natu­ reza ("). A compreensão não é um mero acto de pensamento mas uma transposição e uma nova experiência do mundo tal como o captamos na experiência vivida. Não é um acto de comparação, consciente e reflexivo, é antes a operação de um pensar silencioso que efectua a transposição pré-reflexiva de uma pessoa para a outra. Redescobrimo-nos a nós próprios no outro (” ). Um outro aspecto que realça o modo como a compreensão contrasta com toda a compreensão e explicação meramente científicas é que a com­ preensão tem valor em si mesma, para além de quaisquer consi­ derações práticas. Não é necessariamente um meio para qualquer outra coisa, é intrinsecamente boa. É só pela compreensão que encontramos os aspectos especificamente pessoais e não conceptuais da realidade. «O segredo da pessoa» atrai (— nos) em si mesmo pelos esforços de compreensão cada vez mais novos c profundos. E numa compreensão desse tipo surge o campo do individual, que delimita o homem e as suas criações. Aqui reside a função com­ preensiva mais adequada aos estudos humanísticos ("). Tal como anteriormente fizera Schleiermacher, Dilthey afirma «que os estu­ dos humanísticos» se debruçam amorosamente sobre o particular, por ele mesmo. As explicações científicas raram ente são valorizadas em si mesmas, mas sim devido a qualquer outra coisa; quando certos tratados são apreciados por si mesmos, como é o caso do De rerum natura de Lucrécio vê-mo-los como chaves para a natureza mais íntima do homem — por outras palavras, mudamo-nos para os estudos humanísticos e para as categorias da compreensão, mais do que da mera explicação.

O sentido da historicidade na hermenêutica de Dilthey Dilthey afirmou repetidas vezes que o homem é «um ser his­ tórico» (eingeschichtliches Wesen). Mas o que denota aqui a palavra histórico? A resposta é importante não só para compreendermos a hermenêutica de Dilthey como pela influência que teve na teoria hermenêutica subsequente. (” ) (” ) (” ) (")

Ibid., 144. GS VII, 145, 215-16; ver D 170-71. GS VII. 191. GS V, 212-13. 121

Dilthey não concebe a história como algo passado que defron­ tamos como se fosse um objecto. A historicidade também não aponta para o facto, já objectivamente evidente, de que o homem nasce, vive e morre no decurso do tempo. Não se refere ao carác­ ter passageiro e efêmero da existência hum ana, que constitui um tema poético. A historicidade (Geschichlichkeit) significa duas coisas: 1) O homem compreende-se a si próprio, não pela introspec­ ção mas sim por meio de objectivações da vida. «O que o homem é, só a história o pode dizer.» (” ) Algures, mais detalhadamente diz: «O que o homem é e o que ele quer, só o experimenta no desenrolar da sua natureza através dos milênios e nunca até à última sílaba, nunca em conceitos objectivos mas sempre apenas na experiência vivida que brota das profundezas do seu próprio ser.» C') Por outras palavras, a autocompreensão do homem não é directa mas indirecta; tem que sofrer um desvio hermenêutico através de expressões fixas que datam do passado. Dependente da história, é essencial e necessariamente histórico. 2) A natureza hum ana não é um a essência fixa; em todas as suas objectificações o homem não se limita a pintar murais intermináveis nas paredes do tempo de modo a perceber em que é que a sua natureza sempre consistiu. Pelo contráiio, Dilthey concordaria com outro filósofo da vida, Nietzsche, em que o homem é «o animal-ainda-não-determinado» (noch nicht festgestellte Tier), o animal, que ainda não determinou aquilo que é (39). Para mais, não está simplesmente a tentar descobri-lo; ainda não decidiu o que há-de ser. O que há-de ser aguarda ainda as suas decisões históricas. Não é tanto o timoneiro de um navio já pronto como o arquitecto do próprio navio. A isto chamou mais tarde Ortega y Gasset «o privilégio ontológico» (“ ). Um homem está constante­ mente a tom ar posse das expressões já formadas que constituem a sua herança, torna-se criativam ente histórico. Este captar do pas­ sado não é uma form a de escravatura mas de liberdade, a liberdade de um autoconhecimento ainda mais pleno e a consciência de ser capaz de querer aquilo que irá ser. Visto que o homem tem o poder de alterar a sua própria essência, poderíamos dizer que ele tem o poder de alterar a própria vida; tem poderes verdadeiros e radicais de criação. U m a outra conseqüência da historicidade é que o homem não foge à história, pois ele é o que é, na e pela história. «A totalidade da natureza humana é apenas história.» f11). Para Dilthey, isto tinha (” ) (3«) (M) (40) («)

GS VIII, 224. GS VI, 57; IX, 173; também D 219. L 42. L 44. GS VIII. 166.

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como conseqüência um relativismo histórico. Afirmnvu i|iic «nflo 6 de todo possível recuar para além da relatividade di» consciência histórica ... o tipo de ‘homem’ dissolve-se e ultcru-xc no processo da história» (“ ). A história é em última instância uma sérlc dc visões do mundo, não temos padrões determinados c fixos para jul­ gar em que é que uma visão do mundo é superior a outra (*’). Tudo isto apenas reforça o que dissemos anteriormente nobre a temporalidade intrínseca da compreensão: o significado coloca sempre num contexto horizontal que se estende pelo passado c pelo futuro. Gradualmente, esta temporalidade torna-se parte intrínseca do conceito de «historicidade» de modo que o termo acaba por referir-se não só à dependência do homem relativamente à história pelo autoconhecimento e pela auto-interpretação, pela sua finitude criativa na determinação histórica da própria essência, mas também à inevitabilidade da história e à temporalidade intrínseca dc toda a compreensão. As conseqüências hermenêuticas da «historicidade» são eviden­ tes em toda a obra de Dilthey, de tal modo que Bollnow tem razão ao notar que, juntam ente com a concepção da unidade da vida e da expressão, a concepção da historicidade é fundamental para a compreensão de Dilthey (“ ). Quando diferenciamos Dilthey dos outros filósofos da vida, é precisamente esta historicidade que o demarca de Bergson e dos outros. Dilthey deu um verdadeiro avanço ao moderno interesse pela historicidade. Como diz Bollnow: «Todos os esforços recentes para compreender a historicidade humana têm em Dilthey o seu início decisivo.» (4!) Resumindo, ele é o pai das concepções modernas da historicidade. Nem a própria hermenêutica de Dilthey nem a de Heidegger ou Gadamer, que serão abordadas resumidamente, se concebem excepto em termos de historicidade, especialmente de temporalidade da compreensão. Na teoria hermenêutica, o homem é visto na sua dependência relativamente a uma interpretação constante do passado, e assim, quase poderíamos dizer que o homem é «o animal hermenêutico» que se compreende a si próprio em termos de interpretação de uma herança e de um mundo partilhados que o passado lhe trans­ mite, uma herança constantemente presente e activante' em todas as suas acções e decisões. A m oderna hermenêutica encontra a sua fundam entação teórica na historicidade.

(« ) Ibid., 6.

(“ ) GS I, 123 ff.; V 339 ff.; VIII passim; todos eles discutem a sua doutrina da visão do mundo. Pode-se encontrar uma abordagem deste tema, em inglês, cm PhWD 85-95. («) D 221.

(") L 6. 123

O círculo hermenêutico e a compreensão As operações da compreensão são consideradas por Dilthey enquanto ocorrendo no interior do princípio do círculo hermenêu­ tico já enunciado por Ast e Schleiermacher. O todo recebe a sua definição das partes, e, reciprocamente, as partes só podem ser compreendidas na sua referência ao todo. O termo «sentido» é crucial em Dilthey: o sentido é aquilo que a compreensão capta na interacção essencial recíproca do todo e das partes. Como foi já indicado, a frase fornece um exemplo nítido da interacção do todo e das partes e da necessidade de ambos: a partir do sentido das partes individuais vai-se revelando a compreensão do sentido do todo, que por sua vez transform a a indeterminação das palavras num modelo mais preciso e significativo. Dilthey cita este exemplo e depois sustenta que existe a mesma relação entre as partes e o todo da vida de cada um. O significado do todo é um «sentido» que deriva do significado das partes individuais. Um evento ou uma experiência podem alterar de tal modo as nossas vidas que aquilo que anteriorm ente tinha significado pode deixar de o ter e que uma experiência passada aparentem ente sem sentido pode tornar-se rectrospectivamente significativa. O sentido do todo determina a função e o sentido das partes. E o sentido é algo his­ tórico; é uma relação do todo e das partes encarada por nós de determinado ponto de vista, num determinado tempo, para uma dada combinação de partes. Não é algo acima ou fora da história, mas a parte de um círculo hermenêutico, sempre historicamente definido O sentido e a significação são portanto contextuais; são parte da situação. Por exemplo, o sentido da afirmação «Venho desejar boa noite ao meu Rei e Senhor» só num sentido trivial é clara e significativa, independentemente da situação em que se integra. O sentido da afirmação é diferente se for formulada 1) pelo criado velho em The Cherry Orchard, 2) pelo criado no Fausto, 3) por Smerdyakov em Os Irmãos Karamazov ou na sua origem literal, neste caso 4) K ent no R e i Lear. Analisemos sumariamente o significado da frase no seu con­ texto. No último acto da peça, depois de term inada a batalha, tendo o traidor Edmund sido derrotado e estando a m orrer, entra o fiel Kent. Exprime a sua lealdade em palavras de despedida simples e tocantes. Que universo significativo exprime aqui a palavra «Senhor»! Nele escutamos não só a relação de Kefit a Lear mas em ressonância, o tema da simples lealdade na ordem hierárquica das coisas. É claro que estas palavras são mais do que uma mera expressão do carácter de K ent e da sua relação com Lear; têm um significado funcional, pois a essa simples frase segue-se ime­ diatamente a pergunta: «Ele não está cá»? que desencadeia a acção 124

final trágica da peça. Imediatamente a atenção se centra na ausência nefasta de Lear e Cordelia, que leva Edmund a dizer que ordenou a sua morte e a fazer um esforço inútil de anular a ordem. Entra então o velho «Senhor», agora senhor dc si mesmo mas não senhor dos acontecimentos desencadeados pela ausência funesta de um verdadeiro poder; entra trazendo nos braços o tesouro que em tempos recusara como não tendo qualquer valor. Como mudou para L ear o sentido de «amor» e «lealdade» no decurso da peça! De que maneira os eventos alteraram terrivel­ mente o significado da sua decisão de dividir o reino! O significado é histórico: mudou com o tempo; é uma questão de relação, sempre ligada com a perspectiva a partir da qual os eventos são considerados. O significado não é fixo e determinado. Mesmo o significado do R ei Lear enquanto peça, se altera. Para nós, que estamos num universo pós-hierárquico e pós-deístico e num contexto social muito diverso, o sentido é obviamente diferente do que era para os contemporâneos de Shakespeare. A história das interpretações de Shakespeare mostra que há um Shakespeare dos séculos xvu, xviii, xix e xx, tal como há uma versão aristotélica de Platão, um Platão dos primeiros cristãos, um Platão me­ dieval, um Platão do século xvi e do século x vu e mesmo um Platão do século xx. A interpretação coloca-se sempre na situação em que o intérprete se coloca; o significado depende disso, por muito cir­ cunscritos que pareçam a peça, o poema ou o diálogo. Assim vemos como é justa a asserção de Dilthey de que pode haver vários tipos de sentido, mas que se trata sempre de uma espécie de coesão, de relação ou de força de ligação; estamos sempre num contexto (Susammenhang). Embora o significado seja constantemente uma questão de relação e de contexto, isto não significa que ele «paire no ar», como uma construção artística flutuante. Não é algo que se feche em si mesmo e que se coloque contra nós, como um objecto; é aquele algo não objectivo que nós objectificamos parcialmente ao tornarmos explícito um sentido. Diz Dilthey: «O significado surge essencialmente a partir da relação da parte com o todo que se baseia na natureza da experiência vivida O . Por outras palavras, o signi­ ficado está imanente na textura da vida, isto é, na nossa participação na experiência vivida; é em última instância a categoria restrita fundamental a partir da qual captamos a vida.» O Tal como foi afirmado antes, «a vida» não é algo metafísico mas sim «experiência vivida». De um modo muito característico, Dilthey fala-nos deste dado básico, a vida: «A vida é o elemento ou facto básico (Grundtatsche) que deve constituir o ponto de partida para a filosofia.

(«) GS VII, 233. (") Ibid., 232.

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É conhecida a partir de dentro. É aquilo que não podemos ultrapassar. A vida não pode ser apresentada ao tribunal da razão.» O O nosso acesso à compreensão da «vida» é mais fundo do que a razão pois a vida torna-se compreensível através das suas objectificações. Aqui, no domínio dos objectos, podemos construir um mundo de verdadeiras relações que são captadas pelos indivíduos na actualidade da expe­ riência vivida. O sentido não é subjectivo; não é uma projecção do pensamento ou do pensar, sobre o objecto; é a percepção de uma relação real adentro de um nexo anterior à separação sujeito-objecto feita pelo pensamento. Compreender o sentido implica entrar numa relação real e não imaginária com as formas do «espírito» objectificado, que se encontram por todo o lado, à nossa volta. É uma questão de interacção da pessoa individual e do Geist objectivo, num círculo hermenêutico que pressupõe a actuação conjunta de ambos. Significado é o nome dado às diferentes espécies de relações desta interacção. A circularidade da compreensão tem outra conseqüência de grande importância para a hermenêutica: não há realmente um verdadeiro ponto de partida para a compreensão, pois toda a parte pressupõe as outras partes. Isto significa que não há compreensão «sem pressupostos». Todo o acto de compreensão se dá num deter­ minado contexto ou horizonte; mesmo nas ciências, apenas expli­ camos «em termos de» um contexto referencial. A compreensão nos estudos humanísticos toma a «experiência vivida» como o seu contexto e compreensão que não tenha relação com a experiência vivida não é adequada aos estudos humanísticos (Geisteswissen­ schaften). Uma abordagem interpretativa que ignore a historicidade da experiência vivida e aplique categorias intemporais a objectos históricos, só ironicamente pode pretender chamar-se «objectiva» pois desde o início que deturpou o fenômeno. Visto que compreendemos sempre a partir do nosso próprio horizonte, fazendo este parte do círculo hermenêutico, nada pode ser compreendido de um modo não posicionai. Compreendemos por uma constante referência à nossa experiência. A tarefa meto­ dológica do intérprete não é portanto a de mergulhar totalmente no seu objecto (o que de qualquer modo seria impossível) mas sim a de encontrar modos de uma interacção viável entre o nosso hori­ zonte e o horizonte do texto. Como demonstraremos, Gadamer dá um relevo considerável a esta questão: como é que. dentro do nosso horizonte, poderemos conseguir uma abertura ao texto que não imponha previamente sobre ele as nossas próprias categorias.

(" ) Ibid., 359.

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O significado de Dilthey para a hermenêutica: conclusão O contributo de Dilthey foi alargar o horizonte da hcrmcnôuticu colocando-o no contexto da interpretação dos estudos fíum unlN tlco.i. O seu pensamento sobre o problema hermenêutico começou muito na sombra do psicologismo de Schleiermacher, e só gradualmente concebeu uma interpretação centrada na expressão da «experiòm in» vivida sem referência ao seu autor. Mas quando o fez, a herme­ nêutica e não a psicologia, tornou-se a base dos estudos h u m u n ls ticos. Isto satisfez dois objectivos básicos em D ilth e y . Primeiramente focar o problema da interpretação num objecto com um estatuto fixo, duradouro e objectivo; assim os estudos humanísticos podiam prever a possibilidade de um conhecimento objectivamente válido, pois o objecto em si mesmo era relativamente imutável. Segundo, o objecto apelava claramente para modos «históricos» de com­ preensão, mais do que para modos científicos; só podia compreen­ der-se por uma referência à própria vida, em toda a sua histori­ cidade e temporalidade. A penetração cada vez mais funda no significado das expressões da vida apenas ocorria através de uma comprensão histórica. Isto trouxe como conseqüência para a teoria literária, o poder­ mos de novo falar significativamente na «verdade» de uma óbra. Como corolário, a forma não é vista em si mesma como um elemento mas sim como um símbolo de realidades mais íntimas. A arte para Dilthey é a expressão mais pura da vida. A grande literatura enraíza-se na experiência vivida dos mistérios da vida; o porquê e o como do nascimento e da morte, da alegria e da tristeza, do am or e do ódio, do poder e da fragilidade do homem, do seu lugar ambíguo na natureza. Como nota Bollnow «Quando valorizamos a arte porque consegue exprimir a vida, negamos a ideia de que a valorizamos apenas por si mesma.» f 9) Assim embora, a obra de arte seja em si mesma um bem e o nosso encontro com ela não seja um meio para qualquer outro fim, a obra não silencia o homem, antes fala à sua natureza íntima, relaciona-se com algo para além dela. Por outras palavras, a arte não é o jogo de formas puro e sem finalidade que alguns estetas supõem; é uma espécie de alimento espiritual que obriga as fontes da vida em que nos movemos a ganhar expressão. No título da obra de Dilthey The Three Epochs o f M odem Aesthetics and Its Present Task (1892) surge como divisa a afirmação de Schiller: «Talvez que finalmente pudéssemos desistir da busca da beleza, substituída total e com­ pletamente pela busca da verdade.» (” ) A arte não é fantasia poética ("■> L 74. (5>) Die drei Epochen der modernen Asthetik und ihre heutige Aufgabc, GS VI.

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nem deleite mas sim expressão da verdade da experiência vivida. Claro que «verdade» aqui não é usada num sentido metafísico mas como representação fiel da realidade interior. Assim, a interpretação da obra de arte literária é colocada por Dilthey no contexto da historicidade da autocompreensão hum ana. Não só é histórica porque tem que interpretar um objecto herdado historicamente, mas também porque tem que compreender o objecto no horizonte da temporalidade de cada um e da posição que cada um ocupa na história. Porque a obra expressiva envolve a autocompreensão do homem, abre um a realidade que nem é «subjectiva» nem é verdadeiramente «objectiva» (i. e. separada do horizonte da nossa autocompreensão). Metodologicamente, isto confronta a interpretação com o problema de compreendermos o sentido de um modo exterior à dicotomização sujeito-objecto, característico no pensamento científico. M uito mudou em hermenêutica desde Dilthey. Notamos em seu desfavor que não conseguiu libertar-se totalmente do cientismo e da objectividade da escola histórica que tinha procurado ultra­ passar. Hoje vemos mais claramente que a procura de um «conhe­ cimento objectivamente válido» é em si mesmo um reflexo de ideais científicos totalmente contrários à historicidade da nossa autocom­ preensão. Podemos mesmo defender que a própria «vida» é uma categoria suspeitosamente próxima do «espírito objectivo» de Hegel, por muito que Dilthey proteste contra o idealismo absoluto e tente fundam entar a hermenêutica em factos empíricos livres de toda a metafísica (51). Podemos criticar o facto de Dilthey ter con­ siderado a compreensão — tal como Schleiermacher — enquanto nova experiência e enquanto reconstrução da experiência do autor, sendo portanto análoga ao acto de criação. Porque o nosso acto de compreensão da N ona Sinfonia de Beethoven tem certamente características muito diferentes do acto realizado por Beethoven ao criá-lo. A obra na sua totalidade tem impacte; os processos da sua criação implicam um conhecimento que não precisamos ter de modo a «compreender» o que nele é «dito». Contudo Dilthey renovou o projecto de uma nova hermenêutica e deu-lhe um impulso significativo. Colocou-a no horizonte da historicidade, adentro do qual sofreu ulteriormente um conside­ rável avanço. Colocou os fundamentos do pensamento de Heidegger na temporalidade da autocompreensão. Pode com razão ser con­ siderado como o pai da «problemática hermenêutica contemporâ­ nea».

( n ) A defesa de Dilthey diz essencialmente: «Hegel construiu de um modo metafísico; eu analiso o dado» (GS VII, 150), mas o princípio parece ser o mesmo: as objectificações históricas da mente revelam o homem a si mesmo.

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O CONTRIBUTO DE H EID EG G ER PA R A A HERM ENÊUTICA EM SE R E TEM PO

Husserl e Heidegger; dois tipos de fenomenologia Tal como Dilthey considerou a hermenêutica no horizonte do seu projecto de procurar uma teoria do método para as Geistes­ wissenschaften historicamente orientada, também Heidegger usou a palavra «hermenêutica» no contexto da sua busca, mais ampla, de uma ontologia «fundamental». Poderia dizer-se que Heidegger defendeu as pretensões de Leben contra Geist 11a tradição desses dois grandes filósofos da vida, Nietzsche c Dilthey, mas dc um modo diferente e a um nível diferente. Tal como Dilthey, Heidegger queria um método que revelasse a vida nos seus próprios termos, e em Ser e Tem po (1927) citou apavoradoramente o objectivo de Dilthey de querer compreender a vida a partir da própria vida ('). Desde o começo que Heidegger procurou um método de ultrapassar as concepções de Ser defendidas no Ocidente, um método que per­ mitisse ir às raízes dessas concepções, um a «hermenêutica» que lhe permitisse to m ar manifestos os pressupostos sobre os quais se têm baseado. Tal como Nietzsche, desejava pôr em causa toda a tradição metafísica ocidental. Na fenomenologia de Edmund Husserl encontrou Heidegger as ferram entas intelectuais inacessíveis a Dilthey ou a Nietzsche, e um método que explicava os processos do ser na existência humana de tal modo que o ser, e não simplesmente a ideologia de cada um, pudesse tornar-se patente. Porque a fenomenologia tinha aberto o campo de uma apreensão pré-conceptual dos fenômenos. Este novo «campo» tinha contudo um significado totalmente novo em Heidegger, diferente daquele que tivera em Husserl. Enquanto Husserl o utilizara com a ideia de tornar visível o funcionamento

(») SZ 398. 129

da consciência como subjectividade transcendental, Heidegger viu ne!e o meio vital do ser-no-mundo histórico do homem. Na sua historicidade e temporalidade viu pistas indicativas da natureza do ser; o ser, tal como se revela na experiência vivida, escapa às categorias conceptualizaníes, especializantes e intemporais de um pensamento centrado em ideias. O ser era o prisioneiro escondido, quase esquecido, das categorias estáticas do Ocidente, que Heidegger esperava libertar. Conseguiriam o método fenomenológico e a teoria fenomenológica fornecer-nos meios para essa libertação? Em parte conseguiram; mas era grande a dívida de Heidegger para com Dilthey e Nietzsche; o tipo de busca que efectuava cri­ ticando a metafísica ocidental, particularmente a ontologia, torna­ va-o pouco seguro quanto ao desejo de Husserl de fazer rem ontar todos os fenômenos à consciência humana, isto é, à subjectividade transcendental. Heidegger defendia a facticidade do ser como sendo um problema ainda mais essencial do que a consciência e o conhe­ cimento humanos, enquanto que Husserl tendia a encarar a própria facticidade do ser como um dado da consciência (2). Um ponto de vista deste gênero, fundado na subjectividade, não fornecia o con­ texto em que o tipo de crítica que Heidegger tinha em mente pudesse ser levado a cabo com êxito. Era suficiente para uma revisão epistemológica de longo alcance, cujas ramificações ainda se fazem hoje sentir em muitos campos (3), mas não era em si mesmo o que Heidegger podia usar para questionar de novo o problema do ser. É significativo, para uma definição de hermenêutica, que o tipo de fenomenologia que Heidegger desenvolveu em Ser e Tempo seja por vezes designado como hermenêutica fenomenológica (*). Esta designação é mais do que uma subdivisão da área que Husserl tinha em mente: pelo contrário, antes indica dois tipos de fenomenologia muito diferentes. É grande a dívida de Heidegger para com Husserl e são inúmeros os conceitos primitivos de Heidegger que podem ser referidos a Husserl; colocam-se no entanto num novo contexto e ao serviço de um objectivo diferente. Assim, seria um erro con­ siderarmos o «método fenomenológico» como uma doutrina for­ mulada por Husserl e usada por Heidegger para outros fins. Pelo contrário, Heidegger repensou o próprio conceito de fenomenologia de modo a que a fenomenologia e o método fenomenológico adqui­ rissem um carácter radicalmente diferente. Esta diferença concentra-se na própria palavra hermenêutica. Husserl nunca a usou relativamente à sua obra, enquanto que

(J) WM 241. (3) Ver Hcrbcrt Spiegclbcrg, The Phenomenological Movement. (4) Como em ibid., I, 318-26, 339-49.

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Heidegger afirmou em Ser e Tempo que a autêntica dimensfio de um método fenomenológico o torna hermenêutico; o seu projecto em Ser e Tempo era o de uma «hermenêutica do Dasein». A esco­ lha feita por Heidegger do termo hermenêutica — uma palavra carregada de associações, desde as suas raízes gregas até ao seu uso moderno em filologia e teologia — sugere um desvio anticicntífico fortem ente contrastante com Husserl. A mesma orientação é transposta para a «hermenêutica filosófica» de Hans-Georg Gada­ mer, marcando a própria palavra com laivos de anticientismo. As atitudes contrastantes relativamente à ciência podem ser tomadas como a chave das diferenças existentes entre Husserl e Heidegger. Surgem como a seqüência lógica da prática do primeiro nas matemáticas e do segundo em teologia. Para Husserl, a filo­ sofia tem que tornar-se uma «ciência rigorosa» (5) um «empirismo mais alto»; para Heidegger, todo o rigor do mundo nunca poderá fazer com que o conhecimento científico se torne uma meta final. As inclinações científicas de Husserl reflectem-se na sua busca de um saber apodítico, nas reduções que faz, na tendência em pro­ curar o visualizável e o concebível através da redução eidética; os escritos de Heidegger não mencionam virtualmente um saber apodítico, nem reduções transcendentais nem a estrutura do ego. Depois de Ser e Tem po Heidegger volta-se cada vez mais para a reinterpretação dos filósofos anteriores — Kant, Nietzsche, Hegel — e para a poesia de Rilké, Trakl, ou Hõlderlin. O seu pensamento torna-se mais hermenêutico, no sentido tradicional de centração na interpretação de textos. A filosofia em Husserl mantém-se essencialmente científica, e isso reflecte-se no significado que hoje tem para as ciências; em Heidegger, a filosofia torna-se histórica, é uma reconstrução criativa do passado, uma forma de interpre­ tação (6). Mesmo que Heidegger nunca tivesse designado por «her­ menêutica» a sua análise do Dasein, mesmo assim podia ser conside­ rado como um filósofo hermenêutico por excelência, pelo impacte que teve a última fase da sua obra. A fronteira entre os dois tipos de fenomenologia é claramente traçada noutro problema: a historicidade (Geschichlichkeit). Husserl tinha observado a temporalidade da consciência e fornecera uma descrição fenomenológica do tempo interior da consciência; no entanto, a sua ânsia em encontrar um conhecimento apodítico levou-o a traduzir essa temporalidade nos termos estáticos e repre­ sentativos da ciência — essencialmente para renegar a temporalidade (’) Ver uma das primeiras obras de Husserl Philosophie ais slrenge Wissrnschaft. (°) Os dois tipos antitéticos de interpretação que Ricoeur descreve — rénilleclion du sens (desmitologização) e exercice du soupçon (dcsmitificalAo) — existem em Heidegger, embora o primeiro predomine. (Ver Dl 36-44.)

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do próprio ser e estabelecer um campo de ideias que ultrapassassem o devir. Assim, em 1962, Heidegger proclama que a fenomenologia de Husserl elaborou «um padrão estabelecido por Descartes, K ant e Fichte. A historicidade do pensamento mantém-se totalmente alheia a esta posição» O- Ao mesmo tempo Heidegger sentiu que a sua análise em Ser e Tem po «era, como ainda hoje penso (1962), uma subordinação ao princípio da fenomenologia, materialmente jus­ tificada» ('). A fenomenologia não precisa de ser construída como sendo necessariamente um a revelação da consciência; pode também ser um -meio de revelar o ser, em toda a sua facticidade e histo­ ricidade. Para compreendermos o que isto significa, voltemo-nos para a discussão que Heidegger faz da fenomenologia do § 7 de Ser e Tempo.

A fenomenologia enquanto hermenêutica Na secção de Ser e Tem po intitulada «O método fenomenoló­ gico de investigação», Heidegger refere-se explicitamente ao seu método como sendo uma «hermenêutica». Se nos podemos inter­ rogar quanto ao significado deste facto para a fenomenologia, há uma outra questão que é também importante para o presente estudo: que significado tem isto para a hermenêutica? Contudo, antes de abordarmos esta questão há que explorar a redefinição que Heidegger dá de fenomenologia. Heidegger rem onta às raízes gregas da palavra: phainomenon ou phainestai, e logos. Phainomenon, diz-nos Heidegger, significa «aquilo que se mostra, o manifesto, o revelado (das Offenbare).» Pha é semelhante ao grego phos, significando luz ou brilho, «aquilo em que algo pode tornar-se manifesto, pode tornar-se visível» (*). Phenomena, portanto, é «o conjunto daquilo que se revela à luz do dia, ou que pode ser revelado, aquilo que os gregos identifica­ ram simplesmente com ta onta, das Seiende, aquilo que é» (10). Este «tornar-se manifesto» ou forma de revelar algo «tal como é», não devia ser interpretado, diz-nos Heidegger, como uma forma secundária de referência — como acontece quando algo «parece ser qualquer outra coisa». Também não é um sintoma de algo que indica um fenômeno primitivo. É antes um m ostrar ou um tornar aparente algo, tal como ele é, na sua manifestação.

O Carta a W. J. Richardson em Abril, 1962, publicada como prefácio a TPhT XV de Richardson. (*) Ibid. (e) SZ 28. 0») Ibid.

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O sufixo logia em fenomenologia, remonta, é claro à pttltt vi >« grega logos. Logos, diz-nos Heidegger, é aquilo que 6 transmitido na fala; portanto, o sentido mais fundo de logos é deixar que ul(jo apareça. N ão é definido por Heidegger como «razão» ou «funil» mento» mas antes sugere a função da fala, que torna possíveis, quer a razão quer o fundamento. Tem uma função apofânticu aponta para os fenômenos. Por outras palavras, tem uma funçOo de «como» visto que deixa que algo seja visto como algo. Contudo, essa função não é livre. É uma questão de descoberta, ou de manifestação, do que uma coisa é; trá-la para fora do escon­ derijo, para a luz do dia. A mente não projecta um sentido no fenômeno; é antes o que aparece que é uma manifestação ontológica da própria coisa. Claro que devido a uma atitude dogmática uma coisa pode ser forçada a ser apenas encarada no aspecto que desejamos. Mas deixar que uma coisa apareça como aquilo que é, torna-se um a questão de aprendermos a deixá-la proceder desse mo­ do, pois ele revela-se-nos. Logos (a fala) não é na verdade um poder dado à linguagem por aquele que a utiliza, mas sim um poder que a linguagem dá a essa pessoa, um meio que ela tem de ser captada por aquilo que através da linguagem se torna manifesto. Portanto, a combinação de phainestai e de logos, enquanto fenomenologia, significa deixar que as coisas se manifestem como o que são, sem que projectemos nelas as nossas próprias categorias. Significa uma inversão da orientação a que estamos acostumados; não somos nós que indicamos as coisas; são as coisas que se nos revelam. Isto não sugere qualquer animismo primitivo, antes é o reconhecimento de que a própria essência do conhecimento ver­ dadeiro é ser orientado pelo poder que a coisa tem de se revelar. Esta concepção é um a expressão da própria intenção de Husserl de regressar às próprias coisas. A fenomenologia é um meio de ser conduzido pelo fenômeno, por um caminho que genuinamente lhe pertence. Um método deste tipo deveria ser da maior importância para a teoria hermenêutica, pois implica que a interpretação não se fun­ damente na consciência humana e nas categorias humanas, mas sim na manifestação da coisa com que deparamos, da realidade que vem ao nosso encontro. Mas a preocupação de Heidegger era a metafísica e o tem a do ser. Poderia um método deste tipo acabar com a subjectividade e com o carácter especulativo da metafísica? Poderia aplicar-se à questão do ser? Infelizmente a tarefa complica-se pois o ser não é realmente um fenômeno mas sim algo mais lato e indefinível. Nunca pode tornar-se verdadeiramente um objecto para nós, dado que somos ser no próprio acto de constituir qualquer objecto enquanto objecto. Contudo em Ser e Tem po Heidegger encontra uma espécie de saída no facto de cada um ter, com a sua existência, ao mesmo

tempo que ela, uma certa compreensão do que é a plenitude do ser. Não é uma compreensão fixa, antes se forma historicamente, acumula-se com a própria experiência de quem encontra fenômenos. Podemos talvez interrogar o ser analisando o modo como ele apa­ receu. A ontologia tem que se tornar fenomenologia. A ontologia tem que se voltar para os processos de compreensão e de interpre­ tação pelos quais as coisas aparecem; tem que descobrir o modo e a orientação da existência humana; tem que tornar visível a estru­ tura invisível do ser-no-mundo. Como é que isto se relaciona com a hermenêutica? Significa que a ontologia deve, enquanto fenomenolgia do ser, tornar-se uma «hermenêutica» da existência. Mas este tipo de hermenêutica não se identifica com uma metodologia filológica antiquada, nem mesmo é a tal metodologia geral das Geisteswissenschaften prevista por Dilthey. Revela o que estava escondido; não constitui uma inter­ pretação de uma interpretação (que é em que consiste a explicação de texto) mas sim um acto primário de interpretação que faz com que uma coisa saia do seu esconderijo. «O sentido metodológico da descrição fenomenológica é inter­ pretação (Auslegung, tornar aberto). O logos de uma fenomenologia do Dasein tem o carácter de herméneuein (interpretar), através do qual se tornam conhecidos ao Dasein, a estrutura do seu próprio ser e o significado autêntico do ser dado na sua compreensão (pré-consciente) do ser. A fenomenologia do Dasein é hermenêutica no sentido original da palavra, que designava um trabalho da inter­ pretação.» (” ) Com este impulso a hermenêutica, transformou-se em «inter­ pretação do ser do Dasein» ( ” ). Filosoficamente, coloca as estru­ turas básicas da possibilidade do Dasein; é uma «análise da existencialidade da Existenz» O3), isto é, das possibilidades autênticas <me o ser tem de existir. A hermenêutica, diz Heidegger, é aquela fun­ ção anunciadora fundamental pela qual o Dasein torna conhecida para si a natureza do ser. A hermenêutica enquanto metodologia da interpretação dos estudos humanísticos é uma forma derivada que assenta na função ontológica primária da interpretação e a partir dela cresce. É uma ontologia regional que tem que se basear numa ontologia fundamental. Efectivamente, a hermenêutica transforma-se numa ontologia da compreensão e da interpretação. Enquanto alguns críticos dc Heidegger, em nome da disciplina filológica da hermenêutica, en­ caram com certa inquietação esta deserção relativamente a uma

(>■) Ibid., 37. (12) Ibid. (” ) (Ibid., 38. 134

definição já aceite, o facto é que ela pode aprofundar c alargar n tendência histórica de definir hermenêutica de uma formo ainda mais lata. Porque a hermenêutica em Schleiermacher, tinlm procurado um fundamento nas condições comuns a todo o diálogo, e Dilthey tentara tornar a compreensão como um dos poderes do homem, um poder pelo qual a vida encontra a vida. Contudo, a compreensão em Dilthey não era universal; agradava-lhe a ideia dc uma compreensão «histórica» separada de uma compreensão cien­ tífica. Heidegger dá o impulso final e define a essência da herme­ nêutica como o poder ontológico de compreender e interpretar, o poder que torna possível a revelação do ser das coisas e em última instância das potencialidades do próprio ser do Dasein. Dizendo de outro modo: a hermenêutica ainda é a teoria da compreensão, mas a compreensão é definida de um modo diferente (ontologicamente).

A natureza da compreensão: como Heidegger ultrapassa Dilthey A compreensão (Verstehen) é um termo específico em Hei­ degger, não significando o que a palavra inglesa geralmente denota, nem aquilo que o term o significava em Dilthey. Em inglês, «com­ preensão» sugere simpatia, capacidade de sentir aquilo que outra pessoa experimenta. Falamos de um «olhar compreensivo» c com ele sugerimos mais do que um mero conhecimento objectivo, é como se participássemos na coisa percebida. Poder.qs ‘.cr cru grande conhecimento e uma fraca compreensão, pois a compreensão parece chegar ao que é essencial e, nalgumas das suas aplicações, ao que é pessoal. Em Schleiermacher a compreensão baseava-se na afirmação filosófica da identidade das realidades internas (Identiicitsphilosophie) de modo que ao compreendermos vibrávamos em uníssono com quem falava, à medida que íamos compreendendo; a compreensão tanto envolvia fases comparativas como divinatórias. Em Dilthey, a com­ preensão referia-se ao nível mais fundo da compreensão incluído na captação de uma pintura, de um poema ou de um facto, fosse ele social, econômico ou psicológico. Era mais do que um mero dado, era como que a «expressão» de «realidades internas» e em última instância da própria «vida». Todas estas concepções de compreensão acarretam associações totalmente estranhas à definição de Heidegger. Para Heidegger. a compreensão é o poder de captar as possibilidades que cada um tem de ser, no contexto do mundo vital em que cada um de nós existe. Não é capacidade ou o dom especial de sentirmos a situação de outra pessoa, nem é o poder de captar mais profundamente o signi­ ficado de «alguma manifestação da vida». A compreensão não se 135

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concebe como algo que se possua mas antes como um modo ou elemento do ser-no-mundo. Não é uma entidade no mundo, antes é a estrutura do ser que torna possível o exercício actual da com­ preensão a um nível empírico. A compreensão é a base de toda a interpretação; é contemporânea da nossa existência e está presente em todo o acto de interpretação. A compreensão é assim ontologicamente fundamental e anterior a qualquer acto de existência. Um outro aspecto do problema está no facto da compreensão sempre se relacionar com o futuro; nisso consiste o seu carácter projectivo (Entwurfscharakter). Mas a projecção tem que ter um a base, e a compreensão está também rela­ cionada com a situação de cada um (Befindlichkeit). Contudo, a essência da compreensão não está na simples captação de situação de cada um mas sim na revelação das potencialidades concretas do ser, no horizonte da situação que cada um ocupa no mundo. Heidegger usa o termo «existencialidade» (Existenzialitàt) para este aspecto da compreensão. Uma característica importante da compreensão tal como Hei­ degger a encara, é que ela opera sempre no interior de um conjunto de relações já interpretadas, num todo relacionai (Bewandtnisganzheit). Para a hermenêutica, as implicações deste facto são de longo alcance, especialmente quando relacionadas com a ontologia de Heidegger. Dilthey já estabelecera que a significação se referia sem­ pre a um contexto de relações (Strukturzusammenhang), exemplifi­ cando o princípio já conhecido de que a compreensão opera prefe­ rencialmente no interior de um «círculo hermenêutico» e não na progressão ordenada que vai das partes simples e auto-suficientes ao todo. Contudo, a hermenêutica fenomenológica de Heidegger, avança mais um passo; explora as implicações do círculo herme­ nêutico no que respeita à estrutura ontológica de toda a compreen­ são e interpretação existenciais do homem. É claro que a com­ preensão não pode conceber-se como algo metafísico, acima da existência sensível do homem, mas sim enquanto inseparável desta; Heidegger não nega a visão de Dilthey orientada para a experiência mas coloca-a num contexto ontológico. Isso vê-se no facto da com­ preensão não ser separável da nossa disposição. Nem tão pouco a podemos imaginar se o «mundo» ou sem a «significação». O ponto chave em Heidegger é que a compreensão se tornou ontológica. Um exame do conceito heideggeriano de mundo, irá clarificar este aspecto.

O mundo e a nossa relação com os objectos no mundo O term o «mundo» em Heidegger não significa o meio ambiente, objectivamente considerado, o universo tal como aparece aos olhos 136

de um cientista. Está mais próximo daquilo a que poderíamos cha­ m ar o nosso mundo pessoal. O mundo não é a totalidade de todos os seres mas a totalidade em que o ser humano está mergulhado; o ser hum ano encontra-se rodeado pela manifestação dessa tota­ lidade. Ela revela-se-lhe através de uma compreensão sempre englobante, anterior a qualquer captação. Conceber o mundo separado da pessoa é totalmente contrário à concepção de Heidegger, pois pressupõem a separação sujeito-objecto que aparece no interior do contexto relacionai a que cha­ mamos mundo. O mundo é anterior a qualquer separação da pes­ soa e do mundo num sentido objectivo. É anterior a qualquer «objec­ tividade», a qualquer conceptualização: é também anterior à .sub­ jectividade, dado que tanto objectividade como subjectividade são concebidas dentro do esquema sujeito-objecto. Não podemos descrever o mundo tentando enum erar as enti­ dades que o formam; num processo desse tipo o mundo seria igno­ rado pois ele é justamente aquilo que é pressuposto em todo o acto de conhecer uma entidade. Todas as entidades do mundo são captadas como entidades em termos do mundo, sendo este algo já dado. As entidades que formam o mundo físico do homem não são o mundo mas estão no mundo. Só o homem tem mundo. O mundo é tão englobante e ao mesmo tempo tão fechado que se esquiva ao conhecimento. Vemos através dele, no entanto sem ele nunca nos poderíamos aperceber da manifestação das coisas. Desa­ percebido, pressuposto, englobante, o mundo está sempre presente, transparente, iludindo as tentativas feitas para o captar enquanto objecto. Abre-se assim um novo campo à exploração — o mundo. Não é de abordagem fácil, pois nem a descrição das entidades empíricas que o constituem nem mesmo a interpretação ontológica do seu ser individual como tal responderão ao fenômeno mundo (M). O mundo é algo que é sentido «juntamente com» as entidades que aparecem nele; contudo, a compreensão tem que dar-se através do mundo. Isto é fundamental em toda a compreensão; o mundo e a compreensão são partes inseparáveis da constituição ontológica da existência do Dasein. Tal como o mundo não é obstrutivo também não são obstrutivos certos objectos do mundo com os quais diariamente nos relaciona­ mos. Os instrumentos usados diariamente, os movimentos do corpo realizados sem pensar, todos eles se tornam transparentes. Só os notamos quando há qualquer ruptura. N a ocasião da ruptura pode­ mos observar um facto significativo: o sentida dos objectos está na relação que eles têm com um a totalidade estruturada de significados

(“ ) Ibid.. 64. 137

e de intenções inter-relacionados. Na ruptura, por um breve mo­ mento, o sentido dos objectos ilumina-se, emergindo directamente do mundo. Como esta compreensão de um objecto difere de uma com­ preensão meramente intelectual! Usando o exemplo usual de Ser e Tempo: um martelo que se limita a estar presente é algo que pode ser pesado e catalogado relativamente às propriedades de outros martelos; um m artelo partido mostra imediatamente o que um martelo é (15). Esta experiência sugere um princípio hermenêu­ tico: que o ser de algo se revela, não ao olhar analítico e contem­ plativo mas no momento em que bruscamente sai da penumbra ingressando no contexto plenamente funcional do mundo. De igual modo, captaremos melhor as características da compreensão, não através de um catálogo analítico dos seus atributos, nem no decurso do seu funcionamento adequado mas sim quando há qual­ quer ruptura, quando esbarra contra uma parede, talvez quando lhe falta algo que deveria ter.

A significação pré-predicativa, compreensão e interpretação O fenômeno da ruptura que por momentos esclarece o ser de um instrumento enquanto instrumento, aponta, como acabámos de ver, para um «mundo» em grande parte imperceptível, no qual vive­ mos. Este mundo é mais do que apenas o campo das operações pré-conscientes da mente aquando da percepção; é o campo em que as actuais resistências e as possibilidades da estrutura do ser moldam a compreensão. É o campo onde a temporalidade e a his­ toricidade do ser estão radicalmente presentes, é o lugar em que o ser se traduz em significação, em compreensão e interpretação. Numa palavra, é o campo do processo hermenêutico, processo pelo qual o ser se tematiza enquanto linguagem. Como foi dito, a compreensão actua numa fabricação de relações (Bewandnisganzheit). Heidegger inventou o termo «signifi­ cação» (Bedeutsamkeit) para designar a base ontológica que permite compreender essa fabricação de relações. Como tal, forneceu às palavras a possibilidade ontológica de terem um significado pleno de sentido; é a base da linguagem. Com isto Heidegger prova que a significação é algo mais fundo do que o sistema lógico da lin­ guagem, funda-se sobre algo anterior à linguagem — e que se insere

(ls) Ibid., 69. WB Macomber vê o martelo partido como uma imagem clrnvc do pensamento de Heidegger; ver o seu esclarecedor estudo The Analomy of Disitlusion sobre a noção heideggeriana de verdade. 138

no inundo — a totalidade relacionai Por muito que as palavras possam moldar ou produzir sentido, apontam sempre mais além do que o seu próprio sistema, para uma significação que já reside na totalidade relacionai do mundo. A significação portanto, não é algo que o homem dê a um objecto; é aquilo que um objecto dá ao homem, fornecendo-lhe a possibilidade ontológica das palavras e da linguagem. A compreensão tem que ser vista inserida neste contexto, e a interpretação é simplesmente tornar explícita a compreensão. A in­ terpretação não é pois uma questão de imprimir valor a um objecto isolado, pois aquilo que encontramos surge como já visto numa rela­ ção particular. Mesmo na compreensão, as coisas no mundo são vistas como isto ou como aquilo. A palavra como explicita-se pela interpretação. O fundamento da compreensão é anterior a toda a afirmação temática. Heidegger di-lo resumidamente: «Toda a visão simplesmente pré-predicativa do mundo invisível do que está ‘íi mão’ e iá em si mesma uma visão ‘compreensiva interpretativa’.» (16) Quando a compreensão se torna explícita como interpretação, como linguagem, entra em acção um outro facto extra-subjectivo, pois «a linguagem já esconde em si mesma um modo elaborado dc ideação», uma «maneira de ver já moldada» (17). A compreensão c a significação conjuntamente constituem, a base da linguagem e da interpretação. Em trabalhos posteriores dá-se ainda mais ênfase à relação entre linguagem e ser, de modo a considerar o próprio ser como lingüístico: Heidegger nota por exemplo, cm «Introdução à Metafísica» que «as palavras e a linguagem não são envólucros com que se embrulham as coisas para o comércio daqueles que escrevem e falam. É pelas palavras e pela linguagem que as coisas ganham ser e existem» (’*). Este é o sentido em que devemos interpretar a afirmação muito comum de Heidegger, «A linguagem e a casa do ser» (” ). Assim a compreensão tem uma certa «estrutura prévia» que actua em toda a interpretação. Isto torna-se muito evidente na análise que Heidegger faz da pré-estrutura trifacetada da compreen­ são. Não precisamos de a expor aqui, visto que o seu carácter e

('*) «Alies vorprãdikative schlichte Sehen des Zunhandcnen ist an ihm selbst schon vertstehend-auslegend» (SZ 149). (’7) «Die Sprache je schon eine ausgebildete Begrifflichkeit in sich birgt» (ibid., 157). ('*) IM 13. (») p l — BH 53. A Carta começa na p. 53; assim, as citações das pági­ nas anteriores são de PL e as posteriores de BH.

significado essenciais estão implícitos no que já dissemos sobre o mundo e sobre a significação (20).

A impossibilidade de uma interpretação sem pressupostos A estrutura prévia da compreensão, sempre interpretada e inse­ rida no mundo, ultrapassa o modelo mais antigo da situação interpretativa em termos de sujeito-objecto. De facto, levanta graves questões à validade básica de uma descrição interpretativa em ter­ mos da relação sujeito-objecto. Também levanta questões ao que devemos entender por interpretação objcctiva, ou «interpretação sem pressupostos». Heidegger coloca a questão de um modo claro: «A interpretação nunca é a captação sem pressupostos de algo pre­ viamente dado.» (J1) A esperança de uma interpretação «sem preconceitos e sem pressupostos» desapareceu ultimamente, face ao modo como a com­ preensão opera. O que aparece do «objecto» é o que deixamos que apareça, é aquilo que a tematização do mundo actuante na com­ preensão, traz à luz. Seria ingênuo pretender que «o que ali está realmente» é «auto-evidente». A própria definição de auto-evidência assenta num corpo de pressupostos que passam despercebidos, mas que estão presentes em toda a construção interpretativa feita pelo intérprete «objectivo» e sem «pressupostos». É este corpo de pres­ supostos já dados e admitidos que Heidegger põe a nu na análise que faz da compreensão. Na interpretação literária, tal facto significa que o intérprete mais «destituído de pressupostos» de um texto de poesia lírica tem já posições prévias. Mesmo quando aborda um texto, pode já tê-lo considerado como um certo tipo de texto, digamos, como um texto lírico, e assim coloca-se logo na posição que considera adequada a um texto desse tipo. O seu encontro com a obra não se dá num contexto exterior ao tempo e ao espaço, exterior ao seu próprio horizonte de experiências e de interesses; dá-se sim num tempo e num lugar determinados. P or exemplo, há um a razão pela qual se voltou para este texto e não para outro qualquer, e assim aborda o texto colocando-lhe perguntas, e não em branco. É pois importante lembrarmo-nos que, a pré-estruturação da compreensão não é simplesmente uma propriedade da consciência C2») Ver SZ 150-53, esp.: «Die Auslegung von Etwas ais Etwas wesenhaft durch Vorhabe, Vorsicht und Vorgriff fundiert» p. 150; e «Sinn ist das durch Vorhabe, Vorsicht und Vorgriff (a estrutura tri-facetada da pré-compreensão) strukturierte Woraufhin des Entwurfs, aus dem her etwas ais etwas verstàndlich wird» (p. 151). C1) Ibid.. 150. 140

que se coloca diante de um mundo já dado. Considerar as coisas deste modo seria cair no modelo interpretativo do sujeito-objecto, que a análise de Heidegger transcende. A estrutura prévia assenta preferentemente, no contexto do mundo que já contém sujeito e objecto. Heidegger descreve a compreensão e a interpretação de modo a colocá-las anteriormente à dicotomia sujeito-objecto. Discute como é que as coisas começam a ser vistas através do signi­ ficado, da compreensão e da interpretação. Discute aquilo a que poderíamos cham ar a estrutura ontológica da compreensão. A hermenêutica, como teoria da compreensão, é consequente­ mente uma teoria da revelação ontológica. Pois a existência humana é em si mesma um processo de revelação ontológica. Heidegger não permite que encaremos o problema ontológico separadamente da existência humana. A sua análise junta a hermeneutica à onto­ logia existencial e à fenomenolog.ia e aponta para um fundamento da hermenêutica que não se baseia na subjectividade mas na facti­ cidade do mundo e na historicidade da compreensão.

O carácter derivativo das asserções Uma conseqüência ulterior das considerações que temos vindo a abordar e de considerável importância hermenêutica está na discussão que Heidegger faz das asserções lógicas — e, extensiva­ mente, da própria lógica. Para Heidegger um «juízo» (Aussage) não é uma form a fundam ental de interpretação; ele assenta cm operações anteriores de compreensão e de interpretação da — com­ preensão — prévia. Sem eles, as asserções não teriam sentido. Heidegger dá um exemplo: «O martelo é pesado.» Na própria asserção, diz ele, já actua um determinado modo de concepção, o modo lógico. Antes de qualquer interpretação ou análise real­ mente visíveis, a situação foi estruturada em termos lógicos para se adequar à estrutura de uma asserção. O martelo foi já interpre­ tado como uma coisa com propriedades, neste caso o peso. A estru­ tura da frase, na asserção, com o seu modelo de sujeito, cópula e adjectivo predicativo, colocou logo o m artelo diante de nós, como um objecto, como algo que possui propriedades. Mas os processos fundamentais de interpretar o mundo não ocorrem nas asserções lógicas e nos juízos teóricos. Muitas vezes as palavras estão ausentes, como quando pegamos num martelo e o pomos de parte, sem palavras. Isto é um acto interpretativo mas não é uma asserção. Continuando com o exemplo do martelo Heidegger interroga-se como é que surge um a asserção: «O martelo que possuímos no ‘pré-adquirido’ está à mão como ferram enta. Quando o seu ser se torna ‘objecto’ de uma asserção, com a própria construção da asserção dá-se uma mudança no ‘pré141

-adquirido’. A tendência imediata para pensar ‘com quê’ torna-se o ‘sobre quê?’ de uma asserção referencial. A visão do objecto na pré-compreensão centra-se agora no manipulável deste estar à mão. E o ‘estar à m ão’ enquanto tal, passa a esconder-se.» (2!) A revelação do martelo como objecto, é simultaneamente uma ocultação do martelo como instrumento. O martelo como objecto é arrancado do seu contexto vivo, e a sua essência como instru­ mento que pode martelar, é escondida. O exemplo do martelo pode ser usado para clarificar a distinção de Heidegger entre as formas «apofânticas» e «hermenêuticas» da palavra «como». No contexto de «estar à mão», o martelo desa­ parece como objecto sendo substituído pela função que tem como instrumento; não o abordamos como um objecto mas como um instrumento. O «como» que se limita a apresentar o martelo como um objecto à mão, como algo que se apresenta ao nosso olhar e para o qual apontamos, é o «como apofântico». O martelo que desa­ parece na sua função com o instrumento representa o «como-existencial-hermenêutico». O «como apofântico» assinala uma mudança subtil na compreensão, encaminhando-a para um estádio de designa­ ção objectiva, uma designação que já não relaciona o martelo com a totalidade primordial de um contexto vivo, relacionai (o Bewandtnisganzheit); corta-o do campo da significação no «estar à mão» e coloca o fenômeno à nossa frente, como algo que apenas pode­ mos ver. Heidegger exige que avancemos para um «como» mais original. «Devíamos examinar com mais cuidado» diz ele, «o que Aristóteles pretendia com ‘unir e separar’ na unidade que ambos formam, e ao mesmo tempo, atender ao fenômeno de qualquer coisa como qualquer coisa.» (” ) De acordo com esta estrutura, tomamos con­ juntam ente uma coisa e outra a partir da qual a primeira é com­ preendida, de modo a que a interpretação e a articulação formem uma unidade. Destruir a unidade original e ignorar o «como» mais original, abre caminho a uma mera «teoria do juízo» (Uhrteilstheorie), uma teoria que considera as asserções como mera ligação e separação de ideias e conceitos, uma teoria que se mantem ao nível superficial das realidades objectivas, «à mão» (M). A firm ar o «como-existencial-hermenêutico» primordial, é reconhecer que as asserções derivam todas de um nível anterior de interpretação, enraizando-se todas elas nesse nível. É ver que as asserções só têm sentido quando consideradas nas suas raízes existenciais. Verificamos a importância desta distinção ao examinarmos o modo como actualmente a linguagem é tratada nas «ciências» da (“ ) Ibid., 157-8. (” ) Ibid.. 159. («) Ibid. 142

linguagem. Isto torna-se especialmente evidente se alentarmos como são insuficientes todas as definições de linguagem que se mantêm ao nível das asserções e da lógica, ou que adoptam uma visão ins­ trumental da linguagem como mera consciência manipuladora dc juízos e de ideias. Porque o verdadeiro fundamento da linguagem ê o fenômeno da fala, onde algo se revela; esta ê a função (herme­ nêutica) da linguagem. Considerando a fala como ponto de partida, remontamos ao evento em que a palavra funciona como palavra, remontamos ao contexto vivo da linguagem. Gerhard Ebeling repete a perspectiva de Heidegger quando diz: «A própria palavra tem uma função hermenêutica.» (” ) Dc facto, a função hermenêutica primordial da linguagem torna-se um factor central no último Hei­ degger e na Nova Hermenêutica Teológica. Esta visão da linguagem significa que a compreensão, mais uma vez como Ebeling a con­ sidera, «não é compreensão da linguagem mas compreensão através da linguagem» ("). Nunca é demais o valor teológico atribuído a esta perspectiva; pois ela restaura a ênfase dada à função da fala (” )• A linguagem como fala deixa de ser um corpo objectivo de palavras que manipulamos como objectos; toma o seu lugar no mundo «do que está à mão». É claro que pode passar para a objec­ tividade daquilo que está diante de nós como um mero objecto, mas essencialmente, a linguagem é encontrada pelo homem como algo «à mão», transparente, contextual. Contudo, a linguagem como fala não deve ser encarada como expressão de uma «realidade interior». É uma situação que se torna explícita nas palavras. Mesmo a linguagem poética não é um veicular de pura interioridade, mas um partilhar do mundo. Como revelação do ser no mundo e não daquele que fala, não é nem um fenômeno subjectivo nem um fenômeno objectivo, é simultanea­ mente ambos, pois o mundo é anterior a ambos e engloba ambos.

(“ ) WF 318; NH 93-94. ( J')

Ib id .

(Jr) Ver cap. 2 sobre o significado de hermeneuin «como dizer» ou «anun­ ciar». Heidegger acentua esta dimensão primordial. Ver também Gerhard Ebeling Theology and Proclamation onde a palavra «proclamação» tem este significado. 143

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O Ü LTIM O CONTRIBUTO DE H EID EG G ER PA RA A TEORIA HERM ENÊUTICA

Mesmo que Heidegger não tivesse escrito mais nada depois de Ser e Tempo, o seu contributo para a hermenêutica teria sido decisivo pois nessa obra ele coloca o problema da compreensão num contexto radicalmente diferente. Como modo fundante de existir, transcende os limites definicionais em que Dilthey o colocara ao concebê-lo como a form a histórica contra a forma científica da compreensão. Heidegger foi mais longe defendendo que toda a compieensão é temporal, intencional, histórica. Ultrapassou con­ cepções anteriores ao encarar a compreensão, não como um pro­ cesso mental mas como um processo ontológico, não como um estudo de processos conscientes e inconscientes mas como uma revelação daquilo que é real para o homem. Antes dele, aceitávamos simplesmente como certa a definição prévia daquilo que era real, e só depois perguntávamos como é que os processos mentais colo­ cavam essa realidade; ora Heidegger veio provar que a compreensão é um passo prévio indicativo do acto de «fundamentação — revela­ ção» da realidade, com o qual se completa a definição anterior. Um dos últimos temas de Heidegger é o esforço para ultrapassar o facto que funda a realidade, facto sobre o qual hoje se tematiza o próprio ser. «Todo o grande poeta faz poesia a partir de um só poema» diz Heidegger em Unterwegs zur Sprache (l) e dado que o fenômeno originário é essencialmente poético, todo o grande pensador enuncia um único pensamento que se mantém como algo nunca totalmente dito. Num certo sentido, podemos considerar os últimos escritos de Heidegger como uma série de notas de rodapé a Ser e Tempo, tentando continuamente a mesma procura de acesso ao ser, apro­ fundando e tornando mais radicais as intuições da sua obra-prima.

0) US 37. 145

Transforma-se talvez no filósofo mais poético e mais hermenêutico desde Platão; contudo, a busca essencial do seu pensamento não sc altera, apenas se revela mais plenamente. De facto, ao com­ preendermos a focalização de Heidegger na compreensão e suas articulações, compreendemos também porque é que os últimos escri­ tos se preocuparam com o «pensamento» e por que razão Heidegger define o pensamento em termos de resposta, mais do que de mani­ pulação de ideias. É usual considerar uma «viragem» no pensamento de Heidegger. Contudo o seu pensamento quando considerado de um ponto dê vista actual, é constituído por uma só peça. Ser e Tempo é o soio a partir do qual se desenvolve a última fase do seu pen­ samento. Do início ao fim da sua obra, Heidegger preocupa-se com o processo hermenêutico, pelo qual o ser se revela. Isto foi abor­ dado em Ser e Tempo como uma fenomenologia do Dasein e tornou-se, em obras subsequentes, numa exploração do não ser, da própria palavra ser, de concepções quer gregas quer actuais de ser, de verdade, de pensamento e de linguagem. É um facto aceite que Heidegger se tornou mais poético, obscuro e profético nos seus últimos escritos, mas que a revelação do ser se mantem nele como um tema cons'.ante. Nos últimos escritos, o carácter hermenêutico do pensamento de Heidegger apresenta outras orientações mantendo-se no entanto hermenêutico, tornando-se mesmo hermenêutico, no sentido de se preocupar com a exegese. A temática é ainda «como foi que o ser se tornou compreendido» e «corno foi que se articulou em termos estáticos e essencialistas», mas o objecto da interpretação afasta-se de uma descrição geral do contacto quotidiano do Dasein com o ser, enveredando pela metafísica e pela poesia. Cada vez mais se volta para a interpretação de textos; na história da filosofia oci­ dental, poucos pensadores deram tanta importância, no interior da sua filosofia, à exegese dos textos, especialmente à exegese dos fragmentos antigos. E mesmo que Heidegger não tivesse dado o contributo filosófico fundam ental que deu à teoria da compreensão no seu Ser e Tempo, poderia no entanto continuar a ser designado como o mais hermenêutico dos filósofos ocidentais. Talvez que esta abordagem se deva à natureza intrinsecamente hermenêutica da tentativa de lidar com o «ser» se este for abordado no contexto do processo de compreensão, pelo qual as coisas se revelam. E torna-se mais hermenêutico se quisermos ultrapassar o «texto» do pensamento ocidental, indo para os problemas que deram origem a essa tradição. Então, dá-se a tentativa de destacar o sen­ tido oculto do texto, não nos basta a exploração de um sistema nos seus próprios termos. É isto que Heidegger tenta fazer dando-nos simultaneamente a sua própria perspectiva quanto à posição cor­ recta da hermenêutica no que respeita ao homem, na relação que este tem com o ser e com a tradição. Uma exposição pormenorizada 146

do pensamento do último Heidegger ultrapassaria o âmbito «IchIc capítulo O ; no entanto focaremos resumidamente nas restantes sei ções alguns temas fundamentais e o significado que tiveram para n teoria hermenêutica.

Crítica ao pensamento apresentacional, subjectismo e terminologia Heidegger em Ser e Tempo tinha já sugerido a orientação das suas últimas críticas ao pensamento apresentacional, na discussão que faz do carácter derivado das «asserções» enquanto tendentes a apresentar as coisas como algo para que olhamos. Aí mostra como, no interior da estrutura prévia da compreensão, a visão do objecto tende subtilmente a ordenar-se segundo as exigências do pensamento lógico e conceptual, e como por exemplo um martelo é arrancado ao seu contexto vital das (Zuhandene) e colocado no campo abstracto do pensamento apresentacional. Em escritos posteriores, Hei­ degger tenta sintetizar como é que o pensamento ocidental chegou à definição de pensamento, de ser e de verdade em termos essen­ cialmente apresentacionais. Em «A doutrina da verdade em Platão» Heidegger aborda a famosa alegoria da caverna. Em todos os seus aspectos a alegoria sugere que a verdade é desocultação, pois saímos da caverna, para a luz, e regressamos à caverna; mas a concepção de verdade como «correspondência» acabou por predominar sobre a concepção mais dinâmica da verdade como desocultação. A verdade transformou-se em visão correcta e o pensamento transformou-se numa questão de colocação de ideias face à visão da mente, isto é, transformou-se em manipulação adequada de ideias. Com esta visão do pensamento e da verdade, armou-se o palco para todo o desenvolvimento da metafísica ocidental, para a abor­ dagem teórica da vida — ideologicamente, em termos de ideias: «A essência da ideia reside na aparência e na visibilidade. Isto leva a que se realize plenamente em cada ser, a presença do ‘quid’ que cada ser é. Apresenta-se na ‘quiddidade’ do ser. A natureza do ser é considerada contudo como sendo o estar ‘presente’. Por essa razão, o ser para Platão tinha a sua natureza mais autêntica ‘aquilo que é’. Uma terminologia posterior diz-nos que a quidditas é o ver­ dadeiro esse; a essência e não a existência. Assim, aquilo que se (r) Ver no entanto The Anatomy of Desillusion de W. B. Macomber, assim como a discussão detalhada que Richardson faz em TPhT; também reco­ mendamos vivamente a obra (em alemão) de Otto Poggeler Der Denkwtg Martin Heideggers. Em inglês, há discussões interessantes cm Koclcclmnn, Langer, Versényi e outros, citados na bibliografia.

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torna visível enquanto ‘ideia’ para aquele que contempla, é a reve­ lação da coisa tal como aparece. Assim, a coisa revelada é desde o começo (e apenas) captada como aquilo que se percebe quando percebemos a ideia de algo, aquilo que é conhecido no acto de conhecer.» (’) Heidegger sustenta que, à medida que tudo se ordena de acordo com a concepção das ideias e com a ideação, e, mais importante ainda, de acordo com o conceito de razão, vai-se perdendo a con­ cepção primitiva da verdade como revelação. O homem ocidental já não sente o ser como algo que constantemente aparece e desa­ parece do seu alcance; antes o vê sob a form a da presença estática de uma ideia. A verdade torna-se algo que se vê: «orthotes, correcção da percepção e da asserção» O . Isto significa que o pensamento que visa a verdade, não se fundamenta na existência mas sim na percepção de uma ideia: o ser não é concebido em termos de expe­ riência vivida mas em termos de ideia — estaticamente, como pre­ sença constante e atemporal. Poder-se-ia dizer que o ocidente construiu a metafísica e a teologia sobre esse rochedo. Logo em 1921, nas suas conferências (não publicadas) sobre Augustinus und der Neuplatonismus, Hei­ degger traça o conflito patente no livro X das Confissões, entre um cristianismo que surge da facticidade da experiência vivida, cuja realização não está tanto no conhecimento de Deus como no viver n ’Ele, e um cristianismo orientado para a «fruição» de Deus como o Sum m um bonum (i. e. a ideia de fruitio Dei). Esta última concepção do Ser e da vivência de Deus, mais estática e apresentacional, liga-se directam ente ao neo-platonismo. Quando a expe­ riência de Deus é definida como fruitio Dei, e quando Deus é fruído com a «paz» que cala a inquietude do coração, então Ele é colo­ cado fora do fluxo da vida, factual e histórica, e a Sua vitalidade enquanto Deus da experiência vivida é silenciada. Já não é o Deus vivo, temporal, finito, disponível. Está m eramente «disponível» para ser contemplado e fruído; Deus torna-se um Ser Eterno fora e acima do tempo, do lugar e da história (s). Numa conferência realizada em Junho de 1938, intitulada «A fundamentação da imagem moderna do mundo pela metafísica», Heidegger traça as conseqüências que teve esta abordagem geral da verdade e do pensamento quando unida com a perspectiva cartesiana, pois com Descartes, o pensamento ocidental sofre uma nova e decisiva viragem. A verdade para Descartes, é mais do que mera adequação entre aquele que conhece e o que é conhecido, é a cer-

(s) PL-BH 35. («) Ibid. 42. (") 1’oggclcr, pp. 38-45; Ho 338-39.

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teza racional que o sujeito tem desta adequação. Tal facto, tiu/ como conseqüência o facto de o sujeito humano ser considerado como o último ponto de referência no que se refere ao estatuto dc tudo aquilo que é visto. Isto significa que cada ser apenas o 6 cm termos da polaridade sujeito-objecto entre a consciência e os objei tos da consciência. Aquilo que é conhecido não é visto, em última instância, como uma entidade ontologicamente independente que se apresenta tal qual «é», revelando-se-nos e manifestando-se-nos no poder que tem de existir; aquilo que é conhecido antes é encarado como objecto, como algo que o sujeito consciente apresenta a si próprio. Porque o estatuto do mundo se fundamenta na subjectivi­ dade humana passa a centrar-se no sujeito, e a filosofia passa a centrar-se na consciência. A este síndroma chama Heidegger o «subjectismo» moderno (Subjektitãt) ('). Subjectismo é um termo mais lato do que subjectividade pois significa que o mundo é considerado como sendo essencialmente medido pelo homem. Nesta perspectiva o mundo tem sentido ape­ nas relativamente ao homem, cuja tarefa é dominar o mundo. São muitas as conseqüências do subjectismo. Em primeiro lugar as ciên­ cias ganham relevo pois servem a vontade de domínio presente no homem. Contudo, dado que no subjectismo o homem não reconhece qualquer meta ou sentido que não estejam fundamentados na sua própria certeza racional, fica fechado no círculo do próprio mundo em que se projecta. Os objectos de arte são vistos como «objectificações» da subjectividade, ou como «expressões» da experiência humana. Uma cultura só pode ser a objectificação colectiva daquilo que os sujeitos humanos valorizam, uma projecção da actividade sem fundamento do homem. Nem a actividade cultural nem a actividade individual humanas podem neste contexto ser encaradas como resposta à actividade de Deus (ou do Ser), dado que tudo tem fundamento no homem. Em última instância, mesmo Deus é redefinido como «o infinito, incondicionado e absoluto» e o mundo é dessacralizado; a relação do homem com Deus é vista como sendo meramente a sua «experiência religiosa» particular. Enquanto a

(') Subjectismo distingue-se de subjectivismo pois constitui quer a objecti­ vidade do objecto quer a subjectividade do sujeito. A subjectividade implica necessariamente que o ego humano seja o sujeito que se apresenta e esta subjec­ tividade é a forma que toma o subjectismo em Descartes. Mas Heidegger vê o subjectismo como residindo em toda a posição filosófica que toma o fenômeno humano como o seu último ponto de referência, seja ele o colectivismo, o absolutismo ou o individualismo, O subjectismo está latente na interpretação pla­ tônica do ser, dado que uma ideia é algo visto por alguém. Mas com Descartes a situação explicita-se — o homem não é aquele que recebe emanações do ser que lhe é anterior (i. e., o homem já não é uma criatura); ele 6 antes um ser criador, o fundamento de um mundo que ele próprio forma e projecta. Ver TPhT 320-30.

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antiga concepção da fruitio Dei purificava Deus colocando-o fora do fluxo da vivência quotidiana, o subjectismo faz de Deus uma projecção do homem, considerando a relação com Ele como sendo um sentimento humano de dependência OAs modernas «filosofias dos valores» não são mais do que con­ seqüências da metafísica do subjectismo. Os valores são conceitos substitutivos que pretendem completar «coisas» (agora que o seu valor se fundamenta subjectivamente) com o sentido que perderam ao colocarem-se no contexto do subjectismo. Perdeu-se o sentido da sacralidade das coisas, com ou sem o homem; o estatuto das coisas reduziu:se à utilidade que têm para o homem. Quando o homem «atribui» valor aos objectos, filosoficamente falando há apenas uma pequena distância relativamente à visão dos próprios valores en­ quanto objectos. Um valor é então algo que se coloca sobre os objectos no mundo, como se fosse uma camada de tinta. A ciência e o humanismo transformam-se em divisa, numa idade em que o homem é verdadeiramente o centro e a medida de todas as coisas. Como definir o pensamento num contexto deste tipo? Nova­ mente em termos apresentacionais que remontam a Platão. Como conceber a verdade? Em termos de correcção, de certeza de que o juízo sobre algo corresponde ao modo como o objecto se nos apre­ senta. Esta apresentação não pode ser realmente uma auto-revelação de algo, pois é captada pelo sujeito nesse acto de poder exces­ sivo que é a objectificação. Por conseqüência, diz-nos Heidegger, os grandes sistemas metafísicos tornam-se expressões da vontade, quer formulados em term os de razão (Kant), liberdade (Fichte), am or (Schelling) quer em termos de vontade de poder (Nietzsche) (*). A vontade de poder que se fundam enta no subjectismo não conhece qualquer valor absoluto, apenas tem sede de um poder cada vez maior. Nos tempos que correm, expressa-se num desejo frenético de domínio tecnológico. No entanto, o impacte do pen­ samento tecnológico é mais subtil e universal, pois temos vindo gradualmente a considerar o próprio pensamento em termos de domínio. O pensamento torna-se tecnológico, molda-se às exigên­ cias de conceitos e de ideias que perm itirão um controle sobre os objectos e sobre a experiência. Pensar já não é uma questão de resposta directa ao mundo, antes se coloca como tentativa incons­ ciente para o dominar; o pensamento não se mantém nem actua como protector dos ricos da terra, antes esgota o mundo ao tentar recstruturá-lo de acordo com as finalidades do homem. Um rio, por exemplo, deixa de ter valor intrínseco e o homem orienta o seu curso para satisfazer os seus objectivos, construindo grandes bar-

C7) Ho 70. (•) VA 114-122; TPhT 381.

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rager.s e descarregando nele resíduos venenosos. Os deuses 1'unirum e a terra está a ser implacavelmente consumida. É assim que se gundo Heidegger se dá o desenlace melancólico do desenvolvimento do pensamento desde Platão, passando por Descartes e Nietzsche até aos nossos dias. A hermenêutica como teoria da compreensão e da interpretado é directamente afectada por essas considerações, pois quando o pro­ blema interpretativo é abordado no interior do contexto do pensa­ mento tecnológico, a interpretação fornece meios para um domínio conceptual do objecto. Quando o pensamento é definido como mani­ pulação de ideias e de conceitos, deixa de ser criativo passando a ser manipulatório e inventivo. Quando o subjectismo se coloca na base da situação interpretativa, o que é ser interpretado senão uma objectificação? O conceito de verdade como adequação enquadra-se Icgicameníe nestas abordagens, e a verdade torna-se mera «correcção». Portanto, para a teoria da interpretação, é muito diferente con­ ceber o pensamento em termos estritamente ideacionais pois assim interpretação não lida com uma matéria desconhecida que tem que ser clarificada mas sim com a clarificação e a avaliação de dados já conhecidos. A sua tarefa não é uma primeira «revelação» da coisa mas sim chegar à interpretação correcta, entre as várias pos­ síveis. Tais pressupostos tendem a manter-nos sempre na claridade daquilo que já é conhecido, em vez de construir uma ponte entre luz e escuridão. A linguagem passa a ser concebida como um sistema de signos aplicados a um conjunto de objectos já conhecidos. Ora para Heidegger, todo este conjunto de definições — de lin­ guagem, de verdade, de pensamento — e os conceitos de com­ preensão e de interpretação que sobre ele se constrói, representam uma tematização da doutrina platônica da verdade. Desde Platão que o pensamento ocidental e especialmente a metafísica, repre­ sentam o «texto» desta tematização. Heidegger considerou que a sua tarefa hermenêutica seria interpretar esse texto, procurando ver o que estaria por trás dele. Em Kant, Hegel e Nietzsche, Heidegger encontra aspectos da antiga abordagem que os Gregos fizeram à ver­ dade como desocultação. As pretensões dos Gregos são defendidas sucintamente tornando-se depois obscuras e perdendo-se. Portanto, desde o início que Heidegger definiu a sua tarefa filosófica em termos essencialmente hermenêuticos. Neste contexto a hermenêu­ tica não significa simplesmente uma interpretação em termos de correcção e de concordância; a hermenêutica continua com as suas teses tradicionais mais fundas ao querer descobrir um significado cscondido, ao querer esclarecer o que é desconhecido: a revelação é desocultação. Assim, quando Heidegger «interpreta» K ant não se limita a dizer o que o autor pretendeu pois proceder desse modo xeria parar no ponto exacto em que deve começar a verdadeira 1S1

interpretação. Heidegger antes se interroga sobre o que o texto não disse, perguntando porque é que K ant fez certas revisões entre a primeira e a segunda edição da Crítica da Razão Pura. Vai para além do texto, interrogando-se sobre o que é que o autor não disse e não podia dizer e que no entanto aparece no texto como sendo a sua mais íntima dinâmica (*)• O texto final, acabado, não é o único objecto de interpretação. Preocupam-no sim, a violência e a luta que actuaram na criação do texto. Isto traz à hermenêutica, duas conseqüências já tradicionalmente familiares: 1) violentar o texto e 2) compreender melhor o autor do que ele se compreendeu a si próprio. Quando a verdade é con­ cebida como algo que simultaneamente emerge e de novo se esconde, quando o acto hermenêutico coloca o intérprete na fronteira de um vazio criativo a partir do qual a obra emergiu, então a interpretação tem que ser criativamente aberta ao que ainda não foi dito. Porque «o nada» é o pano de fundo criativo de toda a criação positiva; contudo, esse nada só é significativo no contexto do ser, na sua positividade. Quando a obra de arte é considerada, não como uma objectificação da subjectividade humana mas como uma revelação do ser, ou como uma janela para um domínio sagrado, então o encontro que com ela temos é como que receber uma dádiva, não mais é o acto de um sujeito que capta a sua subjectividade. A interpretação de uma grande obra não é pois um exercício arqueológico nem a tentativa, comum ao humanismo, de tomar os Gregos como modelo de vida. É antes uma repetição e uma recupe­ ração do facto original da desocultação. Tenta penetrar nas cama­ das acumuladas de interpretação errônea (Heidegger adora «polir» palavras até que o seu esplendor original volte a brilhar) e ocupar um lugar no centro daquilo que é dito e daquilo que não é dito. Contudo, não é um simples regresso ao passado mas sim um novo facto de desocultação; tentar ressuscitar K ant tal como ele era, seria uma restauração idiota. Assim, toda a interpretação tem que violentar as formulações explicitadas no texto (10). A recusa em ultrapassar uma mera explicitação do texto é realmente uma forma de idolatria bem como de ingenuidade histórica. Será que podemos compreender o autor melhor do que ele se compreendeu a si próprio? Não, porque o autor estava no pleno domínio das considerações que animaram a sua composição; não compreendemos melhor o autor; compreendêmo-lo de um modo diferente. Em Uriterwegs zur Sprache na célebre conversa com um japonês, Heidegger explica que o seu objectivo é «pensar o pensa­ mento grego de um modo profundamente grego» (“ )• Perguntam-lhe (“) KPM 181; na tradução inglesa., 206. (">) KPM 181-83; trad. inglesa 206-8. (") US 134. 152

se isto significa compreender os Gregos melhor do que c l c x so iom preenderam a si próprios. Não, não é tanto isso como também rctn m ar àquilo que foi pensado. Heidegger quer penetrar no pano do fundo do pensamento grego, tal como ele surgiu: no vazio criativo e no não ser que estão por detrás da sua emergência positiva podr estar a chave para um outro tipo de pensamento, para uma oulru captação do ser, da verdade e da linguagem. Enquanto isto não ,sc der, as coisas serão meros objectos e o mundo será um brinquedo do homem. Não precisamos de avançar no desenvolvimento do pensamento apresentacional; precisamos sim de recuar, partindo de um tipo de pensamento meramente ideacional, i. e., explicativo, rumo a um pensamento meditativo (andenkende) (12).

A caminho do pensamento É vulgar dizer que Heidegger formulou uma crítica devastadora à metafísica ocidental ou que colocou de novo a questão ontológica; contudo também seria correcto dizer-se que os seus últimos escritos se relacionam virtualmente com o processo hermenêutico pelo qual o homem, no pensamento «essencial» ou noutros tipos de pensa­ mento, constrói a fronteira entre o ser e o não ser. A questão cru­ cial relativamente ao ser não é apenas a da natureza do ser mas sim a de como pensar o ser, a de como é que o ser aparece; dá-se muita importância, por exemplo, à situação do homem neste evento herm enêu^co em que o ser se coloca ou se torna «compreendido» de um certo modo. T entar traçar o tema do «pensamento» seria um esforço complexo e multifacetado, um esforço que já foi feliz­ mente realizado em inglês, pelo Padre W. J. Richardson ("). Basta aqui realçar o carácter geralmente hermenêutico de um tal tema, e tocar apenas em alguns dos seus aspectos que tenham um signi­ ficado especial para a hermenêutica. É significativo que no diálogo com um japonês e precisamente no ponto a que acima nos referimos, Heidegger defenda que o ho­ mem se coloca num a «relação hermenêutica» (ein hermeneutischen Bezug) em que ele é o mensageiro, aquele que enuncia o ser (“ ). O homem é o ser que constrói a ponte entre o ser que se' esconde e o que se revela, noutras palavras, entre o não ser e o ser. O homem, ao falar, interpreta o ser. O pensamento verdadeiro é definido por Heidegger não como manipulação daquilo que já foi revelado, mas como revelação do que estava escondido. Contudo, no texto dito

(13) VA 180. (” )

Ib id .

(“ ) US 125-27, 135-36.

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por um grande pensador ou por um grande poeta, muito fica ainda oculto e por dizer; portanto, um diálogo pensante com o texto acarretará uma nova desocultação. Isto torna-se hermenêutica no seu sentido mais tradicional (e os escritos de Heidegger contêm mui­ tos destes diálogos). Contudo, este acto secundário de interpretação tem que recuar continuam ente para uma repetição amorosa da desocultação original, tem que se m anter na fronteira entre aquilo que se esconde e o que é revelado. Como se processa um diálogo criativo com o texto? Nos últimos escritos, ao longo dos anos quarenta e cinqüenta, tais como por exemplo Gelassenheit (15), «Carta sobre o Humanismo» e «A que se chama pensar»?, a posição do homem é uma espécie de passividade devota que se abrirá totalmente à luz do ser. Contudo, em «Intro­ dução à Metafísica», anterior a estas obras, há uma discussão signi­ ficativa do ponto de vista hermenêutico, sobre a natureza da inter­ rogação quando procura ser criativa, uma discussão que unifica uma série de aspectos relevantes do pensamento do último Hei­ degger. A «Introdução à Metafísica» começa com uma pergunta. Para Heidegger, perguntar não precisa de ser uma mera investigação, podendo ser um meio de revelação. A pergunta inicial do ensaio — «Porque há o ser e não o nada?» leva a uma segunda questão que se dirige àquele que interroga: «Como se coloca o ser»? Aquele que pergunta vê-se imediatamente transportado para um ponto de vista diferente daquele que a questão inicial colocara pois a questão é de modo a voltar-se para quem pergunta. No processo de colocação de uma questão deste tipo, diz-nos Heidegger, «parece que perten­ cemos inteiramente a nós próprios. Contudo é este perguntar que nos abre caminho desde que, ao interrogar, se transforme (o que faz toda a verdadeira interrogação) e estabeleça um novo espaço sobre todas as coisas e em todas as coisas» (” ). Interrogar é pois algo com que o homem se defronta obrigando o ser a mostrar-se. Une a diferença ontológica entre o ser e o ser dos seres. A interrogação que se mantém simplesmente ao nível do ser dos seres e não faz qualquer tentativa de se dirigir para o fun­ damento (negativo) de um tal ser não é uma interrogação verdadeira mas antes manipulação, cálculo, explicação. É típico de Heidegger afirm ar: «Há muito que existe em nós uma paralisia de toda a paixão dc in terro g ar... A interrogação como elemento fundamental da existência histórica, desapareceu (n ). A essência da mundancidade do homem é precisamente o pro­ cesso hermenêutico dc interrogar, um tipo de interrogação que na (*•) Trad. como DT. ('*) IM 29-30. (") Ibid., 143.

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sua verdadeira forma alcança o ser que não se manifestou c que o faz revelar-se numa ocorrência concreta, histórica. Através dit interrogação, o ser torna-se então história. A inter-relaçüo cntrc o ser, a história e a personalidade torna-se clara na seguinte passagem de Introdução à Metafísica: 1 — A determinação da essência do homem nunca é uma res­ posta mas essencialmente uma pergunta. 2 — O colocar desta pergunta é histórico, no sentido essencial de que este interrogar cria primeiro a história. 4 — Só há história quando o ser se revela na interrogação e com a história surge o ser do homem. 6 — O homem só se torna ele próprio enquanto ser interrogante e histórico; só deste modo ele é um «eu». A personalidade humana tem este significado: o homem tem que transform ar o ser que se lhe revela na história e tem que se colocar na história. Nos últimos escritos dá-se relevo não tanto à interrogação feita pelo homem como à necessidade de uma abertura atenta relativa­ mente ao ser. O ser ainda ê histórico, mas a sua ocorrência é uma dádiva que parte do ser, mais do que produto de uma inquirição c capíação feitas pelo homem (**). Contudo, devemo-nos precaver, não vendo aqui qualquer tran­ sição radical ou qualquer viragem, pois Heidegger não está a con­ tradizer-se; antes completa a sua posição anterior; nos últimos tra­ balhos tenta dar ênfase a uma posição não centrada no sujeito, e por essa razão a imagem afasta-se de uma visão do homem «lutando» inquisitivamente com o ser, para uma visão do homem como «pastor do ser». Contudo, mesmo enquanto pastor do ser, a tutela do ho­ mem é referida em termos de «pensar» e «poetizar»; ambas são acções por parte do homem, se bem que respondendo ao ser, e ambas mantém o seu caracter histórico. Na «Carta sobre o Hum a­ nismo» Heidegger afirma: «Na medida em que o pensamento, enquanto historicamente ponderável, atende ao destino do ser, já se ligou àquilo que é fatal, que se mede pelo destino ... O carácter fatal (Geschichlichkeit) do dizer do ser enquanto dádiva da verdade — nisto e não em regras lógicas, consiste a primeira lei do pensamento ... O ser é como que a ocorrência fatal (Geschick) do pensamento. Este evento é em si mesmo histórico. A sua história já se tornou linguagem no acto de dizer, realizado por aquele que pensa.» (l>) Como pastor do ser, o homem perde o carácter prometeico sugerido em Sófocles, na «Ode ao homem» (antígona) (” ) sobre a (>•) Ibid. (") PL-BH 118. (M) IM 146-165.

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qual Heidegger se debruça na «Introdução à Metafísica»; em Gelasser.heit Heidegger diz mesmo que «não deveríamos fazer nada, apenas deveríamos esperar» (” )• Em «O que se cham a pensar» o pensamento é descrito como um a resposta ao chamam ento e às imposições do ser. É algo que vem do mais íntimo do homem, no qual «tudo o que fica para ser pensado é ocultado e escondido» (” ). A palavra chave não é per­ guntar mas sim responder. E no entanto o homem ainda é o ser que, na resposta, chega à negatividade do ser, ao seu carácter não revelado, misterioso. A discussão da interrogação conduziu a alguns dos temas mais importantes do último Heidegger: a historicidade, a diferença onto­ lógica, a poesia e o pensamento, a atitude de receptividade neces­ sária que nos permite orientar para o «Aberto», que possibilita a interpelação. Tudo isto sugere uma postura hermenêutica radical­ mente diferente da atitude objectiva que é conseqüência de um a consideração da interpretação como acto conceptual primitivo, como uma espécie de análise.

A linguagem e a fala Na passagem da «Carta sobre o Humanismo» acima citada, a referência ao «acto de dizer efectuado por aquele que pensa» sugere um outro tema im portante nos últimos escritos de Heidegger: a linguisticidade do ser. O interesse de Heidegger pela linguagem data do começo da sua carreira, com a sua dissertação: «A doutrina do juízo no psicologismo: uma contribuição crítica e positiva para a lógica» (” ) e com a sua dissertação sobre a doutrina de Duns Escoto sobre as categorias e o significado. Nela defendia a necessidade de colocar os fundamentos teóricos da linguagem (” )• Heidegger fala deste primeiro período no seu recente «Diálogo com um Japonês». Significativamente, as observações que faz ligam-se ao porquê da sua escolha em usar a palavra «hermenêutica» em «Ser e Tempo»; Conhecia o term o «hermenêutica» dos meus estudos teológicos. Nessa altura interessava-me especialmente a questão da relação entre a palavra bíblica e o pensamento teológico especulativo. Era, se quiserem, a mesma relação — nomeadamente a relação entre lin­ guagem e ser, para mim então escondida e inacessível — que eu cm vão procurava encontrar, uma chave que levasse aos caminhos mais fundos, que levasse aos desvios (” ). (’■) (” ) (” ) (“ ) (>•)

G 37; DT 62. VA 139; ver TPhT 599-601. TPhT 675. 1'òggcler, p. 269. US 96.

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A linguagem colocou-se num novo contexto quando da anrtllir, em Ser e Tem po, da mundancidade do Dasein, feita em termo* de situação, compreensão e interpretação. Era a articulação du com preensão existencial. De tal modo estava ligada à compreensão c i\ inteligibilidade que o pensamento lógico e toda a manipulação con ceptual dos objectos no mundo se tornaram secundários e derivados, comparados com a linguagem no contexto vivo da articulação essencial da compreensão (” ). Logo em Ser e Tempo o campo da lógica e das asserções integra a categoria do pensamento apresen­ tacional, enquanto que a linguagem na sua verdadeira essência, como articulação essencial da compreensão situacional, histórica, 6 algo que pertence ao modo de ser do homem. Deste ponto de vista, Heidegger podia criticar as teorias que encaravam a linguagem como um mero instrum ento de comunicação C7). O tema da linguagem tem importância em «Introdução à Meta­ física». Dedicado à questão «O que é o ser?», o ensaio remete para um fragmento de Parménides no qual Heidegger encontra a asserção de que o ser é idêntico àquilo pelo qual ocorre a apreensão. Isto significa que «apenas há ser quando há uma aparição, uma desocul­ tação, quando há revelação» (” ). Tal como não pode haver ocor­ rência de ser sem apreensão nem apreensão sem ser, também não pode haver ser sem linguagem, nem pode haver linguagem sem ser. Suponnamos que o hom em . não tinha qualquer conhecimento prévio do ser, que desconhecia todo e qualquer sentido indetermi­ nado do ser. Heidegger interroga-se: «Haveria apenas um substan­ tivo e um verbo a menos na nossa linguagem? Não. Não haveria qualquer linguagem. Nenhum ser enquanto tal se revelaria por meio de palavras, não mais seria possível invocá-lo e falar dele com palavras; pois falar de um ser enquanto tal implica compreendê-lo previamente como sendo um ser, isto é, compreender o seu ser.» (” ) Por outro lado, «se a nossa essência não incluísse o poder da linguagem, todos os seres se nos fechariam»; nós próprios não somos menos que o ser que não somos (50). Sem a linguagem nunca pode­ ríamos imaginar o homem. Heidegger avança abruptamente com o tema: «Porque ser homem é falar.» (” ) Que ilusão, diz Heidegger, pensar que o homem inventou a linguagem! O homem não inventou a linguagem, tal como não inventou a compreensão, nem o tempo

(” ) Ver a discussão do carácter derivado das asserções no capítulo anterior. (*0 Relativamente a um novo tipo de lógica, ver Hans Lipps, llntersuchungen zu einer hermeneutischen Logik, e Kitarô Nishida, Intelligibility and the Philosophy of Nothingness. (” ) IM 139. (” ) Ibid., 82. («) Ibid. (” ) Ibid.

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nem o ser ele mesmo. «Como poderia o homem ter alguma vez inventado o poder que o penetra, que só por si lhe permite ser homem?» (” ) Mesmo o acto poético de nomear é uma resposta que o homem dá ao ser dos seres. Em escritos posteriores a «Introdução à Metafísica», aumenta a ênfase dada ao homem considerado enquanto aquele que responde às interpelações ou chamamentos do ser. Por exemplo, na «Carta sobre o Humanismo», Heidegger sustenta que «a única ocupação do pensamento é trazer cada vez mais para uma forma faiada, a ocorrência do ser; um ser que permanece e que na sua permanência espera pelo homem» (” ). E é óbvio que o ser se revela na linguagem. A ocorrência do ser na linguagem é descrita em termos da palavra Geschick, fado ou destino. «A fatalidade do ser que se diz, tal como a fatalidade da verdade, é a primeira lei do pensamento.» (” ) O tema da história não é novo pois na «Introdução à Metafísica» Heidegger apresenta a linguagem como a dinâmica do ser do homem que lhe permite tornar-se histórico — que !he permite na realidade fundar a história. A apreensão e a fala foram apresentadas como actos espe­ cificamente históricos, em que o ser surge no iempo, acontece. A diferença é essencialmente uma diferença de ênfase: mais do que lutar com o ser, o homem abre-se ao ser, à interpelação do ser. Contudo, a interrogação não é posta de lado por Heidegger pois interrogar é precisamente pôr em causa as concepções apresentacionais. Títulos posteriores como «A que chamamos pensar?» ou o desejo expresso por Heidegger de colocar de um modo interroga­ tivo das Wesen e der Sprache (como das Wesen? e der Spraehe?) mostram isso. De facto, a interrogação mantém-se um método bá­ sico no seu pensamento. A mudança de ênfase é apenas um esforço para apontar de um modo mais forte a primazia do ser. Isto tem como implicações na linguagem, a inversão da orien­ tação habitual da fala; não se diz que o homem fala mas sim que a própria linguagem fala. Tal facto torna-se mais explícito numa colecção de ensaios sobre a linguagem Unterwegs zur Sprache. «A linguagem na sua essência, não é nem expressão nem actividade do homem. A linguagem fa!a.»(35) As palavras ecoam no silêncio e através delas colocam-se as realidades do nosso mundo e o conflito entre a terra e o mundo: «o som no silêncio não tem nada de humano. Pelo contrário, o humano é lingüístico na sua essên­ cia» (■’"). E o acto hum ano de dizer que é especificamente humano. Contudo o dizer é em si mesmo um acto pela linguagem. Aquilo (” ) Ibid., 156. («) PL-BH 118. (M) Ibid. Mudei um pouco a tradução da primeira versão dada na p. 151. (” ) US 19. («) Ibid., 30. 158

que pela linguagem se revela, não é algo de humano mas sim t> mundo, o próprio ser. Em Unterwegs zur Sprache Heidegger encontra na fala, espe­ cialmente no dizer (das Sagen), a própria essência da linguagem. Dizer é m ostrar (J7)- Assim, o silêncio pode por vezes dizer mais do que as palavras. Ao dizer pertence a capacidade de escuta, de modo que aquilo que tem que ser dito se possa mostrar; o dizer conserva aquilo que é cuvido (3‘). Nele, o ser mostra-se sob a forma de ocor­ rência. Colocando o tema em termos de expressão e de aparição: a iinguagem não é uma expressão do homem mas uma aparição do ser. O pensamento não exprime o homem, deixa que o ser aconteça como e\en to lingüístico (30). Neste deixar que aconteça está o destino do homem, e também o destino da verdade. Em última instância o destino do ser. A viragem de Heidegger para uma crescente ênfase da linguisticidade (Sprachlichkeii) do modo de ser do homem, e a sua afir­ mação de que o ser conduz e chama o homem, de modo que em última instância não é o homem que se mostra mas sim o ser, têm de facto uma importância incalculável para a teoria da compreensão. Faz com que a própria essência da linguagem consista na função hermenêutica de obrigar uma coisa a mostrar-se. Significa que a disciplina da interpretação se transforma numa tentativa de aban­ donar decisivamente uma mera análise e explicação, enveredando pela realização de um diálogo pensante com o que aparece no texto. Compreender torna-se uma questão não só de interrogar que pretende ser aberto e não dogmático, mas também de aprender a esperar e a encontrar um lugar (Ort) a partir do qual o ser do texto se revele. A interpretação transforma-se numa ajuda para o evento lingüístico. Este terá que ocorrer pois acentua-se a função herme­ nêutica do próprio texto, como sendo o lugar onde o ser se revela. A linguagem é em si mesma hermenêutica, é hermenêutica no seu mais alto grau na poesia, pois como Heidegger diz em Sobre a essência da Poesia o poeta é o mensageiro, o hermeneuta, dos deuses para o homem. Heidegger identificou a essência do ser, do pensamento, do homem, da poesia e da filosofia com a função hermenêutica do dizer. Não vamos aqui discutir se essa posição é ou não sustentável. Um facto é que a sua própria filosofia se torna essencialmente her­

(") Ibid., 258. (” ) Ibid., 255. (39) Assim o termo Sprachereignis (evento lingüístico) como Leitworl da Nova Hermenêutica de Ernst Fuchs. Ver Das Sprachereignis in der Verkiindigung lesu in der Theologie des Paulus und im Oslergeschehen, HPT 281-305; e The Essence oj the Language Event in Christoiogy, Studies of the Hiltorlcul Jesus, pp. 213-28.

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menêutica e que os temas centrais se integram na área da herme­ nêutica. É claro que ele mudou todo o contexto da hermenêutica, abandonando a antiga concepção desta como disciplina filológica de interpretação de textos. O esquema sujeito-objecto, a objectivi­ dade, as normas de validação, o texto como expressão de vida — nada disto consta na abordagem de Heidegger. A hermenêutica é definida como lidando com o momento em que o sentido se revela, concepção que Ricoeur considera uma compreensão «demasiado geral» pois não inclui necessariamente o acto de interpretação de um texto. Esta definição trouxe uma m udança radical à topografia da hermenêutica. E o próprio acto de interpretação redifiniu-se, colocando-se num a perspectiva ontológica.

A explicação e a topologia do ser Será imprudente e talvez pouco justo, tom ar as explicações de Heidegger como paradigmáticas de uma teoria da exegese poética em geral, pois o uso que o filósofo delas faz circunscreve-se ao con­ texto da sua investigação sobre a natureza do ser e sobre a natureza da linguagem. N um a nota introdutória em «Sobre a Essência da Poe­ sia», Heidegger nega particularm ente que elas possam constituir um contributo para um a investigação em história da literatura ou em estética (,0)- Contudo a título de exemplo, podemos aqui mencionar duas passagens em que Heidegger se volta para a questão da expli­ cação, uma em Introdução à Metafísica, um a das suas primeiras obras, e outra em Unterwegs zur Sprache. N a última parte de Introdução à Metafísica Heidegger explica a «Ode sobre o Ho­ mem», coral da Antígona de Sófocles, num a tentativa de definir mais claramente a primitiva concepção grega do homem nela expressa. Diz-nos então: «A nossa interpretação comporta três fases, em cada um a das quais consideraremos o poema de um ponto de vista diferente. Na primeira fase, colocaremos o significado intrínseco do poema, aquele que sustenta o edifício das palavras, situando-se acima deste. Na segunda fase atravessamos toda a seqüência de estrofes e antiestrofes e delimitamos a área que o poema abriu. Na terceira fase, tentamo-nos situar no centro do poema, jul­ gando o que é o homem de acordo com este discurso poético.» (41) É evidente que Heidegger não envereda por uma abordagem dc tipo formal, pois esta seria incompatível com as intenções e problemas por ele levantados. É interessante notar que o procedi­

(«) EHD; EB 232. («) IM 148. 160

mento que aqui demonstra, antecipa uma posterior ubordutioin «topológica» em que a explicação tenta colocar o lugar (topos) u partir do qual o poema fala, a localização de uma justificação no interior do ser, que a passagem ilumina. Assim, a primeira fase nfto começa serialmente mas sim com a tentativa de encontrar um sen tido que sustente todo o edifício das palavras e que se situe acima dele. Aquilo que se diz situa-se no interior de um significado que não é totalmente explícito, o significado que está sob e sobre o texto. Este significado circundante, esta Gestalt que é mais do que a soma das partes, é o princípio que governa o poema, clarificando as suas partes individuais. É a verdade do poema, o ser que se des­ venda — poderíamos dizer que é a alma do poema. Só a essa luz é que Heidegger empreende a segunda fase, que é a passagem da estrofe para a antiestrofe e, através do poema, um recuo até «à delimitação da área que o poema abriu». «Na terceira fase tentamo-nos situar no centro do poema» — isto é, na fronteira determinante entre a ocultação e a revelação estabe­ lecida pelo acto criativo do poeta ao nomear o que é o homem, e ao repensar em profundidade o que foi nomeado. Isto significa, é claro, que se vá mais longe do que o poema, que se enverede por aquilo que não foi dito: «Se nos contentarm os com o que o poema diz directamente, a interpretação acaba (com a segunda fase). Na verdade apenas come­ çou. A interpretação real tem que m ostrar o que não está nas pala­ vras mas que no entanto é dito. Para que isto se dé o exegeta tem que usar de violência. Tem que procurar o essencial onde a inter­ pretação científica já nada mais encontra, essa interpretação que estigmatiza como não científico tudo aquilo que transcende os seus limites.» (“ ) O processo hermenêutico no que tem de essencial, não surge na explicação científica daquilo que já está formulado no texto; antes é o processo do pensamento originário, pelo qual o significado desvenda o que não era explicitamente presente. Em Unterwegs zur Sprache, um ensaio intitulado Die Sprache im Gedicht prefacia a discussão sobre a poesia de Trakl, com algu­ mas considerações gerais sobre a explicação poética. Heidegger toma como ponto de partida a discussão da palavra alemão «discussão»: Eròrterung. Primitivamente, o título do ensaio fora: Georg Trakl: Eine Eròrterung seines Gedichtes e Heidegger procurou definir o seu próprio ensaio não como histórico, biográfico, sociológico ou psicológico, mas como um a consideração do «lugar» (Ort) a partir do qual Trakl fez poesia, o lugar que se clarifica com a sua poesia. Pois todo o grande poeta fala a partir de um único «poema» cir­

(« ) Ibid., 162.

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cundante, que nunca é dito; a tarefa de um diálogo pensante com o poeta terá que ser encontrar o lugar no ser que seja o funda­ mento do poema: «Só a partir do lugar que ocupa o poema (não dito) é que o poema individual brilha e ecoa.»(“ ) Heidegger sustenta que um diálogo intelectual com um poema pode «perturbar aquilo que o poema diz, em vez de o deixar dizer tranquilamente ... uma discussão do poema nunca poderá substi­ tuir-se a uma verdadeira audição de poemas, nunca poderá tom ar a liderança. Uma discussão intelectual pode, quanto muito, probleinatizar uma audição, ou, num caso favorável, tornar uma audi­ ção m?is significativa» (“ ). Terá Heidegger aqui abandonado a primitiva controvérsia sobre a violentação do texto? Temos que ir mais longe, procurar o que é mais fundo do que uma aparente mudança. À primeira vista poderia parecer que Heidegger quer deixar falâr o texto, com a sua própria verdade, com a sua própria voz. A solução de «fazer violência ao texto» é essencialmente uma réplica aos críticos que queriam restringir a interpretação àquilo que no texto é inexplícito. R eafirm a a necessidade de finalmente transcender o texto e de recolocar a questão com que o texto lida. Mais ainda, o processo de Eròrterung em cada um dos seus degraus, parece ir para além do texto, parece ír às raízes de cada palavra, pela repetição contínua de um verso ou versos, fazendo-se a explicação ouvir cada vez mais a partir do próprio verso. Essas repetições evidenciam que a funçãq da explicação é deixar falar o poema e não querer dizer mais do que ele diz. A própria ideia de iluminar o «lugar» do poema é uma tentativa de «construir a cena» do poema e não de tomar o seu lugar em cena. Tal como na Nova Crítica, o próprio poema é preponderante e não constitui um background biográfico. O background de um poema não é a vida do autor mas sim o tem a do poema. A Nova Crítica e Hei­ degger estariam de acordo sobre a autonom ia ontológica do poema e sobre a heresia da paráfrase; a diferença está em que a Nova Crítica tem dificuldade em defender a verdade do poema no con­ texto dos seus pressupostos. Nela, o texto transforma-se facilmente num objecto de explicação, num exercício conceptual lidando ape­ nas com o «dado», aceitando as restrições da objectividade cien­ tífica; o tipo de explicação que Heidegger dá é radicalmente dife­ rente de qualquer «análise» objectiva ao que é incontestavelmente dado. Mas para além de diferenças de estilo, a existência de afini­ dades essenciais sugere que a hermenêutica de Heidegger poderia dar à Nova Crítica bases para uma revitalização.

(<3) US 38. (") Ibid., 39.

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Uma concepção hermenêutica da obra de arte Em 1936, Heidegger efectuou três conferências sobre arte, com o título «A Origem da Obra de Arte». Não foram publicadas ulé 1950, aparecendo então como abertura de Helzwege (Caminho» na Floresta). Nelas encontramos a abordagem mais completa que Heidegger faz à natureza da arte. São uma transposição paru o domínio da arte das concepções essencialmente hermenêuticas da verdade e do ser, do conflito entre as formulações positivas e uma fundamentação negativa embora criativa, da linguagem como falar e dizer, acima abordadas. Uma obra de arte verdadeiramente grande fala, e ao fazê-lo constrói um mundo. Este falar, como todo o dizer verdadeiro simultaneamente revela e esconde a verdade. «A beleza é o modo como a verdade, enquanto desocultação, ocorre.» (“ ) O poeta nomeia o sagrado, e desse modo fá-lo aparecer, numa forma; Heiddeger encara toda a arte como intrinsecamente poética, como um meio de forçar o ser dos seres e desocultar-se e como um meio de transform ar a verdade num acontecimento histórico concreto. Esta situação estética é descrita em termos da tensão intrínseca entre a terra, como fundam ento criador das coisas, e o «mundo». A terra representa para Heidegger a mãe inexaurível, a origem primordial e o fundamento de tudo. A obra de arte, como aconte­ cimento em que a verdade se revela, representa a captação desta tensão criativa num a forma. Assim, traz para o domínio dos seres, como sendo um todo, e abre ao homem, essa luta interna entre a terra e o mundo. Por exemplo um templo grego num vale, cria um espaço aberto ao ser, cria o seu próprio espaço vivo. Na beleza da sua forma faz com que brilhem, em todo o seu esplendor, os materiais de que é feito. Organiza de tal modo os materiais que os «anuncia», fazendo com que brilhem. O tempo nada copia; limita-se a construir, a partir de si mesmo, um mundo em que sentimos a presença dos deuses. Visto que a materialidade dos materiais desaparece nos instrumentos, quanto melhor estes desem­ penhem a sua função de instrumentos, a obra de arte abre-nos um mundo precisamente através da revelação da materialidade dos materiais: «A pedra move-se e repousa e assim se torna verdadeiramente pedra; o metal começa a emitir luz e a brilhar; as cores começam a cintilar como cores; os tons convertem-se verdadeiramente cm sons; e a palavra fala. Tudo isto acontece pelo facto de que a obra se coloca de novo na massa e no peso da pedra, na firmeza e na maleabilidade da madeira, na dureza e no brilho do metal, nu

(«) Ho 44; UK 61.

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sonoridade dos tons e no poder que a palavra tem de nomear (“ ). Dizer isto é simplesmente observar que a obra de arte «deixa a terra ser terra» (,7). A terra não se limita a ser apenas algo sobre o qual caminhamos, tal como uma árvore não é apenas uma coisa que está no nosso caminho; a terra é algo que aparece no brilho do m etal e na sonoridade dos sons — e que depois recua. Não faz esforços e não se cansa. «Sobre a terra e dentro dela, o homem histórico cimenta a sua morada no mundo.» (**) No domínio da arte, a construção de uma obra a partir da terra, cria um mundo; «a obra capta a terra e mantém-na firme na abertura de um mundo» (,9). A construção da terra e a exibição do mundo, são segundo Heidegger, as duas tendências básicas da obra de arte. A essência da arte, por conseguinte, não está na mera perícia técnica, mas sim na revelação. Ser uma obra de arte significa abrir um mundo. Interpretar uma obra de arte significa m udar para o campo aberto que a obra ergueu. A verdade da arte não é uma questão de concordância superficial com algo que já está dado (i. e., a visão tradicional da verdade como correcção); revela a terra, de tal modo que a podemos ver. Por outras palavras, a gran­ deza da arte tem que ser definida em termos da sua função herm e­ nêutica. No seu ensaio, Heidegger enunciou uma teoria hermenêu­ tica da arte. O contributo de Heidegger para a teoria hermenêutica é pois verdadeiramente multifacetado. Em Ser e Tempo voltou a conceber a compreensão num contexto totalm ente novo, mudando assim o carácter fundam ental de qualquer teoria conseqüente da interpre­ tação. Redefiniu a própria palavra «hermenêutica» identificando-a com a fenomenologia (também tal como ele a definia) e com a função essencial das palavras que é tornar compreensível. Nos seus últimos trabalhos adoptou a exegese de textos como método típico do filosofar, propondo-se como um filósofo hermenêutico no sentido mais tradicional do termo. Mas, para Heidegger, o sentido mais fundo da palavra é o de um processo misterioso de revelação, pelo qual o ser ganha existência. Nos termos desse processo essen­ cialmente hermenêutico. Heidegger abordou a linguagem, as obras de arte, a filosofia e a própria compreensão existencial. Foi decididamente mais longe do que a concepção aparente­ mente lata de Dilthey. da hermenêutica como base metodológica de todas as disciplinas humanísticas; em Heidegger, a hermenêu­ tica aponta para o facto da compreensão enquanto tal, não por

(«) (") («) («)

Ho 35; Uk 47. Ibid. Ibid. Ibid.

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métodos históricos de interpretação que superam e contrurium us métodos científicos. A dicotomia histórico-científica a que Dilthey dedicou toda a sua vida é abandonada, sustentando-sc u posiçflo de que toda a compreensão se radica no carácter histórico da com preensão existencial; abre-se o caminho para a hermenêutica «filo­ sófica» de Gadamer.

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A CRÍTICA DE GADAM ER À ESTÉTICA MODERNA E À CONSCIÊNCIA HISTÓRICA

No desenvolvimento da teoria hermenêutica moderna deu-se um acontecimento decisivo com a publicação de Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik (Verdade e Método: Elementos de uma Hermenêutica Filosófica) pelo filó­ sofo de Heidelberg, Hans Georg Gadamer. Num único volume apresenta-nos não só uma revisão crítica da estética moderna e da teoria da compreensão histórica, numa perspectiva essencialmente heideggeriana, como também uma nova hermenêutica filosófica baseada na ontologia da linguagem. Profundam ente filosófica, esta obra só tem comparação com outras duas m onumentais abordagens da teoria hermenêutica escri­ tas neste século: Das Verstehn, de Joachim Wach e Teoria generale delia interpretazione de Emilio Betti. Cada uma destas três obras defende uma finalidade distinta e assim, cada uma deu um con­ tributo diferente. Os três volumes de W ach sobre a história da hermenêutica no século xix constituem um a referência indispen­ sável para todo o estudante que queira abordar seriamente o tema da hermenêutica. Foram no entanto escritos nos últimos anos de 1920, situando-se necessariamente no contexto da concepção de hermenêutica professada por Dilthey. Betti faz uma revisão do espectro dos diferentes tipos de inter­ pretação tendo em mente a formulação de uma teoria geral global e sistemática e pretendendo desenvolver um conjunto de regras básicas para uma interpretação mais válida. Desde o início que esta obra põe como m eta um organon sistemático das formas de interpretação, mais do que uma simples história; assim, a sua extensão e a sua abundante documentação tal como a sua finali­ dade sistemática, constituem um complemento inestimável à obra
pressupostos que Heidegger põe radicalmente em causa. Para Betti, Heidegger é uma ameaça à ideia de resultados objectivamente válidos no campo da filologia e da historiografia. Depois de Betti, restou a Gadam er percepcionar e desenvolver as conseqüências positivas e frutíferas da fenomenologia no campo da teoria her­ menêutica, em particular o pensamento de Heidegger. Foi Gadamer quem teve que lutar com o problema filosófico de desenvolver um a nova ontologia do evento da compreensão. Assim, com o aparecimento de Verdade e Método, a teoria hermenêutica entra num a nova e importante fase. Gadamer exprime agora, de um modo totalmente sistemático, a nova con­ cepção radical de Heidegger relativamente à compreensão, traçada no capítulo anterior; esclarecem-se as implicações desta concepção no modo como se concebem o estético e o histórico. Abandona-se a antiga concepção de hermenêutica como sendo a base metodo­ lógica específica das Geisteswissenschaften; o próprio estatuto do método é posto em causa, pois o título do livro de Gadam er é irônico: o método não é o caminho para a verdade. Pelo contrário, a verdade zomba do homem metódico. A compreensão não se concebe como um processo subjectivo do homem face a um objecto mas sim como o modo de ser do próprio homem; a hermenêutica não se define enquanto disciplina geral, enquanto auxiliar das humanidades, mas sim como tentativa filosófica qua avalia a com­ preensão, como processo ontológico — o processo ontológico — do homem. O resultado destas reinterpretações é um tipo diferente de teoria hermenêutica, a hermenêutica «filosófica» de Gadamer. É essencial percebermos, logo desde o início, a distinção entre a hermenêutica filosófica de Gadamer e o tipo de hermenêutica que se orienta para os métodos e para a metodologia. Gadamer não se preocupa directamente com os problemas práticos da formulação de princípios interpretativos correctos; antes pretende esclarecer o próprio fenômeno da compreensão. Isto não significa que negue a importância da formulação de tais princípios; pelo contrário, eles são necessários às disciplinas interpretativas. Significa sim que G a­ dam er trabalha sobre um a questão prelim inar e fundamental: como é possível a compreensão, não só nas humanidades mas em toda a experiência hum ana sobre o mundo? Esta é uma questão que se coloca às disciplinas da interpretação histórica mas que vai muito mais longe do que elas. É neste ponto que Gadamer liga explici­ tam ente a Heidegger a sua definição de hermenêutica: «Penso que a análise temporal que Heidegger faz da existência humana, demonstrou eficazmente que a compreensão não é uma entre várias atitudes de um sujeito humano, mas um modo de ser do próprio Daseirt. Neste sentido usei aqui o termo «hermenêutica» (em Wahrheit und Methode). Designa o movimento básico da existência humana, constituído pela sua finitude e historicidadc, 168

e por conseguinte abrangendo a globalidade da sua cxpcriêncln no mundo ... O movimento de compreensão é englobante e univci sal.» (') É claro que a universalidade da hermenêutica traz consequôn cias às tentativas realizadas pelas disciplinas interpretativas no que respeita à metodologia. Por exemplo, o carácter englobante da com­ preensão levanta a questão de podermos, com um simples jiat, limitar o campo de acção da compreensão, ou reduzi-lo a outro aspecto. Gadamer defende que a experiência de uma obra de arte transcende todo e qualquer horizonte subjectivo da interpretação, tanto o do artista como o daquele que percepciona a obra de arte. Por esta razão, «a mens auctoris não é a medida possível para avaliar o significado (Bedeutung) de um a obra. De facto, falar de uma obra de arte isolada, separada da sua relidade, incessantemente renovada, tal como aparece na experiência, é adoptar um ponto de vista muito abstracto» (2). O decisivo não é a intenção do autor nem a obra como coisa isolada, fora da história, mas o quid que aparece repetidamente nos encontros históricos. Para alcançarmos as condições metodológicas trazidas por esta hermenêutica mais universal de Gadamer, temos que entrar mais profundamente nas raízes heideggerianas do pensamento de Gadamer e no carácter dialéctico da hermenêutica tal como Gadamer a con­ cebe. À semelhança de Heidegger, Gadam er é um crítico da ren­ dição moderna ao pensamento tecnológico, radicado no subjectismo (Subjektitàt), isto é, na consideração da consciência humana sub­ jectiva, e das certezas da razão que nela se fundam, como se cons­ tituíssem um ponto de referência último para o conhecimento humano. Os filósofos pré-cartesianos, como por exemplo os antigos gregos, viram o seu pensamento como parte do próprio ser; não tomaram a subjectividade como ponto de partida, fundamentando depois sobre ela a objectividade do seu conhecimento. A sua abordagem foi mais dialéctica, foi um a abordagem que tentou guiar-se pela natureza daquilo que estava a ser compreendido. O conhecimento não era algo que adquirissem como uma posse, mas algo em que participavam, deixando-se guiar e mesmo ser possuídos pelo seu conhecimento. Deste modo os Gregos realizaram uma abordagem da verdade que ultrapassou as limitações do pensa­ mento moderno de um sujeito-objecto, radicado num conhecimento subjectivamente certo. A abordagem de Gadamer está pois mais próxima da dialéctica socrática do que do pensamento moderno, manipulativo e tecno­ lógico. A verdade não se alcança metodicamente mas dialectica-

0 ) WM. Prefácio à 2.» ed., XVI. O Ibid., XVII. 169

mente; a abordagem dialéctica da verdade é encarada como a antí­ tese do método; ela é de facto um meio de ultrapassar a tendência que o método tem de estrutura previamente o modo individual de ver. Rigorosamente falando, o método é incapaz de revelar uma nova verdade; apenas explicita o tipo de verdade já implícita no método. A própria descoberta do método não se alcançou metodicamente mas sim dialecticamente, isto é, como resposta problematizante ao tema com que deparamos. No método, o tema a investigar orienta, controla e manipula; na diàléctica, é o tema que levanta as questões a que irá responder. A resposta só pode ser dada se pertencer ao tema e situando-se nele. A situação interpretativa não é mais a de uma pessoa que interroga e a de um objecto, devendo aquele que interroga construir «métodos» que lhe tornem acessível o objecto pelo contrário, aquele que interroga desco­ bre-se como sendo o ser que é interrogado pelo tema (Sache). Numa situação destas «o esquema sujeito-objecto» é enganador pois o sujeito torna-se agora objecto. Na verdade, o próprio método é geralmente encarado como estando no interior do contexto da concepção sujeito-objecto da situação interpretativa do homem, servindo de fundam ento ao pensamento moderno, manipulador e tecnológico. Poder-se-ia perguntar: Não será a dialéctica hegeliana a essên­ cia mesma do pensamento subjectivo, pois não é verdade que o pensamento dialéctico leva à auto-objectificação da consciência? A autoconsciência está no centro do pensamento hegeliano, mas a hermenêutica dialéctica de Gadamer não segue o conceito hege­ liano de Geist na fundamentação última que este tem na subjectividade. Fundamenta-se, não na autoconsciência mas sim no ser, na linguisticidade do ser humano no mundo e por conseguinte no carácter ontológico do acontecimento lingüístico. Não se trata de um a dialéctica de teses requintadas que se opõem; é uma dialéctica entre o contexto em que cada pessoa se insere e o contexto da «tradição» — o que desce até nós, o que vem ao nosso encontro, e cria aquele momento de negatividade que é a vida da dialéctica e a vida da interrogação. Assim, embora a hermenêutica dialéctica de Gadamer tenha afinidade com Hegel, ela não procede do subjectivismo implícito em Hegel e aliás em toda a metafísica moderna anterior a H ei­ degger. Embora tenha semelhanças com a dialéctica de Platão, não pressupõe a doutrina platônica das ideias nem a sua concepção de verdade e de linguagem. Antes propõe uma dialéctica baseada na estrutura do ser tal como foi explicada pelo último Heidegger, e na estrutura prévia da compreensão tal como se coloca em Ser e Tempo. O objectivo da dialéctica é eminentemente fenomenológico: fazer com que o ser, ou a coisa que encontramos, se revele. O método envolve uma form a específica de questionamento que 170

desoculta um aspecto da coisa; uma dialéctica hermenêutica abrr *r a um questionamento pelo ser das coisas, de modo que as colrmn que encontramos se possam revelar no seu ser. Isto é possível, defender Gadamer, devido à linguisticidade da compreensão hu­ mana e em última instância, do próprio ser. Esta orientação do pensamento para o problema hermenêutico está eminentemente implícita em Heidegger. Só é nova a ênfase especulativa e dialéctica — poderíamos dizer hegeliana — e a expo­ sição agora totalm ente revelada das implicações da ontologia hei­ deggeriana em estética e em interpretação de textos. Pede-se ao leitor que tenha presente o facto de que as concepções heideggerianas básicas sobre pensamento, linguagem, história e experiência humana são transpostas para Gadamer. Isto é essencial pois as teses de Wahrheit und M ethode baseiam-se nelas e o resvalar inconsciente para as concepções pressupostas na maior parte dos pensadores ingleses e americanos contemporâneos que se debruçam sobre a interpretação, criará ainda mais dificuldades à compreensão. Para mais, as concepções de Gadamer inter-relacionam-se, de modo a que só gradualmente entram os no círculo das suas considerações. Final­ mente, as teses de Gadamer assentam essencialmente nas suas minuciosas análises críticas a um pensamento anterior sobre a linguagem, sobre a consciência histórica e sobre a experiência estética. Assim há obstáculos de peso que se colocam à compreen­ são do pensamento de Gadamer. No entanto, far-se-á uma tentativa de apresentar algumas das linhas essenciais do modo como Gadamer transform a a teoria heideggeriana da compreensão numa critica formal da estética moderna e das concepções históricas da inter­ pretação.

A crítica à consciência estética Segundo Gadamer, é relativamente moderno o conceito de «consciência estética», distinguindo-se e isolando-se dos domínios «não estéticos» da experiência. De facto, é conseqüência da subjectivação geral do pensamento efectuada a partir de Descartes, ten­ dência a fundam entar todo o conhecimento numa autocerteza subjectiva. De acordo com esta concepção, o sujeito que contempla um objecto estético é uma consciência vazia recebendo percepções e gozando de certo modo, da imediatez de uma forma puramente sensível. A «experiência estética» é assim isolada e descontínua relativamente a outros domínios mais pragmáticos; não é mensu­ rável em termos de «conteúdo» visto ser um a resposta à forma. Não se relaciona com a autocompreensão do sujeito, ou com o tempo; é encarada como um momento atemporal sem qualquer outra preferência que não seja a si própria. 171

As conseqüências de um a concepção deste gênero são inúmeras. Em primeiro lugar não há qualquer modo adequado de avaliação da arte que não seja o da satisfação perceptiva. Não há preceitos para a arte em term os de conteúdo, pois que a arte não é conhe­ cimento. Fazem-se distinções tortuosas entre a «forma» e o «con­ teúdo» da arte; o prazer estético é atribuído à primeira. A arte deixa de ter um lugar definido no mundo pois nem ela nem o próprio artista pertencem ao mundo de um modo determinado. A arte é deixada sem qualquer função e o artista sem qualquer lugar na sociedade. A «sacralidade» evidente da arte, que experi­ mentamos quando protestamos contra a destruição absurda de grandes obras de arte, não é de modo algum legitimada. E certa­ mente que o artista não tem pretensões a ser um profeta pois tudo aquilo que cria é quer uma expressão formal do sentir quer um prazer estético. No entanto, uma concepção deste tipo no que respeita ao fenô­ meno estético é contrariada pela experiência que temos de grandes obras de arte. A experiência do encontro com uma obra de arte abre-nos um mundo; não nos limitamos a ficar boquiabertos, gozando sensualmente os contornos das formas. Logo que deixamos de considerar um a obra como um objecto e a vemos como um mundo, quando vemos o mundo através dela, então percebemos que a arte não é percepção sensível mas conhecimento. Quando deparamos com a arte, alargam-se os horizontes do nosso próprio mundo e da nossa autocompreensão, de modo a vermos o mundo «a uma nova luz» — como se fosse a prim eira vez. Mesmo os objectos comuns e habituais, surgem a um a nova luz quando iluminados pela arte. Assim, uma obra de arte não é um mundo divorciado de nós. Se o fosse não poderia iluminar a nossa própria autocompreensão tal como o faz. Num encontro com uma obra de arte não penetramos num universo estranho, não saímos do tempo e da história, não nos separamos de nós mesmos ou do não estético. Antes nos fazemos mais presentes. Quando tomamos para nós a unidade e a personalidade do outro enquanto mundo, reali­ zamos a nossa autocompreensão; quando compreendemos uma grande obra de arte trazemos para a cena aquilo que experimen­ támos e aquilo que somos. É toda a nossa autocompreensão que é avaliada, que é posta em risco. Não somos nós que interrogamos um objecto; é a obra de arte que nos coloca um a questão, a questão que provocou o seu ser. A experiência de uma obra de arte é englobante e surge na unidade e continuidade do nosso próprio autoconhecimento. Pode no entanto dizer-se que quando contemplamos um a obra de arte desaparece o mundo em que vivemos a nossa própria vida. O mundo da obra apossa-se de nós e, por breves momentos, é um «mundo fechado» em si próprio e auto-suficiente. Não precisa 172

de medidas exteriores a ele e não pode ser medido como uniu cópia da realidade. Como conciliar isto com a afirmação do qur a obra de arte apresenta um mundo que é a continuidade do nosso? A justificação tem que ser ontológica: quando vemos umn grande obra de arte e penetramos no seu mundo, sentimo-nos «em casa» e não de fora. Imediatamente dizemos: é na verdade assim! O artista disse aquilo que é. O artista captou a realidade numa imagem, a forma; não construiu magicamente uma encantada «terra de ninguém» mas sim o mundo de experiência e de autocompreensão em que vivemos, em que nos movimentamos e temos o ser. A transform ação numa forma, realizada pelo artista, é real­ mente a transform ação na verdade do ser. A legitimação da arte não está no facto de produzir um prazer estético mas sim no facto de revelar o ser. A compreensão da arte não advém de a cortarmos e dividirmos metodicamente como se fosse um objecto, ou da separação forma-conteúdo; vem através de uma abertura ao ser, vem no ouvir da questão que a obra nos coloca. Daqui a obra de arte apresentar-nos verdadeiramente um mundo que não devemos reduzir à nossa ou à medida das meto­ dologias. Contudo, só compreendemos este novo mundo porque somos já participantes das estruturas da autocompreensão que o fazem verdadeiro para nós. É esta a base real para que a mesma coisa seja compreendida tal como era dado sê-lo. A mediação desta autocompreensão é a forma. O artista tem o poder de transform ar a experiência que tem do ser numa imagem ou numa forma. Enquanto forma torna-se duradoura e aberta a sucessivas gerações, repetível. Tem as características não só da energia do ser mas de uma obra. Tornou-se numa verdade que perdura (das bleibende Wahre) (3). A mudança que ocorre nos materiais pela sua transformação em imagem (Verwandlung ins Gebilde) não é uma simples mudança mas uma verdadeira transformação: «O que antes foi já não é, mas aquilo que agora é, aquilo que se apresenta na interpretação da arte é a verdade que agora perdura.» (*) A fusão da verdade ou ser, representada na forma, é tão completa que algo de novo ocorre. H á uma «mediação total» de modo que a inter-relação dos ele­ mentos na forma constitui o seu próprio mundo e não uma sim­ ples cópia de qualquer coisa. Esta aparente autonomia não é a autonomia sem finalidade e isolada da «consciência estética» mas a mediação do conhecimento no sentido mais fundo do termo; a experiência da contemplação da obra de arte faz deste conhecimento um conhecimento partilhado (5). (s) WM 106. (‘) Ibid. (’) Ibid., 92.

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A concepção de Gadamer de uma mediação total tem uma outra faceta. Defende uma não-diferenciação radical entre o ele­ mento estético e os outros elementos da interpretação da obra de arte. Sentimos instintivamente que é pouco apropriado referirmo-nos a uma cerimônia ou a um ritual como sendo «belos»; a diferen­ ciação estética não tem lugar quando nos referimos a um «bom sermão» pois indica que, mesmo quando ouvimos o sermão estamos a separar a form a do conteúdo. De igual modo, a diferenciação do estético e do não estético é inadequada à compreensão da nossa experiência de uma obra de arte. «A mediação da arte tem que ser pensada como um todo.» (*) O aspecto estético ou formal (Ga­ damer rejeitaria a dicotomia forma-conteúdo como sendo uma construção do pensamento reflexivo) do encontro com uma obra de arte faz de tal modo parte daquilo que é dito na obra, a «coisa que se pretende», que a diferenciação estética é artificial e sem validade. Assim, contrastando com a «diferença estética», Gadamer sustenta o princípio da «não diferenciação estética» (aesthetische Nichtunterscheidung) (7). O que é essencial na experiência estética de uma obra de arte não é o conteúdo nem a forma mas a coisa significada, totalmente mediatizada num imagem e numa forma, um mundo com a sua própria dinâmica. N o encontro estético com uma obra de arte, portanto, não procuramos separar a poesia dos seus materiais brutos, nem quando assistimos a um a representação devemos procurar cons­ tantem ente separar a coisa significada da própria actuação. Tanto os materiais brutos como a actuação realizam numa acção aquilo que a coisa significada realmente exige, e estão de tal modo mis­ turados que a separação é artificial e forjada. Gadamer sustenta penetrantemente: «A dupla diferenciação da poesia relativamente aos materiais e relativamente à sua realização, corresponde a uma não diferenciação dupla como sendo a unidade da verdade que reconhecemos na execução (Spiel) da arte.» (*) E continua, refe­ rindo-se à obra dramática: «Desviamo-nos da autêntica experiência poética quando atendemos ao enredo subjacente vendo a peça como decorrendo dele. Quando, no decurso de uma peça, o espec­ tador pensa na concepção que subjaz ou na actuação (performance) enquanto actuação, isso representa um a fuga da autêntica expe­ riência da peça.» (°) G adam er propõe-nos algo que representa um a rutpura ainda m aior do magnífico isolamento do objecto estético. Contra uma perspectiva que se recusa a situar a arte porque a vê à luz da (•) Ibid., 121. C) Ibid., 111-112. (*) Ibid., 112; o itálico 6 nosso.

(•) Ibid.

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«consciência estética», apresenta a ideia de uma arte desempe nhando um papel decorativo. A arte situa-se. Exige um lugar c cria para si mesma um lugar aberto. As obras de arte não perten cem realmente aos museus, onde são reunidas num lugar nllo localizado. O problema subjacente é o conceito da imagem artística como sendo estética e não ontológica, no sentido englobante. HA uma necessidade absoluta, diz Gadamer, de mudar a concepção da arte que tem predominado nos últimos séculos e «o conceito de representação com que nos familiarizaram os museus modernos». Precisamos, diz ele, de reabilitar o elemento decorativo e o ocasional da arte, que foi desacreditado por um a estética baseada na «pura forma» ou na «manifestação da experiência» O0). A arte não é sem tempo nem sem lugar. «O primeiro item do nosso programa é encontrar um meio de recuperar um horizonte que inclua con­ juntamente a arte e a história.» (n ) Gadamer sustenta que há duas perguntas que poderão indicar o caminho: 1) Em que aspecto é que uma imagem se distingue da cópia de algo? 2) Como é que, deste ponto de vista, surge a relação da representação da imagem com o seu «mundo»? (” ) A arte «repre­ senta» claramente algo, representa aquilo que a criou, que a fez aparecer; claramente também, há um mundo que se abre. O ponto de vista de uma estética que defende a ideia do «puramente esté­ tico» nunca encontrará resposta para estas perguntas, e uma estética baseada na experiência, no sentido antigo do termo, tam ­ bém é inadequada. Ambas procedem da premissa errada de referir uma obra de arte ao seu sujeito, numa relação de sujeito-objecto. E só quando tivermos ganho um horizonte de interrogação que transcenda o velho modelo do esquema sujeito-objecto é que encontraremos um caminho para compreendermos a função e a finalidade, o com o e o que, a temporalidade e o lugar, da obra de arte.

O jogo e o modo de ser da obra de arte Há no fenômeno do «jogo» uma série de elementos significativos que esclarecem o modo de ser da obra de a r te ( 13). No entanto Gadam er não está aqui a reabilitar as teorias estéticas do «jogo», baseadas no hedonismo estético. Tais teorias consideram que brin­ car é uma actividade do sujeito humano: a arte é uma espécie de (,0) Ibid., 130. (•') Ibid. (,J) Ibid. (1J) Ibid., 97-105. Embora Spiel possa ser traduzido como «brincadeira», <m brincar, traduzi-o na maior parte das vezes por «jogo». Para outras dlmontóes da significação de Spiel, ver Eugene Fink Spiel ais Weltsymbol.

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brincadeira que dá prazer ao sujeito humano. Este deixaria o mundo para gozar de um momento estético fora da sua existência m un­ dana e acima dela. O artista é encarado como sendo uma criança sensível que cresceu demais para a sua idade, é aquele que expe­ rimenta um prazer sensível ao brincar com as formas, ao moldar e manipular materiais, numa proporção agradável. Gadamer vê nestas teorias estéticas o erro moderno de tudo referir à subjectividade humana. Por «jogo» Gadam er não entende um a atitude ou uma actividade de um sujeito humano que cria e se diverte; também não considera o jogo como a «liberdade» da subjectividade hum ana que se empenha na brincadeira. «Jogo» (ou «brincadeira») antes se refere ao modo de ser da própria obra de arte. O objectivo da discussão de Gadam er sobre o conceito de jogo ou de brinca­ deira, na sua relação com a arte, é libertá-lo da tendência tradi­ cional que há em o associar com a actividade do sujeito. Um jogo «é apenas um jogo», não é uma «coisa séria»; no entanto, enquanto jogo — já que agora estamos a falar do próprio jogo — tem uma espécie de seriedade sagrada. De facto, quem o não toma a sério «estraga o jogo». O jogo tem a sua própria dinâmica, tem as suas próprias metas, independentes da consciência que os jogadores têm desse facto (14). Não é um objecto contra um sujeito, é um movimento do ser que se vai autodefinindo, um movimento no qual entramos. O jogo, e não a nossa participação nele, torna-se o verdadeiro «tema» da nossa discussão. A nossa participação no jogo trá-lo para uma apresentação, mas mais do que a nossa subjec­ tividade interior, é o jogo que se apresenta: o jogo afirma-se, ocupa o seu lugar, em nós e por nosso intermédio (15). Do ponto de vista subjectivista, o jogo é uma actividade de um sujeito, um a actividade livre na qual queremos entrar e que usamos para nosso próprio prazer. Mas quando perguntamos o que é real­ m ente o jogo, e como é que acontece, quando consideramos o jogo e não a subjectividade hum ana como o nosso ponto de partida, então ele toma um novo rumo. O jogo só é visto como jogo depois de acabado, enquanto está a ser jogado é soberano. O fascínio do jogo lança sobre nós um encantam ento, envolve-nos nele; domina verdadeiramente o jogador (w). O jogo tem o seu espírito peculiar. O jogador escolhe o jogo a que se irá entregar, mas depois de o escolher entra num mundo fechado em que o jogo se processa, nos jogadores e através deles. Num certo sentido, o jogo tem uma quantidade própria de movimento e desenvolve-a; tem que ser jogado (,T). (“ ) Ibid., C’) Ibid. (>•) Ibid., (1T) Neste o enquanto sc

98. 102. sentido é semelhante a um ritual. Este tem o seu poder próprio processa faz-nos sair do quotidiano.

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Um jogo de bridge, uma partida de ténis, crianças brincando umas com as outras — estes jogos, de um modo geral, nflo sc apresentam a um espectador, são jogados pelos próprios jogadores e para eles. Na verdade, quando um desporto se torna essencial­ mente algo para os espectadores, pode ser deturpado e perder o seu carácter de jogo. Mas o que acontece com um a obra de arte? Onde estaria uma representação se uma «quarta parede» não sc abrisse para o público? Quando deparamos com uma obra de arte somos participantes ou observadores? Gadam er sustenta que nos mantemos público, que não somos os jogadores do jogo. Mas aqui insinua-se uma distinção: uma peça (play) não é um jogo e no entanto é representada (played) para um público (*). Mais preci­ samente, dizemos que uma peça é «apresentada» mas continuamos a chamar-lhe «peça» (play) e os seus actores (players) representam (play). Em alemão, as palavras Spiel e spielen referem-se ao jogo e à representação (playing): ambos derivam do mesmo verbo — spielen. Assim, em alemão não há distinção entre um jogo e uma peça. Pelo contrário, em inglês esforçamo-nos por ter presentes as afinidades entre um jogo e uma peça. Ambos se fecham em si mesmos, ambos têm as suas próprias regras, ambos pretendem desenrolar-se até ao fim, em ambos os participantes (players) se empenham ao serviço de um espirito que ultrapasse o espírito de cada um deles. Mas as diferenças entre uma peça e um jogo são também im­ portantes pois a peça realiza aquilo que pretende apenas como uma apresentação. O seu significado real é uma questão de me­ diação. Não existe primeiro para os actores mas sim para o espec­ tador. Uma peça é tão hermeticamente fechada e tão auto-suficiente como qualquer jogo, mas como peça apresenta-se um evento para o espectador. G adam er afirma: «Vimos que um jogo tem o seu ser, não na consciencialização ou nas acções dos jogadores, mas, pelo contrário, impele-os para o seu próprio campo e enche-os com o seu espírito. O jogador experimenta o jogo como se este tivesse uma realidade dominadora. Isto ainda mais se verifica quando essa realidade é uma ‘pretensa’ realidade — e é esse o caso quando o que é representado aparece como algo que se apresenta a um espectador.» C ) Ora a razão da peça não é só dar aos actores uma experiência de actuação, não é só fazer com que captem o «espírito do jogo»; a justificação da peça é a transmissão da «realidade dominante» daquilo que é «pretendido» na peça, a realidade que foi transformada (•) O autor joga aqui com os termos play e player nos vários sentidos que têm em inglês. Considerou-se oportuno colocar a palavra inglesa ontre parêntesis. (N. da T.) (« ) WM 104.

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cm forma. Qual é a natureza do movimento interno desta forma? É como num jogo — um tipo determinado de jogo, onde somos «captados» como espectadores. No evento dominador que é o jogo, o que se pretende (a estrutura e o espírito do jogo) é comunicado. No caso de uma obra de arte, em que consiste essa «coisa pre­ tendida»? É o «modo como as coisas são», a «verdade» do ser, die Sache selbst. Uma obra de arte não é um mero objecto de prazer; c uma apresentação, transform ada em imagem, de uma verdade do ser enquanto evento. «Nunca alcançamos a verdade essencial de um poema a partir da avaliação de uma consciência estética; o poema fala-nos a partir do seu conteúdo significativo, como acon­ tece cbm todos os textos literários.» (“ ) Num poema nunca pergun­ tamos primeiro pela forma, nem a forma alguma vez poderá ser aquilo que faz de um poema um poema. Perguntamos o que diz o poema e experimentamos o seu significado na e pela forma, ou como também se pode dizer, no e pelo evento lúcido de encontrar a forma, pois a form a é evento quando a encontramos; somos captados e dominados pelo espírito do poema. Ao captar as analogias entre a obra de arte e o jogo, e ao considerar a estrutura do jogo como o modelo orientador de uma estrutura que tem a sua autonom ia própria mas que no entanto se m antém aberta ao espectador, Gadamer atingiu algumas metas essenciais. A obra de arte é encarada, não como uma coisa dinâ­ mica mas sim como estática. Transcende-se o ponto de vista de uma estética centrada na subjectividade e sugere-se uma estrutura que mostra a inadequação do esquema sujeito-objecto relativamente à compreensão de um jogo e, consequentemente, à obra de arte. A força da argumentação de Gadamer está em que ele toma a experiência da arte como ponto de partida e como evidência para fundam entar as suas asserções. Mostra que «a consciência estética» não deriva da natureza da experiência artística mas que é uma cons­ trução reflexiva baseada numa metafísica subjectivista. É precisa­ mente a experiência artística que mostra que a obra de arte não é um mero objecto que se opõe a um sujeito auto-suficiente. A obra de arte tem o seu ser autêntico no facto de que, ao tornar-se expe­ riência, transform a aquele que a experimenta; a obra de arte age. O «tema» da experiência artística, aquilo que perdura no tempo, não é a subjectividade daquele que experimenta a obra; é a própria obra. Este é precisamente o ponto em que o modo de ser de um jogo se torna importante. Também o jogo tem a sua própria natu­ reza, indepefidentemente da consciência daqueles que o jogam. Gada­ mer encontrou um modelo que não só demonstra a falência da estética subjectiva; este modelo funciona também como base fun-

(») Ibid., 155. 178

damentadora do carácter dialéctico e ontológico da sua própria hermenêutica. Mas esta concepção da autonomia da obra de arte c esta ten­ tativa de encarar a dinâmica do ser da própria obra não estarflo, em espírito, muito próximos da Nova Crítica? Não terá Gadamer, por meio de uma análise sofisticada, apenas chegado a uma posição que a Nova Crítica tem sustentado como sendo a de um realismo aristotélico? Há semelhanças, de modo que a Nova Crítica encon­ traria poucos motivos de discordância na comparação feita por Gadamer. Mais significativo ainda é o facto de que a analogia de Gadamer oferece uma legitimação consistente à autonomia da obra de arte sem o isolamento implicado na aceitação do mito da dife­ renciação estética. Até agora a defesa feita pela Nova Crítica quanto à autonom ia da obra literária, apenas serviu pra enfraquecer a sua relevância. A defesa grandiosa que tem feito da poesia, ape­ nas nos recorda que poesia e poeta já não têm lugar na sociedade e que os seus defensores acadêmicos se assemelham a anjos fúteis, batendo no vácuo as suas asas luminosas (parafraseando a famosa referência de Arnold a Shelley). Porém, a abordagem genuinamente «objectiva» de Gadamer, se liberta decisivamente a interpretação quanto aos mitos de uma estética subjectivizada — libertando-a par­ ticularmente das dicotomias sujeito-objecto e forma — conteúdo — ainda considera a obra literária separadamente das opiniões do autor do acto criativo e da tendência para tom ar como ponto de partida a subjectividade do leitor. A Nova Crítica ainda fala por vezes de uma «rendição» ao ser da obra; e nisto está verdadeiramente de acordo com Gadamer. Contudo, a Nova Crítica manteve-se sem o saber, envolvia nas ilusões da estética subjectiva. O ponto de vista de Gadamer ter-lhe-ia permitido ver mais claramente a natureza da continuidade entre a autocompreensão que alcançamos a partir da literatura e a autocompreensão na e pela qual existimos. Particularmente, a Nova Crítica poderia ter chegado, através de Gadamer, à historicidade da literatura. Demasiadas vezes os seguidores da Nova Crítica tomaram a forma como o ponto de partida para as suas análises, um proce­ dimento que imediatamente os fez cair na série de erros que acom­ panham a diferenciação estética. Simultaneamente, há ainda hoje demasiados intérpretes literá­ rios que tremem com a ideia de que a literatura tem um carácter histórico. Reconhecidamente que uma obra de arte não é um mero acessório de quem escreve história; seria igualmente pernicioso enco­ brir o facto de que a compreensão dos grandes espíritos do passado nos é historicamente mediada através de obras de arte. A diferen­ ciação dos aspectos formais da literatura como estética relativa mente aos não formais, tende a dar ao intérprete o sentimento di­ que ele, quando tenta considerar o que a obra de arte diz, |A nR" 179

está a discutir a obra como sendo arte. Discutir o significado que a obra tem para os dias de hoje, parece não ter justificação na filo­ sofia da obra literária que certos autores defendem; na verdade, a tensão entre o passado e o presente é muitas vezes aceite nas análises formais da poesia, feitas num a perspectiva anhistórica, atemporal. Aqui mais uma vez a crítica literária (incluindo a crítica do mito) se coloca como precisando de uma clarificação drástica quanto ao carácter histórico e temporal da obra de arte literária. Este facto esclarecer-se-á depois de apresentarmos a crítica feita por G adam er às concepções usuais de história e de historicidade.

A crítica à compreensão usual da história G adam er considera explicitamente como fundamento e ponto de partida da sua análise da «consciência histórica» a análise feita por Heidegger da estrutura prévia da compreensão e da historicidade intrínseca (Geschichlichkeit) da existência humana. De acordo com a concepção heideggeriana da pré-estrutura da compreensão, com­ preendemos um dado texto, tema ou situação, não com uma cons­ ciência vazia, tem porariam ente preenchida com a situação em causa, mas antes porque mantemos na nossa compreensão, e fazemos actuar uma intenção preliminar relativamente à situação, um modo de ver já estabelecido, e algumas «concepções-prévias ideaciocionais». Já mencionámos esta estrutura-prévia da compreensão aquando da discussão da hermenêutica heideggeriana; agora apenas precisamos de notar as conseqüências da consciência histórica. A conseqüência fundamental afirma-se muito simplesmente logo: não há uma visão ou uma compreensão puras da história, sem refe­ rência ao presente. Pelo contrário, a história é vista e compreen­ dida apenas e sempre através de uma consciência que se situa no presente. Contudo, o conceito de historicidade, mesmo quando afirma isto, simultaneamente afirm a a operacionalidade do passado no pre­ sente: O presente só é visto e compreendido através das intenções, modos de ver e preconceitos que o passado transmitiu. A herme­ nêutica dc Gadam er e a sua crítica à consciência histórica, susten­ tam que o passado não é como um amontoado de factos que se possam tornar objecto de consciência; é antes um fluxo em que nos movemos e participamos, em todo o acto de compreensão. A tradição não se coloca pois contra nós; ela é algo em que nos situamos e pelo qual existimos; em grande parte é um meio tão transparente que nos é invisível — tão invisível como a água o é para o peixe. Talvez que agora o leitor recorde esta analogia extraída da Carta sobre o Humanismo de Heidegger. Pode mesmo objectar que 180

na Carta a analogia diz respeito ao ser; o ser é o «elemento» cm que vivemos. Mas na verdade não há aqui propriamente tensão ou tradição, pois a linguagem é a casa do ser e nós vivemos na e pclu linguagem. Gadam er e Heidegger concordariam em que a linguagem é o reservatório e o meio de comunicação da tradição; a tradição esconde-se na linguagem e a linguagem é um «meio», como a água o é. Para Heidegger e Gadamer, a linguagem, a história e o ser não estão apenas inter-relacionados mas sim misturados, de modo que a linguisticidade do ser é simultaneamente a sua ontologia — o seu «tornar-se ser» — e o meio da sua historicidade. Tornar-se ser é um acontecimento na e da história, sendo governado pela dinâ­ mica da historicidade; é um evento da linguagem. Mas para efeitos de análise adiemos por agora a linguisticidade e olhemos para o modo como a estrutura da historicidade e da compreensão prévia afecta o problema hermenêutico relativamente à compreensão his­ tórica. A crítica à «consciência histórica» tanto em Gadamer como em Heidegger é essencialmente dirigida à «escola histórica» na Alema­ nha, cujos representantes mais famosos no século xix foram J. G. Droysen e L. von Ranke. Estes autores representaram um prolongamento da «hermenêutica romântica». Não devemos inter­ pretar erradam ente esta hermenêutica como sendo uma história romanceada no estilo de Sir W alter Scott mas, pelo contrário, deve­ mos vê-la como a tentativa mais esforçada de uma história «objectiva». A tarefa do historiador não era a de projectar na história os seus sentimentos pessoais mas sim a de entrar completamente no mundo histórico do qual pretendia dar conta. Dilthey passou a vida tentando estabelecer uma metodologia não naturalistica para a compreensão histórica e na sua última fase tentou fundam entar os estudos humanísticos num conjunto de ideias e de procedimentos históricos e hermenêuticos, não naturalísticos. A «experiência» e a «própria vida» eram temas constantes. A expe­ riência, quando encarada como uma unidade significativa, tornou-se conhecimento e assim, havia na «própria vida» uma «reflexividade imanente» (” ). Como observa Gadamer; «A relação entre a vida e o saber é um dado fundamental em Dilthey» (” ). A compreensão histórica não assenta num abandono total da experiência de cada um mas na compreensão de que cada pessoa é em si mesma um ser histórico; em última instância assenta na participação comum na vida, que cada pessoa faz com as outras. É esta compreensão já dada da vida, diz Dilthey, que nos permite compreender «manifestações da vida» na arte e na literatura. E quando encontramos e com­

(” ) Cf. ibid., 222. O1) Ibid., 223. 181

preendemos essas manifestações da vida, chegamos também ao conhecimento de nós mesmos: «A consciência histórica (para Dilthey) é um modo de autoconhecimento» (” ). Contudo, para Dilthey, as manifestações da vida são na ver­ dade «objectificações» da vida, das quais podemos vir a ter um conhecimento «objectivo». Tal como Dilthey criticou os métodos da ciência natural, defendeu o ideal de alcançar um conhecimento objectivo nos estudos históricos. Os estudos históricos podiam ser designados por «ciências», embora «ciências humanas» (Geisteswissenschaften). É precisamente aqui que Gadam er vê Dilthey enre­ dado no ideal de objectividade defendido pela própria escola histó­ rica contra a qual Dilthey levantara tantas críticas. O conhecimento objectivo, o conhecimento «válido» objectivamente, sugere um ponto de vista superior à história, a partir do qual se poderá olhar a pró­ pria história — e um homem não dispõe de um ponto de vista deste gênero. O homem finito, histórico, vê e compreende sempre do seu ponto de vista, localizado no tempo e no espaço; não pode, diz Gadamer, colocar-se acima da relatividade da história e procurar «um conhecimento objectivamente válido». Um ponto de vista deste gênero pressupõe um conhecimento filosófico absoluto — suposição sem qualquer valor. Dilthey pede inconscientemente às ciências um conceito de método indutivo, mas como observa Gadamer: «a expe­ riência histórica não é um processo (Verfahrert) nem tem o anoni­ mato de um método ... [Tem] um tipo de objectividade completa­ mente diferente e adquire-se de um .modo completamente dife­ rente» í53). Dilthey é o exemplo perfeito de como a coacção cien­ tífica para um pensamento orientado metodicamente constitui um obstáculo à historicidade, embora o historiador tenha talento e a busque honestamente. Podemos considerar Dilthey como o arqué­ tipo da nossa actual perda de historicidade autêntica, concretizada na tendência que temos de usar métodos indutivos para obter um conhecimento literário «objectivamente válido». Mesmo antes de Heidegger e de Gadamer, a crítica fenomenológica que Husserl fez do objectivismo com base na intencionalidadc da consciência, pôs fim a um objectivismo ultrapassado. À medida que Husserl desenvolvia a sua crítica, tornou-se extraor­ dinariamente evidente que todos os seres dados no nosso mundo se colocam no interior do horizonte intencional da consciência, no interior do «mundo da vida». Contra o mundo dos cientistas, «objectivamente válido» e anônimo, Husserl opôs o horizonte intencional em que cada um vive e se move, um horizonte que não é anônimo mas pessoal e partilhado com outros seres que também o experi­ mentam; a isto chamou ele o mundo da vida. É no interior do (“ ) Ibid., 221. CJ) Ibid.. 228.

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conceito geral de mundo da vida que Heidegger irá iniciar u *un crítica da consciência histórica. Mas em Heidegger o mundo humano da vida não 6 upcnus um modo mais completo e adequado de descrever as operações dc uma subjectividade transcendental, localizada na consciência e para além dela. A intencionalidade da consciência é interpretada «histórica mente» e torna-se a base da sua crítica à consciência histórica. Simultaneamente Heidegger empreendeu uma crítica à metafísica, ao modo como o seu conceito de subjectividade acaba por funda­ mentar a objectividade na certeza que um sujeito do conhecimento tem de si próprio. Ser e Tempo de Heidegger, embora aparen­ temente aplicasse o método fenomenológico de Husserl, constitui uma tentativa de afastamento da subjectividade transcendental, para uma espécie de objectividade que toma a «facticidade» da existência humana como o seu último ponto de referência. Assim há em Hei­ degger uma nova espécie de objectividade que se opõe à objectivi­ dade professada pelas ciências naturais, por Dilthey, pela escola histórica, pela metafísica moderna e, em última instância, pelo pensamento tecnológico moderno com todo o seu pragmatismo. É a objectividade que consiste em deixar que a coisa que aparece seja realmente aquilo que é para nós. Os limites severos do objectivismo, tornam-se evidentes quando deixamos de considerar «o universo objectivo» (que a sua visão do mundo oferece) como sendo o mundo e usamos o mundo da vida como ponto de partida. Vemos imediatamente que apenas uma pe­ quena fracção do nosso mundo da vida pode alguma vez tornar-se algo que se coloque contra o homem, como um objecto; na verdade, como mundo, é o horizonte no interior do qual outras coisas se definem como objectos, enquanto que este se mantém mundo. O mundo de vida de cada um desaparece com as tentativas de o captarmos por meio de qualquer «método», e geralmente tropeça­ mos acidentalmente na sua natureza, especialmente devido a qual­ quer tipo de negatividade ou de ruptura. O caminho da objectivi­ dade e dos métodos não revelam a cada um o seu mundo vital. E no entanto, é através desse mundo vital que formulamos juízos e que tomamos decisões; mesmo o «mundo objectivo» é uma estru­ tura no interior de um mundo vital experiencialmente dado. Como podemos então alcançar o mundo da vida? Como podemos convencê-lo a revelar-se? Heidegger sugere o seu método fenomenológico como caminho, chamando-lhe também «uma hermenêutica da facti­ cidade». Esta abordagem não se baseia no modo como o mundo pertence a um sujeito humano mas sim no modo como um sujeito humano pertence ao mundo. Esta pertença ocorre através do mé­ todo de «compreensão». O processo é tão essencial que não é uma coisa que se faça entre muitas outras, antes é um processo no qual e pelo qual existimos como seres humanos. 183

Esta interpretação da compreensão é ontológica, descrevendo o processo do ser. Heidegger tomou esta concepção como o seu ponto de partida para uma análise do ser que iria começar com a facticidade do mundo da vida, e especificamente com a facticidade da existência humana. A sua análise mostrou que a existência é um «projecto já lançado» — orientado para o passado ao «estar lan­ çado» no tempo e no mundo de uma certa maneira, e orientado para o futuro, alcançando no «ainda não», a captação das possibi­ lidades ainda não realizadas. Um dos significados disto é que, dado que esta descrição da compreensão no Dasein é universal, tem que se aplicar ao processo de compreensão em todas as ciências (” ). A compreensão como tal, funciona sempre simultaneamente nas três modalidades da temporalidade: passado, presente e futuro. Para a compreensão histórica isto significa que o passado nunca pode ser visto como objecto no passado, separando-se absolutamente de nós no presente e no futuro. O ideal de vermos o passado nos seus próprios termos converte-se num sonho, contrário à natureza da própria compreensão, que está sempre em relação com o nosso presente e com o futuro. A temporalidade intrínseca da própria com­ preensão ao ver sempre o mundo em termos de passado, presente e futuro, é aquilo a que chamamos a historicidade da compreensão.

Algumas conseqüências hermenêuticas da historicidade da compreensão 1 — O problema do juízo prévio A ideia de libertar a compreensão e a interpretação dos pre­ conceitos das opiniões dominantes na época, é-nos familiar. Habi­ tualm ente dizemos que seria ridículo julgar as realizações do pas­ sado por critérios de hoje. Portanto, o objectivo do conhecimento histórico apenas pode alcançar-se se nos libertarmos das ideias e valo­ res pessoais que temos sobre determinados temas e se adquirirmos uma «mentalidade aberta» ao mundo das ideias e valores do pas­ sado. A exploração feita por Dilthey sobre as visões do mundo (Wcltanschainingen) constrói-se sobre um relativismo histórico, de­ fendendo com grande abertura de espírito que uma época histórica não deve ser julgada em termos de outra. De igual modo, há estu­ diosos da literatura que nos pedem essa abertura de espírito para a teologia do Paraíso Perdido pois não temos o direito de julgar uma obra literária por «critérios actuais». Lemos o «Paraíso Perdido» como uma «obra de arte» pela grandiosidade do seu estilo, pela

(“ ) Ibid.. 249. 184

/ magnitude da sua concepção, pelo seu vigor imaginativo, c nflo por ser verdadeiro. Uma posição deste gênero separa a beleza da vcrdmlc e em última instância vemos a epopeia como um «monumento nobro a ideias mortas» (“ ). Ironicam ente, esta visão falsa de um texto literário aprescnta-sc com uma máscara de grande abertura de espírito, maugrado o facto de pressupor o presente como correcto, como não devendo ser tes­ tado, i. e., como absoluto. E contudo o presente não pode ser remo­ vido porque o passado não pode competir com ele. Por detrás desta remoção compreensiva do preconceito está um desejo de não arris­ car juízos prévios; o passado opõe-se-nos como algo quase irrele­ vante, como um objecto de interesse para arqueólogos. Infelizmente, os professores de literatura podem de um modo geral classificar-se quer como estetas formais quer como arqueólogos. Estes vêem nos primeiros uma ausência de profundidade histórica e filológica, en­ quanto que os formalistas criticam os estudiosos da filologia e da história por não considerarem a obra literária como sendo verda­ deiramente «arte». A posição dos estetas assenta na separação insus­ tentável entre form a e conteúdo da estética subjectiva, pois já vimos que na experiência que temos de um a obra de arte, verdade e beleza não podem separar-se. Ora, das concepções de Heidegger e de Gada­ mer sobre a compreensão histórica, segue-se que os arqueólogos e os fiiólogos, veneradores do passado, não têm uma compreensão mais firme da história do que os estetas tiveram. Na verdade, não podemos abandonar o presente e enveredar pelo passado; o «significado» de uma obra passada não pode ser visto unicamente nos seus próprios termos. Pelo contrário, o «signi­ ficado» da obra passada define-se em termos das questões que se lhe colocam a partir do presente. Se considerarmos cuidadosamente a es­ trutura da compreensão, vemos que as questões que colocamos são ordenadas pelo modo como nos projectamos na compreensão do futuro. Resumindo, a arqueologia é um a negação da verdadeira his­ toricidade, a historicidade de toda a compreensão do passado sobre a qual nos colocamos no presente. Que significado tem isto para o problema do juízo prévio? Ê uma concepção errada que o Iluminismo nos legou. Gadamer defende que os nossos juízos prévios têm a sua importância própria na interpretação: «A auto-interpretação (Selbstbesinnung) do indivíduo é apenas uma luz trêmula na corrente fechada da vida histórica. Por essa razão, os juízos prévios do indivíduo são mais do que meros juizos; são a realidade histórica do ser.» (” ) Resumindo, os juízos prévios não são algo que

(J5) Como fez o crítico Raleigh em 1900. («) WM 261. 183

devamos aceitar ou que possamos recusar; são a base da capacidade que temos para compreender história. Falando em termos hermenêuticos, podemos enunciar este prin­ cípio do seguinte modo: Não pode haver qualquer interpretação sem «pressupostos» (” )• Um texto bíblico, literário ou científico, não se interpreta sem preconceitos. A compreensão, dado que é uma estru­ tura básica historicamente acumulada e historicamente operativa, está subjacente, mesmo na interpretação científica; o significado da descrição de uma experiência não vem da interactuação dos ele­ mentos na experiência mas sim da tradição da interpretação sobre a qual assenta e das possibilidades futuras que nos abre. A tempo­ ralidade' passado — presente — futuro aplica-se tanto à compreensão científica como à não científica; é universal. D entro ou fora das ciências não pode haver compreensão sem pressupostos. De onde nos vêm os pressupostos? D a tradição em que nos inserimos. Essa tradição não se coloca contra o nosso pensamento como um objecto de pensamento; antes é produto de relações, é o horizonte no interior do qual pensamos. Porque não é objecto nem nunca é total­ mente objectificável, os processos de um tipo de pensamento objectificante não se lhe aplicam; o que há é necessidade de um pensa­ mento que possá lidar com o não objectificável (2*). Mas não adquirimos os nossos pressupostos inteiramente a partir da tradição. Temos que nos lembrar que a compreensão é um processo dialéctico de interacção da autocompreensão da pessoa (o seu «horizonte» ou «mundo») com aquilo que ela encontra. A autocompreensão não é um a consciência que flutua livremente, não é um a luz trêmula que a situação presente preenche; é uma compreensão que já se situa na história e na tradição, e apenas pode compreender o pas­ sado alargando o seu horizonte de modo a englobar a coisa que se encontra. Se não pode haver uma compreensão sem pressupostos, se, por outras palavras, aquilo a que chamamos «razão» é uma construção filosófica e não um tribunal de última instância, então temos que reexaminar a relação que temos com a nossa herança. A tradição e a autoridade já não precisam de ser olhadas como inimigas da razão e da liberdade racional, tal como eram no Iluminismo, no período romântico e na nossa própria época. A tradição fornece um fluxo de concepções no interior do qual nos situamos, e devemos estar preparados para distinguir entre pressupostos que dão fruto e

(” ) Cf. Rudolf Bultmann Is Presuppositionless Exegesis Possible? (1957) em Existence and Faith, ed. Schubert M. Ogden, pp. 289-96. (” ) Cf. uma carta não publicada de Heidegger na Conferência sebre Hermenêutica na Universidade de Drew, em 1964. Ver Heinrich Ott, Das Probtem des nicht-objektivierenden Denkens and Redens in der Theologie. ZThK LXI (1964), 327-52.

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outros que nos aprisionam e nos impedem de pensar c dc vn ('") Em nenhum evento há oposição intrínseca entre as pretensões dn razão e as da tradição; a razão coloca-se sempre no interior du tradição. A tradição fornece mesmo à razão os aspectos dn rei» 'idade e da história com os quais irá trabalhar. Em última instftnim, diz Gadamer, as conseqüências do facto de conhecermos que nflo pode haver compreensão sem reconhecimento são: a recusa da inter­ pretação que o Iluminismo faz de razão; a recuperação, por parte da autoridade e da tradição, de um estatuto dc que não disfrutavam desde o Renascimento. Se não pode haver uma interpretação sem pressupostos, então a noção de «interpretação correcta» enquanto correcta em si mesma é um ideal impensável, é uma impossibilidade (’“). Não há interpre­ tação sem relação com o presente, e este nunca é permanente ou rígido. Um texto que nos é legado, seja ele a Bíblia ou uma peça de Shakespeare, tem que ser compreendido na situação hermenêu­ tica em que se encontra, i. e., relativamente ao presente. Isto não significa que invoquemos irreflectidamente critérios externos do presente para o passado, de modo a considerarmos que a Bíblia ou Shakespeare são irrelevantes. Pelo contrário, reconhecemos simples­ mente que «o significado» não é como uma propriedade imutável de um objecto, o «significado» é sempre «para nós». Nem a insistên­ cia para que um texto seja visto no contexto da nossa historicidade significa que o «significado» é sempre «para nós». Nem a insistência para que um texto seja visto no contexto da nossa historicidade significa que o «significado» é para nós absolutamente diferente do que era para os seus primeiros leitores. Defende sim que o signifi­ cado se relaciona com o presente, surgindo na situação hermenêu­ tica. Dado que uma obra im portante abre uma verdade no ser, podemos sustentar que a sua verdade essencial corresponde àquela que originariamente a trouxe ao ser. Sem defender a ideia de uma verdade em si mesma ou de uma interpretação eternamente correcta. 2 — O conceito de distância temporal Para Gadamer a tensão presente / passado é em si mesma um factor essencial e de certo modo frutífero em hermenêutica: «Há uma situação simultaneamente estranha e familiar entre a objecti­ vidade da herança, que se pretende histórica e distanciada e a nossa pertença a uma tradição. O lugar da hermenêutica está a meio ca­ minho dessa situação.» (” ) A mediação da hermenêutica envolve pois, tanto aquilo que era entendido historicamente como a tra­ (“ ) WM 263. (») Ibid.. 375. (S1) Ibid., 279. 187

dição; contudo isto não significa que a tarefa da hermenêutica seja só a de desenvolver um procedimento metódico para a compreensão, mas também a de clarificar as condições sob as quais a compreensão pode ocorrer (” ). Para o intérprete não interessa que o que é mediado pelo texto seja essencialmente o sentimento ou a opinião do seu autor, inte­ ressa sim o facto de ser algo significativo de seu pleno direito. Não nos interessa como uma «expressão» per se, quer da «vida» quer de qualquer outra coisa; é o próprio tem a que interessa, interessa-nos a sua verdade. Logicamente uma obra de arte criada nos nossos dias, deveria ter para nós, seus contemporâneos, o máximo signi­ ficado. Mas sabemos por experiência própria que só o tempo fará com que o que é significativo se destaque daquilo que o não é. Por­ que é que é assim? N ão porque a distância temporal tenha morto os nossos interesses pessoais sobre o tema, diz G adamer, mas sim porque é função do tempo eliminar aquilo que não é essencial, dei­ xando com que o verdadeiro significado oculto na coisa, se torne evidente. Assim, a distância temporal tem simultaneamente uma função negativa e positiva: «Ela (a distância temporal) não só faz com que se eliminem certos juízos prévios peculiares à natureza do tema, como provoca o aparecimento daqueles que nos levam a uma compreensão verdadeira.» (” ) Assim, somos confrontados com a fecundidade de um a separa­ ção no tempo, um fenômeno análogo ao conceito de «distância esté­ tica», na qual o espectador tem que estar a uma certa distância do palco para se aperceber da unidade pretendida e para não se distrair com a «maquillage» dos actores. Maugrado o sentimento necessário de presente, de um passado que se torna presente, pensamos que é hermeneuticamente frutífero o facto de que o tempo tenha passado. Só com a passagem do tempo poderemos alcançar «o que diz o texto»; só gradualmente é que a sua verdadeira significação histó­ rica emerge e começa a interpelar o presente. 3 — Compreendendo o autor de um texto A tarefa da hermenêutica é essencialmente a de compreender o texto, não o autor. Tanto o conceito de distância temporal como o realce dado ao significado na compreensão histórica, deveriam evidenciar esse facto. O texto é compreendido, não porque se esta­ belece uma relação entre pessoas, mas devido à participação no tem a que o texto comunica. Mais uma vez, esta participação infatiza o facto de que não só saímos do nosso próprio mundo como

(«) Ibid. (” ) Ibid., 282 188

deixamos que o texto nos interpele no nosso mundo actual; deluii mos que o texto se nos torne presente, contemporâneo (nleich.-rltlg) (M). A compreensão não é tanto um processo subjectivo como tmin questão de nos colocarmos num a tradição e depois, num «evento» que nos transmite tradição (í5). A compreensão é uma participnçAo na corrente da tradição, num momento em que mistura passado c presente. É este conceito de compreensão que tem que ser aceite na teoria hermenêutica, diz-nos Gadam er (” ). O verdadeiro ponto de referência não é a subjectividade do autor nem a do leitor, mas sim a própria significação histórica, significação que tem para nós, situados no presente. 4 — Reconstruindo o passado Uma outra conseqüência da historicidade intrínseca patente na compreensão de qualquer texto antigo, é termos que reconsiderar o pressuposto hermenêutico de que a tarefa essencial da compreen­ são é reconstruir o mundo da obra de arte. Anteriormente a Schleiermacher, reconstruir o «background» histórico de um deter­ minado texto e determ inar o contexto histórico no qual ele se colocava, eram, juntam ente com a interpertação gramatical, as preocupações essenciais. Schleiermacher deu à hermenêutica uma orientação mais psicológic.a e divinatória, mas ainda considerava que a operação de reconstruir o contexto histórico era essencial para a compreensão de qualquer texto antigo. No fim de contas, as Escrituras não são um suporte atem poral de ideias eternas ou um delírio de imaginação poética, sem qualquer pretensão séria de verdade; são um a criação histórica numa linguagem histórica e para um povo histórico. É certo que a reconstrução do m undo a partir do qual a obra emergiu, bem como a reconstrução da origem de arte são necessá­ rias para a compreensão, mas Gadam er acautela-nos contra o facto de considerarmos a reconstrução como uma operação essencial ou final da hermenêutica, ou mesmo como a chave da compreensão. Aquilo com que trabalhamos no processo de reconstrução será real­ mente aquilo que classificamos e procuramos como sendo o «signi­ ficado» da obra? Estaremos a determ inar correctamente a com­ preensão quando procuramos ver nela uma segunda criação, exactamente igual à criação original — uma recriação? Certa­ mente que não, pois o significado de uma obra depende das ques­ tões que colocamos no presente. Diz Gadamer: «Considerarmos cm hermenêutica que a reconstituição é essencial, é tão absurdo como («) Ver ibid., 115 ff. (” ) Ibid., 275. (») Ibid. 189

csforçarmo-nos por reconstituir e viver uma vida que já passou definitivamente.» ("). A verdadeira tarefa da hermenêutica é a inte­ gração e não a reconstituição. 5 — O significado da aplicação A estrutura da historicidade na compreensão vem lembrar a importância de um factor que durante muito tempo fora despre­ zado na hermenêutica histórica e literária — a aplicação, a função da interpretação na relação de uni texto com o presente. Assim por exemplo, o elemento aplicação ê essencial, quer na hermenêutica bíblica quer na jurídica, pois em nenhum dos casos é suficiente a compreensão e a explicação geral de um texto; há que tornar explí­ cito o modo como o texto fala à condição presente. N a obra de J. J. Rambach, Institutiones hermeneuticae sacrae, de 1723, diz-se que a interpretação implica três poderes: subtilitas intelligendi (compreensão), subtilitas explicandi (explicação e subtilitas applicandi (aplicação) (“ ). Não são três métodos diferentes; a subtilitas refere-se à capacidade ou poder que exige uma determinada finura de espírito. Os três poderes constituem conjuntam ente a realiza­ ção da compreensão. Em Schleiermacher e de um modo geral na hermenêutica pós-romântica, afirma-se a unidade interna dos dois primeiros elemen­ tos; a explicação é vista como a explicitação da compreensão e o relevo dado às duas tende a não deixai* qualquer lugar sistemático para o factor aplicação. Sobretudo à medida que Schleiermacher fez da hermenêutica uma teoria da compreensão no diálogo e à medida que a linguagem e o conhecimento foram adquirindo mais poder, havia pouco lugar sistemático para a aplicação dentro da es­ fera da compreensão enquanto tal. De facto, Schleiermacher coloca delimitações nítidas, mesmo no momento de explicar. Observa ele: «Logo que a explicação se torna mais do que um mero exterior da compreensão, transforma-se numa arte de apresentação. Só aquilo a que Ernesti chama a ‘subtilitas intelligendi’ é que pertence genuinamente à hermenêutica.» (” ) Por outro lado, de acordo com a análise de Gadamer, na com­ preensão enquanto tal «há sempre no texto que se pretende com­ preender, algo de semelhante a uma aplicação à situação presente» C ). Compreender, no sentido de conhecer e explicar, implica logo algo de semelhante a uma aplicação ou a uma relação do texto com o presente. A hermenêutica jurídica e teológica chamam a atenção (” ) (*•) (») (" )

Ibid., 159. Ibid., 291. H 31. WM 291. 190

para este aspecto de toda a compreensão, e assim constituem um mo delo que melhor do que a tradição filológica nos permite alcançar operações da compreensão em história e em literatura, pois n tru dição filológica omite artificialmente o factor aplicação. Diz
(«) Ibid., 311. («) Ibid., 291. 191

que desempenhar a função de aplicação «no facto de que expressa e conscientemente faz com que aceitemos o significado do texto construindo um a ponte sobre a distância temporal que separa o intérprete do texto; assim ultrapassa (por meio da apli­ cação) a alienação de significado que ocorreu no texto» ("). N a hermenêutica histórica e literária, a exigência de servir o texto, de sermos comandados pelas suas exigências e de simul­ taneam ente o interpretarm os à luz do presente, põe-se-nos como um verdadeiro desafio. Uma abordagem deste gênero veria o texto à luz do presente, mas não o subjugaria nem dominaria com o pre­ sente; o intérprete deve ser orientado pela exigência do texto e no entanto traduzir em termos de presente o significado dessa exigência. Gadamer não pretende que nos entreguemos acriticam ente às exigências do texto, negando o presente; devemos sim deixar que as exigências do texto se mostrem tal qual são. Na interacção e fusão de horizontes, o intérprete acaba por ouvir a questão que provocou o aparecimento do texto. Retomaremos mais tarde a dialéctica de uma interrogação que pretende equilibrar as exigências do presente e arriscá-la contra a tradição. No ponto em que estamos, torna-se evidente que a hermenêutica jurídica e teológica sugerem uma abordagem muito mais de acordo com a estrutura universal e histórica da compreensão do que a aborda­ gem que tem sido recentem ente feita, quer na interpretação his­ tórica quer na literária; deste modo poderão ajudar os intérpretes da literatura e da história a alcançar uma visão mais adequada do problema hermenêutico. O princípio da aplicação encontra a sua expressão teológica no projecto de desmitologização. Na hermenêutica de Rudolf Bultm ann, por exemplo, é uma conseqüência da tensão entre o texto, que se coloca no passado, e a necessidade de uma aplicação actual. A desmitologização, como já foi assinalado, não é uma ten­ tativa do tipo iluminista, de purificar a Bíblia do mito, avaliando tudo à luz das pretensões racionais; antes procura situar as pre­ tensões que a Bíblia hoje sustenta. Estas não são uma pretensão à verdade científica mas sim um apelo a decisões pessoais. Por este motivo, tom ar uma atitude «científica» para com a Bíblia e tratá-la como um objecto que não nos interpela de um modo pessoal, é na verdade silenciar a Bíblia; ela não deve apenas ser interrogada, pois quando fala, devemo-nos transform ar no objecto ao qual se dirige. Quando consideramos um padrão fixo e indiscutível, com o qual avaliamos a mensagem bíblica, não estamos a ouvir a Bíblia, estamos a testar a Bíblia. Mas, de acordo com Bultmann, a Bíblia não é um tratado científico nem uma biografia impessoal; é pro­ clamação, K ERYGM A — mensagem.

te m

(") Ibid., 295. 192

Na interpretação literária, a tentativa de desmitologi/ui «snc melha-se à questão da compreensão do mito. O que 6 falar rm termos de mito e através dele? A liderança que a teologia hult manniana empreendeu ao realçar constantemente a relação com o presente e a nossa análise da compreensão histórica alerta-no* contra a ilusão de que o acto de ler uma obra literária seja apenas um recuo e um a «reconstrução» de um mundo passado. O «signi­ ficado» de Milton, Shakespeare, Dante, Sófocles ou Homero não pode apenas ser visto em termos do mundo que cada uma dessas grandes obras construiu; ler uma obra é um evento, um aconteci­ mento que ocorre no tempo, e o significado que a obra tem para nós é um produto de integração no nosso actual contexto e de inte­ gração na obra. Em toda a autêntica compreensão de uma obra literária, ocorre algo como uma desmitologização. Em todo o acto de compreensão se dá uma aplicação ao presente. A ilusão de que ao lermos uma peça de Shakespeare «regressamos ao mundo de Shakespeare» abandonando o nosso próprio contexto, só nos mos­ tra que o encontro estético conseguiu tornar invisível o factor de subtilitas applicatio. E no entanto, é importante recordar que um americano de Connecticut na Corte do Rei A rtur, verá as coisas à maneira de um americano de Connecticut e não à maneira de um dos Cavaleiros da Távola Redonda. A situação implicada na erjeenação de uma peça de Shakespeare ou de qualquer outra peça corrobora aquilo que dissemos. O cenário ajuda grandemente a que recuemos no passado e o guarda-roupa é por vezes executado com uma fidelidade meticulosa à época em causa; mas o facto é que a peça é encenada no presente, agora, diante dos nossos olhos, perante a nossa compreensão. O local em que a peça decorre é a mente colectiva do público. Os actores sabem-no e tomam-no em consideração ao representar os seus papéis. Tomemos por exemplo o problema da encenação e representação das bruxas em Macbeth. As produções modernas tendem a minorar o elemento sobrenatural, representando as mulheres como horríveis velhas que seguem os exércitos de Macbeth. As suas profecias são apresentadas como expressão de especulações já presentes, difun­ dindo a perturbação que se vai preparando. São elas que criam uma atmosfera de presságio. O significado que as bruxas hoje têm para nós é assim «interpretado» pelo lugar que ocupam no palco, como que para ultrapassar o efeito cômico de um sobrenatural já desactualizado aos olhos de um público contemporâneo. Também é significativo o facto de, nas peças, a ilusão dramá­ tica não estar dependente do cenário ou do guarda-roupa ou mesmo da presença visível dos actores. A presença vocal, como é o caso das gravações, é o único elemento realmente importante. A iliisflo dramática é a de que o passado está a acontecer no presente, nflo no passado histórico mas no presente que expcricnclamos. Kxlc 193

fenômeno clarifica algo que é significativo para a aplicação na compreensão histórica; não se trata de dar literalmente ao passado as aparências de presente; trata-se sim de trazer o que é essencial no passado para o nosso presente pessoal, para a nossa autocom­ preensão ou mais exactam ente para a experiência que temos do Ser (**). Não devemos ficar decepcionados; a compreensão que temos de uma peça — quando «sabemos» o que ela «significa» — não é um tem a que se feche em si próprio mas sim uma relacionação com o nosso presente e com o nosso futuro, do jogo auto-suficiente que é uma peça. Daí a asserção de Gadamer: A comprensão inclui sempre uma aplicação ao presente.

A consciência verdadeiramente histórica Gadam er contrapõe ao tipo de consciência histórica que critica, uma tentativa de descrição de uma consciência atenta em que a história actua constantemente. O termo que utiliza — Wirkungsgeschichtliche Bewusstsein, é um desafio a qualquer tradução ade­ quada. Uma tradução predominantemente literal seria uma «cons­ ciência em que a história actua constantemente» ou uma «cons­ ciência historicamente operativa» ("). Usarei de um modo geral este último termo ou a designação «consciência verdadeiramente histórica», consoante o contexto, Gadamer esclarece que a cons­ ciência verdadeiramente histórica nãd é a consciência histórica hegeliana que coloca o estar atento na esfera da reflexividade, tor­ nando-o na mediação da história e do presente. É certamente um estar atento especulativo e dialéctico, não sendo a dialéctica uma automediação da razão mas sim a estrutura da própria experiência. Gadam er usa três tipos de tipologia da relação Eu-Tu — que não dever2o identificar-se com a relação Eu-Tu de M artin Buber (“ ) — para nos ajudar a situar e assim clarificar a natureza da consciência historicamente operativa. 1) O tu como objecto den­ tro de um determinado campo, 2) o tu como projecção reflexiva c 3) o tu como fala da tradição ("). Só este terceiro ;i$pecto repre­ senta a relação hermenêutica que Gadamer tem em mente como sendo a consciência verdadeiramente histórica. (” ) Como veremos, o «quid» que percebemos não é um «quid» pessoal mas mu «quid» histórico no qual participamos; a referência à «experiência pessoiil» é cair nas fievões da falácia subjectivista. (” ) Devo ao Professor Theodor Kisiel a sugestão para a designação «consciência historicamente operativa». O") Tem interesse a primitiva forma de Ich-du Beziehung em Das Wort und dic geisllgcn Rcalilatcn: 1‘neumaíologische Fragmente, de Ferdinand Ebner, nos seus Schriltcn, I, 75-342. (" ) Ver WM 340-44.

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Na primeira relação Eu-Tu, a outra pessoa 6 vi.stii como nl||i> específico, dentro do nosso campo de experiênciu, n muloi puil» das vezes como algo que pode servir de meio dc rcull/.uv'Ao itut nossos objectivos. A outra pessoa é vista como um objecto do nonio campo de experiência, e o Tu é compreendido em termos univcixiii» Inerente a esta abordagem do Tu está a teleologia de todo o pcit sarnento indutivo. Ora se aplicarmos este modelo à relação herme nêutica com a tradição, facilmente caimos nos «métodos» e nu «objectividade». A tradição torna-se então um objecto separado de nós, balouçando-se livremente sem que a nossa presença a afecte. Facilmente nos decepcionamos ao pensarmos que, se puder­ mos eliminar todos os momentos subjectivos que se relacionam com esta tradição, podemos ter algum conhecimento do que cia contém. Uma «objectividade» destas, orientada para o método, domina muitas vezes nas ciências naturais e também nas ciências sociais, excepto onde a fenomenologia se faz sentir (“ ). Mas não pode servir as disciplinas centradas na experiência humana, não pode constituir o fundamento de uma consciência na qual a his­ tória a c tu a (‘9). Uma segunda m aneira de experim entar e compreender o Tu, encara-o como uma pessoa, mas Gadam er mostra que esta relação «pessoal» pode ainda manter-se prisioneira do Eu, sendo de facto uma relação entre o Eu e um Tu reflexivamente constituído. «Esta relação Eu-Tu não é uma relação imediata mas sim reflectida ... Assim, há sempre a possibilidade de que cada parceiro da relação possa vencer a actividade reflexiva do outro. Conhece as pretensões do outro através da sua própria reflexão e assim com­ preende melhor o outro do que ele próprio se compreende. Mas é precisamente esta reflexividade que esvazia a relação de imediatez que um deles reclama.» (” ) Hermeneuticamente falando, este segundo tipo de relação carac­ teriza a consciência histórica contra a qual se dirige a crítica de Gadamer. Esta atenção histórica conhece a aUeridade do outro, não numa relação com o universal, que caracterizara a primeira relação Eu-Tu, mas antes no que ela tem de particular. A alteridade do outro e o passado do passado apenas são conhecidos do mesmo modo que o Eu conhece o Tu — através da reflexão. Ao pretender reconhecer o outro em todo o seu condicionalismo, ao pretender ser objectivo, aquele que conhece pretende realmente dominar. Mas é apenas esse tipo de domínio subtil através da com­ preensão, que utiliza a compreensão para verificar que a história (<*) Ver Stephan Strasser, Phenomenology and lhe Human Sciences, e Severyn Bruyn, The Human Perspective in Sociology. ('•) WM, 341. (« ) Ibid.

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fenômeno clarifica algo que é significativo para a aplicação na compreensão histórica; não se trata de dar literalmente ao passado as aparências de presente; trata-se sim de trazer o que é essencial no passado para o nosso presente pessoal, para a nossa autocom­ preensão ou mais exactam ente para a experiência que temos do Ser (44). Não devemos ficar decepcionados; a compreensão que temos de um a peça — quando «sabemos» o que ela «significa» — não é um tem a que se feche em si próprio mas sim um a relacionação com o nosso presente e com o nosso futuro, do jogo auto-suficiente que é uma peça. Daí a asserção de Gadamer: A comprensão inclui sempre uma aplicação ao presente.

A consciência verdadeiramente histórica G adam er contrapõe ao tipo de consciência histórica que critica, uma tentativa de descrição de um a consciência atenta em que a história actua constantemente. O term o que utiliza — Wirkungsgeschichtliche Bewusstsein, é um desafio a qualquer tradução ade­ quada. Uma tradução predominantemente literal seria uma «cons­ ciência em que a história actua constantemente» ou uma «cons­ ciência historicamente operativa» (“ ). Usarei de um modo geral este último termo ou a designação «consciência verdadeiramente histórica», consoante o contexto, Gadamer esclarece que a cons­ ciência verdadeiramente histórica nãd é a consciência histórica hegeliana que coloca o estar atento na esfera da reflexividade, tor­ nando-o na mediação da história e do presente. É certamente um estar atento especulativo e dialéctico, não sendo a dialéctica uma automediação da razão mas sim a estrutura da própria experiência. G adam er usa três tipos de tipologia da relação Eu-Tu — que não deverão identificar-se com a relação Eu-Tu de M artin Bub e r(<6) — para nos ajudar a situar e assim clarificar a natureza da consciência historicamente operativa. 1) O tu como objecto den­ tro de um determinado campo, 2) o tu como projecção reflexiva e 3) o tu como fala da tradição (")• Só este terceiro aspecto repre­ senta a relação hermenêutica que Gadamer tem em mente como sendo a consciência verdadeiramente histórica. (■") Como veremos, o «quid» que percebemos não é um «quid» pessoal mas um «quid» histórico no qual participamos; a referência à «experiência pessoal» é cair nas ficções da falácia subjectivista. (” ) Devo ao Professor Theodor Kisiel a sugestão para a designação «consciência historicamente operativa». C0) Tem interesse a primitiva forma de Ich-du Beziehung em Das Wort und dic geistigen Realitaten: Pneumatologische Fragmente, de Ferdinand Ebner, nos seus Scliri/ten, 1, 75-342. («) Ver WM 340-44. 194

Na primeira relação Eu-Tu, a outra pessoa 6 vista como »Ik«> específico, dentro do nosso campo de experiência, a maior pmlo das vezes como algo que pode servir de meio de rcalizaçdo nos nossos objectivos. A outra pessoa é vista como um objecto do nosso campo de experiência, e o Tu é compreendido em termos universais. Inerente a esta abordagem do Tu está a teleologia de todo o pen­ samento indutivo. Ora se aplicarmos este modelo à relação herme nêutica com a tradição, facilmente caimos nos «métodos» e na «objectividade». A tradição torna-se então um objecto separado de nós, balouçando-se livremente sem que a nossa presença a afecte. Facilmente nos decepcionamos ao pensarmos que, se puder­ mos eliminar todos os momentos subjectivos que se relacionam com esta tradição, podemos ter algum conhecimento do que ela contém. Uma «objectividade» destas, orientada para o método, domina muitas vezes nas ciências naturais e também nas ciências sociais, excepto onde a fenomenologia se faz sentir (*'). Mas não pode servir as disciplinas centradas na experiência humana, não pode constituir o fundamento de uma consciência na qual a his­ tória actua ('*). Uma segunda m aneira de experim entar e compreender o Tu, encara-o como uma pessoa, mas Gadam er mostra que esta relação «pessoal» pode ainda manter-se prisioneira do Eu, sendo de facto uma relação entre o Eu e um Tu reflexivamente constituído. «Esta relação Eu-Tu não é uma relação imediata mas sim reflectida ... Assim, há sempre a possibilidade de que cada parceiro da relação possa vencer a actividade reflexiva do outro. Conhece as pretensões do outro através da sua própria reflexão e assim com­ preende melhor o outro do que ele próprio se compreende. Mas é precisamente esta reflexividade que esvazia a relação de imediatez que um deles reclama.» (") Herm eneuticam ente falando, este segundo tipo de relação carac­ teriza a consciência histórica contra a qual se dirige a crítica de Gadamer. Esta atenção histórica conhece a alteridade do outro, não num a relação com o universal, que caracterizara a primeira relação Eu-Tu, mas antes no que ela tem de particular. A alte­ ridade do outro e o passado do passado apenas são conhecidos do mesmo modo que o Eu conhece o Tu — através da reflexão. Ao pretender reconhecer o outro em todo o seu condicionalismo, ao pretender ser objectivo, aquele que conhece pretende realmente dominar. Mas é apenas esse tipo de domínio subtil através da com­ preensão, que utiliza a compreensão para verificar que a história (,s) Ver Stephan Strasser, Phenomenology and the Human Sciences, o Severyn Bruyn, The Human Perspective in Sociology. («) WM, 341. (” ) Ibid.

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é «exterior», que é como um Tu reflexivamente constituído; objectifica-a e destrói realmente a pretensão que tem de ser verdadeira­ m ente significativa (” ). O terceiro tipo de relação Eu-Tu caracteriza-se por uma autên­ tica abertura ao Tu. É a relação que não projecta o significado a partir do eu mas que tem um a autêntica abertura que «permite» que algo seja dito: «Aquele que permite que algo lhe seja dito abre-se, de um modo essencial.» (” ) Uma relação deste tipo está mais perto do que as duas primeiras daquilo que Buber tem em mente como sendo a verdadeira relação Eu-Tu. É o tipo de abertura que mais do que dominar pretende ouvir, que quer ser modificada pelo outro. É o fundam ento da consciência historicamente opera­ tiva, a wirkungsgeschichtlice Bewusstein. Esta consciência consiste num a relação com a história na qual o texto nunca pode ser total e objectivamente «outro», pois a com­ preensão não é o «reconhecimento» passivo da alteridade do pas­ sado, mas antes um colocarmo-nos de modo a que o outro nos reclame. Quando um texto histórico é lido como «meramente his­ tórico», o presente já se tornou dogma e já se colocou fora de questão. Por outro lado, uma consciência verdadeiramente histórica, não vê o presente como o ponto culminante da verdade; mantém-se aberto à exigência que a verdade da obra lhe pode fazer. «A cons­ ciência hermenêutica realiza-se totalmente, não numa autocerteza metódica mas sim na prontidão experiencial e na abertura que a pessoa ‘que teve essa experiência’ adquiriu, contrastando com aquele que é dogmático. Isto é o que caracteriza uma consciência historica­ mente operativa ...» ( ” ) A pessoa «que teve a experiência» não só não tem um conhecimento meramente objectificado «como tem uma experiência» não objectificável que a amadureceu e a fez aberta à tradição e ao passado. Como veremos no próximo capítulo, o conceito de experiência é muito importante para a compreensão da hermenêutica de Gadamer.

C>) Ibid., 341-43. (5J) Ibid., 343. (” ) Ibid., 344. 196

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A H ERM EN ÊU TICA D IA LÉCTICA DE GADAM ER

A estrutura da experiência e da experiência hermenêutica G adam er começa a sua análise da experiência hermenêutica criticando o conceito dominante de experiência que ele considera demasiado orientado para um conhecer encarado como acto perceptivo e para um conhecimento visto como corpo de dados conceptuais. Por outras palavras, tendemos hoje para definir expe­ riência de um modo que se orienta totalm ente para o conhecimento científico descurando a historicidade intrínseca da experiência his­ tórica. Procedendo deste modo, realizamos inconscientemente o objectivo da ciência, que é «objectificar a experiência de modo a ela não conter qualquer elemento histórico» (l). Através de um procedimento rigorosamente metódico, a experiência científica retira o objecto da sua época histórica e reestrutura-o, adequando-o ao método. H á um objectivo análogo, diz Gadamer, na teologia e na filosofia, com o «método histórico» que nalguns aspectos reflecte o ímpeto que a ciência tem de tudo tornar objectivo e verificável OEnquanto este espírito predominar, só é real aquilo que é verifi­ cável; não há qualquer lugar para os aspectos não objectificáveis e históricos da experiência. Consequentemente, a própria definição de «experiência» exclui os dados dessas ciências. Contra o mito de um conhecimento puramente conceptual e verificável, Gadam er coloca o seu conceito histórico e dialéctico dc «experiência», cuidadosamente enunciado; neste, conhecer não é simplesmente um fluxo de percepções mas um acontecimento, um evento, um encontro. Embora Gadam er não partilhe dos prcs-

(l) WM, 329. P) Ibid. 197

supostos e das conclusões de Hegel, considera a avaliação que este faz da experiência como o ponto de partida da sua própria her­ menêutica dialéctica, e isto pode-nos fornecer um ponto de partida para a exposição que queremos fazer do conceito. A experiência, tal como Hegel a define, é um produto do encontro da consciência com um objecto. Gadam er cita Hegel do seguinte modo: «[Há] um movimento em que a consciencialização se efectua quer no saber quer no seu objecto; na medida em que, devido a isso, um novo objecto se gera, devemos portanto chamar-lhe ‘experiência’» (3). De acordo com Hegel, a experiência tem sempre a estrutura de uma inversão ou de uma reestruturação da consciencialização; é uma espécie de movimento dialéctico. Na base desta tendência para a inversão está um elemento de negatividade; a experiência é primeiro que tudo experiência de negação — uma coisa não è como a tínhamos pensado. O objecto da nossa experiência é visto a uma luz diferente, é alterado: e nós próprios mudamos quando conhecemos um objecto de um modo diferente. O novo objecto contém uma verdade sobre o velho; o velho «já serviu o tempo suficiente» (4). Mas para Hegel a expe­ riência é auto-objectificação da consciência, de modo que a expe­ riência é abordada do ponto de vista vantajoso do conhecimento que a transcende. Hegel defende assim um a fundamentação na consciência que segundo Gadam er seria ultrapassada pela objec­ tividade da experiência. A experiência, diz Gadamer, tem a sua realização dialéctica «não num conhecimento mas numa abertura à experiência, sendo ela própria liberta peia experiência» (5). É evidente que aqui expe­ riência não significa um tipo de conhecimento informativo sobre isto ou aquilo, que se foi conservando. Tal como o term o é usado por Gadamer, é menos técnico e está mais perto de um uso habi­ tual. Refere-se a uma acumulação de «compreensão» não objectificada e largamente não objectificável a que muitas vezes chamamos sabedoria. Por exemplo, um homem que passou toda a sua vida a lidar com pessoas adquire uma capacidade para as conhecer a que chamamos «experiência». Embora esta experiência não seja um conhecimento objectificável, entra no seu encontro interpreta­ tivo com as pessoas. Contudo, não é uma capacidade puramente pessoal; c um conhecimento do modo como as coisas são, um

(J) «Die dialektische sowohl an seinem Wissen neue wahre Gegenstand Erjahrung gennant wird» WM, 336. (*) WM, 337. 0 ) Ibid., 338.

Bewegung, welche das Bcwusstein an ihm selbst, ais an seinem Gcgenstand ausübt, insofern ihm der daraus entspringt, ist eingentlich dasjenige, was (Ho 115), no ensaio Hegels Begrijf der Erfahrung,

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«conhecimento das pessoas» que na verdade não pode scr poftln em termos coneeptuais. A experiência muitas vezes lembra a dor do crescimento c umit nova compreensão. Tem que ser constantemente adquirida c nin­ guém pode livrar-nos dela. Gostariamos de poupar aos nossos filhos as «experiências desagradáveis» que tivemos, mas não podemos impedir que adquiram experiência, pois esta é algo que pertence à natureza histórica do homem. «A experiência», diz Gadamer, «é uma desilusão multifacetada, baseada na expectativa; só deste modo se adquire. O facto da experiência ser predominantemente dolorosa e desagradável não a tinge de negro; deixa-nos ver a sua natureza íntima.» (‘) A negatividade e a desilusão são parte inte­ grante da experiência, pois parece haver, no interior da natureza histórica do homem, um momento de negatividade que é revelado na natureza da experiência. «Toda a experiência merecedora desse nome. contraria a expectativa.» (7) Atendendo a estes factos, não nos surpreende que Gadamer se refira à tragédia grega e à fórmula de Esquilo paihei malhos — «aprender pelo sofrimento» (*). Esta fórmula não significa que adquiramos um tipo de conhecimento científico, nem mesmo um tipo de conhecimento que nos permita «saber melhor para a pró­ xima vez» quando deparamos com uma situação semelhante; antes quer dizer que, por meio do sofrimento, conhecemos as fronteiras da própria existência humana. Aprendemos a compreender a finitude do homem: «A experiência é experiência de finitude.» (”) A experiência, no seu significado mais íntimo, ensina-nos a conhecer que não somos senhores do tempo. O homem «experiente» é aquele que conhece os limites de toda a antecipação, à insegurança de todos os planos humanos. No entanto, tal facto não o torna rígido e dogmático, antes o abre a novas experiências. Dado que pela experiência alcançamos o futuro que esperamos e dado que a experiência passada nos ensina como todos os planos são incompletos, temos aqui nitidamente presente a estrutura da historicidade, que já salientámos na exposição anteriormente feita. «A verdadeira experiência», diz Gadamer, «é a experiência da nossa própria historicidade.» (*') Na experiência os poderes que o homem tem de actuar e os pianos racionais que faz encontram os seus limites. O homem, situando-se e agindo na história, ganha através da experiência uma intuição do futuro na qual a expectativa c os planos ainda se mantêm abertos. A maturidade na experiência.

(•)

Ib id .

C) Ibid. (■) Ibid., 339. (•) Ibid. (>•) Ibid., 340. 199

que nos coloca num a abertura adequada ao futuro e ao passado, constitui em si mesma a essência daquilo que Gadamer tem em mente quando fala de uma «consciência historicamente opera­ tiva» (“ ). Com estas observações em mente, podemos caracterizar a «experiência hermenêutica», que tem a ver com aquilo com que deparamos como herança. É esta herança que, no encontro herme­ nêutico, tem que ser experimentada. Enquanto que, de um modo geral, uma experiência é um acontecimento, a nossa herança «não é simplesmente um acontecimento que reconhecemos por meio da experiência e que passamos a controlar; é antes linguagem, isto é, fala de si própria, como um Tu». (“ ) A herança não é algo que possamos controlar, nem é um objecto que nos faça face. Chegamos à sua compreensão, mesmo quando nos situamos nela, como uma experiência intrinsecamente lingüística. Quando experimentamos o significado de um texto, chegamos à compreensão de uma herança que nos interpelou como algo que se situa face a nós, mas que faz no entanto simultaneamente parte desse fluxo não objectificável de experiências e de história, no qual nos situamos. O íexto com que deparamos como se fosse um Tu não deve ser encarado como uma «expressão da vida» (a concepção profes­ sada por Dilthey), diz-nos expressamente Gadamer. O texto tem um conteúdo significativo específico, independentemente de toda a relação com a pessoa que o diz. Nem os termos «Eu» e «Tu» nos deveriam levar a pensar em termos essencialmente interpessoais, pois o poder de dizer não reside na pessoa que diz mas naquilo que é dito. O que Gadamer pretende, ao relacionar com a herança a relação Eu-Tu, é que num texto a herança dirige-se ao leitor e interpela-o, não como algo com o qual ele nada tem em comum mas como algo com quem sustenta reciprocidade. Devemos deixar falar o texto, sendo o leitor aberto ao texto como um sujeito pleno de direito, mais do que como um objecto. É precisamente esta autêntica abertura que descrevemos em conexão com a estrutura Eu-Tu da consciência historicamente operativa. A estrutura Eu-Tu sugere uma relação de diálogo ou dialéctica. Há uma questão que se levanta ao texto, e, num sentido mais fundo, o texto levanta uma questão ao seu intérprete. De um modo geral a estrutura dialéctica da experiência e particularmente da experiência hermenêutica, reflecte-se na estrutura pergunta-resposta de todo o verdadeiro diálogo. N o entanto temos que ter cuidado ao conceber a dialéctica em termos interpessoais, mais do que em

(n ) Ibid. (1J) Ibid.

200

termos de sujeito-tema. O significado do sujeito-tema no diálogo, aparecerá na análise que seguidamente faremos da interroguçfio em hermenêutica.

A estrutura da interrogação em hermenêutica O carácter dialéctico da experiência reflecte-se no movimento e no encontro com a negatividade patentes em toda a interrogação verdadeira. Gadam er vai ao ponto de dizer que «em toda a expe­ riência se pressupõe a estrutura da interrogação. A compreensão de que uma temática é diferente do que tínhamos primeiramente pensado pressupõe o processo de passagem pela interrogação» (” ). A abertura da experiência tem a estrutura de uma questão: «Será deste ou daquele modo?» Já vimos que a experiência se completa na realização da nossa finitude e historicidade; assim, também na interrogação há um a parede última de negatividade, há sempre o conhecimento de que não sabemos. Isto sugere a famosa docta ignorantia socrática que revela a verdadeira negatividade subjacente a toda a interrogação. Uma interrogação genuína, diz Gadamer, significa «colocarmo-nos num espaço aberto» porque a resposta ainda não está deter­ minada. Por conseqüência, uma questão retórica não é uma ver­ dadeira questão, pois não há1um questionamento verdadeiro quando a coisa de que falamos nunca é verdadeiramente «posta em causa». Para estarmos aptos a interrogar temos que querer saber, e isso significa saber que não sabemos (“ )• Quando alguém sabe que não sabe e quando não defende, por meio de um método, que precisa de compreender mais profundamente aquilo que já compreende, então adquire essa estrutura de abertura que caracteriza o ques­ tionamento autêntico. Sócrates instituiu o modelo, com a sua troca lúdica de pergunta e resposta, sabendo e não sabendo, investigando a própria temática para uma abordagem verdadeiramente adequada à sua natureza. Contudo, o carácter aberto da interrogação não é absoluto, pois uma pergunta tem sempre uma certa orientação. O sentido da pergunta contém já de antemão a orientação em que se coloca a resposta a essa questão, se pretende ser significativa e adequada. Ao colocar-se a questão, aquilo que se pergunta é colocado a uma determinada luz. Isto «abre» o ser daquilo que é questionado. A lógica que revela este ser que se abriu já implica uma resposta, pois toda a resposta apenas tem sentido em termos da pergunta.

0 S) Ibid., 344. («) Ibid., 345. 201

A verdadeira interrogação pressupõe portanto abertura — i. e., a resposta ó desconhecida — e ao mesmo tempo especifica neces­ sariamente as fronteiras. Este fenômeno levanta o problema de procurarmos a questão exacta. O ponto de vista a partir do qual a questão se coloca pode ser errado. Neste caso não permite um verdadeiro conhecimento; assim «uma pergunta errada não pode ter resposta, não pode ter uma resposta verdadeira nem falsa mas apenas errada, pois a res­ posta não está na orientação em que a pergunta foi feita» (” )• Segundo Gadamer apenas há uma maneira de encontrar a questão adequada, que é penetrando no próprio tema. Um diálogo verda­ deiro é o contrário de um a discussão pois uma discussão acaba se dermos uma resposta aberta a uma questão: «Um diálogo não tenta derrotar a outra pessoa, antes testa as suas afirmações à luz do próprio tema.» (“ ) Um diálogo platônico sobre amor, ética, justiça ou qualquer outro tema orienta-se por caminhos imprevisíveis porque os parceiros são determinados pela sua imersão no tema que se discute. Para testar as afirmações do outro não devemos tentar enfraquecê-las, antes devemos procurar torná-las cada vez mais fortes, ou seja, encontrar no próprio tema a sua verdadeira força. Esta, diz Gadamer, é uma das razões que tornam os diálogos platônicos ainda hoje altamente significativos. Portanto, no diálogo hermenêutico, o tem a geral em que esta­ mos inseridos — tanto o intérprete como o texto — é a tradição, a herança. Um dos nossos parceiros no diálogo é o texto, na rigidez da sua form a escrita. Assim há uma necessidade de encontrar um caminho para o «dar e tirar» do diálogo: é esta a tarefa da herme­ nêutica. A formulação rígida tem que de certo modo colocar-se no movimento da conversação, um movimento em que o texto inter­ roga o intérprete e este o interroga. A tarefa da hermenêutica é «tirar o texto da alienação em que se encontra (enquanto forma rígida, escrita), recolocando-o no presente vivo do diálogo, cuja primeira realização é a pergunta e a resposta» (” ). Quando um texto transm itido se transform a em objecto de interpretação, coloca um a questão ao intérprete, questão a que pretende responder através da interpretação. A verdadeira inter­ pretação terá que se relacionar com a questão «colocada» pelo texto (o texto tem um lugar e um tema). Compreender o texto significa compreender essa questão. O primeiro requisito para interpretarmos um texto é compreendermos o horizonte significativo ou interro-

(1!) Ibid., 346. Zygmunt Adamczewski abordou este tema numa comuni­ cação apresentada num encontro anual da Sociedade de Filosofia Fenomenológica e Existencial na Universidade de Purdue, em 27 de Outubro de 1967. (“ ) WM. 349. (” ) Ibid., 350.

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gativo dentro do qual se determina a orientação significativi» d<> texto (” ). E contudo o texto é em si mesmo uma asserção. Num ccrto sentido ele constitui em si próprio a resposta a uma pergunta — nfto a pergunta que lhe pomos a pergunta que o «tema» do texto lhe põe. Ora se compreendermos o texto em termos das questões u que responde, é óbvio que temos que continuar a sondá-lo interro­ gativamente, de modo a interpretá-lo. Temos também que questionar aquilo que não é dito: «Se vamos para além daquilo que foi dito, temos também que sair daquilo que foi dito. Só compreendemos o que o texto quer dizer na medida em que este atinge um hori­ zonte de interrogação que necessariamente engloba outras respos­ tas possíveis.» (19) O significado de qualquer afirmação é sempre relativo à questão a que responde; isto é, ultrapassa necessaria­ mente aquilo que foi explicitamente dito. Isto é decisivo para uma interpretação humanística dos textos. Não nos devemos satisfazer com uma mera explicitação daquilo que já está explícito no texto; o texto deve ser colocado no horizonte interrogativo que o fez nascer. R. G. Collingwood ao actuar na interpretação histórica segundo este princípio, diz-nos que para compreendermos um evento histórico temos que reconstruir a questão à qual as acções histó­ ricas das pessoas dão resposta (J0). Collingwood, sustenta Gadamer, é um dos poucos pensadores modernos que tenta form ular uma lógica de pergunta e resposta, mas mesmo esta tentativa não é empreendida de um modo sistemático e exaustivo. Contudo, a reconstrução da questão a que o texto ou o evento histórico respondem, nunca pode ser pensada como tarefa auto-suficiente. Como nos indica a crítica empreendida por Gadamer à consciência histórica, o horizonte significativo adentro do qual um texto ou um acto histórico se situam, é abordado interrogati­ vamente a partir do nosso próprio horizonte; e quando interpre­ tamos, não abandonamos o nosso próprio horizonte, antes o alar­ gamos de modo a fundi-lo com o do acto ou com o do texto. Não se trata de encontrar as intenções do personagem histórico ou do escritor do texto. É a própria herança que fala no texto. A dia­ léctica da pergunta-resposta efectua uma fusão de horizontes. O que é que torna isto possível? O facto de que ambos são, num certo sentido, universais e fundamentados no ser. Assim, o encontro com o horizonte do texto que nos foi transmitido, de facto ilumina o nosso horizonte e leva à auto-revelação e à autocompreensão; o encontro transforma-se num momento de revelação ontológica.

(“ ) Ibid., 351-52. («) Ibid., 352. (2“) Ver: R. G. Collingwood, Autobiography. 203

É um evento em que algo sai da negatividade — a negatividade que 6 compreendermos que há algo que não sabíamos, que as coisas não eram como pensávamos. Por outras palavras, a revelação surge como um tipo de evento cuja estrutura é a estrutura da experiência e a estrutura da pergunta-resposta; é uma questão dialéctica. E qual é o meio no qual e pelo qual esta revelação ontológica ocorre no evento dialéctico da experiência enquanto pergunta e resposta? Qual é o meio, dotado de tal universalidade que os horizontes se fundem? Qual é 0 meio em que se esconde e arm azena a experiência cumulativa de todo um povo histórico? Qual é o meio inseparável da própria experiência, inseparável do ser?A resposta tem que ser: a linguagem.

A natureza da linguagem 1 — O carácter não instrumental da linguagem A rejeição da teoria do «signo» quanto à natureza da linguagem é essencial na concepção de Gadamer. Contra a ênfase dada à forma e às funções instrumentais da linguagem, Gadamer assinala o carácter vivo da linguagem e a nossa participação nele. A trans­ formação da palavra em signo, defende Gadamer, está na base da ciência, com o seu ideal de designações exactas e de conceitos inequívocos. A concepção das palavras como signos tornou-se tão familiar e auto-evidente que «é preciso uma proeza de ginástica m ental para nos lembrarmos que fora do ideal científico de desig­ nações inequívocas, a vida da linguagem se processa natural­ mente» (” ). Encarar as palavras como signos é privá-las do poder essencial que têm e fazer delas meros instrumentos ou designações. «Sempre que a palavra é vista enquanto m era função de signo, a relação essencial da fala e do pensamento transforma-se numa relação instrumental.» (” ) A palavra torna-se instrum ento do pen­ samento e coloca-se face ao pensamento e à coisa designada. Não se vê qualquer relação orgânica demonstrável entre a palavra e aquilo que ela designa; a palavra é meramente um signo. O pensa­ mento parece separar-se das palavras usando-as para indicar as coisas. Quando é que a teoria da linguagem como signo surgiu no pensamento Ocidental? Gadam er faz rem ontar esta concepção à ideia de logos do pensamento grego. Diz ele: «Se o âmbito do noético, na multiplicidade dos seus elementos, é representado pelo âmbito do logos, então a palavra, tal como o (” ) WM, 410. (” ) Ibid.

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número, torna-se mero signo de um ser bem definido c poi cot) seguinte previamente conhecido. A interrogação é portanto cm prln cípio anulada; agora já não partimos da temática em cansa, pci guntando sobre o ser das palavras enquanto mediação; antes comr çamos com a mediação — as palavras — e perguntamos o que ó que o signo transm ite àquele que o utiliza, e como é que o faz. Nu natureza íntima do signo está o facto de que ele tem o seu ser e a sua única propriedade na função de ser aplicado.» (” ) O signo desaparece na sua função de designação; já não sc considera im portante em si mesmo, como uma palavra, mas apenas como signo. N ão mais se refere o poder que tem de revelar o ser; é antes o logos que fornece os signos dotados de uma realidade já feita e já conhecida à qual se referem, e o verdadeiro problema está apenas no sujeito que os usa. As palavras são vistas como instrumentos que o homem dispõe para comunicar o seu pensa­ mento. A linguagem é vista em última instância como um instru­ mento de subjectividade totalmente separada do ser da coisa que é pensad? Intimamente relacionada com esta ideia está a concepção que conhecemos da filosofia de Ernst Cassirer, da linguagem como forma simbólica. Mais um a vez, a função instrumental da lingua­ gem é o ponto de partida e a base, embora, de um modo que ultrapassa a mera função de> signo. Gadamer certamente susten­ taria que Cassirer, a lingüística moderna e de um modo geral a moderna filosofia da linguagem, erram ao considerar a forma da linguagem como foco básico e central. Será o conceito da forma adequado ao fenômeno da linguagem? Será a linguagem enquanto linguagem uma forma simbólica, e o conceito de forma fará real­ mente justiça àquilo a que podemos chamar a linguisticidade da experiência humana? Ou será um conceito estático que priva a palavra das suas características de evento, do seu poder de falar, sendo o seu estatuto reduzido a pouco mais do que um mero ins­ trum ento de subjectividade? Se a linguagem não é signo nem form a simbólica criada pelo homem, o que é então? Em primeiro lugar as palavras não são algo que pertença ao homem, mas sim à situação. Procuramos palavras, as palavras que pertencem à situação. O que é posto cm palavras quando dizemos «A árvore é verde» não é tanto a rcflcxividade humana como o próprio tema. O que aqui importa não é a forma da asserção ou o facto de que a asserção está a ser apresentada por uma subjectividade humana. O importante, 6 que a árvore está a ser revelada a uma certa luz. O autor desta asser­ ção não inventou nenhum a das palavras, aprendeu-as. O processo

O3) Ibid., 390.

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de aprendizagem da língua apenas veio gradualmente, por uma imersão no fluxo da herança. Ele não fabricou um a palavra nem lhe «deu» um significado; imaginar um procedimento destes é uma pura construção da teoria lingüística. Diz Gadamer: «A palavra lingüística não é um ‘signo’ de que nos aproprie­ mos; também não é algo existente que possamos modelar ou ao qual atribuamos significado, fazendo com que o signo torne visível uma outra coisa. Ambas as possibilidades são falsas; é antes a idealidade do significado que reside na própria palavra. A palavra é sempre já significativa.» (**) A natureza da experiência não é um dado não lingüístico para o qual encontremos subsequentemente palavras, por meio de um acto reflexivo; a experiência, o pensamento e a compreensão são totalmente lingüísticos e ao form ular uma asserção apenas usamos palavras que já pertencem à situação. A invenção de palavras para descrever uma experiência não é um acto gratuito, antes se con­ forma com as exigências da experiência. A formação das palavras portanto não é um produto da reflexão mas da experiência. Não é uma expressão do espírito ou da mente mas de uma situação e do ser. «O pensamento que procura expri­ mir-se não se relaciona com a ‘m ente’ mas com factos, com o tema.» (” ) Para esclarecer a estreita relação da palavra, do pensa­ mento e da fala, Gadamer refere-se à doutrina da Encarnação: «A unidade intríseca do pensamento e da fala que corresponde ao mistério trinitário da Encarnação.(O Verbo era já Verbo mesmo antes de se fazer carne) inclui a ideia de que a palavra interna do espírito não se forma por meio de um acto reflexivo.» (“ ) Alguém que «se exprime» está já a exprimir aquilo que pensa. É certo que a palavra emerge de um processo de actividade mental; Gada­ mer sustenta que ela não é um a auto-exteriorização c1- reflexão. O ponto de partida e de chegada na formação das palavras não é a reflexão mas o tema que se exprime por palavras. E ncarar a linguagem e as palavras como instrumentos da refle­ xão e da subjectividade hum anas é o mesmo que colocar a carroça diante dos bois. Considerar a form a como sendo o ponto de partida da linguagem é cometer essencialmente o mesmo erro de tom ar a form a como ponto de partida da estética. O carácter de evento do fenômeno e a sua temporalidade perdem-se, e sobretudo, caímos no erro de designar o sujeito humano, em vez da natureza da coisa que se exprime, como sendo um ponto de referência fixo. No caso da linguagem, o facto central e decisivo é o poder que ela tem

(” ) Ibid., 394; itálicos nossos. (” ) Ibid., 403. (“ ) Ibid.

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de dizer e não a sua forma. A forma não pode scr scpuriulii do conteúdo, mas quando pensamos na linguagem cm termos Inutiu mentais, automaticamente fazemo-lo. As línguas, diz Gadunicr, não deveriam ser catalogadas consoante a forma mas dc acordo com o que a língua nos transmite historicamente. A linguiixcm não pode divorciar-se do pensamento. A unidade da linguagem c do próprio pensamento, a não reflexividade da formação das pala­ vras, ambas refutam a ideia de uma linguagem como signo. A lin­ guagem, tal como a própria compreensão, é um fenômeno englo­ bante. Nunca pode ser captada como um «facto», nunca pode scr totalmente objectificada; tal como a compreensão a linguagem engloba tudo quanto pode tornar-se objecto para nós. Os primeiros Gregos, nota Gadamer, não tinham um termo ou um conceito para linguagem; tal como o ser e a compreensão a linguagem é uma mediação, não é um instrumento. Gadam er resume deste modo o que pensa sobre a forma, sobre a inseparabilidade do pensamento, da linguagem e da compreensão e a indivisibilidade desejável da linguagem: «A linguagem que vive no discurso, a linguagem que engloba toda a compreensão e todos os intérpretes de textos, está de tal modo fundida com o processo do pensamento (e consequentemente com a interpretação) que pouco nos fica quando abandonamos o que as linguagens nos dão em m atéria de conteúdo e pretendemos pensar a linguagem como forma. A inconsciência da linguagem ainda não deixou de ser o autêntico modo de ser da linguagem.» (” )

A linguagem e a revelação do mundo Se a função da linguagem não é indicar coisas, e se a orientação da linguagem não é da subjectividade através do instrumento signo, para a coisa designada, então precisamos de um conceiío de lingua­ gem e da sua função que se oriente diferentemente — da coisa, ou na situação, através de linguagem, para a subjectividade. É com essa finalidade que Gadamer escolhe o conceito de revelação ou representação. A linguagem revela o nosso mundo — não o nosso mundo ambiente ou universo científico, mas sim o nosso mundo da vida. Para compreender o conceito de linguagem de Gadamer, temos que primeiramente recordar o que é que ele entende por mundo pois a linguagem cria a possibilidade de o homem poder ter um mundo. Mundo não é o mesmo que ambiente, pois só o homem (cm mundo. «Para termos um mundo temos que estar aptos a abrir um (” ) Ibid., 382. 207

espaço diante de nós, no qual o mundo se possa mostrar tal como é. T er um mundo é ao mesmo tempo ter linguagem.» (3‘) Gadamer defende que os animais não têm mundo pois não têm linguagem. Certamente que têm uma maneira de se entenderem mutuamente, mas isso não é linguagem, excepto para o cientista que tenha uma visão puram ente instrum ental da linguagem como signo. Mas a lin­ guagem como poder de abrir um espaço em que o mundo se possa revelar, isto os animais não possuem. Por exemplo, os animais não podiam criar os seus instrumentos de comunicação para chegar a um a «compreensão» sobre um a situação ou circunstância, como tal, no passado ou no futuro; só a linguagem pode fazer isso, com o poder real que tem de construir um mundo. É um erro pensar nesse «mundo» como sendo essencialmente uma posse ou propriedade da subjectividade; esse é o erro típico da subjectividade moderna orientada para o pensamento; o mundo e a linguagem são antes temas trans-pessoais, e a linguagem é feita para se ajustar ao mundo, e por conseguinte é ordenada consoante o mundo mais do que consoante a nossa subjectividade. Neste sen­ tido (mas não num sentido científico) a linguagem é objectiva: «Da comensurabilidade da linguagem e da palavra segue-se a sua objectividade peculiar (Sachlichkeit). U m a situação ou tema que se comporta desta ou daquela maneira — nisso reside o reco­ nhecimento de uma alteridade auto-suficiente que pressupõe a sua própria distância entre o tema e aquele que fala. Na base dessa distância, pode definir-se algo como uma «situação» e em última instância pode ser capaz de se transform ar no conteúdo de um juízo que outro possa compreender (” ). O mundo não é impessoal nem falando em termos figurados, circula como um indivíduo isolado, como um balão gigante projectado pela mente e pelas percepções. É mais adequado encarar o mundo como estando entre as pessoas. É a compreensão parti­ lhada pelas pessoas, e é o meio dessa compreensão; é a linguagem que possibilita este facto. A linguagem, como um campo de interacção, não é realmente um «instrumento» que se construiu para a compreensão. Nesse aspecto o homem vive em algo semelhante à comunidade de compreensão que há entre os animais. Mas no homem trata-se de uma compreensão lingüística, e por conseguinte, é o mundo que está entre as pessoas. Gadamer diz-nos que a com­ preensão lingüística «torna aquilo em que ocorre (i. e. o mundo) como um processo e coloca-o entre as partes como um objecto que se disputa. O mundo é uma base comum que toda a gente reco­ nhece, que une todos aqueles que nele comunicam» (” ). («) Ibid., 419. (” ) Ibid.. 421. (’•) Ibid., 422. 208

Dado que o espaço aberto em que o homem existe 6 o domínio da compreensão partilhada criada pela linguagem como mundo, i> homem existe nitidamente na linguagem. «A linguagem nflo 6 i »i *c nas algo de fixo que o homem encontra no seu mundo, antes 6 ncl» e por ela que surge a possibilidade de termos um mundo.» (") Isto é dizer que a linguagem e o mundo transcendem toda a possibilidade de se transform arem totalmente em objecto. Não transcendemos a linguagem nem o mundo por determinado tipo de conhecimento ou de reflexão; «a experiência lingüística do mundo é que um abso­ luto» (” ). Esta experiência do mundo como algo que já reside na linguagem, transcende todas as relatividades e relações em que o.s seres se poderiam mostrar; todo o objecto de conhecimento é englo­ bado no horizonte da linguagem. A isto podemos chamar a linguisticidade da experiência humana do mundo. Esta concepção alarga extraordinariam ente o horizonte em que consideramos a experiência hermenêutica. O que se compreende pela linguagem não é só uma experiência particular mas o mundo no qual ela se revela. O poder que a linguagem tem de revelar ultra­ passa mesmo o tempo e o espaço; um texto antigo de um povo há muito extinto pode tornar presente, com a mais espantosa exactidão, o mundo lingüístico interpessoal que existiu entre essa gente. Assim os nossos próprios mundos de linguagem têm uma certa universa­ lidade neste poder de coihpreender outras tradições e lugares. Diz-nos Gadamer: «O nosso próprio mundo de linguagem, este mundo em que vivemos, não é um recinto fechado que impede o conhecimento das causas tal como elas são; antes engloba essencialmente tudo o que a nossa vista consegue alcançar em comprimento e altura. É certo que uma tradição vê o mundo diferentemente de outra. Os mundos históricos no decurso da história diferiram uns dos outros e do mundo de hoje. No entanto, o mundo é sempre humano, e isto significa que ele é um mundo linguisticamente criado que está pre­ sente em todas as heranças.» (” ) É tão grande o poder de dizer da linguagem, que ele cria o m undo no interior do qual tudo pode ser revelado; o seu alcance é tão grande que podemos compreender mais diversos mundos que se exprimiram na linguagem; tão grande é o seu poder de revelação que mesmo um texto relativamente curto pode abrir um mundo diferente do nosso, um mundo que no entanto conseguimos com­ preender.

(" ) Ibid., 419. <**) Ibid., 426. (“ ) Ibid., 423.

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A linguisticidade e a experiência hermenêutica A experiência hermenêutica, como já notámos, é um encontro entre a herança (sob a form a de um texto transmitido) e o horizonte do intérprete. A linguisticidade fornece o chão comum no qual e sobre o qual se podem encontrar. A linguagem é o meio em que a tradição se esconde e é transmitida. A experiência não é tanto algo que vem antes da linguagem pois a própria experiência ocorre na e pela linguagem. A linguisticidade é algo que se difunde no modo de estar-no-mundo do homem histórico. Como observámos, o ho­ mem tem um mundo e vive num mundo por causa da linguagem. Assim como dizemos que «pertencemos» a um certo grupo, também dizemos que pertencemos a um certo tempo e lugar na história, e a um certo país. Não dizemos que o grupo nos pertence ou que a história é uma possessão pessoal da nossa subjectividade, nem de qualquer modo controlamos o nosso país na mesma medida em que este controla e ordena a nossa vida. Fazemos parte deles e não são eles que nos pertencem; participamos neles. Do mesmo modo pertencemos à linguagem e à história; participamos nelas. Não possuímos nem controlamos a linguagem antes a aprendemos e nos adaptamos às suas regras. O poder que a linguagem tem de ordenar e moldar o pensamento não é uma questão de rigidez ou de incapacidade; esse poder funda-se na situação ou no caso que ela comunica. É à situação ou ao caso que temos que adaptar o nosso pensamento. A linguagem não 6 assim uma prisão mas um espaço que se abre no ser e que permite uma infinita expansão, dependendo da nossa abertura à tradição. Este fenômeno de pertença (Zugehòrigkeit) é da maior impor­ tância para a experiência hermenêutica, pois é a base que permite encontrar no texto a nossa herança. Porque pertencemos à lingua­ gem e porque o texto pertence à linguagem, torna-se possível um horizonte comum. A emergência de um horizonte comum é aquilo a que Gadamer chama a fusão de horizontes pois ocorre devido à consciência historicamente operativa. A linguisticidade, torna-se pois a base de uma consciência verdadeiramente histórica. A per­ tença a ou a participação na linguagem como meio da nossa expe­ riência no mundo, — de facto a base da possibilidade de podermos ter um mundo como aquele espaço aberto em que o ser das coisas se pode revelar — é a verdadeira base da experiência hermenêutica. Metodologicamente, isto significa que nós não procuramos tornarmo-nos senhores do que está no texto, mas sim tornarmo-nos «servos» do texto; não tentam os tanto observar e ver o que está no texto como seguir, participar e «ouvir» o que o texto diz. Gadamer joga com a relação entre ouvir, pertencer e servir que a palavra «pertença» (Zugehòrigkeit) sugere. (Hòren significa dar atenção, ou­ vir e escutar; gehôren significa pertencer a; gehòrig significa ade­ 210

quando a, ou apropriado.) Ouvir, diz-nos Gadamer, 6 um podei muito maior do que ver: «Não há nada que não se torne ihtnnIvcI ao ouvido, através da linguagem.» (M) Porque é que é assim? Porque através da audição, através da linguagem, acedemos ao lonas, no mundo a que pertencemos. É precisamente esta dimensão mui» profunda, esta dimensão ontológica acessível através da linguagem, que dá à experiência hermenêutica o significado que tem paru n vida presente do intérprete (” ). A objectividade característica da lin­ guagem, capaz de revelar as coisas tal qual são, baseia a linguagem numa ontologia lingüística universal. As dimensões mais fundas da linguagem, das quais deriva o seu poder de revelar o ser das coisas, dá-nos aquele fundamento de universalidade ontológica que faz da experiência hermenêutica uma experiência de revelação ontológica imediatamente significativa. Esta é a razão pela qual a tradição nos pode interpelar, não casual ou decorativamente, mas de um modo que nos afecta e que tem para nós um significado directo (” ). O método adequado à situação hermenêutica que envolve o intérprete e o texto, é portanto aquele que o coloca numa atitude de abertura, de modo a ser interpelada pela tradição. A atitude de expectativa, de quem espera que algo aconteça. Reconhecemos que não somos conhecedores à procura de um objecto e tomando posse dele — neste caso, chegando a saber «como é que era realmente» ou o que é que o texto «realmente significava», tentando sacudir os nossos preconceitos e ver com uma mente verdadeiramente «aberta». Pelo contrário, a disciplina metódica esboça-se para res­ tringir a nossa vontade de dominar. Não somos tanto pessoas que conhecem como pessoas que experimentam; o encontro não é che­ gar conceptualmente a algo, antes é um evento em que um mundo se nos abre. Na medida em que cada intérprete se situa num novo horizonte, o evento que se traduz linguisticamente na experiência hermenêutica é algo de novo que aparece, algo que não existia antes. Neste evento, fundado na linguisticidade e tornado possível pelo encontro dialéctico com o sentido do texto transmitido, encon­ tra a experiência hermenêutica a sua total realização.

A estrutura especulativa da linguagem e da natureza da poesia Para Gadamer, a própria linguagem tem uma estrutura intrinsecamente especulativa. Não é fixa nem dogmaticamente certa, mas porque se processa sempre como evento de revelação, está («) Ibid., 438. (») Ibid. (») Ibid.

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sempre em movimento, em mudança, tendo como missão tornar as coisas compreensíveis. O movimento da linguagem viva resiste constantemente à fixidez dos juízos manifestos e finais. O secretário consciencioso que controla os minutos de um a reunião, reduz siste­ m aticam ente os eventos a juízos — juízos que procuram captar o significado depurado daquilo que aconteceu. Mas esses juízos, pre­ cisamente porque são juízos, tendem a distorcer o que realmente foi dito, e, com uma exactidão metódica, toldam o horizonte signi­ ficativo em que os juízos se colocaram. O falar verdadeiro, o tipo de falar que ocorre na vida quotidiana entre pessoas que se compreendem m utuamente, permite que o não dito venha sempre a par daquilo que é dito, de modo a que ambos formem uma unidade; esta é a unidade que nos faz ser compreen­ didos pela fala, em vez de ser compreendidos pelo que foi dito. Diz Gadamer que aquele que fala deste modo «pode apenas usar as palavras mais banais e vulgares e no entanto conseguir com elas dar uma forma lingüística ao que não foi dito, o não dito que precisa de ser dito e que é aqui dito. Aquele que fala está a proceder especulativamente pelo facto de que as suas palavras não estão a copiar nada de ‘real’ mas estão de facto a exprimir uma relação com a totalidade do ser e a deixar que esta se exprima» ("). Tudo aquilo que é dito é de facto ordenado por uma orientação significativa mais lata, com base em aspectos que não dominamos. São esses aspectos que tornam evidente a estrutura especulativa da linguagem. Mesmo a mais pura reposição de sentido exige como pano de fundo algo que nunca é totalmente objectificável. Este fenômeno encontra-se de uma forma intensa na fala poé­ tica, quando somos confrontados com uma asserção, com um juízo. Legitimamente exigimos que o juízo poético seja auto-suficiente e que não dependa, para a sua compreensão, de um saber acidental. O juízo poético dá-nos a aparência de ser um juízo forte e mani­ festo, separado de toda a opinião subjectiva e da experiência do poeta. Mas sê-lo-á realmente? Gadamer diz-nos peremptoriamente que não. As palavras da poesia têm a mesma qualidade da fala que ocorre diariamente entre pessoas que se compreendem. «As palavras são especulativas ... um modo semelhante à fala da vida quotidiana; tal como anteriorm ente dissemos, ao falar, o orador traz para a linguagem uma relação com o ser.» (") Mais explicitamente: «O juízo poético como tal é especulativo na medida em que o aconte­ cimento lingüístico da palavra poética expressa por seu lado a rela­ ção especial que tem com o ser.» (” ) Este último juízo traz algo de

(«) Ibid., 444-445. (J1) Ibid., 445. (*) Ibid.

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novo para a discussão: a palavra poética é especulativa, nflo »<\ no sentido de precisar do que não foi dito como pano dc fundo, de modo a que aquilo que se diz explicitamente dirá também aquilo que não foi dito e que precisa de se tornar compreensível. A paluvra poética tem também a sua relação própria com o ser e traz algo de novo para o domínio do que não foi dito. Porquê? Porque o poct» é o experimentador especulativo por excelência; através da sua aber­ tura ao ser revela no ser novas possibilidades. O poeta, como Hõlderlin nos disse, liberta-se conscientemente das palavras c dos costumes comuns, usuais e já gastos. Ao olhar em volta, encaru o mundo como se fosse pela primeira vez, novo e irreconhecível. O seu saber, os seus pontos de vista, a arte e a natureza — tudo fica suspenso e indeterminado. Trata-se da suspensão dos padrões convencionais do ser e do pensamento que permitem ao poeta ver­ dadeiramente grande construir novos modos de pensar e de sentir. Portanto, como Gadam er nos diz, o juízo poético é especulativo, na medida em que não copia o mundo a partir do ser, não se limita a espelhar a visão das coisas na ordem existente, mas antes nos apresenta a nova visão de um mundo novo pela mediação imagi­ nativa da invenção poética (**). Não falamos aqui do carácter especulativo da experiência her­ menêutica, mas sim da escrita poética. Contudo a questão herme­ nêutica imediatamente se levanta: Como é que, se nos circunscre­ vermos a padrões convencionais de pensamento, conseguiremos compreender a fala poética especificamente designada para abrir uma nova relação com o ser? É óbvio que o intérprete deve ele próprio partilhar algo da abertura a novas possibilidades que o poeta possui. Contudo, lembramos mais uma vez que fora da história não há lugar para o intérprete; um tema nunca pode ser visto de um ponto de vista da eternidade. Gadamer diz-nos que toda a apro­ priação da tradição é ela própria a experiência de uma perspectiva sobre o tema. É guiada pelo tema que é comunicado; é este o para­ doxo da interpretação: que o tema seja o mesmo e que cada inter­ pretação seja diferente. «Toda a interpretação é verdadeiramente especulativa. Consequentemente, a hermenêutica não se pode deixar iludir pela crença dogmática num significado em si mesmo infinito, tal como a filosofia crítica não se deve deixar iludir pelo- dogmatismo da experiência.» (*') A interpretação de um texto, não é pois uma abertura passiva mas sim uma interacção dialéctica com o texto, não é uma simples confirmação mas sim uma criação, uni novo evento na compreensão (4*)-

(« ) Ibid., 446. (“ ) Ibid., 448. (« ) Ibid. 213

A especulatividade envolve portanto um movimento, uma sus­ pensão e uma abertura. Estas fazem com que novas possíveis rela­ ções com o ser nos falem e interpelem a nossa compreensão. Para o poeta, é abertura ao ser que se traduz na linguagem; para o intérprete, é abertura à colocação do nosso horizonte num equi­ líbrio e é querer sujeitá-lo a uma modificação, à luz da nova com­ preensão do ser que emerge do encontro com o significado do texto. Em última instância, a especulatividade baseia-se numa negatividade criativa, na natureza do ser, que forma o contexto de toda a asserção positiva. Uma hermenêutica especulativa está viva para o significado desta negatividade, como se fosse a fonte de toda a nova revelação do ser e como se fosse um antídoto constante rela­ tivamente ao dogmatismo.

A universalidade da hermenêutica No final de Wahrheit und Methode Gadam er formula uma asserção para a qual foi meticulosamente construindo fundamentos: o desenvolvimento do problema hermenêutico anteriormente a Schleiermacher, passando por Dilthey e chegando a Husserl e Hei­ degger não é um mero exercício interessante de uma auto-análise metódica da filologia como «hermenêutica»; conduz a própria inves­ tigação filosófica a uma posição sistemática. Não é simplesmente uma tentativa de encontrar um modo de interrogar adequado à compreensão histórica e literária dos textos; sustenta que a com­ preensão humana como tal é histórica, lingüística e dialéctica. No desenrolar de uma posição interrogativa que pretende mover-se para além dos confins do esquema sujeito-objecto, a hermenêutica de G adam er sugere um novo tipo de objectividade (Sachlichkeit) fun­ damentada no facto de que aquilo que se revela não constitui uma projecção de subjectividade mas algo que actua sobre a nossa com­ preensão quando se apresenta. O princípio de resistência à rigidez dos juízos não se aplica apenas à experiência hermenêutica, mas à experiência em geral. A ideia de que a dialéctica se nos apresenta com a possibilidade de deixar de encarar a experiência como um a actividade do sujeito considerando-a como um a actuação do tem a ou da própria situa­ ção — isto é, que esta dialéctica tom e possível a consideração da experiência de um medo expeculativo, como um movimento que «agarra» o orador — tem mais do que um significado metódico. Num parágrafo significativo no final do seu livro, Gadamer resume a sua argumentação e o modo como esta leva à defesa de uma hermenêu­ tica mais lata: «Percebemos agora que este movimento especulativo (de partirmos do ser como um todo e de sermos conduzidos pelas coi­ sas mais do que pela subjectividade) era o que tínhamos em mente 214

quando fomos orientados pela nossa análise du cxpcrlònua In mu nêutica para uma crítica da consciência estética, tal como (In >< . ciência histórica. O ser de uma obra de arte não cra um m i imii »l mesmo, no qual se pudessem distinguir a repetição ou a coiilln gência da sua aparência; só numa tematização secundária dc um contra o outro é que podemos diferenciar o ‘estético’ do 'n ío estético’. O mesmo se aplica relativamente ao encontro histórico ou filológico com a nossa herança: o que pareceria opor sc a nós — o significado de um evento ou o sentido de um texto nflo era para nós um objecto fixo e auto-suficiente, que apenas devíamos identificar e descrever. Porque a consciência histórica inclui dr facto em si mesma uma mediação de passado e de presente. Agora que reconhecemos que a linguagem é o meio universal para esta mediação, alargámos a perspectiva de que partia a nossa interro­ gação (unsere Fragestellung) i. e. a crítica da consciência estética c histórica — até fazer com que inclua uma orientação universal para a interrogação. Porque a relação humana com o nosso mundo é básica e simplesmente lingüística e portanto compreensível. A her­ menêutica é, como vimos, um meio universal do ser da filosofia e não apenas uma base metodológica para as disciplinas herme­ nêuticas.» O Prosseguindo, Gadam er diz que pelo facto de tomar como base a linguisticidade e a ontologia, não cai necessariamente na meta­ física hegeliana. Para ele, a linguagem não é um instrumento de subjectividade, nem se realiza na autocontemplação de um intelecto infinito; pelo contrário, a linguagem é finita e histórica, é um repo­ sitório e um condutor da experiência do ser que se tornou lingua­ gem no passado. A linguagem tem que nos levar a compreender o texto, a tarefa da hermenêutica é tom ar a sério a linguisticidade da linguagem e da experiência e desenvolver uma hermenêutica verdadeiramente histórica. A história tal como a obra de arte, confronta-nos, interpela-nos e apresenta-se. A especulatividade reside na sua própria natureza e também na natureza de todos os seres com que deparamos: tudo, na medida em que tenta fazer-se «compreender», se divide, separa o dito do não dito, o passado do presente; a auto-apresentação e o tornar-se compreensível não são características especiais da história, da arte e da literatura, são universais. Esta é a especulatividade que Gadamer vê como característica universal do próprio ser: «A concepção especulativa do ser que está na base da hermenêutica é tão englobante como a razão e a linguagem.» (“ ) A especulati­ vidade, se for profundamente compreendida, não só é a chave para

(«) Ibid., 450-51. <«) Ibid., 452.

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a compreensão da herm enêutica de Gadam er como é também o verdadeiro fundam ento das suas pretensões de universalidade. Quando tivermos compreendido o que Gadam er entende por especulatividade, tem mais sentido classificar a sua hermenêutica de hermenêutica especulativa do que, como tem sido feito até aqui, de hermenêutica dialéctica. Mas visto que o term o tem um sentido especial em Gadamer, e que um título representa uma introdução e não propriam ente a conclusão de um capítulo, escolhemos o termo mais imediatamente inteligível para nos ajudar a penetrar na área do pensamento dentro da qual é possível conceber a especulativi­ dade relativamente à hermenêutica.

Conclusão Em Wahrheit und Methode Gadamer confere à hermenêu­ tica um a amplitude diferente. Dilthey e Betti tinham ambos bata­ lhado por uma herm enêutica geral ampla para as Geisteswissenschaften. E que dizer das ciências naturais? Precisarão de uma com­ preensão diferente? A conclusão geral foi que a interpretação de um texto transmitido historicamente requer um acto de compreen­ são histórica totalmente diferente da compreensão praticada por um cientista da natureza. Gadam er abandona esta distinção, pois não mais concebe a herm enêutica quer enquanto circunscrita a um texto quer às Geisteswissenschaften. A compreensão, diz Gadamer, é sempre um evento histórico, dialéctico, lingüístico — nas ciências, nas ciências humanas, na cozi­ nha. A hermenêutica é a ontologia e a fenomenologia da com­ preensão. A compreensão não é concebida de modo tradicional como um acto da subjectividade humana mas como o modo essen­ cial que o Dasein tem de estar no mundo. As chaves para a com­ preensão não são a manipulação e o controle, mas sim a partici­ pação e a abertura, não é o conhecimento mas sim a experiência, não é a metodologia mas sim a dialéctica. Para Gadamer, o objec­ tivo da hermenêutica não é avançar com regras para uma com­ preensão «objectivamente válida» mas sim conceber a própria compreensão de um modo tão lato quanto possível. Comparado com os seus críticos, Betti e Hirsch, Gadam er não se preocupa tanto com o facto de compreendermos mais correctamente (e deste modo com o fornecimento de normas para uma interpretação válida) como com o facto de compreender mais profundamente, de modo mais verdadeiro. Gadam er entrou profundamente na definição de compreensão dada por Heidegger, original e lata, seguindo os últimos escritos de Heidegger na ênfase dada à ontologia e à lingüística. Procedendo deste modo e tentando elaborar uma hermenêutica sistemática, 216

aproximou-se da grande força dinâmica da filosofia alemll, I I c k c I Assim, as referências à dialéctica e à especulatividade imediatamente nos lembra Hegel, e inevitavelmente surge o paralelo entre u feno menologia de compreensão de Gadamer e a fenomenologia do G ellt de Hegel. Já anteriorm ente mencionámos um a série de distinções entre as fenomenologias de Hegel e de Gadamer, especialmente no que diz respeito à consideração da subjectividade como ponto de partida; contudo, o paralelo entre o tratam ento feito à objectividade do tema (Sachlichkeit) em Gadamer e à objectividade do Geist cm Hegel, merecem um a explicação ulterior. Pode pois dizer-se que na medida em que Gadamer se afasta de Heidegger, tende a reaproximar-se de Hegel. Mas isto será uma deficiência ou algo de positivo? O próprio Heidegger encararia com a maior suspeita cada um destes movimentos; interrogar-se-ia se se teria perdido a sua visão radical da facticidade como ponto de par­ tida do filosofar. Por outro lado, Gadam er defende convincente­ mente que a dinâmica interna do próprio pensamento de Heidegger é totalmente dialéctica (“ ). Assim a hermenêutica dialéctica de Gadam er é uma mera extensão de uma tendência inerente ao pensamento de Heidegger. Tomou a teoria da compreensão, a onto­ logia, a crítica feita por Heidegger ao moderno subjectivismo humanista e à tecnologia e a partir delas, sem contrariar radical­ mente Heidegger desenvolveü uma hermenêutica centrada na lin­ guagem, ontológica, dialéctica e especulativa. O hegelianismo da hermenêutica de Gadamer, essencialmente heideggeriana, talvez seja um melhoramento da concepção de Hei­ degger. Isto torna-se mais evidente quando notamos a tendência do último Heidegger em descrever a compreensão usando exclusi­ vamente um vocabulário de termos passivos: a compreensão não mais é vista como um acto do homem mas como um evento no homem. Surge o perigo de o homem ser considerado como uma passiva mancha de pó, na corrente da linguagem e da tradição. Gadam er não vai para o outro extremo de considerar a subjecti­ vidade humana como ponto de partida de todo o pensamento sobre a compreensão, mas toma de facto uma posição que permite um grau maior de interacção dinâmica, quando fala de «experiência» e de «fusão de horizontes». Neste aspecto, é curioso verificar como uma recente crítica de Jean-M arie Domenach feita ao estruturulismo de Lévi-Strauss e de Michel Foucault se aplica menos a Ga­ dam er do que a Heidegger:

(*’) Cf. Gadamer Anmerkungen zu dem Thema Hegel und Heidegger, Natur und Geschichte: Festschrift für Kart Lõwith, págs. 123-131. Também sobro Hegel e Heidegger ver Thomas Langan, Heidegger beyond Hegel: a Rethxion on The Onlo-lheo-togical Constitulion of Metaphysics, comunicação lida no Circulo de Heidegger, na Universidade de Pittsburgh, em 27 de Abril do 1968.

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«Há uma tentativa convergente (na filosofia actual) que procura inverter a ordem dos termos em que a filosofia tem vivido até ao presente, negando a actividade autônoma da consciência. Eu não penso, sou pensado; eu não falo, sou falado; não me relaciono com algo, sou relacionado com. É da linguagem que tudo vem e é para a linguagem que tudo vai. O sistema, que é captado no centro de si próprio, é proclamado senhor do homem ... o sistema, um pensa­ mento que é frio, impessoal, erigido à custa de toda a subjectividade, individual ou colectiva, nega por fim a própria possibilidade de um sujeito capaz de expressão e de uma acção independente.» (") Imediatamente temos que dizer que a objectividade desincorporada de um puro sistema que deixa o homem fora da avaliação, imediatamente se situa a mundos de distância de qualquer abor­ dagem fenomenológica que toma o mundo da vida como seu funda­ mento. Assim seria absurdo equacionar quer Heidegger quer G a­ damer com os estruturalistas objectivos. No entanto, é interessante que, precisamente na medida em que Gadam er é dialéctico e fala do carácter dialéctico da experiência corno sendo essencial à sua hermenêutica, permite que concebamos a compreensão como um acto pessoal e não simplesmente como um evento que «acontece». É difícil não perguntar que tipo de ética e de doutrina do homem são pressupostos em Heidegger. Será que o homem tem que viver simplesmente num a espécie de rendição ao chamamento do ser? Seria interessante levantar a mesma questão a Gadamer. Como é que a actuação da linguagem na compreensão atende àâ funções da vontade e do desejo no homem? Talvez Gadamer respondesse que a análise que faz em Wahrheit und M ethode era uma análise do próprio evento da compreensão e não das motivações que a ela levaram ou da afecção pessoal que a rodeava. Diria ainda mais que não estava a propor uma ética ou uma doutrina do homem mas a tentar, com toda a honestidade, descrever a compreensão como uma estrutura ontológica ou como um processo dinâmico. Poderia ser assim, mas seria extremamente esclarecedor saber como é que Gadamer responderia a esta questão. Acredito que aqui, mais uma vez, o carácter dialéctico da hermenêutica de Gadamer face à de Heidegger, atenderia preferencialmente ao contributo dado por quem compreende a experiência hermenêutica. Isto constituiria um suplemento válido e alargaria a parte final do livro que trata da experiência hermenêutica. Wahrheit und M ethode revela portanto todo um novo horizonte de considerações sobre a teoria hermenêutica, anunciando talvez o começo de um novo estádio frutífero no pensamento moderno sobre a interpretação. Enquanto que a herm enêutica de Heidegger já

(*•) Le Système et Ia personne, Esprit (Maio de 1967), págs. 772-73.

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concebe ontologicamente o evento da compreensão, Gadumci dcsrn volve a ontologia da compreensão numa hermenêutica dialíctka que põe em causa os axiomas fundamentais da estética modcrnn «• da interpretação histórica. E poderia fornecer a base filosófica paia uma crítica radical às concepções da interpretação que hoje domi nam na crítica literária.

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TERCEIRA PA R TE

MANIFESTO HERMENÊUTICO À INTERPRETAÇÃO LITERÁRIA AMERICANA

PREÂM BULO

Chegou a altura de pormos em causa a visão pesadamente estruturada da interpretação literária americana ('). O ímpeto pro­ dutivo que a Nova Crítica lhe deu não podia continuar para sempre; hoje há um amplo espectro de abordagens formalistas c de abor­ dagens orientadas para o conteúdo, com predominância da crítica do mito C). Contudo apesar, da variedade de actividades da crítica e do arsenal de arm as para uma análise literária, reinam uma obs­ curidade e uma confusão gerais sobre o que faz a interpretação literária. Tal facto leva a que voltemos a colocar radicalmente a pergunta: o que é a interpretação? A crítica am ericana de hoje não precisa de mais instrumentos para «chegar» à obra literária mas sim de um novo exame rigoroso dos pressupostos sobre os quais se baseia o seu conceito de inter­ pretação. Filosoficamente falando, estamos a ultrapassar o apogeu do realismo, e a revolução fenomenológica está a fazer com que a sua crítica ao realismo e ao idealismo se faça sentir. Por conse­ guinte, o reexam inar da questão da interpretação não pode pros­ seguir ingenuamente na base de noções do senso comum, ou pres­ supor como ponto de partida um realismo que pertence ao passado. Pelo contrário, a teoria literária tem que explorar arrojadam ente a crítica fenomenológica feita ao realismo por Edmund Husserl, Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer. A hermenêutica em Ga­ dam er dá-nos a conjunção da fenomenologia e da teoria da com­ preensão; constitui a base para um reexame criativo da teoria da interpretação literária.

(’) Ver Stanley Edgar Hyman, The Armed Vision. (!) Ver John B. Vickery, ed., Myth and Literaiure, e Northrop Frye, Anatomy of Crilicism. Para um resumo das diferentes abordagens 6 Impor­ tante a avaliação feita por Walter Sutton, Modem American Crilicism. 223

Para clarificar a crítica das concepções dominantes na interpre­ tação literária implícita na hermenêutica fenomenológica, e para se estabelecerem de um modo preliminar as características de um a teoria da compreensão literária que nela se baseia, segue-se um manifesto dirigido aos intérpretes literários americanos.

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PARA UM A REA BERTU RA DA PERGUNTA: QUE É A IN TERPRETA ÇÃ O ?

O que significa compreender um texto? Os intérpretes e teóricos literários americanos caíram num modo de encarar a sua tarefa grosseiramente naturalista e tecnológica. Na actual perspectiva em que se situam nem mesmo podem colo­ car-se a si próprios a questão que mais precisam de colocar: o que acontece quando «compreendemos» um texto literário? Uma ques­ tão deste gênero é quer tratada de um modo abstracto, lógico e tecnológico, quer posta de lado como irrelevante, pois poderia pare­ cer que não se estava a lidar com o objecto de análise mas com a experiência subjectiva que dele temos. Mas o que é que se pressupõe? Que podemos falar de um objecto de análise em termos da sua forma e do seu «significado objectivo» de tal modo que a obra parece existir independentemente da experiência que dela temos! A pouco e pouco, começa a não haver correlação entre a análise do objecto e a nossa experiência quando o compreendemos. A análise abstracta da forma das con­ tradições lógicas começa a ser a marca de uma intepretação subtil, e em última instância a dinâmica da experiência da obra é incons­ cientemente ultrapassada, ou abandonada como conduzindo a «falá­ cias». E no entanto uma objectividade deste tipo pressupõe um acesso à obra que é mais racional do que experiencial; considera a interpretação fora do seu contexto vivo e depura-a do seu carácter histórico. Deveríamos dizer logo de início que o modelo de interpretação sujeito-objecto é uma ficção realista. Não deriva da experiência da compreensão, antes é um modelo construído reflexivamente, que volta a ser projectado na situação interpretativa. Não há tema que não esteja situado, e portanto, não há compreensão que não esteja também situada. A compreensão é sempre situada; coloca-se num dado ponto da história. Não há acesso privilegiado a uma obra 225

literária, não há acesso que se coloque fora da história e fora do nosso horizonte de compreensão. Alguns intérpretes desejariam que assim fosse, mas o facto de o desejarem não faz com que as coisas se passem desse modo. Defender a historicidade e posicionalidade da compreensão não é enveredar por um aspecto irrelevante e sub­ jectivo (o uso neste contexto da palavra «subjectivo» assenta numa concepção insustentável de objectividade); é um facto da situação interpretativa que em nada se altera caso o desprezemos. Ignorá-lo é enfraquecer a nossa concepção de interpretação, pois levou, em casos extremos da crítica formalista, à consideração de que a lite­ ratura. não é de natureza essencialmente histórica e de que com­ preendê-la não é um acto profundamente histórico. A acusação que o futuro fará ao formalismo contemporâneo será a de uma falta de consciência realmente histórica. Por cons­ ciência histórica não entendo apenas sentir o «elemento histórico» na obra literária, mas antes uma compreensão genuína do modo como a história constantemente actua na compreensão, e uma consciência da tensão criativa entre o contexto da obra e o do nosso tempo.

As conseqüências do esquema sujeito-objecto Perguntar de um modo significativo o que acontece quando compreendemos uma obra literária significa ultrapassar a defi­ nição dominante da situação interpretativa em termos do esquema sujeito-objecto. Consideremos algumas das conseqüências gerais da aceitação do modelo sujeito-objecto no encontro interpretativo. Nesse contexto, quando o intérprete se defronta com uma obra literária, entende-se por consciência o encontro com o «objecto». O estatuto do objecto é o de ser objecto para um sujeito, de modo que, em última instância, o seu estatuto, como o de tudo quanto existe, possa ser delineado até rem ontar à subjectividade e às operações reflexivas da mente: «A objectividade científica» por exemplo, situa-se no interior deste contexto interpretativo e sus­ tenta que apenas pretende adquirir ideias «nítidas» e «claras» sobre esses «objectos». Os números são as ideias mais nítidas, mais claras e abstractas, portanto são especialmente valorizados. Depois vem tudo aquilo que é mensurável, repetível ou visualizado num esquema. O conhecimento e a experiência que não são redutíveis às formas de um pensamento primariamente ideacionado (visuali­ zado) tendem a ser considerados como não reais e destituídos de importância. Ao perspectivar deste modo a interpretação, não nos aperce­ bemos do poder e da ubiquidade da linguagem e da h istó ria. na nossa existência. A linguagem é vista como um objecto que comu­ 226

nica «significado». O homem é considerado como um iinlmnl produtor de símbolos, sendo a linguagem o sistema com que doinlnu os símbolos. Mas tudo isto se enraíza na metafísica enganudor» que desde Descartes a perspectiva moderna nos tem dado. llojr encaramos a linguagem como um conjunto de signos produzidos pelo homem e vemos a história como meros factos passados porque aceitamos sem questionar que há uma subjectividade humana tiflo histórica na origem de todas as coisas constituindo o seu ponto de referência. Assim, apesar da palavra «objectividade», a subjec­ tividade é o centro a partir do qual consideramos as nossas pro­ duções. Mas se tudo rem onta à subjectividade e se fora dela nào há qualquer ponto de referência, a vontade de poder do homem transforma-se na força essencial da actividade humana. Este subjectivismo superficial constitui o fundam ento essencial do delírio moderno a favor de um conhecimento tecnológico; quando a subjectividade humana é o tribunal de última instância, nada resta ao homem senão controlar cada vez mais totalmente os «objectos» do seu mundo. M au grado os protestos da crítica moderna na defesa do hu­ mano, o processo e a focalização da moderna interpretação lite­ rária tornaram-se tecnológicos, tornaram-se uma questão de domí­ nio do objecto de análise. A Nova Crítica constitui, nalguns dos seus aspectos, uma excepção a isto, com a referência que faz a uma «rendição» ao ser da obra, na tentativa salutar de evitar a heresia da paráfrase a favor de uma experiência directa da obra das inten­ ções que tem de falar sobre forma e conteúdo da obra, mais do que de perder-se e afundar-se em informação extrínseca sobre ela. Este movimento voltou a dar uma tremenda vitalidade e significado ao estudo da literatura salvando-a de um historicismo estéril c da filologia. No entanto, a base filosófica da Nova Crítica foi sempre oscilante e incerta, vacilando entre c realismo e o idea­ lismo O- Tornava-se necessária um a maior claridade filosófica quanto ao carácter da interpretação; eram demasiadas as vezes em que o seu contextualismo não se centrava na percepção da obra como o verdadeiro local da «obra» caindo num realismo aristotélico, num organicismo ou num formalismo. Um formalismo deste tipo, nebuloso quanto ao seu fundamento na experiência mais do que na «forma» da obra enquanto objecto, foi demasiadas vezes derru­ bado, vítima de um a concepção de interpretação atemporal e anhistórica, e as interpretações muitas vezes pareciam colocar-se mais em termos de um conhecimento estático do que dc uma experiência vital. Uma tal concepção da interpretação tende a equacionar com­ preensão e domínio cooçeptual. A obra, quando é concebida como (5) Ver Murray Krieger, The N ew Apologists fo r Poetry.

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objecto (em vez de o ser como obra) torna-se simplesmente uma entidade sobre a qual adquirimos conhecimento através de uma concepção espacializada, de uma dissecação e de uma análise. Uma abordagem deste tipo representa a transposição para a abordagem crítica, de uma abordagem técnica do mundo, abordagem que apenas procura conhecer o objecto para o dominar e controlar; com isto surge uma concepção profundamente errada da com­ preensão literária, pois o crítico encara a sua tarefa como uma tentativa de dizer como se constrói uma obra, como é que ela evolui, e por fim, como é que tem êxito (geralmente à base de contradições lógicas e de ironia). Assim, o intérprete não vê a sua tarefa como a de quem remove obstáculos à compreensão de modo a que um evento compreensivo possa ocorrer, em toda a sua pleni­ tude e a obra possa falar com verdade e força; antes a encara como uma apropriação da obra através de um controlo intelectual que sobre ela exerce. E no caso do crítico possuir uma experiência religiosa profunda, será que uma crítica desse tipo a referiria objectiva e conceptualmente em termos de «estrutura e padrão»? É claro que não (a não ser que fosse o mais abstracto dos homens), pois o que é decisivo não é o padrão, mas sim o que aconteceu. A hubris de tentar dominar absolutamente uma experiência religiosa é apenas aparente; a hubris de tentar dominar o encontro com a obra literária é menos aparente mas não menos real. Uma outra falha da objectividade moderna é a de encarar a obra como um «objecto» mais do que como «obra», o que distancia o leitor relativamente ao texto; contudo, a finalidade da inter­ pretação literária é ultrapassar a distância a que o leitor está do texto. Não basta conhecer uma obra do mesmo modo que um psicanalista conhece os problemas do seu doente; a interpretação literária deveria perm itir que o evento lingüístico captasse, domi­ nasse e transformasse o próprio intérprete. Uma obra não fala quando é cortada em pedaços de modo a que o leitor analítico veja como e porquê ela é feita de uma certa maneira; temos que deixar falar a obra, sabendo ouvir quer aquilo que é dito por meio de palavras quer aquilo que é dito mas que se mantém presente por detrás das palavras. Pondo a questão na terminologia comum da relação Eu-Tu de M artin Bubber, é útil vermos a obra não como uma coisa que está ao meu dispor mas como um Tu que me inter­ pela; é útil termos presente que o significado não é uma ideia objectiva e eterna, mas algo que emerge de uma relação. Uma relação errada produzirá um significado destorcido e incompleto. Um questionamento metódico corre o risco de fechar ao intér­ prete a possibilidade de ser conduzido pela própria obra (‘). Um

<‘) Ver WM, 435 ff.

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método, irá colocar uma lista de questões, estruturando prevl# mente o encontro que vamos ter com a obra. É claro que rstri perigos do método e da análise metódica não excluem a sua utdl zação, nem levam à rejeição radical de todos os métodos de análise conceptual. Também não pretendemos que se torne internacional mente uma atitude de atrasados mentais quando lemos um texto literário, pondo de parte, com um suspiro de alívio, o pensamento conceptual rigoroso. Antes significa que o intérprete tem que com­ preender, de um modo mais aberto, que o método tem limitações e que a análise conceptual pode ser um substituto demasiado fácil de uma leitura existencial, especialmente quando não temos uma concepção adequada do que é a própria compreensão literária.

Para uma concepção mais lata de compreensão Em Ser e Tempo, M artin Heidegger teve por incumbência revelar-nos o carácter ontológico da compreensão, de um modo que ultrapassou radicalmente a antiga concepção que tínhamos, circunscrita ao esquema sujeito-objecto (’). Segundo Heidegger, a compreensão não é uma faculdade entre outras que o homem possui; a compreensão é o modo essencial que ele tem de existir no mundo. Através da compreensão estamos aptos a sentir o modo como nos situamos, alcançamos o significado através da linguagem, e algo como o mundo pode tornar-se o horizonte no qual existimos. Se começamos pela subjectividade, então a compreensão aparecerá como uma faculdade do homem; se começamos pela facticidade (Faktizitàf.) do mundo, a compreensão torna-se no modo como a facticidade do mundo se apresenta ao homem. Heidegger envereda por esta última abordagem, e assim, a compreensão é considerada como tendo base não na actividade autônom a e reflexiva do homem mas no acto do mundo, na facticidade do mundo, no homem. A compreensão é então o meio pelo qual o mundo se coloca face ao homem; a compreensão é o meio da revelação ontológica. A compreensão não é pois um instrumento para qualquer outra coisa — como a consciência — mas sim o meio no qual e pelo qual existimos. Nunca pode ser objectificada, pois é no interior
(5) Ver também Heidegger. Wissenschafl und Besinnunn c Obrrwlndiini der Melaphysik, VA, 45-99.

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do momento presente. Pelo contrário, compreender, efectua-se sem­ pre necessariamente «nos termos» daquilo que nos é dado ver, da nossa compreensão da situação presente, e de um sentido do que o futuro nos poderá trazer. Assim, o terreno em que nos coloca­ mos quando compreendemos, tem uma topografia perfeitamente definida, e todo o acto de interpretação se situa dentro do seu contexto. A linguagem é o repositório do passado, é o meio que temos para o conhecer. A linguagem é tão primordial quanto a compreensão, pois a compreensão é lingüística; é por meio da linguagem que pode surgir-nos algo como um mundo; este mundo é um mundo partilhado; é o domínio da abertura criada por uma compreensão partilhada, sob a forma de linguagem. O domínio da abertura criada por uma compreensão partilhada através da linguagem, tem, tal como já foi notado, uma certa delimitação. É finito e muda com o decorrer do tempo. Isto significa que é historicamente formado, e que cada acto de compreensão contém a actuação da história na e pela compreensão. Pode então dizer-se que a compreensão é lingüística, histórica e ontológica. Porque a análise de Heidegger toma como ponto de partida a facticidade da compreensão, sustenta que o que se coloca na compreensão não é algo de subjectivo mas algo que vem do exterior, ao encontro do homem, algo que se revela à compreensão como sendo o mundo. A compreensão não é pois uma projecção da consciência reflexiva mas o meio pelo qual uma situação ou um tema se revelam tal qual são. A compreensão, diz-nos Heidegger, não impõe as suas categorias ao mundo; o tema do mundo impõe-se à compreensão e a compreensão adapta-se a ele. Mas não acabá­ mos de defender que toda a compreensão, em termos topográficos, se constrói sobre o tempo sendo mediada pela linguagem? Se assim é, não será então o sujeito que projecta esta compreensão naquilo que vem ao seu encontro numa situação, não se limitando portanto a recebê-!a do exterior, como ela é realmente? Mais uma vez não. O que se revela é o ser do objecto tal como se revela à compreensão. Falar do ser de uma coisa tal como ele «realmente é» é entregarmo-nos à especulação metafísica: como ele é para quem? Não há nenhuma perspectiva humana a partir da qual possamos dizer o que o ser «realmente é». Por outro lado, o que o sujeito parece «projecta r» na compreensão não é nada de pessoal ou de reflexivo, embora todos admitamos que seja não objectivo e em grande parte não objectificável. O sujeito compreende através do mundo parti­ lhado da compreensão, já dado na e pela linguagem que ele utiliza, bem como do posicionamento histórico em que a sua compreensão sc coloca. É insustentável cham ar a isto subjectividade, ou ligá-lo á consciência individual, dado que o indivíduo não criou a com­ preensão partilhada nem a linguagem, apenas participando delas, listas são. numa palavra, objectivamente reais; ao mesmo tempo 230

não remontam a uma consciência reflexiva va/.ia ou u um r u I n ..... cendental. A compreensão partilhada, a historicidade e n IImku»*>i'mi tornam-se o fundamento do qual pode derivar umu poiiçlU) <|ii< ultrapasse o cientismo e a centração no sujeito, tão cm iulcilillin do esquema sujeito-objecto no qual hoje tendemos inconsciente mente a actuar, e que a estética e a teoria literária hoje dominnnlr», pressupõem. Com a nova posição revelada pela concepção heideggeriana du compreensão como órgão de uma revelação ontológica, torna se possível falar de objectividade da linguagem no sentido em que a linguagem é aquilo que é e que nós nos adaptamos a ela. Tome mos por exemplo um caso em que procuremos palavras para trans­ mitir uma situação a outra pessoa. Tentaremos uma palavra, depois outra e depois talvez uma terceira que consideraremos satisfatória. Teremos o direito de falar da consciência reflexiva que aqui se «expressa»? Não necessariamente pois o que se exprime é o scr da situação, o modo como esta se nos revela. Se a situação não tivesse em si mesma a possibilidade de ser encarada deste modo, não poderia expressar-se. A única razão que levou a considerarmos insatisfatórias as primeiras e as segundas palavras, foi que o próprio tema exigia uma terceira palavra. É neste sentido que podemos falar de objectividade da linguagem. A teoria enganadora da linguagem que a considera essencial­ mente como «instrumento de comunicação» mais uma vez revela o modo como uma concepção foi destorcida pelo esquema sujeito-objecto, pela preferência científica, pela conceptualização, e pela vontade de poder da visão tecnológica do homem como senhor do universo e manipulador de instrumentos. A linguagem não é o meio de que o homem dispõe para dar forma significativa a pensamentos sem palavras ou a uma experiência sem palavras; o pensamento, a compreensão e a experiência são todos eles total­ mente lingüísticos, pois é através da linguagem que temos o mundo da compreensão no qual e pelo qual os objectos se situam na nossa experiência. Nem a linguagem é algo que se possa inventar; só numa situação extremamente artificial é que podemos «atribuir» signi­ ficado a uma palavra. Esta já tem um significado geral, um signi­ ficado escolhido para exprimir uma situação. Embora algumas vezes uma palavra possa ser usada arrojadam ente, de modo pouco comum, para exprimir algo também de pouco comum, não terá sido essa situação pouco comum que deu origem à palavra um novo signi­ ficado e não quem usou a palavra? Assim nós não produzimos significados. Quando um cientista inventa uma nova palavra, geralmente toma uma palavra que já existente e atribui-lhe um determinado significado. Isto não é tanto a criação de uma palavra nova como um corte e uma destruição parcial do poder primordial de dizer que a palavra original possuiu 231

— o poder que de facto a originou — com o intuito de criar um conceito específico e restrito. Muito raram ente se inventa uma palavra por uma justaposição gratuita de sons, e quando tal acon­ tece, é geralmente feia e irremediavelmente vaga. A criação de linguagens artificiais com base na experimentação não refuta a nossa posição dado que o poder que essas linguagens detêm deriva da sua referência a uma linguagem viva. A imagem de um homem que «cria uma linguagem» e a usa como instrumento é portanto uma ficção ingênua de mentes orientadas para a ciência, uma fic­ ção que é negada pelo facto evidente de que na realidade não inventamos a nossa linguagem, nem atribuímos significado às pala­ vras, nem podemos, por um acto de vontade, fazer com que as palavras digam coisas diferentes daquilo que de facto dizem. Nisto consiste a objectividade da linguagem. E é claro que a estrutura da compreensão encarada como sendo sempre e totalmente lin­ güística, faz com que a teoria da «linguagem como signo», baseada como é numa ideia errônea da consciência e numa ignorância de como actua a comprensão, seja considerada como uma mera cons­ trução teórica, baseada em pressupostos realistas, errados. Gadamer, em Wahrheit und M ethode tornou claro que a lin­ guagem é o meio no qual e pelo qual temos um «mundo»; ela produz uma clareira no ser, através da revelação do ser ('). Esta revelação não é pessoal e privada. É um a compreensão parti­ lhada que a linguagem nos permite possuir em primeiro lugar, tal como permite que a comuniquemos. Não inventamos nem mani­ pulamos a linguagem porque nos convém; participamos na lingua­ gem e permitimos que uma situação ocorra na linguagem. A lin­ guagem. tal como a compreensão, nunca pode ser um simples objecto no mundo dado que atravessa o mundo como um meio no qual e pelo qual vemos os objectos. Só uma visão profundamente errônea da compreensão como sendo não lingüística é que poderá levar à crença de que a linguagem é simplesmente um conjunto de objectos no mundo, que podem ser manipulados e modificados a nosso bel-prazer.

Definindo compreensão em termos de experiência (7) A pobreza que é considerarmos a compreensão em termos de conhecimento conceptual torna-se sobretudo evidente na interpre­ tação literária. Leva-nos a análises extensas que em nada contri­ (•) Ver esp. Parte III, Ontologische Wendung der Hermeneutik am Leitfaden der Sprache, WM, 361-465. O Ver «Der Begriff der Erfahrung und das Wesen der hermeneutischen Erfahrung», ibid., 329-44.

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buem para que experimentemos o poder que a obra tem
Para a interpretação literária, a lição que colhemos da estru­ tura da experiência é mantermo-nos sensíveis ao facto de que as suas dimensões ultrapassam toda a conceptualização; a riqueza da experiência que é compreendermos um texto e a riqueza da expe­ riência do texto não devem ser erradam ente transpostas para as categorias superficiais do conhecimento. Tendo cm vista a limitação do conhecimento conceptual, sugere-se uma posição de abertura dialéctica ao texto.

A dialéctica da pergunta e resposta na experiência hermenêutica O encontro com uma obra transmitida historicamente não tem a estrutura de um simples saber mas sim da experiência — podemos chamar-lhe a experiência hermenêutica (*). Tem não só o carácter englobante e não objectificável da experiência, tal como acima foi descrito, como também a sua dialecticidade dinâmica. A negativi­ dade criativa da verdadeira interrogação, que é essencialmente a negatividade da experiência que ensina e transforma, é o centro da experiência hermenêutica. Pois experimentar é compreender, não melhor mas diferentemente; a experiência não nos diz aquilo que esperávamos, mas tende a transcender e a negar as expecta­ tivas. Uma experiência «profunda» mais do que fazer-nos com­ preender melhor aquilo que já foi parcialmente compreendido, mostra-nos sobretudo que estávamos a compreender erradamente. Mas não podemos compreender «de maneira diferente» se levan­ tarmos todas as questões. Uma questão, afinal, posiciona um modo preliminar de ver; tal como a compreensão não pode deixar de ser situada, tal como não é vazia, também a interrogação não pode dar-se sem o seu próprio horizonte de expectativas. A questão é que os nossos próprios pressupostos não podem ser tomados como absolutos (pois estes são o fundamento das nossas expectativas) mas sim como algo sujeito a mudança. Contudo, a análise e o questionamento metódico não põem em causa os próprios pressupostos que as orientam; antes actuam no interior de um sistema, de modo que a resposta está sempre potencialmente presente, é sempre uma expectativa do própiio sistema. Assim, mais do que meios para uma verdadeira interro­ gação, são meios de teste. Mas a experiência não segue o modelo de resolução de um problema no interior de um sistema; é o meio dc sair do sistema, o meio de uma transcendência criativa, é o abalar do sistema. Quando encontramos uma obra de arte ou de

(•) Ibid.

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literatura verdadeiramente grandes, transformamos a nossa mm preensão; vemos a vida com uma nova frescura. É devido n rvm «frescura» que a obra é lida, mas essa frescura escapa a um ollmi analítico (a que também poderíamos chamar «cegueira analítica») O elemento de negatividade criativa está ausente na maior pai ti­ dos métodos, pois o momento verdadeiramente criativo está nu criação do próprio método — um momento a que na maior parte dos casos não chegámos por via de método. A negatividade cria tiva, pode pois designar-se como sendo a vida e o fundamento da interrogação verdadeiramente dialéctica. O que precisamos na interpretação literária é uma interrogação dialéctica-que não se limita a questionar o texto mas que permite que o que é dito no texto também coloque interrogações, pondo em causa o horizonte do intérprete e produzindo uma transforma­ ção fundamental da compreensão que temos do tema. Isto não significa uma negação do horizonte do intérprete, nem significa que o nosso próprio horizonte se torne absoluto, como está implícito na maior parte das análises e dos métodos; significa sim uma fusão criativa de horizontes. O facto de apenas podermos compreender dentro do nosso próprio horizonte e através dele, só em parte 6 verdadeiro. Se o fosse totalmente nunca poderia dar-se uma alte­ ração significativa de horizontes. Ora na experiência autêntica há uma negação parcial do nosso próprio horizonte e através dela surge uma compreensão mais englobante. A abordagem dialéctica feita por Sócrates pode servir de modelo para toda a interrogação verdadeiramente dialéctica, pois na sua oscilação entre saber e não saber, no experimentar lúdico do tema através dos seus diferentes ângulos está o desejo de tudo arriscar e de ser instruído pelo próprio tema. Subjacente à astúcia artificiosa de Sócrates está uma inten­ ção séria de fazer com que o tema em discussão tome a liderança. Ele rodeia o tema, de modo flexível, aberto, não dogmático, ten­ tando sempre novas abordagens. Em vez de tentar enfraquecer os argumentos dos seus adversários, tenta encontrar a sua verdadeira força, de modo que a sua própria compreensão possa ser alterada. O intérprete literário dos nossos dias tem necessidade de cultivar este tipo de abertura àquilo que vai sendo «dito» num texto lite­ rário. No diálogo com o texto, a interrogação e o ser-se interrogado devem andar a par.

Ser capaz de ouvir o que o texto não disse Se é preciso ser-se um bom ouvinte para escutar aquilo que e realmente dito, ainda é preciso ser-se melhor para ouvir o que riflo foi dito mas que se esclarece ao falar. Centrarmo-nos cxcluiilvit mente na positividade daquilo que é explicitamente dito no lento 235

é fazer injustiça à tarefa hermenêutica. Temos que ir para além do texto para encontrarm os aquilo que ele não disse, e que talvez não pudesse dizer ('). Tal como toda a pergunta contém já uma asserção preliminar, assim também toda a asserção pode ser vista como resposta a uma pergunta. Um texto literário é uma asserção deste tipo. A asserção não pode ser vista como qualquer entidade independente e discreta mas como a resposta a uma pergunta, como algo cujo significado se situa dentro de um certo horizonte de pensamento. Assim, inter­ pretar a obra significa caminhar para o horizonte interrogativo no qual o texto se move. Mas isto também significa que o intér­ prete se move em direcção a um horizonte em que outras respostas são possíveis. É nos termos dessas outras respostas — no contexto temporal da obra nos tempos que correm — que temos que com­ preender o que o texto diz. Por outras palavras, o que se disse só pode ser compreendido em termos do que não foi dito. A reconstrução da questão que deu origem ao texto não é uma simples reconstrução histórica, uma mera «restauração»; uma taxonomia deste gênero seria tão absurda como qualquer esforço para recuperar tudo o que já passou definitivamente. Nem se trata de simplesmente descobrir as intenções do autor, embora isso possa ser relevante, pois o que fala no texto é o tema que determinou a sua escrita, a interrogação que lhe deu origem e para a qual ele é resposta. E no entanto, também o autor aborda o texto de um modo interrogativo, o texto tem que iluminar o horizonte do intérprete. Caso contrário, o processo da sua compreensão é um exercício vazio e abstracto. Aqui surge a tarefa histórica de escutar no texto aquilo que ele hoje nos diz — por outras palavras, es­ cutar aquilo que ele não disse nem podia dizer. A indisposição provocada pela «violência feita ao texto» não deve transformar-se em desculpa para nos afastarmos da tarefa hermenêutica de ouvir profundamente aquilo que está escondido por detrás do carácter explícito do texto.

Sobre o significado da aplicação ao presente Tal como as interpretações que apenas lidam com o significado explícito de um texto não fazem justiça à tarefa hermenêutica, assim também as teorias da interpretação que se satisfazem exclu­ sivamente em termos de um horizonte significativo passado são concepções errôneas do que a interpretação exige. Teorias deste gênero vêm a interpretação como sendo essencialmente uma recons­

(•) Ver KPM 181; trad. inglesa, 206.

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trução e uma restauração do passado, seguindo o c a m in h o ilui apóstolos da objectividade no século xix (como por exemplo Leopold Ranke) que imaginavam ser a compreensão histórica mm» questão de mera reconstrução de uma cpoca passada. Mas Isto assenta numa concepção errônea da dialéctica da comprceniAo Levantamos uma questão ao texto, uma questão que se coloca dentro do nosso próprio horizonte; pensar de outro modo é prcN supor absurdamente que enveredamos por uma investigação hi.strt rica sem qualquer objectivo. Temos uma razão para querermos compreender, e essa razão é de facto uma questão que se coloca ao texto. Portanto, em toda a interpretação, ocorre algo dc seme­ lhante a uma aplicação ao presente (” ). Consequentemente, a interpretação literária faz bem em não sc subordinar metodologicamente às perspectivas objectivistas da filolo­ gia e da investigação histórica, estudando os problemas com que se defrontam a teoria da interpretação teológica e jurídica. Pois tanto a hermenêutica jurídica como a teológica são obrigadas a encarar a compreensão, não apenas como uma tentativa arqueológica de pene trar num outro mundo, pelo interesse que este possa ter, mas como uma tentativa de construção de uma ponte sobre a distância que separa o texto da situação presente. Seja a transm itir um juízo seja a pregar um sermão, o momento da interpretação não é uma mera explicação do significado do texto no seu próprio mundo mas daquilo que ele significa para nós. Tanto a hermenêutica jurídica como a teológica tendem a rejeitar a ideia de que «compreendemos» um texto devido a uma qualquer çongenialidade intrínseca com o seu autor; podemos interpretar um texto bíblico ou um texto jurí­ dico e não estarmos pessoalmente de acordo com o seu autor. Com­ preendemos um texto, não com base na çongenialidade mas sim porque o texto é algo que se partilha. A base desta partilha não é estritamente pessoal, é a linguagem. Existimos na e pela linguagem, e interpretamos o nosso próprio ser pela linguagem; mesmo quando temos que estabelecer uma ponte entre duas linguagens diferentes, estamos sempre a interpretar dentro de um universo lingüístico em que o ser se afirma na linguagem. Há um outro aspecto em que os intérpretes literários podem aprender com a interpretação jurídica e teológica. Em ambas, o objectivo é deixar que o texto oriente a compreensão e torne o tema acessível. O intérprete, mais do que aplicar um método ao texto, considerando-o como um objecto em observação, está a tentar adaptar ao texto o seu próprio pensamento. Não se está a apropriar de mais um objecto para o seu armazém de conhecimcn tos; antes está a ser ele próprio possuído pelas pretensões que o

(") Ver WM, 290-95, 312-16, 322, 381.

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texto tem de o orientar. Por outras palavras, interpretar quer a von­ tade de Deus quer a Sua lei não é uma form a de dominar o tema mas de o servir. Tanto o intérprete da lei, como o intérprete da Bíblia, deverão possuir uma sensibilidade aguda à tensão entre passado e presente. Ambos deverão ter o sentimento daquilo que é aplicável e signi­ ficativo e do que é secundário e inaplicável. Proceder deste modo é realmente ultrapassar o texto, passando à questão que o originou; proceder deste modo é perguntar o que é que o texto não disse ou não podia ter dito. Visto que a tarefa da interpretação é criar uma ponte que una a tensão entre o horizonte do texto e o horizonte do intérprete, não podemos pôr em causa a importância básica de que se reveste a consciência histórica autêntica. Não é preciso recordar aos intérpretes literários americanos que a interpretação literária, porque une as distâncias no tempo, é um acto intrinsecamente histórico e necessita de uma compreensão da natureza do encontro histórico, pois a experiência hermenêutica é um encontro histórico.

Sobre a categoria do estético e concepções errôneas concomitantes A ideia, que nos veio do Iluminismo, de um «elemento estético» ou de um «elemento puram ente estético» numa obra de aríe é uma ficção reflexiva (u). Particularm ente a dimensão estética de uma obra literária não pode ser considerada separadamente do seu significado, i. e. do significado que têm as suas palavras e, por conseguinte, do seu significado «histórico». A utilização de palavras como «prazer» e «deleite» relativamente a uma obra literária não deve ser analisada como reacção ao aspecto «puramente formal» de uma obra, à sua construção e à perícia técnica da sua compo­ sição. Pelo contrário, uma reacção autêntica a um poema ou a uma obra literária verdadeiramente grandes, é uma reacção àquilo que ele diz; «o modo como diz» é de facto inseparável «daquilo que diz». A creditar que uma tal separação é possível é um erro da estética moderna, subjectificada a partir de K ant (1S), que fala erradam ente do encontro com uma obra de arte considerando apenas a perspectiva do sujeito que a percebe. Aristóteles, na sua Ética, deu-nos uma perspectiva melhor sobre o que é o prazer quando o definiu como um produto secun­ dário do funcionamento adequado de um órgão. Fez notar que

<") Ibid., 77-96, esp. 83. (" ) Ibid., 39-52.

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uma vida especificamente orientada para a aquisição dc prn/ci (■ uma vida insustentável; deveríamos ter a virtude como objectivo, e o prazer viria como um produto secundário da actividadc virtuosa Tal como na literatura, o prazer de ler é o prazer de compreender na e pela forma; não é uma resposta à form a enquanto tal. A scpa ração da forma relativamente àquilo que é dito é um acto reflexivo, uma construção conceptual que não se baseia numa dicotomizaçflo que ocorre na experiência mas antes numa concepção filosofica­ mente insustentável da experiência que separa o pensamento c a verdade do sentimento e do «prazer perceptual» da forma — como se uma configuração de sensações, nos fosse em si mesma agra­ dável. Experimentemos por exemplo pedir a alguém que não fale alemão, que oiça um poema de Goethe e que diga se o acha bonito ou feio. A separação de forma e conteúdo é mais uma ficção engana­ dora da moderna abordagem subjectiva da arte. Na experiência estética de uma obra de arte, o que é central não é o conteúdo nem a forma mas sim a coisa significada, totalmente mediada numa imagem e numa forma, num mundo com a sua dinâmica própria. No encontro estético com a poesia não separamos os materiais brutos; ao assistir a uma execução musical ou dramá­ tica, somos mais fiéis à experiência da obra enquanto obra de arte quando não diferenciamos reflexivamente a obra e a execução. Distinguir os materiais, a obra e a execução representa um aban­ donar da experiência estética. Durante a execução somos possuídos por aquilo que é dito na obra. Fugir disto e ver a execução como execução ou os aspectos materiais da obra como materiais, é trivializar o momento estético do encontro com a obra. Quando tomamos qualquer uma destas orientações, a obra de arte deixa de ser um sujeito que fala transformando-se em objecto, em objecto que é ajuizado e avaliado por processos reflexivos de pensamento. Assim, centralizarmo-nos na forma enquanto forma, considerando separadamente a «fala» da obra não é encontrar o seu lado «pura­ mente estético» mas sim afastarmo-nos do próprio momento esté­ tico. O prazer estético não é uma resposta sensível à forma mas sim ao movimento total de significado sob forma de uma obra dc arte. Falando mais explicitamente: o prazer estético é o produto secundário do encontro que temos com a verdade do ser, reve­ lado ao mundo enquanto obra de arte. Para tornar inteligível esta súbita referência à verdade na obra de arte, e ao mesmo tempo para m ostrar mais incisivamente por­ que é que a ideia de forma como «forma puramente sensível», separadamente do seu significado, é uma fabricação do pensamento reflexivo, vamos esclarecer o que faz com que uma obra dc arte seja «arte». Não é a perícia técnica nem o apelo a uma harmonia puramente formal como fim em si mesma; uma obra dc arte tem 239

o seu ser como arte ao organizar o mundo enquanto forma material. Isto não é negar o aspecto formal da arte; pelo contrário, a forma é central na arte, mas de um modo que os «formalistas» na maior parte dos casos não percebem. Não é um comprazimento na form a mostrando um mundo diferenciado dela que faz com que a obra de arte seja verdadeiramente arte. O mundo que em arte se conhece através da forma, está tão ligado aos materiais que o pensamento não pode diferenciar-se dele nem o «estético» se pode diferenciar dos elementos «não estéticos» (13). Como Heidegger esclarece em Der Ursprung des Kunstwerkes, um templo grego cria «um espaço aberto no ser» de modo a que nos podemos colocar à luz deste esclarecimento (“ ). Traduzindo o tema nos termos ontológicos de Heidegger, assim acontece com toda a obra de arte verdadeira: através da sua forma ela cria um mundo em que o ser se situa. O ser é encontrado na compreensão, não como uma entidade dis­ creta mas como parte de uma unidade, em relação com o horizonte da compreensão ou com aquilo a que podemos chamar «mundo». Em termos fenomenológicos, a forma não pode ser vista como expressão de uma ideia anterior à forma; forma e ideia estão juntas num a unidade indivisível, como mundo; fora do mundo nenhuma delas tem uma verdadeira existência. O mundo é a uni­ dade que aparece na obra de arte, e a obra de arte só é arte porque faz com que o mundo seja. A arte, portanto, não é uma questão de conhecermos através das percepções sensíveis, mas sim de compreender. Quando encon­ tramos uma obra de arte verdadeiramente grande, alargamos o horizonte do nosso mundo, a nossa maneira de ver o mundo, a nossa autocompreensão; vemos «a uma luz diferente», por vezes como se fosse a primeira vez, mas sempre de um modo mais ligado à experiência. Isto mostra que o mundo na obra de arte não se separa do nosso próprio mundo; é-lhe contíguo e ilumina a auto­ compreensão, mesmo quando o compreendemos. No entanto, com uma grande obra, não enveredamos por um universo estranho nem saímos do tempo e da história; não separamos a compreensão estética de uma compreensão total de modo a abandonar o «não estético» e a entrar no domínio do «estético». Antes nos tornamos mais próximos de nós mesmos; quando compreendemos uma obra literária verdadeiramente grande, arrastamos connosco tudo aquilo que temos e somos. Compreender isto e fundir connosco o mundo, em toda a sua plenitude, significa colocar na balança a nossa auto­ compreensão. Desapareceu o mito de que o intérprete interroga um mero objecto dotado de um a harmonia agradável aos sentidos;

(,s) Ibid., 88.

(**) Ho, 7-68; UK, 7-101.

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a obra de arte levanta-nos uma questão, a questão que lhe dru origem. Porque a experiência de uma obra de arte é englohnnlr e ocorre na unidade e continuidade da autocompreensão, nflo t testada pelas normas da harmonia formal mas pela verdade. A ailr revela o ser, desoculta «o modo como as coisas são» — a verdade Esta é a razão pela qual, quando penetramos no mundo de uma grande obra de arte, não deixamos em casa, ao seguro c sem risco» as normas da nossa própria autocompreensão; voltamos «para casa». Dizemos numa explosão de reconhecimento ontológico: Na verdade é assim! o artista disse aquilo que é. O artista não esconjurou uma encantada terra de ninguém mas antes irrompeu de um nível mais fundo, do mundo da experiência e da autocompreensão cm que vivemos. A universalidade da arte é portanto, uma universalidade ontológica; toda a arte verdadeira revela o ser. A transformação num a forma, efectuada pelo artista, não é uma expressão da sua subjectividade; não é um «sentimento» que se transformou cm «forma». A transform ação é realmente a verdade, a verdade do ser, totalmente transformada na unidade da obra de arte. A legitimação da arte não está no facto de nos dar um prazer estético mas sim no facto de revelar o ser. Chegou o tempo de renunciarmos ao isolamento que tem sido artificialmente atribuído ao «fenômeno estético» pela sua identifica­ ção com a forma sensível na arte e pelas distinções feitas entre forma e conteúdo, distinções que não têm qualquer parte na fenomenologia do encontro estético. Estas distinções não têm servido a causa da arte, antes provaram, nos últimos cento e cinqüenta anos, que lhe eram adversas. Com o isolamento do estético, vimos o absurdo da «arte pela arte», vimos como se perdeu a pretensão de legitimar uma arte como verdade, como se perdeu a consciência histórica na compreensão da arte, como se perdeu o lugar do artista na socie­ dade e posteriormente, como se perdeu o lugar da própria arte na sociedade. Em literatura somos confrontados com a situação de que, se a poesia é para agradar e deleitar, há muitos alunos que preferem outros prazeres. E no prazer, tal como no gosto, a discussão não é possível — a não ser que fora do prazer haja um padrão pelo qual o próprio prazer seja avaliado. Mas a nossa estética, centrada no sujeito não encontra na arte uma legitimação objectiva. Chegou o tempo de renunciarmos a aceitar inconscientemente a subjectivi­ dade humana como o nosso ponto de referência (o que é pressuposto para todo o pensamento circunscrito ao esquema sujeito-objecto), chegou o tempo de suspender as perguntas de como é que a arte nos afecta, chegou o tempo de partirmos do modo de ser da obra de arte. O modo de ser da obra de arte é a revelação — revelação de um mundo, um evento em que o ser se afirma. A arte legitima ic porque revela o ser à nossa autocompreensão, dc modo qur o nosso próprio mundo, o horizonte em que vivemos c nos movlmni 241

tamos, onde temos toda a nossa existência, é ampliado, dá-se-lhe uma definição mais lata. A beleza é verdade, a verdade do ser que se nos revela na arte (” ). Vemos agora que a experiência que temos no encontro com uma obra de arte, é a revelação de um mundo; isto é especialmente verdade de uma obra de arte no domínio da linguagem. Mas tornou-se-nos necessário alertar aqui para o fenômeno estético no domínio da arte não lingüística, para tornar explícito o fundamento de uma rejeição do «estético puro», isolado do ímpeto glogal de uma obra de arte, e para clarificar o conteúdo ontológico da arte, i. e., o seu valor de verdade. A esta concepção do lugar inseparável do estético, na expe­ riência global do que uma obra de arte diz, podemos agora acres­ centar tudo o que foi dito sobre a interrogação, sobre a experiência, a compreensão, a linguagem e a consciência histórica de modo a chegarmos a uma concepção unificada da' experiência hermenêu­ tica. Nesta concepção, podemos ver o que a interpretação literária inclui. Como recapitulação do que até aqui foi dito, e em parte para sobre isso construir algo, formulei uma série de trinta pro­ posições ou teses relativas à interpretação literária ou à experiência hermenêutica. Coloquei-as no capítulo seguinte.

(15) A razão porque o significado da proposição «a beleza é verdade» se mantém obscuro e mesmo totalmente oculto, está no facto de que, como Heidegger mostrou, nos agarramos a uma definição de verdade centrada subjec­ tivamente (ironicamente) como sendo correspondência ou concordância — i. e. a verdade é meramente definida como uma proposição que se pode verificar.

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T R IN TA TESES SOBRE INTERPRETA ÇÃO DA EX PER IÊN C IA HERM ENÊUTICA

1) A experiência hermenêutica (o encontro com uma obra de arte literária) é intrinsecamente histórica. Mas devido às concepções errôneas dominantes que temos sobre história, sobre compreensão, sobre linguagem e sobre o estatuto literário da obra de arte, 6 difícil compreendermos o que é que isso significa. Esta falha é um sintoma nítido da actual falta de consciência histórica. 2) A experiência hermenêutica é intrinsecamente lingüística. Não nos é p o s s ív e l compreender a importância que isto tem en­ quanto não concebermos a linguagem circunscrita ao horizonte da «linguisticidade», ou seja, não como um instrumento de uma cons­ ciência manipuladora mas como um meio pelo qual um mundo se coloca face a nós e dentro de nós. 3) A experiência hermenêutica é dialéctica. Os frutos deste facto só podem colher-se quando a experiência for concebida não como consciência que percebe objectos, mas como compreensão que encontra uma negatividade que alarga e illumina a autocom­ preensão. 4) A experiência hermenêutica é ontológica. Isto não se torna evidente enquanto não atendermos à função ontológica da com­ preensão e da linguagem; tanto compreensão como linguagem são ontológicas pois revelam o ser das coisas. Mas não revelam o ser como se ele fosse um objecto face a uma subjectividade; antes iluminam o ser em que nos situamos. Nem o ser que se revela é meramente o ser de um objecto mas sim o nosso próprio scr, isto é, «o que ele pretende ser.» 5) A experiência hermenêutica é um evento — um «evento lin guísticot). A literatura é despojada do seu real dinamismo c do seu 243

poder de falar quando a concebemos nas categorias estáticas do conhecimento conceptual. Como experiência de um evento e não como mero saber conceptual, o encontro com o ser de uma obra não é estático nem ideacional, não se processa fora do tempo e da temporalidade; é a verdade que acontece, que emerge de um estado oculto, mas que se esquiva a toda a tentativa que pretenda reduzi-la a conceitos e à objectividade. 6) A experiência hermenêutica é «objectiva». Não compreen­ deremos esta afirmação enquanto não recusarmos a antiga definição de objectividade, bem como a própria definição que hoje predomina, a definição «científica». Esta concepção derivou da luta que o Iluminismo empreendeu contra a superstição, contra a beatice e contra a aceitação ingênua da tradição. De acordo com ela, a objectividade é o meio pelo qual obtemos um conhecimento preciso, claro, con­ ceptual, não influenciado por preconceitos subjectivos. Este tipo de conhecimento obtém-se se nos limitarmos a aceitar aquilo que a «luz natural» da razão pode «verificar» por meio da experiência. A razão verificadora torna-se o tribunal de última instância, e toda a verdade é validada pelas operações reflexivas da mente, ou seja pela subjectividade a que nos referimos quando dizemos que a expe­ riência hermenêutica é «objectiva»; não pretendemos uma verdade científica mas uma objectividade verdadeiramente «histórica». Esta objectividade refere-se ao facto de que o ser que aparece na lingua­ gem e que se afirma na obra literária não é produto de uma acti­ vidade reflexiva da mente. O que aparece também não é uma enti­ dade discreta, imaginada para emitir um significado de certo modo fora do tempo e da história. Porque quando nos defrontamos com as resistências de um mundo que de facto não modelamos, não formamos nem controlamos, estamos circunscritos a formas que a história nos legou e conformamo-nos com elas, ou seja, estamos circunscritos a uma tradição de modos de ver o mundo e de o compreender. O term o adequado para designar a relação do homem com a linguagem, com a história e o mundo não é que os «usa» mas sim que «participa» neles; não moldamos a linguagem, a história ou o nosso «mundo» de um modo pessoal; adaptamos a eles a nossa actividade lingüística. A linguagem de facto não é um instrumento mas sim o modo como o ser aparece. Quando queremos transm itir o ser de uma situação, não imaginamos uma linguagem que se lhe adapte mas antes encontramos a linguagem adequada à situação. Assim, o que encontra expressão na linguagem não é a nossa «reflexividade» mas a própria situação: as palavras não funcionam essen­ cialmente para se referirem a esta subjectividade; pelo contrário, referem-se à situação. O fundamento da objectividade não está na subjectividade daquele que fala mas sim na realidade que se exprime 244

na e pela linguagem. É nesta objectividade que a experiência hei menêutica deverá encontrar o seu fundamento. 7) A experiência hermenêutica deve ser conduzida pelo texto. O texto não se identifica totalmente com um parceiro num diálogo porque temos que o ajudar a falar, necessidade essa que acarreta dificuldades peculiares para uma exposição hermenêutica genuínu: a necessidade de sentir a exigência objectiva do texto, naquilo que ele tem de plenamente outro, sem ao mesmo tempo fazer dele um mero objecto para a nossa subjectividade. Temos que encarar a tarefa da interpretação, não essencialmente como análise — pois imediatamente transform a o texto em objecto — mas como «com­ preensão». A compreensão tem a sua amplitude máxima quando 6 concebida como algo que pode ser captado pelo ser, mais do que como uma consciência auto-suficiente. Um «acto interpretativo» não deve ser uma apreensão compulsiva, um a «violentação» feita ao texto, mas sim um a união amorosa, que afirma as potencialiTlao Tê ChingÇ) um a conquista a partir de baixo. O encontro her­ menêutico. A rendição do intérprete ao texto, não pode portanto ser uma rendição absoluta, mas antes, tal como a feminilidade referida em Tha Tê ChingC) um a conquista a partir de baixo. O encontro her­ menêutico não é uma negação do nosso próprio horizonte (porque temos que ver através dele e nunca poderemos ver sem ele) mas uma vontade de o arriscar abrindo-nos livremente. Paul Tillich define amor como a superação da separação O ; a união do texto e do intérprete supera a alienação histórica do texto, uma união que se torna possível devido a um fundam ento comum no ser (isto é, na linguagem e na história). Na fusão de horizontes que é o ponto fulcral da experiência hermenêutica, há alguns elementos do nosso horizonte que são negados e outros que se afirmam; há elementos no horizonte do texto que recuam e há outros que avançam (por exemplo a desmitologização). Neste sentido, portanto, toda a expe­ riência herm enêutica verdadeira é um a criação nova, uma nova revelação do ser; coloca-se num a relação firme com o presente, e historicamente não poderia ter ocorrido antes. É esta a «participa­ ção» do homem nos processos sempre novos e revigorantes que o ser tem de se afirm ar. 8) A experiência hermenêutica compreende o que é dito d luz do presente. Um a outra maneira de dizer a mesma coisa é a do que toda a interpretação verdadeira implica uma «aplicação» ao C) Ver Arthur Waley, The Way and Its Power; A Study of lhe *Thw> T i Ching* and Its Place in Chinese Thought, esp. os poemas 6 e 2*. P) Ver a sua obra Love. Power and Justice. 245

presente. Não basta dizer o que um poema significa gramaticalmente à luz do contexto do seu próprio horizonte histórico. A interpre­ tação não é uma tarefa taxonómica de reconstrução e restauração filológica (se é que isso é possível). A interpretação recorre ao intér­ prete para que este torne explícito o significado que uma obra tem nos nossos dias; a interpretação obriga-nos a construir uma ponte que una a distância histórica entre o nosso horizonte e o horizonte do texto. Tanto na interpretação teológica como na jurídica, o mo­ mento de aplicação é explicitamente necessário e mesmo central. A interpretação literária poderia aprender algo ao estudar a luta que se processa em teologia e em direito, no sentido de ultrapas­ sarem o desafio da alienação histórica; a teologia e o direito pode­ riam fornecer modelos úteis de uma situação hermenêutica, que poderiam reconduzir a interpretação literária à consciência histó­ rica que perdeu. 9) A experiência hermenêutica é a revelação da verdade. Hoje o intérprete não pode perceber a natureza do que aqui se entende por — revelação da verdade, sem que haja uma nova fundamentação na objectividade (acima descrita) nem uma nova definição de ver­ dade. A verdade não pode ser entendida como correspondência de um juízo com um «facto»; a verdade é a emergência dinâmica do ser à luz da sua manifestação (3). A verdade nunca é total nem totalm ente destituída de ambigüidade; a emergência no sentido da «desocultação», é sobretudo a ocultação simultânea da verdade em toda a sua plenitude inesgotável. A verdade fundamenta-se na nega­ tividade; esta é a razão pela qual a descoberta da verdade se pro­ cessa melhor no interior de uma dialéctica onde o poder da nega­ tividade possa actuar. A emergência da verdade na experiência herm enêufica aparece nesse encontro com a negatividade que é intrín­ seca à experiência; nesse caso a experiência surge como «momento estético» ou como «evento lingüístico». A verdade não é conceptual, não é facto — acontece. 10) A estética tem que ser absorvida pela hermenêutica. O «mo­ mento estético» não pode ser definido em termos de prazer sensível formal mas em termos daquilo que faz da obra de arte verdadei­ ram ente «arte» — o facto de que numa forma determinada há um mundo que tem uma possibilidade permanente de se afirmar, há um lugar no ser que se torna acessível, há uma verdade do ser que se torna manifesta. Aquilo a que chamamos o momento estético não tem (fenomenologicamente falando) uma existência separada da dinâmica da experiência hermenêutica; tentar separar o elemento

(») Ver PI. cm PL-BH.

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estético da experiência hermenêutica origina concepções m o n rir. e problemas artificiais. Toda a distinção entre o «estético» e i> «ntlo estético» repousa em distinções não válidas entre forma c contriUIu e representa um afastamento do carácter verdadeiramente cxpo riencial do momento estético. O momento estético não pode .sei entendido separadamente de um encontro interpretativo total.

Superando o esquema sujeito-objecto 11) O repto mais importante actualmente feito à literatura americana contemporânea é o de superar o esquema sujeito-objecto (pelo qual a obra tende a ser mantida à distância do intérprete, como sendo um objecto de análise). A fenomenologia vai ao encontro deste repto. A hermenêutica alemã de Heidegger e de Gadamer é a estrada que aí conduz. A crítica literária fenomenológica francesa mostra-nos um outro caminho (Sartre, Blanchot, Richard, Bachclard) (') tal como a filosofia fenomenológica francesa (Ricoeur, Dufrenne, Gusdorf, Merleau-Ponty (5). Abrem-se muitas estradas.

Sobre a autonomia e o estatuto objectivo da obra de arte 12) A Nova Crítica tem toda a razão quanto à autonomia da obra de arte literária; procurar numa obra a subjectividade do seu autor é justamente considerado como uma falácia (uma falácia intencional) e o testemunho de um autor quanto às suas intenções é correctamente entendido como uma evidência inadmissível. Por exemplo, não estamos particularmente interessados nas intenções ou nos sentimentos de Milton sobre o arcanjo que se precipita em chamas de um céu etéreo; é antes um modo de ver Satanás que se afirma no texto. O que nos interessa «é aquilo mesmo a que foi dito» e não as intenções ou a personalidade de Milton. No texto há uma «realidade» que se afirma. Nas cenas do Éden em Paraíso Perdido há uma realidade que se afirma; não estamos muito interessados se Milton professava realmente esses sentimentos nem nos importa que Adão e Eva «na realidade» os tivessem, pois neles se exprime algo mais fundo e mais universal: as possibilidades que residem no ser, que num momento agora se revelam, cm toda a sua verdade, não num a verdade científica, mas de qualquer modo, numa verdade. 0) Ver Neal Oxenhandler, Ontological Criticism in America and Prance, MLR LV (1960), 17-23. (’) Há traduções inglesas destas obras na Northwestern Unlvcrjilty PfNi.

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Sobre método e métodos 13) O método é um a tentativa de avaliação de controle por parte do intérprete; é o oposto de nos deixarmos guiar pelo fenô­ meno. A «abertura» da experiência — que altera o próprio intér­ prete em favor do texto — é a antítese do método. Assim o método é de facto um a forma de dogmatismo, separando o intérprete da obra, colocando-se entre esta e ele, e impedindo-o de experimentar a obra em toda a sua plenitude. A visão analítica é cega à expe­ riência; é uma cegueira analítica. 14) O modo de pensar tecnológico moderno e a vontade de poder que está na sua base leva-nos a pensar em termos de «domí­ nio do tema» e de «ataque» ao assunto. Em literatura, vemos este enfoque tecnológico na procura de um tipo de conhecimento do «objecto» — o texto — que nos dê conhecimentos ou controle sobre este. Estas teorias da interpretação como violentação, se é que as podemos designar deste modo, são uma abordagem tão egocêntrica, dogmática e fechada que a obra se torna frígida. A defesa dos «prazeres» da literatura nada deve às frias análises de estrutura e de padrão. 15) A form a nunca deveria ser o ponto de partida de uma interpretação literária, nem o m om ento da form a deveria ser con­ siderado à parte e designado como o elemento verdadeiramente «estético». Pelo contrário, acreditar que a forma é separável do conteúdo e /o u da unidade significativa global da obra é uma con­ cepção errada, baseada em premissas filosóficas erradas; não há uma estética pura tal como não há uma arte pela arte. A separação da ideia ou do tema, relativamente à sua forma material também é uma actividade puramente reflexiva, pois não tem fundamento no encontro experiencial que cada um de nós tem com a própria obra. Por conseguinte, não podemos sustentar que o elemento esté­ tico de uma obra pertence à sua forma, considerada separadamente dos seus elementos não estéticos; qualquer separação do estético e do não estético se transform a num jogo de palavras baseado em definições errôneas, pois o momento estético é uma unidade em que o mundo se afirma. O conteúdo conceptual ou significativo desse mundo não pode separar-se da forma sensível da obra, e de facto não se separa dela no momento do encontro estético. Visto que a separação da form a e do conteúdo não é esteticamente válida, visto que é um produto do pensamento reflexivo posterior à própria expe­ riência, começar com considerações sobre a forma significa que mesmo no seu início a interpretação literária se afastou da unidade c globalidade do momento estético. 248

16) O ponto de partida para a interpretação literária triA quf ser o evento lingüístico da experiência da própria obra — i. e. aquilo q u e a obra diz. É o poder que a obra literária tem de dizer e nft» a sua forma, que é fundamento do nosso encontro significativo com ela; este não é algo separado da forma mas antes fala na fornu» e através dela. A unidade interna da forma e daquilo que é dito é a base da unidade interna da verdade e da experiência estética A fala realizada por uma obra literária é uma revelação do ser; o brilho que irradia é o poder de verdade do ser; o artista tem o poder de utilizar a luz interior que os materiais possuem (por exem­ plo, a textura do som, a dureza do metal e o seu brilho, e o poder da côr) para afirm ar a verdade do ser. Isto é o que Heidegger quer dizer quando afirm a, como Hõlderlin, que o homem habita «poe­ ticamente» neste mundo (*). 17) O verdadeiro amor à literatura não é e nunca foi o prazer da pura forma. A m ar a literatura é responder ao poder de dizer que a literatura possui. Tal como enfeitar um cão para produzir «deleite estético» pode ser um acto de egoísmo sem qualquer rela­ ção com o am or que se possa ter ao animal, também a visão da literatura como um mero jogo ou como passatempo não nos mostra uma verdadeira compreensão do que é a literatura. A tendência dominadora que busca insistentemente um domínio conceptual tam ­ bém não é amor, mas sim protecção e asfixia. 18) Não é o intérprete que capta o significado do texto; o signi­ ficado do texto é que possui o intérprete. Quando assistimos a uma peça ou a um jogo, quando lemos um romance, não nos colocamos acima deles como um sujeito que contempla um objecto; somos captados pelo movimento interno da coisa que se desdobra — somos possuídos. Isto é um fenômeno hermenêutico que uma abordagem tecnológica da literatura em grande parte ignora; interpretamos erradam ente a situação hermenêutica se nos vemos enquanto senho­ res e manipuladores da situação. Pelo contrário, somos participantes, e mesmo assim não o somos totalm ente, visto que não podemos ingressar na situação e mudá-la, visto que não temos o poder de alterar a fixidez de um texto. 19) H á abordagens da arte que realçam a perícia técnica, mas é preciso uma grande perícia para fazer um sapato, para carpinteirar ou para fabricar qualquer utensílio. Uma obra de arte não é um utensílio. O deleite artístico não é apenas o prazer sensível que deriva da forma; uma obra de arte não é um objecto aprazível barato. É verdade que implica perícia técnica; implica prazer sen-

(•) Ver Hõlderlin und das Wesen der Dichtung em EHD; EB 270-91.

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sívcl; mas seria um reducionismo ingênuo tomarmos estes aspectos como pontos de partida ou como aspectos centrais da arte. A arte 6 arte quando produz um mundo que se afirma face a nós; e a arte verdadeiramente grande tem uma tal plenitude de verdade do ser que verificamos que o nosso horizonte é (em parte) negado surgindo uma nova compreensão, que apenas pode ser entendida em termos da categoria da «experiência». Encontrar uma grande obra de arte é sempre uma experiência, no sentido mais fundo da palavra. 20) Portanto ler uma obra não é adquirir conhecimento con­ ceptual por meio da observação ou da reflexão; é uma «experiên­ cia», Uma ruptura e um alargamento do nosso antigo modo de ver as coisas. N ão foi o intérprete que manipulou a obra, pois esta mantém-se fixa; foi antes a obra que o marcou, mudando-o de tal modo que ele nunca mais pôde recuperar a inocência que perdeu com a experiência. 21) Os métodos actuais de tentar «compreender» uma obra literária tendem a actuar com definições conceptuais de compreen­ são que não são verdadeiras para a experiência hermenêutica. Dema­ siadas vezes lidam com fórmulas já feitas, considerando-as antecipa­ damente: antecipam a ironia e o paradoxo, ou imagens recorrentes, ou situações arquetípicas. Mais do que escutar a obra, examinam-na. Ora a interpretação literária não deveria ter as características de uma análise aristotélica formal, com 'todas as suas categorias pre­ viamente marcadas; o processo de compreendermos uma obra lite­ rária assemelha-se mais a um diálogo socrático por círculos dialécticos, avançando no tema através de perguntas e de respostas. Há uma grande diferença entre a pergunta feita por um analista que apenas procura uma resposta, seguro da sua posição, e a verdadeira busca que resulta de um autoquestionamento, da acei­ tação da nossa própria incerteza. Este interrogar diz: Não será que...? Já não é um mero questionar do «objecto», mas do «sujeito» (para colocarmos o assunto numa terminologia de sujeito-objecto). 22) Um método só é validado se virmos que resulta. Ora se o modo de ser de uma obra de arte — como evento que revela um mundo — regride e escapa aos actuais métodos, então, mesmo na base científica da sua incomensurabilidade com a natureza do fenô­ meno, os resultados do método têm um valor discutível. Perdem a sua validade, mesmo quando considerados numa base científica. 23) Compreender um texto não é simplesmente bombardeá-lo com questões mas sim compreender a questão que ele levanta a quem o lè. É compreender a questão que está por detrás do texto, ii questão que deu origem ao texto. A interpretação literária precisa 250

de desenvolver a dinâmica e a arte de ouvir, de escutar l*ici Inii de desenvolver uma abertura para a negatividade criativa, para aprender algo que não poderia antecipar ou prever.

A necessidade de uma consciência histórica na interpretação literária 24) Um problema crítico da interpretação literária americana dos nossos dias é a falta de consciência histórica e, conseqüente mente, a incapacidade de reconhecer a historicidade essencial da literatura. Na América, há um número considerável de professores de literatura, provavelmente a maioria, que podem ser classificados quer como «formalistas» quer como «arquéologos» Os primeiros são inconscientemente dominados pelos erros de uma estética subjectivizada e acreditam que a essência do momento estético do encontro com a obra de arte é fundamentalmente uma questão dc forma. Por esta razão, o encontro com a obra literária é encarado sob a forma de categorias estáticas, atemporais, perdendo-se o carác­ ter «histórico» da literatura. Os arqueólogos não são tentados pelo afã de transform ar a interpretação da literatura numa análise formal, mas tomam como objectivo compreender a obra nos seus próprios termos e nos termos do seu tempo, de modo que um estudioso de literatura do século xvm encara a sua tarefa como se vivesse no século xvm tanto quanto possível. Imagina que esse século pode ter mais interesse do que o presente, pois hoje já não estão tão em evidência os cafés e a atmosfera que eles simbo­ lizam. Mas nem o interesse que o arqueólogo tem na exploração do passado, nem a redução da literatura à sua dinâmica formal mostra qualquer tipo de autêntica consciência histórica. Pelo contrário, são sintomas da actual ausência de compreensão do que é a história. 25) A literatura é intrinsecamente histórica. Para compreen­ der uma obra literária, não usamos utilizamos predominantemente categorias formais ou científicas; antes, na estrutura-prévia da nossa compreensão, temos que nos referir à visão histórica que formámos de nós e do nosso mundo. A configuração das nossas intenções, preconceitos e modos de ver — tudo isso nos foi legado pelo passado. Assim, movemo-nos e existimos no mundo historicamente formado da nossa compreensão; quando encontramos uma obra de literatura, ela apresenta-nos um outro «mundo». É um mundo que não é abso­ lutamente descontínuo com o mundo do leitor; pelo contrário, expe rimentá-lo sinceramente é aprofundar a nossa autocompreensão Completa e aum enta o nosso próprio conhecimento, historicamente formado; ler uma grande obra de literatura é uma experiência vet dadeiramente «histórica». 251

«Experiência» é uma palavra significativa pois a experiência é em si mesma histórica. É o modo como a nossa compreensão do m undo adquire uma forma. Tal como as experiências da vida quo­ tidiana nos ensinam algo que podíamos ter esquecido ou que antes ignorávamos, assim o encontro com uma obra literária é verdadei­ ram ente «experiência» tornando-se num a parte da nossa própria história, um a parte da corrente de compreensão que a tradição nos legou, na qual vivemos e nos movimentamos. 26) A tarefa da interpretação é pois construir uma ponte sobre a distância histórica, Quando interpreta um texto do passado, o intérprete não esvazia a sua mente nem abandona absolutamente o presente; leva-o consigo e utiliza-o para compreender, no encon­ tro dialéctico do seu horizonte com o horizonte da obra literária. A ideia da reconstrução histórica, ou de conhecer o passado exclu­ sivamente nos seus próprios termos, é um mito romântico, uma impossibilidade tal como a ideia de uma «interpretação sem pres­ supostos». Não existe tal coisa. A interpretação literária, tal como a teológica e a jurídica, têm que se relacionar com o presente, sob pena de m orrer. Uma literatura que não possa relacionar-se connosco, que nos situamos no presente, morreu. A tarefa da inter­ pretação pode por vezes ser a de tom ar aquilo que parece morto e de m ostrar a relação que tem com o presente, i. e., o actual hori­ zonte de expectativas e o mundo actual de autocompreensão. A desmitologização (que não é dissolver o mito mas compreender que temos que ver o que é que no mito é significativo) deveria ser, em princípio, a tarefa da interpretação literária. Só quando os intér­ pretes hoje adquirem um a consciência histórica, e portanto alcan­ çam os problemas históricos da interpretação literária, só nessa altura verão o que significa desmitologizar, no campo da literatura. 27) Hoje a compreensão histórica e a consciência histórica devem chegar-nos sob forma de crítica fenomenológica à visão cien­ tífica. A base desta crítica é a análise da compreensão prévia, que revela a historicidade da nossa compreensão e do nosso mundo. E um resultado dominante será a descoberta da temporalidade. Compreender a literatura ou qualquer obra de arte situa-se na ordem da temporalidade. Isto é, encontramos a obra no presente, mas também com base na recordação (a nossa compreensão histo­ ricamente formada) e na antecipação (o modo como a nossa com­ preensão projecta o futuro). A compreensão não é um conheci­ mento histórico fora do tempo; situa-se num lugar específico no tempo e no espaço — na história. A sua interpretação revestir-se-á de características diferentes à medida que aparece ao leitor, agora, nesta hora e neste lugar. 252

28) Compreender uma obra de literatura, nüo pode pot* scr efectuado sob form a das categorias espaciais, estáticas c atcmporuU do conhecimento conceptual, pois tem as características dc um evento (i. e. história). O significado de uma obra literária d dinA mico, temporal, pessoal. No conhecimento conceptual, só está ver dadeiramente implicada uma parte da nossa mente, mas na com­ preensão literária a nossa autocompreensão tem que entrar cm jogo. A obra dirige-se-nos enquanto pessoas que somos, caso con­ trário, o encontro com ela não teve qualquer interesse. Resumindo, a literatura não é conhecimento conceptual mas experiência. 29) A ciência e o conhecimento conceptual caminham a par; a experiência e a história caminham a par; a interpretação literária tem que se consciencializar de que pertence a este último domínio. Isto não significa que rejeitemos o conhecimento conceptual mas que temos que o ultrapassar e englobar. 30) Hoje a tarefa da interpretação, é libertar-se da objectivi­ dade científica e da maneira como o cientista vê as coisas, é recupe­ rar o sentido da historicidade da existência. Estamos tão obcecados com a perspectiva do pensamento tecnológico que só de um modo disperso temos consciência da nossa historicidade. Aproximamo-nos do carácter histórico da interpretação quando reconhecemos que nenhuma interpretação é «para todo o sempre» a «interpretação certa»; todas as épocas reinterpretam Platão, Dante, Shakespeare, M ilton e todos os grandes espíritos da nossa herança. Intuímos este facto nas tentativas que empreendemos quanto à arte e à literatura contemporâneas. Não podemos saber o «veredicto da história» sobre John Barth, John Updike e James Baldwin maugrado as nossas recensões e conferências. De facto, o veredicto sobre Hemingway, Faulkner e T. S. Eliot está longe de ser um veredicto final. Tornamo-nos conscientes da historicidade quando exigimos algo que ultrapasse a objectividade falsa do teórico e do científico, do visualizável e do matemático — na verdade que ultra­ passe a realidade meramente mecânica, estática e puramente ideacional que se coloca fora da história e não implica a nossa auto­ compreensão. Chegamos ao histórico quando lutamos por um «conhecimento pessoal» Ç), impacientes com a busca frenética da ciência que procura as origens, os fundamentos causais, os antece­ dentes neurológicos, e quando lutamos por um regresso à riqueza e complexidade de uma consciência concreta na interpretação litr rária (*)• Intuímos a historicidade da existência quando justapomos 0 ) Michael Polanyi, Personal Knowledge. Ò) Maurice Natanson, Phenomenology and lhe Theory oj Llltraturr, *m Literature. Philosophy, and the Social Sciences, pp. 79-100.

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o mundo limpo e nítido dos conceitos científicos com o mundo de conflito, de ambigüidade e de sofrimento em que vivemos o nosso quotidiano, pois a «experiência vivida» é histórica na sua estrutura. A linguagem é histórica — é o repositório do modo de ver de toda a nossa cultura. Resumindo, a própria interpretação é histórica, e se tentarm os fazer dela qualquer outra coisa acrescentando-lhe ou tirando-lhe algo, empobrecemos a interpretação e empobrecemo-nos a nós mesmos.

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LISTA DE ABREVIATURAS LIVROS AAM G D Dl DT EB EHD F H G G&V GGH K GS H H&K HA M G HE HH Ho HPT IIN T IM KPM L NH PhWD PL-BH SZ TG1 TPhT

Betti. Allgemeine Auslegungslehre ais M ethodik der Geisteswissenschaften Bollnow, Dilthey: Eine Einführung in seine Philosophie Ricoeur, De Vinterprétation Heidegger, Discourse on Thinking Heidegger, Existense and Being Heidegger, Erlàuterungen zu Hôlderlins Dichtung Fuchs, H ermeneutik Heidegger, Gelassenheit Bultmann, Glanben und Verstehen Ast, Grundlinien der Grammatik, Hermeneutik und K ritik Dilthey, Gesammelte Schriften Schleiermacher, Hermeneutik, ed. Heinz Kinimerle Schleiermacher, H erm eneutik und K ritik, ed. Friedrich Lücke Betti, Die Herm eneutik ais allgemeine M ethodik der Geisteswissenschaften Bultmann, History and Eschatology History and Hermeneutic, ed. Robert W. Funk and Gerhard Ebeling Heidegger, Holzwege Fuchs, Zum hermeneutischen Problem in der Theologie Ernesti, Instituto lnterpretis N ovi Testamenti Heidegger, A n Introduction to Metaphysics Heidegger, Kant und das Problem der Metaphysik Bollnow, Die Lebensphilosophie The New Hermeneutic, ed. James M. Robinson and John B. Cobb, Jr. Hodges, The Philosophy o f Wilhelm Dilthey Heidegger, Platon Lehre von der Wahrhei: Mil einem Brief über den "H umanismus" Heidegger, Sein und Zeit Betti, Teoria generale delia interpretazione Richardson, Heidegger: Through Phenomentilogy to Thought 255

UK US V VA VEA V II WF WM

Heidegger, Der Ursprung des Kunstwerkes, ed. H.-G. Gadam er Heidegger, Das Verstehen Wach, Das Verstehen Heidegger, Vortrage und A ufsãtze Wolf, Vorlesung über die Enzyklopàdie der A l tertum s W issenschaft Hirsch, Validity in Inlerpretation Ebeling, Word and Faith Gadamer, Wahrheit und Methode REVISTAS, DICIONÁRIOS E ENCICLOPÉDIAS

ERE GEL IS N JA A R M&W M LR OED OL PhR RGG RM RPTK TD NT YFS ZThK

Encyclopedia o f Religion and Ethics Greek-English Lexikon, ed. Liddell and Scott Illinois Speech News Journal o f the American Academ y o f Religion M an and World M odem Language Review O xford English Dictionary Orbis Litterarum Philosophische Rundschau Die Religion in Geschinchte und Gegenwar, 3.* ed. Review o f Metaphysics Realenzyklopádie fü r protestantische Theologie und Kirche, 3.* ed. Theological Dictionary o f the New Testament, ed. G. Kittel Yale French Studies Zeitschrift fü r Theologie und Kirche

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BIBLIOGRAFIA

A presente bibliografia está dividida em três secções. A secção A contém artigos e livros da autoria dos quatro grandes teóricos da hermenêutica abordados nesta obra, e sobre eles; contém tam ­ bém algumas obras sobre a teoria hermenêutica em geral, muitas das quais foram citadas em rodapé. A seçção B inclui artigos e livros na área da hermenêutica teológica, e algumas obras de Ebeling, Fuchs, Robinson e outros autores identificados com a Nova Her­ menêutica. A secção C contém artigos e livros citados no texto mas que não entraram nas categorias anteriores; mais particular­ mente faz uma listagem de títulos que o autor encontrou e que parecem oferecer perspectivas significativas para uma teorização sobre a natureza geral da interpretação. Não se fez qualquer tentativa para aqui englobarmos as muitas obras .secundárias que há disponíveis sobre os quatro teóricos. Os bibliófilos poderão orientar-se para a recente bibliografia de Ticc sobre a literatura de Schleiermacher; é possível encontrar uma lista de obras secundárias sobre Dilthey, em Müller-Vollmer; e sobre Heidegger, veja-se Lübbe, Schneeburger, e Macomber. Felizmente que muitos dos artigos e das comunicações dispersos de Gadamer, acabaram de ser publicados nos seus Kleine Schriflen; isto tornou desnecessária a elaboração de uma lista, embora alguns dos que não aparecem nos Kleine Schriften tenham sido aqui citados para que se tenha uma ideia de outras publicações de Gadamer. Uma bibliografia ampla e sistemática sobre hermenêutica aparecerá nos finais de 1968, da autoria de Norbert Heinrichs. A terceira secção ápenas pretende ser sugestiva no que respeita à diversidade de domínios que se relacionam com a teoria hornir nêutica e cuja importância, como foi sugerido no capítulo \ aindu está por explorar. Devo a maior parte dos títulos alemlUvs sobn filosofia da linguagem à colecção de obras da biblioteca do Instituiu 257

de Hermenêutica, em Zurique onde foi feito o grosso da investi­ gação para a presente obra. A.

A TEO RIA H ERM EN ÊU TICA E OS TEÓRICOS

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A pel, K

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---------Le Problème de la conscience historique. Conferências apre­ sentadas em Louvain, 1959. Louvain: Publications universitaires de Louvain, 1963, 89 pp. ---------«The Problem of Language in Schleiermacher’s Hermeneutics». conferência não publicada apresentada na Vanderbilt Divinity School, Nashville, Tenessee, em 29 de Fevereiro de 1968, num encontro que comemorou o segundo centenário do nasci­ mento de Schleiermacher. Enquanto esteve na América durante o mês de M arço de 1968, Gadamer fez conferências em inúmeras universidades, incluindo Northwestern, Johns Hopkins, Texas, Yale e Harvard. Estas conferências ou repetiam a comunicação sobre Schleiermacher ou versavam sobre um de outros dois tópicos: «Imagem e Palavra» e «O conceito da divindade na filosofia pré-socrática». É provável que estas três conferências apareçam individualmente em revistas americanas, tornando acessíveis para um público de língua inglesa alguns dos recentes escritos de Gadamer. Um artigo «Notes on Planning for the Future» foi publicado em Daedalus, XCV (1966), 572-89; não se orienta especificamente para a tem ática hermenêutica. ---------Volk und Geschichte im Denken Herders. Conferência reali­ zada em Paris em Maio 29, 1941. Frankfurt: Klostermann, 1942, 24 pp. ---------Wahrheit und Methode Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Tübingen: J. C. B. M ohr, 1960, 476 pp., 2.* ed., 1965, 512 pp., contains a new preface and the article «Herme­ neutik und Historismus» as an appendix. Italian and French translations are in preparation. English translation forthcoming from Sheed and Ward, London. ---------e H. K uhn, eds. Philosophische Rundschau: Eine vierteljahresschrift für philosophische Kritik. Tübingen: J. C. B. Mohr. Founded in 1953 by the editors and still under their direction. See individual issues for many reviews and artides by Gadamer. Die Gegenwart der Griechen im neueren Denken: Festschrift für Hans-Georg Gadamer zum 60. Geburtstag. Ed. D ie t e r H e n r i c h , W a l t h e r S c h u l t z e K a r l - H f.in z V o l k m a n n -S c h l u c k . Tübin­ gen: J. C. B. Mohr, 1960, 316 pp. H e i d e g g e r , M a r t in , Erlciuterungen zu Hòlderlins Dichtung, 2.* e d ., Frankfurt: Klostermann, 1951, 144 pp. Parcialmente traduzido e m E. B. ---------Existence and Being. Ed. com uma introdução analítica extensa, por W e r n e r B r o c k . Chicago: Regney, 1949; paperback, 1961, 369 pp. ---------Gelassenheit. Pfullingen: Neske, 1959, 73 pp. Tradução inglesa de J o h n M. A n d e r s o n e H a n s F r e u n d , Discourse on Thinking. New York: Harper, 1966, 90 pp. ---------Holzwege. 4.* ed., Frankfurt: Klostermann, 1963, 345 pp. Primeiro ensaio, C/AT, traduzido; ver mais adiante. ---------Identitàt und Differenz. Pfullingen: Neske, 1957, 76 pp. ---------A n Introduction to Metaphysics. Trad. R a l p h ; M a n h e i m . New Haven: Yale University Press, 1959, 214 pp. ---------Kant und das Problem der Metaphysik. Frankfurt: Kloster­ mann, 1951, 222 pp. Tradução inglesa de J a m e s S. C h u RCHu .i., K ant and the Problem ó f Metaphysics. Bloomington: Indiana University Press, 1962, 255 pp. ------- - Platons Lehre von der Wahrheit: M it einem Br ir/ ilbe.r den «Humanismus». Bern: Francke, 1947, 119 pp. As traduções de ambos os ensaios estão em W il l ia m B a r r e t t c II. I). A ik k n , 259

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B.

H ERM EN ÊU TICA TEOLÓGICA

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O livro compõe-se de quatro partes: «Die Struktur der Spriu In1», «Sprache und Existenz», «Sprache und Geschlehtc». o «IMr Sprache und das W ort Gottes». N e i l l , S t e p h e n , The Interpretation o i the New Testament IHM 1961, London: Oxford University Press, 1964, 358 pp N e e b u h r , R ic h a r d R . Schleiermacher on Christ and Rellglon A New Introduction. New York: Scribner’s, 1964, 267 pp. O c d e n , S c h u b e r t M. Christ Without Myth. New York: Hurpci, 1961, 189 pp. ---------The Reality of God and Other Essays. New York: Harper, 1966, 237 pp. O rr, H e in r i c h , Denken und Sein: Der Weg Martin Heideggers und der Weg Theologie. Zollikon: Evangelischer Verlag, 1959, 226 pp. ---------«Das Problem des nicht-objektivierenden Denkens und Redens in der Theologie», Z T h K , LX I (1964), 327-52. H a m s e y , I a n , Religious Language: A n Empirical Placing o f Theological Phrases. New York: Macmillan, 1957, 191 pp. R o b in s o n , J a m e s M. A New Que st o f the Historical Jesus. London: SCM Press, 1959, 128 pp. ---------«Theology as Translation», Theology Today, X X (1964), 518-27. ---------«World in Modern Theology and in New Testament Theo­ logy», em Soli Deo Gloria: N ew Testam ent Studies in Honor o f William Childs Robinson.. Richmond, Va.: John Knox Press, 1968, cap. 7. --------- J o h n B. C o b b , J r ., eds. The Later Heidegger and Theology, New Frontiers in Theology series. Vol. I. New York: Harper, 1963, 212 pp. --------- Eds. The N ew Heumeneutic. New Frontiers in Theology series, Vol. II. New York: Harper, 1964, 243 pp. A Introdução é excelente, pp. 1-77. ---------Eds. Theology as History. New Frontiers in Theology series, Vol. III. New York: Harper, 1967. 276 pp. S c h u l t z , W e r n e r . «Die unendliche Bewegung in der Hermeneutik Schleiermachers und ihre Auswirkung auf die hermeneutische Situation der Gegenwart», Z T hK , LXV (1968), 23-52. S m a l l e y , B. The Study o f the Bible in the Middle Ages. 2.* ed. Oxford: Blackwell, 1952. 406 pp. S m a r t , J a m e s D. The Interpretation o f Scripture. Philadelphia: Westminster Press, 1961. 317 pp. S p i e g l e r , G e r h a r d , The Eternal Covenant: Schleiermacher’s Experiment in Cultura! Theology. New York: Harper, 1967, 205 pp. S p in o z a , B e n e d ic t d e , A Theologico-Political Treatise. Trad. R. H. M. E l w e s . Classics of the St. John’s Program series. Ann Arbor, Mich.: Edwards Brothers, 1942, 278 pp. St e i g e r , L o t h a r , Die H erm eneutik ais dogmatisches Problem. Gütersloh: Gerd Mohn, 1961, 200 pp. w o o d , J a m e s D. The Interpretation o f the Bible: A Historical Introduetion. Naperville, III.: Alec R. Allenson, 1958, 179 pp. C. OUTRAS OBRAS CITADAS OU POTENCIALM ENTE SIGNIFICATIVAS PA R A A TEO R IA HERM ENÊUTICA W. Z u r M etakritik der Erkenntnistheorie: Studien über Husserl und die phànomenologischen Antinomien. Stuttgart: Kohlhammer, 1956, 251 pp.

A dorno, T heodor

265

Beitrãge zur Erkenntnistheorie und das Verhàltnis von Sprache und Denken. Halle: Niemeyer, 1959, 570 pp. A m m a n n , H e r m a n n , Die menschliche Rede: Sprachphilosophische Vntersuchungen, Teil I und II. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1962, 237 pp. A r e n s , H a n s , Sprachwissenschaft: Der Gang ihrer Entwicklung von der A niike bis zur Gegenwart. Munich: Verlag Karl Alber, 1955, 568 pp. A methodical and weü-documented history of linguistics from Plato and Aristotle to the mid-twentieth century, including coverage of American, French, Russian, and other developments in the twentieth century. Extensive bibliography. A r i s t o t l e , The Basic Works. Ed. R ic h a r d M c K e o n . New York: Random House, 1941, 1487 pp. --------- On Interpretation (Peri hermeneias). Comentários de St. T h o m a s and C a je t a n . Trad. do latim e introdução de J e a n T . O e s t e r l e . Milwaukee: M arquette University Press, 1962, 271 pp. --------- Organon. Vol I: Categories, On Interpretation, Prior Analytics. Loeb Classical Library, 325; Cambridge: Harvard Uni­ versity Press, 1938, 542 pp. A s t , F r ie d r ic h , Grundlinien der Gram m atik, H ermeneutik und Kritik. Landshut: Thom ann, 1808, 227 pp. --------- Grundriss der Philologie. Landshut: Krüll, 1808, 591 pp. A u e r b a c h , E r i c h . Mimesis: The Representation of Reality in Western Literature. Princeton: Princeton University Press, 1953, 563 pp. Mimesis. Perspectiva, São Paulo. B a c h e l a r d , G a s t o n , L a Formation de 1’esprit scientifique: contribution à une psychanalyse de la connaissance objective. Paris: Vrin, 1938. 256 pp. , --------- Le Nouvel esprit scientifique, 5.- ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1949, 179 pp. O N ovo Espírito Científico, Edições 70, Lisboa. --------- Poetics o f Space. Trans. M a r ia J o l a s . New York: Orion Press, 1964, 241 pp. ---------La Poétique de la rèverie, 2.* ed. Paris: Presses Universitaires de France, 1961, 183 pp. --------- Psychoanalysis o f Fire, Trad. A. C. Ross, Boston: Beacon Press, 1964, 115 pp., Psicanálise do Fogo, Estúdios Cor, Lisboa. B o l l n o w . O t t o F r i e d r ic h , Die Lebensphilosophie, Berlim: Springer, 1958, 150 pp. B o s s e r m a n , P h i l l i p , Dialectical Sociology: 4 n Analysis of the Sociology o f Georges Gurvitch. Boston: Extending Horizons Books. 1968, 300 pp. B r e k l e , H e r b e r t E., ed. Grammatica Universalis. A series of vo­ lumes in linguistics and philosophy of language; selections from the seventeenth century to the present. First volume forthcoming in 1969, Frommann-Holzboog, Stuttgart. B r i l l o u in , L é o n , Scientific Uncertainty and Information. 2 ' ed. New York: Academic Press, 1962. 164 pp. B r u n n e r , A u g u s t , Geschichtlichkeit. Bern/M unich: Francke, 1961, 204 pp. B r u y n , S e v e r y n T . The Human Perspective in Sociology. Englewood Cliffs, N. J.: Prentice-Hall. 1966, 286 pp. B u r k e , K e n n e t h . A Grammar o f Motives and A Rhetoric of Motives. Meridian B o o k s. Cleveland: World, 1962, 868 pp.

A lb re c h t, E rh a rd ,

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---------The Philosophy of Literary Form. Rev. ed. New Yoik Vintage Books, 1957, 330 pp. C a m p b e l l , J o s e p h . The Masks o f God: Primitive Mythologv. Nrw York: Viking, 1959, 504 pp. C a m p b e l l , P a u l N . The Speaking and the Speakers of Literaturr B e lm o n t, C a li f . : D ic k e n s o n , 1967, 164 pp. C a s s ir e r , E r n s t . A n Essay on Man. New Haven: Yale University Press. 1944. 237 pp. ---------Philosophy o f Symbolic Forms. 3 vols. New Haven: Yale University Press. 1953, 1955, 1957, 328 pp., 269 pp., 501 pp. C a s t e l l i , E n r ic o , ed. Técnica e casistica. Comunicações do Intei national Colloquium em Roma, Janeiro, 1964 [?] Pádua: A. Mi lani. n. d. C h o m s k y , N o a m . Aspects o f the Theory o f Syntax. Cambridge: M. I. T. Press, 1965, 251 pp. Aspectos da teo ria da Sintaxe, Armênio Amado, Coimbra. ---------Current Issues in Linguistic Theory. New York: Humanities Press. 1964. 119 pr>. ---------Topics in the Theory o f Generative Grammar. Nem York: Humanities Press. 1966. 95 pp. C o l l in g w o o d , R. G. A n Autobiography. Oxford: Oxford Uni­ versity Press, 1939. 167 pp. ---------Essays in the Philosophy o f History. E d . W il l ia m D e b b in s . Aus»in: Universitv of Texas Press. 1965. 160 np. ---------The Idea o f History. Oxford: Clarendon Press, 1946. 339 pp. A Ideia de História. Presença. Lisboa. C o r b in H e n r y . Avicem a and the Visionary Recital. Trad. W. R. T rask . Princeton: Princeton University Press, 1960, 423 pp. D a g o g n e t , F r a n ç o is . Gaston Bachelard. Paris: Presses Universitaires de France. 1965, 116 pp. Bacheclard, Edições 70. I.isboa. D a n c e , F r a n k E . X ., ed. Human Communication Theory: Original Essays. N e w York: Holt. 1967, 332 pp. D a n t o , A r t h u r C. Analytical Philosophy o f History. Cambridge: Cambridge University Press, 1965, 313 pp. D i e m e r . A t w i n . Edm und Husserl: Versuch eiener systematischcn Darstellung seiner Phanomenologie. Meisenheim am Glan: Hain, 1956. 397 dr. D u f r e n n e , M i k e l . Jalons. The Hague: Nijhoff, 1966, 221 pp. --------- Language and Philosophy. Bloomington: Indiana University Pres*. 1963. 106 np. ---------The Notion of the A Priori. T r a d . E d w a r d S. C a s e y . E v a n s ton: Northwestern University Press, 1966. 256 pp. ---------Phénomenologie de Vexpérience esthétique. Paris: Presses Universitaires de France. 1953. 688 pp. ---------La Poétique. Paris: Presses Universitaires de France. 1963, 196 pp. D u r a n d , G il b e r t . L'lmagination symbolique. Paris: Presses Uni­ versitaires de France, 1964, 120 pp. A Imaginação Simbólica, Presença, Lisboa. ---------Les Structures anthropologiques de Vimaginaire, Paris: Pres ses Universitaires de France, 1960, 513 pp. E d i e , J a m e s M ., ed. A n lnvitation to Phenomenology: Studies In the Philosophy o f Experience. Chicago: Quadrangle, 1965, 281 pp ---------, ed. Phenomenology in America: Studies in the Philosophy o f Experience. Chicago: Quadrangle, 1967, 306 pp. Einsichten: Festschrift fü r Gerhard Krüger. Ed. K la u s Ohiii i h und R ic h a r d S c h a e f l e r , Frankfurt: Klostermann, 1962, 398 pp 267

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Euade, M

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is h i d a ,

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W aley, A rth u r .

274

ÍN D IC E REM 1SSIVO

Agostinho, Santo, 148 Aplicação: na experiência her­ menêutica, 245-246; Gadamer sobre, 180; na hermenêutica teológica e jurídica. 190-192; importância na interpretação legal, 66: na interpretação lite­ rária, 236-238, 252; as regras da topicalidade em Betti, 65-

64-66. Ver também obra dc arte, autonomia da. Betti, Emilio, 76, 78, 216; con­ trastando com Gadamer, 55-57. 63-68; 167-169, 216; o seu contributo para a história da hermenêutica, 47; discussão da sua hermenêutica, 63-68; v.t Bultman, 59-60 Bíblica, hermenêutica e interpre­ tação literária, 238. Ver tam­ bém interpretação bíblica Bíblica, interpretação: e aplica­ ção, 190-192; a auto-interpretação de Jesus. 34-35; desen volvimento, de 44-49; o método histórico-crítico, 45-46, 48-49, 59; o significado de S. Paulo nos nossos dias, 73. Ver tam­ bém Bultmann; desmitoloni/ação Bõckh, August, 64 Bollnow, 108. 112, 127 Bultmann, Rudolf, 55, 64: criti­ cado por Betti, 66; c desmito­ logização, 37-38, 57-58; e Hei­ degger, 58-59. Ver também desmitologização

- 66.

Apofântico, «como». Ver Hei­ degger Apresentacional, pensamento e interpretação literária. 227 Aristóteles, 86, 238; Peri hermeneias, 23, 31-33 Arte: e auto-compreensão, 240-242; para Dilthey, 128; o efeito do subjectismo em arte, 149; e experiência. 249-250: e historicidade, (Dilthey), 127-128. e perícia técnica, 249; como revelação do mundo e do ser, 160-161. 239-242 Arte, obra de: autonomia da, 28, 179, 247: Gadamer, sobre 171-180: Heidegger sobre. 162-165; como não sendo um mero prazer, 178; com oobjectivação da experiência. 118-120: em relação com a esté­ tica. 238-242: em relação com a estética, 238-242; em relação com a distância temporal, 187-188; como revelação, 151-152; o ser da, 215 Auerbach, Erich, 40 Autonom ia do objecto de inter­ pretação, defendida por Betti,

Campo, teoria de (no continente histórico), 60 Cassirer, 78, 205 Científica, compreensão: r num do da vida, 182-183; orientada para a análise, 19; p arrn tru ii com Husserl, 131; Icinpotiil < pré-estruturada, IH"> IKft, v» 275

histórica. 22, 30; v í humanísnística (Dilthey), 121, 127-128. Científica, perspectiva: na inter­ pretação literária, 18-19; v íh u manística em Dilthey, 106-112. Collingwood, R. G., sobre conhe­ cimento histórico. 60; recons­ truindo uma questão, 203 Compreensão: seu carácter de evento, 20, 77; científica vs his­ tórica, 19, 22; e círculo her­ menêutico em Dilthey, 124-126; como evento lingüístico, 233; como processo de transposição, 111, 121; como relacionada com a ontologia e a epistemologia, 21, 134; como recons­ trução, (Schleiermacher), 93; como reconstrução de um a experiência interna (Dilthey), 111; uma concepção mais lata de, 229, 233; contrastando com a interpretação, 139; distinguida de explicação, 92-93; e experiência, 232-233; fenomenologia da, 77; do futuro rela­ tivamente ao significado his­ tórico, 60; em Gadamer, 216; nas Geisteswissenschaften, 121; a historicidade da. 75, 180-201, 251; histórica vs científica, 30; inserida no mundo, 138: impli­ cando uma interpretação pre­ liminar, 33; orientada para a visão ou para a audição: 21; e percepção estética, 239; e pertença ao mundo, 183; pro­ blema ultrapassado por Hirsch, 72; e questionamento. 202-203; relacionada com a interpreta­ ção literária, 225, 250: a teoria de Heidegger e a interpretação literária, 229-231; e temporali­ dade, 184; e tradição, 180, 185-188; transcendendo o que o autor compreendeu. 153: três níveis da. em Ast, 85

mente a Homero e Milton, 39-40; relativamente à interpre­ tação literária, 252. Ver tam­ bém Bultmann Dialéctico, questionamento: na experiência hermenêutica. 234-237, 243; em Gadamer, 192; e na interpretação literária, 250 Dilthey, Wilhelm, 55, 64, 67. 68, 71, 76, 105-128, 134, 214, 216; a concepção de compreensão con­ trastando com a de Heidegger, 135-136; sobre a contextualidade de significado, 115-117; o contributo de, 50, 112-113, 127-128; crítica, 112, 128, 181-182; a fórmula hermenêutica de experiência-expressão-compreensão, 113-121; sobre as Geisteswissenschaften, 105-113; a hermenêutica como crítica e razão histórica. 50; a herme­ nêutica v í introspecção, 107-108; sobre historicidade, 115-117, 121-123; e Schleierma­ cher, 101-102 Ebeling, Gerhard, 46, 64, 73; sobre a função hermenêutica da linguagem, 143; relativa­ mente a Bultmann e Fuchs, 61-62 Enunciação, a operação básica da, 31-32 Ernesti, Johann August, 48, 90, 190 Escatologia, Bultmann sobre. 60 Escrituras, carácter kerigmático das, 29 Estética, não diferenciação, 174, 215. 240, 247 Estético, prazer, 238-240, 249 Estética, falência da estética moderna subjectiva, 178; 241; insustentabilidade do «pura­ mente estético». 238-242; ne­ cessidade de integração com a hermenêutica. 246; perda de historicidade em, 251; rela­ cionado com a verdade, 239-242: a tensão entre a terra e o mundo, 163-165 Estruturalismo, em Lévi-Strauss, 217 Exegese, enquanto se distingue de hermenêutica, 44 Experiência, um a concepção mais funda de. 234; definição de,

Danhauer, J. C., 44 Dante, «tradução» histórica ao lê-lo, 40 Descartes, René, 151; a crítica de Heidegger a, 148-149 Desmitologização, 38-41, 57, 64; e aplicação, 192; comparada com desmitificação, 53; e o problema da interpretação do Novo Testamento, 38; relativa­ 276

198-200; encarada de um modo especulativo, 213-214; enquanto Erlebnis (Dilthey), 113-117; Gadam er sobre, 197-201; e ne­ gatividade, 199-201; relativa­ mente à interpretação literária, 233-234 Explicação, 190; em Heidegger, 160-162; relativamente a re­ gras, 19 Explicação, excluída da herme­ nêutica, 92-93. Ver também a interpretação como explicação Expressão de um a «experiência vivida» (Dilthey), 117-118 Eu-Tu, relação e consciência his­ tórica autêntica, 194-196, 200-201 Falar, em arte. 163 Fenomenológica, crítica literária: em França, 78, 247; em Roman Ingarden, 78. Ver tam ­ bém fenomenologia; interpre­ tação literária Fenomenologia: a definição de Heidegger, 132-135; e o es­ quema sujeito-objecto, 247; como hermenêutica, 130; 132-135; e interpretação literária, 15; objecções à, 64, e perspec­ tiva científica, 18 Fichte, Johann Gottlieb, 109 Filologia. Ver Ast.; a hermenêu­ tica como metodologia filoló­ gica; Wolf Forma-conteúdo, separação: efei­ tos de. 185; Gadam er sobre, 174; insustentabilidade da, 239, 247, 248-249 Freud, Sigmund, a hermenêutica iconoclástica de, 53 Frõr, Kurt. 48 Fuchs, Ernst: a sua definição de hermenêutica, 61; relativamen­ te a Bultmann e a Ebeling, 61 Gadamer, Hans-Georg, 64, 71, 76. 123, 126; afinidades com Hegel, 170-171; sobre a apli­ cação, 189-194; sobre a arte enquanto decorativa, 175; ava­ liação de, 216-218; sobre o carácter não-instrumental da linguagem, 204-207; sobre com­ preensão, 168-169; sobre a consciência estética, 171-175; 277

sobre a consciência histórica, 180-196; sobre as conseqüências hermenêuticas da historicidade, 180-201; criticado |w>i Hrtti, 55-57, 62-68; sobre distfliu la temporal, 187-188; na distlhçAo entre brincadeira c joy.o, 176 -177; a sua dívida explicita para com Heidegger, 168 169; sobre a estrutura especulativa da linguagem, 211-214; sobro experiência e sobre experlAnclit hermenêutica. 197-201: explica a finalidade de WM, 67; sobro a forma em arte, 173-175; for nece uma base para a crítica da teoria literária, 218, 223; so bre o jogo e a obra dc arte, 175-180; sobre a linguisticidade e a experiência hermenêutica, 208-211; sobre o método, 168-170; sobre a natureza da fala poética, 212-213; sobre perten­ ça. 210: sobre o questiona­ mento dialéctico, 192, 215-216; sobre a relação Eu-Tu. 194-196: relativamente a Betti c Wach, 167-169; responde n Betti, 67: sobre o tema, 202, 213; tendência anticientífica, 131; sobre um tipo mais alto de objectividade. 214: sobre n universalidade da hermenêuti­ ca, 169, 214-216: sobre wlrkungseesschichliche bewusstrin, 194-196, 200: W M encarada como a primeira avaliação his­ tórica do anarecimen^o da her­ menêutica fenomenológica, 51-52 Geist, 109: para Heeel e Gada­ mer, 216: a hermenêutica dc Ast. 84-86 Geisteswissenschafen, 134, 216; e a crítica de Dilthey da razão histórica, 106-108; definição, 105; encontrar um fundamento metódico para, 106; a expe­ riência vivida enquanto fun dante, 114-115; a hermenêu­ tica como fundamento metó­ dico para, 106; incluindo todas as objectivação da vidu, IIH. Ver também Dilthey; com preensão científica Gurvitch, Georges, 36 Gusdorf, Georges, 78

Hausman, Carl R., 79 Hegel, G. W. F., 71; afinidades de Gadam er com, 217 Heidegger, Martin: análise da comprensão, 60; apofânico vs hermenêutico «como». 133, 142-143; sobre o carácter deri­ vativo das asserções, 58, 141-143; carácter hermenêutico do seu pensamento, 15. 147; sobre o carácter lingüístico do ser, 71; conceito de «mundo», 137-138; contributo em SZ. 129-143; 'crítica das filosofias do valor, 150; crítica do pensa­ mento apresentacional. 147-152; e Erõrterung, 161-162: explicação, 160-162; fazendo violência ao texto. 152: a filo­ sofia como hermenêutica. 24; e Geschick, 158-159: a her­ menêutica. sobre historicidade, 157-159; a linguagem fala, 158-160; a sua relação com Bult­ mann, 58: resumo do seu con­ tributo. 164; o «retrocesso», 159: ultrapassa Dilthey. 135-137: visão da linguagem, 143. Obras citadas: Augustinus und der Neuplatonismus, 148: BH, 154, 155-156. 158; The Doctrine o f Judgment in Psychologism. 156; A Fundamentação da Imagem Moderna do M un­ do pela Metafísica. 148; G, 154, 155; Ho, 163-164; IM . 154-155. 157-158, 160-161; «So­ bre a Essência da Poesia», 159; K P M , 151-152; PL, 147: Die Spache im Gedicht, 161; SZ, 58, 129-143, 183. 229: UK, 163-164; US, 152, 157, 161 Heisenberg, o princípio de, no conhecimento histórico. 60 Heresia da paráfrase, 28. Ver também Nova Crítica Hermeneuein e hermeneia: signi­ ficando «dizer», 25-30; signi­ ficando «explicar», 25, 30-36; significando «traduzir», 24, 36-41; três orientações significa­ tivas no antigo uso de, 23-25 Hermenêutica, experiência: a dialéctica de pergunta-resposta, 234; a linguisticidade, 208-211, relativamente à interpretação literária, 243-246

Hermenêutica: de acordo com Hirsch, 15-16, 68-73; carácter histórico da, 73; seu carácter interdisciplinar, 22, 79; cen­ trada no tema, 188; enquanto centrada na linguagem onto­ lógica, dialéctica, e especula­ tiva, 217; como uma ciência sistemática, 97; a concepção de Ast, 85-86: a concepção de Wolf de. 88-90; consultas so­ bre, 15; definição dada em dicionários, 16; definida como o encontro com o ser através da linguagem, 52; definida por Fuchs, 61; derivação da pala­ vra a partir de Hermes. 23-25; discussão do conflito de defi­ nições, 75-77; distinguindo-se da exegese, 44; o duplo-foco da. 76-77: especulatividade e, 214-215: como estudo da com­ preensão, 19-20; e explicação de textos, 19-20; forma iconoclástica da. 53; como funda­ mento das humanidades, 22, 50. 120: como fundamento de uma nova filosofia da inter­ pretação literária. 22. 223-254; , o homem definido como «ani­ mal hermenêutico». 123: como inseparável de questões histó­ ricas, de ser e realidade, 52; como interpretação centrada em obras. 120: e interpretação literária, 15-50. 218-254: como intérprete histórica da mensa­ gem bíblica. 45-46: jurídica. 237; listagem de domínios que poderiam contribuir para. 78-79: como metodologia filo­ lógica. 48-49, 70-73. 91-92; e mito, 53-54: necessidade de uma concepção mais lata cJe79: necessidade de uma herme­ nêutica fenomenolóeica. 16-17, 223-224; necessidade de se m anter um campo aberto, 76-79: necessidade de ultrapassar as hermenêuticas históricas e as sínteses empíricas. 47-48: obstáculos ao seu desenvolvi­ mento, 78: como uma onto­ logia e uma fenomenoloeia da compreensão. 50-52. 73, 134. 216-217: a polarização entre Betti e Gadamer, 55278

-57, 63-68; preconceito, 185-187; como processo de H er­ mes, 25-26; e psicanálise, 52-53; raízes gregas da, 23-41; a redefinição de Heidegger da, 134; relação da bíblica e da filológica, 49; enquanto rela­ cionada com uma teoria da exegese religiosa, literária e jurídica, 44-45; como não se restringindo aos Geisteswissen­ schaften, 216; seis definiçnões básicas de, 45-54; como teoria da exegese bíblica, 44-48; como teoria da compreensão lingüís­ tica, 77: como teoria da reve­ lação ontológica, 243; três ti­ pos de (Ast), 86. Ver também Dilthey, Gadamer, Heidegger, a Nova Hermenêutica. R i­ coeur, Schleiermacher. Hermenêutica, relação, Heideg­ ger sobre, 153 Hermenêutico, princípio: na in­ terpretação bíblica, 46; na auto-interpretação de Jesus, 35 Hermenêutico, problema: segun­ do Bultmann. 59; a complexi­ dade do, 36; deixando que o texto comande na experiência hermenêutica, 192, 195, 211; rejeição de definições estritas de, 71-72; relacionado com a linguagem, pensamento, e rea­ lidade, 62; ultrapassando as diferentes escolas, 76. Ver tam­ bém Bultmann, desmitologiza­ ção; Ebeling. Hermenêutico, processo: em Hei­ degger, 138, 146, 153; como dizer. 160; como pensamento, 160-161; como pergunta e res, posta, 154 Hirsch, E. D. Jr., 15, 68-73, 75-77 Histórica, consciência. 215; rela­ tivamente à interpretação lite­ rária, 215-254. Ver também historicidade Historicidade: ausência de cons­ ciência histórica na interpre­ tação literária, 226; em Dil­ they, 107-110, 115-117, 121-123; e experiência, 199-200; e experiência hermenêutica. 243-244; em Gadamer, 180-196; em Heidegger, 132, 157-159; e ser, 155 279

Historicismo: atacado por Hullmann e EbcliiiK, 59-62; Gudnmer sobre, 181-184 História: uma rculidiidc ciikIo bante, 215-216; siitnificudo cm, 60 Homero, 26, 40 Humanismo, 152. Ver nimhéni Heidegger, subjcclismo Husserl, Edmund. 78, 113, 214, 223; contrastando com llcldcu ger, 129-132; discusaAo do mundo da vida; 183; Inveill gações Lógicas, 71 Informação, diferente dc unm utilização bíblica da liunuii gem, 30 Ingarden, Roman, 78 Intencional, falácia. 248 Interpretação e análise, 17-22, 33; como acto básico da exixtência humana, 20-21; como ajudando à ocorrência do evento lingüístico. 159; contextualidade da, 34; como enunciação, 25-30; e distância temporal, 252; e execução oral, 26-27, 35-36; como explicação, 30-36; e um factor exterior explanatório, 33-35; gramatical, 84, 89, 93; historicidade da, 253-254; implicada no nosso modo de ver a obra, 33; níveis não lingüísticos da, 20; e on­ tologia, 89; ouvir vs ver, 21; e relacionação com quem nos ouve, 34; como revelação, 151-152; como tradução, 36-41. Ver também Betti, Hirsch, his­ toricidade. distância temporal, compreensão. Jesus «interpreta-se» a si mesmo para os vindouros, 34 Jogo e interpretação literária, 249. Ver também Gadamer, sobre «jogo» e obra dc arte. Jurídica, hermenêutica, como instrutiva para a interpretação literária, 237-238. Ver também interpretação literária K ant. Immanuel, 107, 109 Kimmerle, Heinz, sobre Schleier­ macher, 98-99. Kwant, Remy, 78

Lessing, Gotthold E., 48 Linguagem: como não tendo ca­ rácter instrumental, 204-207, 244; a concepção de Gadamer de, 204-214; como equiprimordial com a compreensão, 230-232; estrutura especulativa da, 211-214; sua importância no jovem Schleiermacher, 98-99; e interpretação literária, 226-227; fenomenologia da, 78; filosofia da, 62-73; como me­ diação de revelação. 207-209; como mediação do ser, 21, 181; como modelando a realidade, 21; e o mundo, 207-209; o poder da palavra oral, 26-27; como repositório historicamen­ te formado da cultura, 37, 181, 215. 253; sua unidade com o pensamento, 208-209; a visão de Heidegger da, 143, 156-160 Linguisticidade: de acordo com Gadamer, 208; e experiência hermenêutica, 243; da com­ preensão, 171. Lingüístico, evento, 181; comprensão como, 28; e experiên­ cia hermenêutica, 244; como exprimindo o carácter oral das Escrituras, 30; em Fuchs e Ebeling, 61-62; e interpretação literária, 28. 249 Literária, interpretação: ausência de consciência histórica na, 250-254; como «capaz», 40; e compreensão da experiência, 232-233; crítica da interpreta­ ção dominante, 17-19; desmitologização e, 37-40; 192-194; deve centrar-se na sensação de estar-no-mundo, 40; e fenome­ nologia. 16-19; Hirsch des­ truindo a separação da herme­ nêutica, 15; historicidade e, 179-180, 226; manifesto à, 219-254; e necessidade de clareza filosófica, 178-179; e necessi­ dade de relacionação com a interpretação oral, 27, 28; en­ quanto relacionada com a on­ tologia e com a epistemologia, 88; o significado da herme­ nêutica teológica e jurídica pura a. 190-192; tendências tecnológicas na, 18, 225-229, 231, 245, 248, 253.

Lógica, carácter derivativo da, 141-143 Lógica da validação. Ver Hirsch Lógicas, asserções, carácter deri­ vativo das, 33, 141-143 Longfellow, Henry Wadworth, 45 M acquarrie, John, 58 Merleau-Ponty Maurice, 78, 247 Método: conseqüências metodo­ lógicas da pertença, 210; efeitos do, nas críticas a Dilthey, 182-183; falhas, 234-235; fraque­ zas do, 228; Gurvitch, sobre a inseparabilidade do objecto e do método. 36; molda o objec­ to, 33, 36; o mundo da vida não é revelado pelo, 183-184; suspeito, mesmo em bases cien­ tíficas, 250. Ver também Ga­ damer, sobre método. Metodologia, para as Geistes­ wissenschaften , 106-113 Milton. John, 71; desmitologizando Paraíso Perdido, 38, 184 Mito, crítica ao, 78, 101, 223 M undo, em Heidegger, 136-138. Ver também significado predicativo. tradição Negatividade: em arte, 163; na esoeculatividade, 214: na expe­ riência, 199-201: no auestionamen^o, 233: e verdade. 162 Nida, Eusene sobre a ciência da tradução. 37 Nietzsc^e Friedrich. 122. 151 Nova Crítica. 78. 101. 223' afi­ nidades com Gndamer. 179' e a exeeese heideegeriana. 162; ohiectividade na. 162. Ver tnmhfim interpretação literária; obiectividade Nova hermenêutica. 16. 78 Novidade na fala poética, 214 Obiectivação: críticas à. 182: da exneriência vivida fDilthev'), 117-118: relação com o subjecticmo. 151 Obiertivid^de: e abertura de es­ pírito, 184: em Betti, 55-56: e comnreensão de uma «obra», 18-19- em Dilthey 182 • dos «factos» históricos. 60-62’: fenomenológica. 179- uma forma mais alta de, 229-232; . nas 280

Geisteswissenschaften, 105; ina­ dequada à experiência, 197; inadequada relativamente à Bí­ blia; 192; incomensurável com expressões da compreensão da experiência vivida, 126; e in­ terpretação literária, 17-19, 162, 225. 253; da linguagem, 208; rejeitada por um a cons­ ciência autenticam ente histó­ rica, 185; relativamente à obra de arte, 172; como Sachlichkeit, 208. Ver também méto­ do; interpretação literária, ten­ dências tecnológicas na. Objecto: em contraste com a obra, 19-22, 228; métodos em relação ao, 33; ver um objecto como na (pré-interpretação), 33 Obra, contrastando com o objec­ to, 19, 228 Ontologia: e experiência herme­ nêutica, 243; unida à fenomenologia por Heidegger, 134 Oral, interpretação, 27-29 Ortega v Gasset. José, 122 Ouvir vs ver, 210. Ver também compreensão científica Palavra evento. Ver linguagem evento Pannenberg, Wol.fhart, 62 Pensamento: carácter herm enêu­ tico do, 153-154; a crítica de Heidegger ao pensamento apresentacional, 147-152: e inter­ pretação, 151; e linguagem, 151, 205; meditativa, 153: «pen­ samento essencial» em Heideg­ ger, 153-156 Pergunta e resposta: na experiên­ cia hermenêutica, 234: na in­ terpretação literária. 250: como processo hermenêutico, 154-155 Platão, 86, 151, 202 Pré-compreensão: segundo Bult­ mann. 59; relativamente à in­ terpretação das Escrituras, 35. Ver também compreensão; Heidegger; interpretação sem pressupostos Pré-predicativo, significado, em Heidegger, 138-143 Pressupostos, interpretação sem, negação dos, 126, 140, 186-187

Psicanálise, uma forma dc her­ menêutica, 52 Psicologismo, 88, 188; cm Scheiennacher, 95-102 Questionamento: e conhecimento histórico, 60; enquanto diuléctico, 204; estrutura do, 201-204; Heideger sobre, 154-156, 158; negatividade no, 204; fu­ tu ra orientação do, 186 Ram bach, J. J., 190 Reconstrução: de acordo com Dilthey, 111; básico na herme­ nêutica de Betti, 66; compreen­ são (Schleiermacher), 93; ii concepção de Ast de Nachbildung, 87; criticada por Dil­ they e por Schleiermacher, 128; da experiência mental do autor, 96; ví integração, 189-190, 236-238, 246. Ver tam­ bém restauração Restauração, relativamente à in­ terpretação, literária, 251. Ver também reconstrução Richardson, W. J., 153 Ricoeur. Paul, 78, 247; De Vlpterprétation, 52-54; psicanálise e hermenêutica, 53 Ruptura, o significado herme­ nêutico da, 137-138 Schlegel, Friedrich, 108 Schleiermacher, 55, 71, 76, 90, 111! 112, 135, 214; sobre o carácter divinatório da inter­ pretação, 94-96; sobre o cír­ culo hermenêutico, 93-94: con­ tributo para a teoria herme­ nêutica. 91-103; críticas a, 107-103: sobre o estilo, 96, 100; sobre a hermenêutica orlenlndu para o diálogo, 92-91 lo b lt I interpretação gramatical r pil co'óeica, 95-96: como pul iln ciência da comprcíniflo lln guística, 49: o seu pilroloiHi mo crescente, 10? trlm n«t com Ast e Wnlf, RI «tltri subtilitas intrlllgrndl 100 ....... sição de i i i u i i liei m i im i A h U i >i centrada nn llnKUliunn 'ii 100 Semler, J. S , V> Sentido i>,v ninnlflimio vrflml l . / Hirsch. ScpuraçBo

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valor para a interpretação das iuscrituras, 34 Shakespeare, discussão do Rei Lear, 125; Macbeth, e a des­ mitologização, 193 Significado: enquanto definido por Heidegger, 137; enquanto histórico, 125; enquanto imu­ tável e supra-histórico, 71; en­ quanto uma questão de con­ texto (Betti). 65, (Dilthey), 115-117. Ver também signifi­ cado verbal. Sófocles,- 155, 160 Spinoza, Benedito, 48 Subjectismo: críticas ao, 217; Gadam er sobre, 182; Heideg­ ger sobre, 149-151; na sua re­ lação com o humanismo e a ciência, 150. Sujeito-objecto. esquema: ante­ cedido por contexto-significativo. 125; e cartesianismo, 148-149; conseqüências para a in­ terpretação literária, 17, 225-229, 231, 247; e experiência hermenêutica, 243-244; e a «experiência vivida», 114-117; e a estrutura-prévia da com­ preensão. 139; f a c t i c i d a d e , 183; relativamente à estética, 175; relativamente ao mundo, 13J; e tradição. 185-187, 194; ultrapassando especulativamente, 179, 216; ultrapassado em Dilthey, 127 Temporal, distância: e aplicação, 191; carácter frutífero da, 188; e diálogo com o texto, 39-40; na interpretação literária, 226;

282

a tradução dá-lhe relevo en­ quanto estrutura, 36-41 Tendências tecnológicas. Ver in­ terpretação literária; subjectivismo; tendências tecnológicas na interpretação. Teologia como * hermenêutica, 45-46 Tradição: uma consciência au­ tenticamente histórica, 200; Gadam er sobre, 180, 185-187, .202; não objectificável, 215_ Tradução: o cerne da hermenêu­ tica, 41; exemplar para a teo­ ria hermenêutica, 36-37 Verbal, significado, 72. Ver tam­ bém Hirsch Verdade: em arte, 163; a crítica heideggeriana à teoria da cor­ respondência. 147-149; como desocultação, 147. 152; e a ex­ periência hermenêutica. 246 Vida. filosofia de: em Dilthey, 107-110. 113-114; uma lista de filósofos da vida, 108 Vivida, experiência: central na filosofia da vida. 108-110; em Dilthey, 113-117. 126; e histo­ ricidade, 253. Violência ao texto, fazer: em Heidegger, 152, 162; na inter­ pretação literária, 235-238 Wach. Joachim. 20, 64, 103, 167 Wolf, Friedrich August: critica­ do por Schleiermacher, 91; a sua definição de hermenêuti­ ca, 88; discussão dos seus três níveis de hermenêutica, 89 Wordsworth. William, 40

ÍNDICE P R E F Á C IO ....................................... .. ............................................. L IST A DE A B R E V IA T U R A S ................................................... PRIM EIR A PA RTE — Sobre a definição, âmbito e signifi­ cado da hermenêutica........................................................ . ...

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13

1. 2.

Introdução ..................................................................... 15 Hermeneuein e Hermeneia: o significado moderno do seu antigo uso ................................. ..................... ....... 23 3. Seis definições modernas de hermenêutica ......................43 4. A luta contemporânea sobre hermenêutica: Betti versus G a d a m e r.......................................................................55 5. Significado e âmbito da hermenêutica ..................... .......75 SEGUNDA PA RTE — Quatro grandes te ó ric o s..................... 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12.

Dois precursores de S chleierm acher........................... O projecto de Schleiermacher de uma hermenêutica geral .................................................................................. Dilthey: A hermenêutica como fundamento das Geisteswissenschaften ................................................... O contributo de Heidegger para a hermenêutica cm Ser e Tem po...................................................................... O último contributo de Heidegger para a tcorin h erm enêutica................................................................... A crítica de Gadam er à Estética Moderna c à coiin ciência h is tó ric a ......................................................... A hermenêutica dialéctica de Gadamer . . . . 283

81 83 91 105 I2V M5

1^/

TER C E IR A PA R T E — Manifesto hermenêutico à interpre­ tação literária a m erica n a .......................................................... ..... 221 13. 14.

Para uma reabertura da pergunta: o que é a inter­ pretação? ............................................................................ ..... 225 Trinta teses sobre interpretação da experiência her­ menêutica ............................................................................. ..... 243

L IS T A D E A B R E V I A T U R A S ......................................................... 255 B IB L IO G R A F IA ÍN D IC E

............................................................................ ..... 257

R E M ISSIV O

................................................................ ..... 275

284

Impressão e acabamento da LATGRAF - Artes Gráficas, Lda. para EDIÇÕES 70, M a. Outubro de 1999

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