(P-274)
ENTRE O FOGO E O GELO Everton Autor
WILLIAM VOLTZ
Tradução
RICHARD PAUL NETO
Um abismo no tempo separa Perry Rhodan e os tripulantes da Crest do Império Solar do ano 2.404. No momento — depois de um salto de quinhentos anos, realizado por meio da estação dos senhores da galáxia em Pigell — a nave-capitânia encontra-se no ano 49.488 antes do nascimento de Jesus Cristo, exatamente a 51.982 anos do tempo real Comparada com isso, a distância no espaço que os separa da Terra, o mundo central do Império Solar, é relativamente pequena. Pigell ou Tanos VI, que é o lugar em que a Crest se encontra no momento, é um dos planetas do sol Vega. E de lá para a Terra — pelos padrões interestelares — é um pulo de gato. Durante as lutas com as tropas auxiliares dos moduladores de gens de Pigell, o Major Don Redhorse e os cinco homens que o acompanham estão isolados na estação do tempo, onde não podem receber auxílio, e vêem-se numa situação em que não têm alternativa senão dar este salto. O transmissor de matéria, que é ativado de repente, representa a única saída diante de uma grave ameaça. Don Redhorse e seus companheiros são arremessados para a Terra — e penetram na cidade situada sob as geleiras de Nevada — no reino do soberano da era glacial. Os terranos são obrigados a lutar. E têm de fugir para sobreviver... E o caminho da fuga é uma trilha que fica Entre o Fogo e o Gelo...
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Personagens Principais: = = = = = = =
Don Redhorse — Chefe de um pequeno grupo de fugitivos. Brazos Surfat — Companheiro fiel do Major Redhorse. Rovza — Agente do tempo dos senhores da galáxia. Baton ou Toser Ban — Um homem que inclui a própria morte em seus cálculos. Monira — Uma moça que não está disposta a trair os homens que a salvaram. Gucky — Um rato-castor que quer ser aposentado. Sagraria — Chefe dos mutantes de Makata. Atlan — O Lorde-Almirante que se encontra com um senhor da galáxia.
Prólogo
Quando o agente do tempo Rovza entrou na sala do transmissor, acompanhado por seus quatro auxiliares, ele se lembrou que toda sala em que estava instalado um aparelho dessa espécie possuía uma atmosfera muito especial. Dali se poderia chegar de um instante para outro a um planeta diferente. O transmissor era uma porta que se abria para o Universo. Um pouco da atmosfera dos mundos estranhos parecia impregnar de forma quase imperceptível esta sala. Era difícil dizer em que consistia mesmo esta atmosfera, mas ela era tão real que não se podia negar sua presença. Nesta sala a capacidade de percepção do ser humano parecia aumentar. O cheiro do couro, suor, óleo, metal, plástico, material isolante e ar artificial parecia ser mais intenso que nas outras salas. Mas era apenas porque a pessoa que entrava nesta sala aumentava inconscientemente seu poder de concentração. Rovza olhou para o relógio. Em virtude de uma ordem especial dos senhores da galáxia, o transmissor fora programado de tal forma que só entrava em funcionamento em determinado momento. Esta medida fora tomada para evitar que outros terranos que se encontravam no sistema de Vega penetrassem na estação do tempo. Era bastante improvável que o inimigo descobrisse o momento exato em que pudesse usar o transmissor, mas Rovza não queria assumir nenhum risco. Perdera dez homens num ataque de surpresa desfechado por criaturas monstruosas que tinham saído do transmissor juntamente com seis astronautas. Quando o transmissor entrou em funcionamento, Rovza pôs a mão na arma. No mesmo instante ouviu um sinal bem conhecido, que só soava quando uma pessoa devidamente informada usava o transmissor. Este sinal servia para evitar que os guardas da estação atirassem em algum aliado. — Vamos ter visita, Rovza! — exclamou Bellogh. Rovza parecia tenso. A desconfiança não desaparecera de vez. Sempre era possível que o inimigo descobrisse o sinal previamente combinado. Rovza permaneceu em silêncio enquanto via as duas colunas que apareciam embaixo do teto se unirem para formar o arco sem o qual o funcionamento do transmissor se tornava impossível. No interior do arco reinava uma escuridão completa. Rovza não tirou a mão de cima da arma. A ondulação e a cintilância que se estava acostumado a ver no interior do receptor começou. De repente apareceram os contornos de um homem alto, que trajava um conjunto prateado. Rovza ficou estarrecido. Tirou a mão de cima da arma num movimento tão brusco que até poderia parecer que ela se tornara incandescente. — Baixem a cabeça! — gritou para os auxiliares. Ele mesmo abaixou a cabeça e ficou parado, à espera do que estava para vir. Ouviu o desconhecido entrar na sala do transmissor com passos firmes e rápidos. — Levante os olhos, agente do tempo Rovza — disse uma voz firme. Rovza ergueu lentamente a cabeça. — Seja bem-vindo, Maghan — disse num cochicho. O homem que se encontrava à sua frente não era jovem, mas andava com o corpo reto. Era musculoso. O cabelo negro era entremeado por fios prateados.
— Meu nome é Toser Ban — disse. — Quero saber se nossas ordens foram cumpridas. — Naturalmente, Maghan — apressou-se Rovza a garantir. — Fizemos tudo que mandaram. Toser Ban passou os olhos pela sala. — Quer que desliguemos o transmissor, Maghan? — perguntou Rovza. — É claro que não — respondeu Toser Ban com um sorriso. Fez um sinal para os ajudantes de Rovza. Os quatro homens levantaram a cabeça. Rovza viu que se sentiam aliviados. O homem alto que usava o nome Toser Ban era cercado por uma auréola de autoridade. — Quer dizer que espera mais alguém? — arriscou-se Rovza a perguntar. — Oportunamente o senhor será informado, agente do tempo Rovza — disse o homem. Retire-se! O rosto de Rovza mudou de expressão. Via-se nele um misto de medo e decepção. Mas o agente do tempo cumpriu imediatamente a ordem que acabara de receber. — É claro que os senhores também sairão! — disse Toser Ban aos ajudantes de Rovza. Os homens apressaram-se em obedecer. Assim que os duplos se tinham retirado, o grande homem sorriu com uma expressão de desprezo. Aproximou-se do quadro de comando do transmissor e colocou a chavemestra na posição de recepção. — Ele usa o sinal Vocês viram? Ele usa o sinal! — disse Rovza aos seus ajudantes, quando já se encontravam no corredor. Os ajudantes acenaram com a cabeça. Não disseram uma palavra. — Eu sabia que coisas importantes estavam para acontecer por aqui — disse Rovza. — Se não cometermos nenhum erro, seremos promovidos. O mais importante é cumprirmos fielmente as ordens do Maghan. Na sala do transmissor, Toser Ban estava de pé à frente do aparelho, esperando. O símbolo dos senhores da galáxia brilhava no peito de suas vestes cor de prata. Toser Ban era um dos homens mais poderosos de duas galáxias. Era um senhor da galáxia.
1 Quando o dia estava raiando, Brank morreu. Despediu-se deste mundo, que ficava a mais de cinqüenta mil anos do seu. Na caverna ainda estava escuro, embora uma luz mortiça penetrasse pela fresta da entrada fechada por uma barricada. O fim foi precedido de um terrível acesso de tosse. Apoiei-me nos cotovelos e liguei minha lanterna. Iluminei Brank e vi que ele se erguera. O desespero estava gravado em seu rosto cheio de rugas. Os olhos brilhavam. Papageorgiu, que montava guarda na entrada da caverna, abandonou seu posto e aproximou-se do lugar em que nos encontrávamos. Redhorse ergueu-se no leito e inclinou-se na direção em que estava Brank. — Estou morrendo, major — disse o artilheiro. Sempre fora um homem rabugento e insatisfeito, que não conseguiu estabelecer contatos. Quando se encontrava sob o gelo, na cidade-abrigo, enlouquecera. Mas naquele momento sua mente parecia funcionar muito bem. Don Redhorse sorriu com uma expressão tranqüilizadora e empurrou-o suavemente de volta para o leito, preparado apenas com o traje de combate dobrado de Brank. — Deixe de bobagens, Sennan — disse. — Assim que clarear de vez, Surfat e eu sairemos para caçar. Uma boa refeição o ajudará a ficar de pé. Brank fez uma careta. — Acho que andei me fazendo de louco, senhor — disse, falando com dificuldade. — Todos têm seu momento de fraqueza — respondeu Redhorse. Brank virou o rosto para mim. — Quem sabe se consegue matar um urso bem gordo, cabo Surfat? — disse. Riu satisfeito. Era a primeira vez que o via rir. Depois fechou os olhos e morreu. Por algum tempo todos ficaram quietos. Finalmente Redhorse levantou abruptamente. — Vamos sepultá-lo no gelo — disse. Olhou para Papageorgiu, que estava parado aos pés de Brank e fitava o artilheiro com uma expressão de perplexidade. — Volte ao seu lugar, Lastafandemenreaos! — ordenou Redhorse. O rapaz virou-se em silêncio e voltou para a entrada da caverna. Ninguém pensou em dormir. Com nossas armas abrimos um buraco no gelo, nos fundos da caverna, e colocamos Sennan Brank nesse buraco, em cima de seu traje de combate. Em seguida retiramos alguns blocos de gelo da parede e cobrimos o cadáver do artilheiro. Sennan Brank ficaria nesse lugar por várias décadas, sem que seu corpo entrasse em putrefação. O gelo protegeria seu corpo pequeno e magro. Uma vez cumprido este dever, Redhorse deu ordem para que fosse desimpedida a entrada da caverna. Chegáramos de noite. Olhamos para fora e pela primeira vez vimos alguma coisa da paisagem que nos cercava. Estávamos numa depressão no meio das montanhas. Estava tudo coberto de gelo. Sabia que nos encontrávamos na periferia de uma cadeia de montanhas que mais tarde viria a ser a Serra Nevada. Redhorse olhou para a penumbra reinante do lado de fora e deu-me uma ligeira cutucada.
— Que tal se saíssemos para caçar agora mesmo? — perguntou. Enfrentei seu olhar. — Quem manda é o senhor — respondi. — Está bem — disse Redhorse. — Vamos colocar os trajes de combate. Os outros ficaram olhando em silêncio, enquanto nos preparávamos para sair. Provavelmente Doutreval, o Tenente Bradon e Papageorgiu me invejavam por poder acompanhar o major. Eu mesmo não gostaria de ficar na caverna. — Tomara que consiga alguma coisa, senhor — disse Chard Bradon. Redhorse prendeu no cinto o pequeno goniômetro, que também podia ser usado como rádio. Verificamos nossas armas e saímos. Bradon acompanhou-nos até a saída. — Não ficaremos fora mais de três horas — disse Redhorse ao tenente. — Se demorarmos mais, o senhor tem minha permissão de sair da caverna com os outros dois e agir segundo seu critério. Afinal, não podemos excluir a possibilidade de que acabemos caindo nas mãos dos robôs tefrodenses. Não acredito que tenham desistido das buscas. — Se os robôs ainda estiverem por aí, a caçada será uma aventura muito perigosa, senhor — disse Bradon, olhando para os projetores antigravitacionais que trazíamos nas costas em forma de mochila. — Acha que poderemos ser detectados? — Redhorse mexeu no gelo com a ponta da bota. — Precisamos comer quanto antes, tenente. Despedimo-nos do jovem oficial e saímos voando. Sentia-me forte e descansado, mas o vento gelado que soprava das montanhas fez com que eu tivesse minhas dúvidas de que agüentássemos três horas fora da caverna. — Acho que nos encontramos na área periférica das geleiras — disse Redhorse. — Acha que estamos no limite sul das massas de gelo móveis? — perguntei. Redhorse sorriu. — Se tivesse prestado mais atenção na escola, Brazos, o senhor deveria saber que no auge da última era glacial a bacia do Nevada foi completamente tomada pelas geleiras. Mais tarde esta bacia transformou-se num mar primitivo, mas este acabou secando. — Por que não voamos para o sul? — Hum — fez Redhorse. — Seria uma viagem para o desconhecido, para a qual teríamos de estar descansados. Se não encontrarmos alimento por aqui, não teremos alternativa. Seremos obrigados a fazer esta viagem. Bem que eu gostaria de saber quantos quilômetros nos separam da área livre de gelo. Os professores de Redhorse também não sabiam tudo, pensei com uma ponta de sarcasmo. Mas seria exigir demais que conhecessem o limite das geleiras com a precisão de um quilômetro. Saímos da depressão. O major desceu na primeira encosta. Pousei bem a seu lado. à nossa frente estendia-se um deserto de gelo cheio de colinas. — Aqui não encontraremos nenhuma caça, senhor — observei. — Receio que o senhor tenha razão — disse Redhorse. — Talvez tenhamos mais sorte quando clarear o dia. Olhei para o céu nublado. Se o Sol conseguisse romper a camada de nuvens, ele só apareceria como uma pequena bola vermelha, incapaz de enviar seus raios quentes através das nuvens de pó e escombros que se estendiam entre Marte e Júpiter. Os restos do planeta Zeut impediam o aquecimento da atmosfera durante o dia. Prosseguimos a pé. Foi uma marcha difícil, porque vivíamos escorregando. Avançávamos muito devagar. Não se via o menor sinal de vida. Finalmente Redhorse parou. Já fazia uma hora que tínhamos saído da caverna.
— É uma paisagem morta — disse o cheiene. — Quase não dá para acreditar que um dia isto venha ser parte da América do Norte. — Cinqüenta mil anos são um tempo muito longo — retruquei. — Não podemos esperar até que os búfalos apareçam por aqui. O índio parecia despertar em Redhorse. — Uma boa caçada de búfalos até que seria divertida, Brazos — disse, entusiasmado. Apontou para a arma energética e acrescentou em tom de desprezo: — Mas não com isto. Tentei imaginar Redhorse pintado para a guerra, montado num pônei de índio, correndo em galope pela pradaria, sem sela, segurando-se com uma das mãos na crina do animal, enquanto na outra trazia o arco. Parecia que Redhorse adivinhara meus pensamentos, pois mudou repentinamente de assunto. — Se pelo menos tivéssemos bastante sorte para encontrar o corpo congelado de um animal — disse. — Mas as probabilidades são contra nós. Bati as mãos, para aquecê-las. Sabia que na caverna não havia nenhuma refeição à espera, mas tive saudades deste lugar. Na caverna de gelo pelo menos reinava uma temperatura suportável. — Acho que seus pés estão ficando frios, Brazos — disse Redhorse, que observara meu movimento. — Comigo está acontecendo a mesma coisa. Vamos voltar. É possível que no caminho para a caverna encontremos alguma coisa. Voamos em direção à caverna, ficando rente ao chão. Seria difícil detectar a energia desprendida por nossos projetores antigravitacionais, desde que ficasse encoberta atrás das montanhas de gelo. Por alguns minutos a idéia absurda de que talvez não encontrássemos mais a caverna ficou me martirizando. Mas tínhamos o goniômetro portátil, além dos rádios de pulso. Mas podíamos confiar no instinto de Redhorse. O índio seria capaz de encontrar a caverna até no escuro. — O pessoal ficará decepcionado se voltarmos de mãos vazias — observou Redhorse. — Mandarei sair Brandon e Papageorgiu. Eles que tentem matar algum animal. — Sim, major — respondi. — Pelo amor de Deus, Brazos, não fique com essa cara — pediu o cheiene. — Já estivemos muito mais próximos da morte que agora. — Sem dúvida — confessou. — Tentarei... Redhorse interrompeu-me, levantando o braço. Apontou para baixo. Pousamos lado a lado e Redhorse mexeu apressadamente em alguns comandos de seu goniômetro. — Alguém está nos perseguindo, senhor? — perguntei, nervoso. — Quieto! — chiou Redhorse. O aparelho deu um estalo. De repente tive a impressão de ouvir uma voz pouco compreensível. Inclinei-me sobre o aparelho. Redhorse ligou o amplificador. A voz tornou-se mais forte. — ...parece que as naves halutenses evitam a área das geleiras — disse a voz saída do alto-falante. — Por enquanto as ruínas de Makata foram... — a voz tornou-se incompreensível, e o alto-falante transmitiu um chiado. Redhorse girou desesperadamente nos botões. A voz voltou a ser ouvida. —...parece que estão examinando as cidades em ruínas. Tudo indica que os halutenses acreditam que não há mais ninguém por lá. Ultimamente quase não foram
avistadas mais naves inimigas. Atualmente transferimos nossa área de caça para a planície de Saran... A voz ficou mais fraca. Desta vez os esforços do major não deram resultado. O altofalante do aparelho continuou mudo. O cheiene ficou de pé. — O que significa isso, senhor? — perguntei, perplexo. — A mensagem deve ter sido transmitida por alguns lemurenses que se encontram mais ao sul. São sobreviventes da grande catástrofe, que não conseguem livrar-se do medo que sentem dos halutenses. Parece que usam o rádio para prevenir uns aos outros contra os halutenses. — Na mensagem foram mencionadas as ruínas de Makata — observei. — Será que os lemurenses que transmitiram esta mensagem vivem lá? — É possível — disse Redhorse. — Tentei determinar a posição do transmissor, mas houve muitas interferências. Se voarmos para o sul, será mais fácil fazer a determinação goniométrica do local. — Ainda bem que não estamos sós neste mundo desolado — respondi. — Tomara que encontremos as ruínas de Makata. Redhorse colocou a mão no meu braço e fitou meu rosto. — Não quero que os outros fiquem sabendo disso antes da hora, Brazos. Não estou interessado em despertar esperanças vazias. Antes de partirmos para o sul, precisamos de mais informações. Quer dizer que teremos de captar outras mensagens. Caso haja combatentes halutenses no sul, não gostaria de cair nas mãos deles. Compreendi o receio de Redhorse, embora soubesse que seria difícil guardar silêncio perante os companheiros. Quando chegamos à caverna, eu me sentia exausto. Levamos meia hora para aquecer-nos. Bradon, Doutreval e Papageorgiu não esconderam sua decepção pelo fracasso da caçada. Mal tínhamos chegado, Papageorgiu e o Tenente Bradon saíram. — Usem os projetores antigravitacionais o menos possível — advertiu Redhorse. — Não devemos chamar a atenção dos robôs de guerra tefrodenses. Fazia mais ou menos uma hora que Bradon e Papageorgiu tinham saído, quando o pequeno radiogoniômetro voltou a entrar em funcionamento. Redhorse logo ficou de pé. Desta vez a mensagem captado foi curta, mas bem compreensível. — No litoral existe um excelente campo de caça. Vocês poderão orientar-se pelo vulcão de Eusarot. — Lá no sul pelo menos há alguma coisa para comer — observei. Olivier Doutreval olhou para Redhorse como quem quer perguntar uma coisa. Redhorse deu uma explicação ligeira sobre a primeira mensagem que tínhamos captado. — Vamos ter trabalho para o senhor, Olivier — disse o major. Entregou o aparelho a Doutreval. — Trate de determinar a posição do transmissor. Basta descobrir a posição aproximada. Doutreval pegou o aparelho com tamanho cuidado que até parecia que estava lidando com um grande tesouro. — Não será fácil localizar o transmissor — disse o pequeno astronauta. — É um aparelho comum, feito apenas para as comunicações pelo rádio. — Isso eu sei. Acontece que este aparelho é a única possibilidade de entrarmos em contacto com homens civilizados e arrancar alimento. Doutreval voltou ao lugar em que estivera deitado. Colocou o aparelho no chão e sentou à frente dele. Sabia que não tiraria os olhos do rádio por um segundo que fosse. Tirei o traje de combate e deitei em cima dele. Surpreendia-me constantemente olhando
para Doutreval. Esperava que a qualquer momento recebêssemos outra mensagem. Mas o alto-falante ficou em silêncio. O Tenente Bradon e Papageorgiu voltaram da excursão para o mundo das geleiras, cansados e sem terem conseguido nada. Pelos meus cálculos, já devia ser o fim da tarde. Papageorgiu tirou o traje de combate, espalhou-o no chão e adormeceu imediatamente. Invejei-o por isso. Bradon olhara ora para Doutreval, ora para Redhorse. — Detectou algum grupo de robôs?—perguntou a Doutreval. — É somente uma precaução — apressou-se Redhorse em dizer. — Não quero que sejamos surpreendidos. Um de nós deve ficar sempre de olho no aparelho. Bradon franziu a testa. Sabia que não ouvira toda a verdade, mas era bastante inteligente para não insistir junto ao major. Para minha decepção o pequeno rádio permaneceu em silêncio o resto do dia. Quando voltou a escurecer do lado de fora, lamentei que Redhorse não tivesse partido imediatamente para o sul. Era possível que não captássemos mais nenhuma mensagem. Neste caso seríamos obrigados a voar às cegas. Derretemos um pouco de gelo para matar a sede. Ainda agüentaríamos alguns dias sem comida, mas ficaríamos cada vez mais fracos, o que aumentaria os perigos de um vôo prolongado. Senti que os homens esperavam que Redhorse desse alguma ordem, mas ele limitou-se a distribuir as sentinelas para a noite. Quando tínhamos preparado os lugares em que iríamos dormir, o Tenente Bradon observou em tom cauteloso: — Não acredito que aqui tenhamos sorte nas caçadas, senhor. — Também penso assim — respondeu Redhorse. Bradon puxou o traje de combate. Parecia embaraçado. Sem dúvida gostaria de saber quais eram os planos de Redhorse para o dia seguinte. — Pretende sair para caçar novamente amanhã? — perguntou depois de algum tempo. Redhorse bocejou. — Por enquanto pretendo dormir algumas horas — respondeu. — Amanhã direi o que vamos fazer. Bradon teve de contentar-se com esta informação. Doutreval ficou de sentinela durante o primeiro turno. Levou o rádio para a entrada da caverna, que fecháramos novamente com barricadas, só deixando aberta uma pequena fresta. Durante a noite soprou uma tempestade de neve. Tivemos de fazer uso várias vezes de nossas armas energéticas, para manter a temperatura no interior da caverna acima do ponto de congelamento. O gelo derretido pingava no teto, enquanto lá fora uivava o vento, tocando as massas de neve. — Uma tempestade como esta pode durar alguns dias — disse num cochicho, para não acordar os outros. — Não pinte o diabo mais preto do que ele é — resmunguei. — Só podemos fazer votos para que amanhã de manhã tenha passado. Doutreval olhou para mim como se quisesse dizer mais alguma coisa, mas acabou levantando os ombros e voltando ao seu lugar. Suspirou, deitou em cima de seu traje de combate e apagou a lanterna. Fiquei parado na entrada da caverna e perguntei a mim mesmo se no rugido da tormenta seria possível distinguir qualquer outro ruído. No fundo nem era necessário que alguém ficasse de sentinela. Redhorse certamente exigia isso antes por razões psicológicas que por um motivo racional. De vez em quando uma porção de neve era tocada pela fresta e subia para o alto. Senti a neve pousar em meu rosto, onde derretia imediatamente. Constantemente
encostava o rádio ao ouvido, mas não percebi o menor ruído. Meu turno de sentinela passou mais depressa do que eu esperara. — Ouviu alguma coisa? — Não — respondi. — Está tudo quieto, menos a tempestade. — Tomara que a entrada da caverna não seja obstruída pela neve — disse Redhorse. — Doutreval disse que uma tempestade como esta pode durar alguns dias — observei. Redhorse dirigiu a luz da lanterna para fora, mas não viu nada além das massas de neve tangidas na horizontal. — É verdade — disse depois de algum tempo. — Mas a tempestade que está soprando agora passará até amanhã. — Provavelmente nem veremos o dia clarear, senhor. — Não se preocupe. Eu sentirei. — Só posso estar preocupado, já que a teoria de Brank não se confirmou, senhor — respondi com um sorriso apagado. — Segundo Brank, é impossível morrermos aqui, porque neste caso não seria possível que caíssemos na armadilha do tempo do planeta Vario no ano dois mil quatrocentos e quatro. Redhorse passou a mão pelos cabelos negros. — Não adianta quebrar a cabeça sobre isso. Brank está morto, mas certamente voltará a nascer em algum ponto do tempo relativo, para retornar a este mundo gelado e morrer. — Se a gente continua nestas reflexões, até pode enlouquecer — observei. Percebi que Redhorse não estava com vontade de conversar sobre isso e voltei ao meu lugar. Não consegui dormir logo. Fiquei deitado de costas, pensando em Brank, que estava sepultado no gelo, bem nos fundos da caverna. O paradoxo do tempo ligado à sua morte me veio à mente. De repente ouvi uma voz rouca na entrada da caverna. Respirei aliviado quando compreendi que era o rádio. O lemurense desconhecido voltara a falar.
2 A tempestade parou na manhã do dia seguinte. Não se ouvia mais o uivar do vento. O Major Redhorse deu ordem para que desobstruíssemos a entrada. Em toda parte havia neve acumulada, mas no fundo isto não fazia diferença, pois a paisagem era tão desolada quanto antes. — Partiremos para o sul — disse Redhorse. — Surfat e Doutreval já estão informados sobre as mensagens que captamos no rádio. De noite, quando estava de sentinela, vieram duas mensagens através de nosso pequeno receptor. Parece que mais para o sul existem outras cidades em ruínas, nas quais existem sobreviventes lemurenses. Uma destas cidades tem o nome de Makata. As mensagens transmitidas pelo rádio falam principalmente em naves halutenses, campos de caça, atividade vulcânica e nas condições meteorológicas. Acho que as mensagens se destinam a um grupo de lemurenses que se encontra ainda mais ao sul que aquelas cujas mensagens temos captado. Podemos ter certeza de que, se ficarmos aqui, morreremos de fome. Não vamos esperar até que fiquemos fracos demais para voar para o sul. Coloquem os trajes de combate e verifiquem as armas. Sairemos assim que estivermos prontos. Parecia que os homens estavam satisfeitos por poderem sair da caverna. Redhorse chegou perto de mim e fez um sinal para que o Tenente Bradon se aproximasse. — Em uma das mensagens foi mencionado um navio a vela. Perguntou-se ao grupo que vive mais ao sul em que ponto está a construção da embarcação. Infelizmente não consegui captar a resposta. — Um navio a vela — repetiu Bradon, pensativo. — O que significa isso? — Os lemurenses que vivem no sul parecem ser gente muito ativa — disse Redhorse. — Se conseguirmos estabelecer ligação com um dos grupos, quase todos os nossos problemas estarão resolvidos. Saímos da caverna dentro de alguns minutos. Lembrei-me de Brank, cujo cadáver ficara para trás. Seu corpo nunca seria encontrado. Mais tarde, quando o gelo derretesse, o cadáver seria tragado pelo mar primitivo que encheria a bacia do Nevada. Sennan Brank certamente não imaginara que iria morrer no ano 49.488 antes do nascimento de Jesus Cristo, mais de cinqüenta mil anos antes do próprio nascimento. — Parece que os robôs dos tefrodenses voltaram a encontrar nossa pista — disse Redhorse, que levava o radiogoniômetro. — Está na hora de irmos embora. Ligamos os projetores antigravitacionais para a potência máxima e entramos no frio do raiar de mais um dia. Na Terra, que parecia ser um planeta estranho situado num futuro distante os calendários registravam o dia 5 de julho de 2.404. Os homens estariam indo para o trabalho, tomando café, discutindo coisas sem importância, sentindo-se felizes ou infelizes, amando e odiando uns aos outros. Nenhum deles pensaria que nesse mesmo instante cinco terranos poderiam lutar pela vida num passado distante. Se alguém contasse a estes homens o que acontecia conosco, eles pensariam que este alguém tinha enlouquecido. Deixamos para trás a caverna e voamos para o sul. Não sabia quanto tempo levaríamos para sair da área das geleiras. Nem sequer sabia se conseguiríamos sair.
*** — Ali adiante, não se sabe bem, fica aquilo que mais tarde será a costa oeste — disse Redhorse com a voz abafada. O frio modificara a expressão de seu rosto. Os olhos tinham afundado nas órbitas e embaixo deles viam-se círculos escuros. Sabia que o aspecto dos outros não era melhor. Meu estômago parecia ter-se transformado numa bola murcha, que a cada movimento que fazia causava dores em todo corpo. — Los Angeles — disse Doutreval. — Um dia a cidade de Los Angeles aparecerá por lá — fechou os olhos por um instante. — Imaginem — disse em tom enfático. Imitei seu exemplo, fechando os olhos. O vôo extenuante parecia ter afetado minha fantasia tanto quanto meu corpo. — Espero que já nos encontremos na altura em que mais tarde ficará a cidade de San Diego, na costa mexicana — disse Redhorse. — Temos de atingir a latitude trinta antes que escureça. Lá, sem dúvida, não há mais gelo. A paisagem que estávamos sobrevoando parecia mudada. Era quase toda plana. Não havia mais gelo sólido, mas em compensação nevava ininterruptamente. O vento não era tão frio, mas havia muitas tempestades. Era o lugar em que as frentes frias vindas do norte se encontravam com as massas de ar quente do sul, provocando verdadeiros furacões. Redhorse garantiu que, quando tivéssemos percorrido mais algumas centenas de milhas, isso mudaria. Pelos meus cálculos, já tínhamos voado umas oitocentas ou novecentas milhas depois de termos saído da caverna. Tínhamos a vantagem de poder voar em linha reta. Não precisávamos contornar os obstáculos existentes na superfície. Há algumas horas o projetor antigravitacional de Doutreval falhara. Mas Redhorse tinha previsto um contratempo desse tipo. Mantinha preparado o projetor de Brank, e assim o incidente não causou nenhuma demora. Estávamos cansados demais para dizer qualquer coisa, além de algumas palavras sem importância. Só tínhamos a atenção despertada quando captávamos uma mensagem dos lemurenses. O texto das mensagens sempre era parecido. Girava em torno dos halutenses, de campos de caça ou das condições meteorológicas. De vez em quando era mencionado o navio a vela em construção. — Se os lemurenses não interromperem as comunicações pelo rádio, voaremos diretamente para as ruínas de Makata — disse Redhorse, numa obstinada resolução. — Será que o golfo da Califórnia já existe? — perguntou Bradon. — Não sei — respondeu Redhorse. — Mas tenho certeza de que haverá algumas surpresas para nós. Não fizemos nenhuma pausa para descansar. Tínhamos certeza de que, se fizéssemos, seríamos dominados pelo cansaço. Mas quando começou a escurecer, não tivemos alternativa. Fomos obrigados a interromper o vôo. Procuramos uma depressão e amontoamos bolas de neve, formando um iglu rudimentar. Dentro do iglu era muito apertado, mas quente, e estávamos protegidos do vento. Se as indicações do goniômetro não nos enganavam, os robôs tefrodenses tinham perdido de vez nossa pista. — Sem dúvida esta é a última noite que passamos no meio da neve, de estômago vazio — garantiu Don Redhorse. — Partiremos ao raiar do dia. De noite aconteceu alguma coisa que nos levou a pensar que o cheiene tinha razão. Começou a chover. ***
As massas de gelo avançavam dos pólos em direção ao equador. Inúmeros animais tinham fugido delas, passando a viver nas zonas temperadas. Sabia que no México Central poderíamos encontrar muitas espécies de animais perigosos, cujo habitat primitivo ficava em outras regiões da Terra. Apesar de sua tecnologia avançada, os lemurenses fizeram questão de conservar a fauna de seu planeta. A história ensinava até que ponto a quarta e última era glacial frustrou os esforços neste sentido. No fim do pleistoceno e no início do holocênio muitas espécies de sáurios gigantes foram extintas de repente, embora o número de espécimes que vivia na Terra fosse muito elevado. Foram estes meus pensamentos quando saímos de nosso iglu ao amanhecer. Parará de chover e o chão ficara liso com a água de chuva congelada. Redhorse fez questão de que destruíssemos o iglu, pois acreditava que pudesse colocar alguém que quisesse perseguir-nos em nossa pista. Nosso café da manhã foram algumas porções de neve derretida, com as quais matamos a sede. Não saciamos a fome, mas tínhamos todo motivo para esperar que no correr do dia descobríssemos alguns animais que pudéssemos caçar. Esperava que não fôssemos abater justamente um mamute, pois nenhum de nós sabia como cortar este gigante para retirar a carne comestível. A história ensinava que a área das geleiras fora habitada por muito tempo pelo mamute lanudo, mas nossas experiências não confirmavam essa informação, pois ainda não nos tínhamos encontrado com nenhum animal dessa espécie. Depois de duas horas de viagem atingimos o litoral. Era irregular e entrecortado. Havia inúmeras baías que avançavam vários quilômetros terra a dentro. O continente enorme chamado Lemúria tinha desaparecido. Certamente mergulhara no Oceano Pacífico. Pelos cálculos de Don Redhorse, isso devia ter acontecido pelo menos há 450 anos. As formações terrestres se tinham deslocado e os continentes que conhecíamos do nosso tempo já haviam surgido em sua forma básica. — Que pena que não vamos voar até o lugar que virá a ser o mar das Caraíbas — disse o Tenente Bradon, que parecia sentir-se fascinado com essa impressionante aula de História. — O istmo do Panamá provavelmente é a única faixa de terras que ainda sofrerá uma mudança acentuada. Por enquanto o istmo ainda é largo e bastante extenso, mas a América do Norte e do Sul se deslocarão para formar o golfo do Panamá. A mata virgem estendia-se à nossa frente. Descemos entre algumas árvores altas e montamos um acampamento rudimentar. Desta vez tivemos sorte na caça. Sem sair do lugar, abatemos um animal parecido com um ursinho. Bradon e Papageorgiu foram buscar a caça abatida. Doutreval foi procurar lenha seca. O chão estava úmido e pantanoso. Devia haver um pântano ou um mar por perto. — É um castoróide — observou Bradon, enquanto tirava com muito trabalho a pele do animal abatido. — Pertence à família dos castores gigantes. — Se Gucky descobrir que matamos um animal da família dos castores, teremos problemas — profetizou Redhorse. Começamos a ficar mais animados. As dificuldades do vôo há tinham sido esquecidas. Acendemos uma fogueira, depois que Redhorse se certificara que a lenha realmente estava bem seca. — A lenha verde solta muita fumaça — disse. — Não queremos atrair a atenção de ninguém.
Cortamos pedaços de carne do corpo do castor gigante, espetamo-los em galhos compridos e assamo-los no fogo. Devo confessar que foi a primeira vez que comi uma carne tão dura e insossa com tamanho apetite. Terminamos a refeição singela e apagamos o fogo. Papageorgiu ficou de sentinela no primeiro turno, enquanto os outros caíram num sono profundo. Ficamos no mesmo lugar até a manhã do dia seguinte, sem sermos atacados. De vez em quando ouvia-se um galho ser quebrado na selva próxima, o que era um sinal seguro da presença de animais de grande porte. Captávamos regularmente as mensagens de rádio transmitidas da cidade em ruínas chamada Makata, que devia ficar a poucos quilômetros do lugar em que nos encontrávamos. Nosso café da manhã consistiu em carne de castor assada e água de chuva retirada das folhas afuniladas de diversas plantas. Durante a noite voltara a chover. Partimos, descansados e com a fome saciada. Redhorse removeu os restos da fogueira, enquanto Papageorgiu e eu enterrávamos os restos do castor. Saímos voando rente às copas das árvores da mata extensa. Pela primeira vez avistamos animais maiores. Entre eles havia um tatu-gigante e uma preguiça-gigante, que estava apoiada, imóvel, numa árvore. A preguiça-gigante era o maior sáurio de sua época. Pesava mais que um elefante e tinha seis metros de altura quando ficava apoiada nas pernas traseiras. Imaginei que a caça de monstros dessa espécie seria um tanto perigosa, mesmo que usassem armas energéticas. Atravessamos a mata e ficamos junto à linha costeira. Parecia que a suposição de Redhorse, segundo a qual Lemúria desaparecera no Pacífico, estava sendo confirmada pelos acontecimentos. De fato, não encontramos o menor sinal do continente gigantesco. Don Redhorse deu ordem para que reduzíssemos a velocidade. — Estão vendo aquele planalto? — perguntou. — Se não estou muito enganado, a cidade em ruínas chamada Makata deve ficar lá. Alguns edifícios estão cobertos pela vegetação, mas continuam perfeitamente reconhecíveis. Redhorse enxergava muito bem, mas até mesmo eu reconheci os restos daquilo que já fora uma grande cidade lemurense no planalto que surgira à nossa frente. Em três lugares diferentes subiam nuvens de fumaça para o céu encoberto. — É para lá que vamos — disse Redhorse. — Não sei se seremos recebidos como inimigos. Por isso devemos ter muito cuidado. Vamos... O resto de suas palavras foi abafado pelos estalos do pequeno rádio que trazia consigo. Redhorse ligou imediatamente o amplificador e mexeu nos botões. Ouvimos a voz de uma mulher que parecia falar assustada para dentro do microfone. — ...isolados. Estou cercada pelos mutantes, que tentarão seqüestrar-me. Ajudemme o mais depressa que puderem, senão estou... A voz silenciou. — Deve ser lá adiante! — exclamou Redhorse. — Vamos! Acho que vale a pena darmos uma olhada de perto. Pode ser que a vida de alguém esteja em perigo. Saímos voando pela borda da mata. Perguntei a mim mesmo como Redhorse esperava encontrar a mulher no meio da selva fechada. De repente uma figura esbelta com cabelos longos apareceu obliquamente à nossa frente. Era uma moça. Saiu correndo no meio das árvores e vivia olhando para trás. — Deve ser ela! — gritou Redhorse.
Dali a instantes os perseguidores saíram da mata. Eram sete criaturas terrivelmente deformadas. Algumas estavam nuas, enquanto outras vestiam peles. Traziam pesadas clavas de madeira e machados de pedra nas garras, nos tentáculos e nas mãos atrofiadas. — Pelo amor de Deus! Quem são eles? — gritou Doutreval com um gemido. — A moça aludiu a mutantes — lembrou Redhorse. Fiquei apavorado ao ver um dos selvagens brandir o machado de pedra, que logo foi arremessado. A desconhecida foi atingida na nuca e caiu no chão. Ficou imóvel. Os bárbaros soltaram gritos de triunfo e apressaram o passo. — Atirem neles! — gritou Redhorse. Os mutantes, ou fossem lá quem fossem os inimigos da moça, ainda não nos tinham visto. Redhorse e Bradon deram dois tiros de alerta, que abriram uma vala à frente dos selvagens. Nuvens de fumaça subiram do chão. Pousamos a alguns metros da desconhecida. Os mutantes pararam. Pareciam indecisos. Não tive a menor dúvida de que se tratava de descendentes dos lemurenses, que com o correr do tempo haviam sofrido uma mutação negativa, que os fez regredir ao nível dos homens da idade da pedra. Seus corpos tinham sofrido deformações terríveis. O chefe era um homem alto com pernas de aranha e rosto alongado. Os braços pendiam numa posição estranha junto ao corpo. Possuía um único olho, alongado e com uma expressão rígida. A outra metade do rosto estava coberta de escamas. Este homem feio resmungou alguma coisa para os companheiros. Sua voz era parecida com a de um animal. Os mutantes uivaram furiosamente e recuaram para a selva. Finalmente tivemos tempo para cuidar da moça. Virei o rosto para ela e notei que se mexia. Quando se deu conta de que tinha caído, soltou um grito, mas ao ver-nos ficou mais calma. Era esbelta e tinha cabelos escuros. Usava uma manta que ocultava as formas do corpo. A moça que acabávamos de salvar era muito bonita. — Quem são os senhores? — perguntou. — Por que me ajudaram? Redhorse passou por cima da primeira pergunta. — A senhora estava só — respondeu. — Quer dizer que a relação de forças era bastante injusta. Só quis que houvesse uma compensação. A moça parecia ter gostado da resposta. Levantou com um sorriso. Apressou-se em remover a sujeira que cobria sua manta. — Meu nome é Monira — disse a título de apresentação. — Separei-me de meu grupo durante uma caçada — seu rosto mudou de expressão, quando se lembrou do que acontecera. Depois fitou-nos um após o outro e disse com uma estranha ênfase: — Parece que os senhores salvaram minha vida. — A senhora diz isso como se ajudar alguém fosse um crime — observou Redhorse, espantado. Monira parecia embaraçada, mas logo voltou a controlar-se. — Quero saber de onde vieram — insistiu. Redhorse fez um gesto vago. — Viemos do norte — respondeu. — Lá existe... — logo se corrigiu — ...existiu uma cidade chamada Godlar. Vivíamos lá, até que o gelo nos obrigou a ir para o sul. Recebemos algumas mensagens transmitidas pelo rádio. Queremos ligar-nos aos lemurenses que vivem aqui. — O senhor fala nossa língua com um estranho sotaque — disse a moça. — É mesmo? — perguntou Redhorse com o maior sangue-frio. — Eu já ia dizer isso da senhora.
A moça deu uma risada, exibindo duas fileiras de dentes muito brancos. Agitou os cabelos longos enquanto sacudia a cabeça. “Pare de admirá-la, Brazos, seu idiota velho”, pensei, contrariado. — Meu nome é Don — prosseguiu Redhorse. — Este jovem é Chard Bradon. Este aqui é Olivier Doutreval e o grandalhão se chama Papageorgiu — finalmente apontou para mim. — O gorducho costumamos chamar de Brazos — informou. Lancei-lhe um olhar furioso, mas ele o ignorou. — As mensagens de rádio a que o senhor se referiu foram transmitidas por nosso grupo — disse Monira. — Foram dirigidas a um grupo de lemurenses que vivem mais ao sul. Redhorse apontou para o planalto. — É lá que a senhora vive? — perguntou. A moça estremeceu. — Felizmente não. As ruínas de Makata só são habitadas pelos mutantes. Vivemos nos abrigos que ficam perto do antigo porto espacial. — A senhora acredita que possamos negociar com o chefe de seu grupo? — perguntou Redhorse. Monira apontou para a arma energética de Redhorse. — Qualquer reforço é bem-vindo — bateu no cinto, no qual havia um coldre. Certamente perdera a arma que havia nele. — Estamos bem equipados, mas é possível que de repente os mutantes arrisquem um ataque. — Quantas pessoas há em seu grupo? — perguntou Bradon. — Somos trezentos e vinte e dois — informou a moça prontamente. — Quando puser os olhos em nosso equipamento, o senhor vai ficar admirado. Conseguimos salvar muita coisa. — Quer dizer que possuem aparelhos bastante avançados, como por exemplo aparelhos de hiper-rádio? — perguntou Redhorse, admirado. — Naturalmente — respondeu Monira, entusiasmada. — Além disso conseguimos manter em funcionamento os reatores atômicos de nossos antepassados. Dessa forma dispomos de uma fonte de energia inesgotável — um sorriso resignado apareceu no rosto de Monira. — Mas quanto às reservas de gêneros alimentícios as coisas estão muito ruins. Somos obrigados a caçar. E durante as caçadas sempre entramos em choque com os mutantes de Makata. Parada assim à nossa frente, a moça parecia uma pessoa muito resoluta. O fato de ter sido salva por pessoas desconhecidas não parecia preocupá-la nem um pouco. Afinal, estes desconhecidos poderiam ter intenções hostis. Lastafandemenreaos Papageorgiu passou por mim e chegou perto da moça. Agitou as mãos enormes bem à frente de seu rosto. — Não se feriu na queda? — perguntou. Sorriu para Redhorse como quem pede desculpas, já que o cheiene dava a impressão de que não sabia o que pensar a respeito do procedimento do grego. — Desculpe o procedimento de John — prosseguiu o rapaz. — É tão interessado nas coisas técnicas que esquece o resto. — Não faz mal — disse Monira. — Também tenho interesse nas coisas técnicas. A queda não me afetou. — Não? — Papageorgiu balançava os braços que nem um louco, à procura de um motivo plausível para bater em retirada. — Bem, se não precisar... quero dizer... Ficou vermelho e baixou a cabeça.
— O que ele quer dizer é que estamos contentes porque a senhora se saiu bem disso — disse Doutreval na sua maneira elegante. — Ouça só o que ele diz — cochichou Bradou ao meu ouvido. — Talvez seria conveniente que a senhora nos levasse para junto de seu grupo e nos apresentasse ao chefe—sugeriu Redhorse. — Queiram acompanhar-me — sugeriu Monira. Saiu em direção à mata, sem olhar para ver se a acompanhávamos. Tive a impressão de que preferiria que fizéssemos meia-volta. — Parece que não ficou nada contente ao saber que queremos ir com ela — disse Redhorse. — Mas temos de entrar em contacto com seus amigos. Saímos andando. Doutreval colocou-se a meu lado e estalou a língua, num gesto de admiração. — Veja só o modo dela andar — disse. Olhei-o com uma expressão zangada. — Acho que ela anda da forma pela qual se deve andar na selva. Não vejo nada de extraordinário nisso. Doutreval brindou-me com um olhar de desprezo. Quando atingiu a borda da mata, Monira parou. — Acho que devem ficar com as armas preparadas — recomendou. — Os mutantes podem voltar a qualquer momento com uma força mais numerosa. Desapareceu entre as raízes altas das árvores gigantescas. Apressamo-nos para não ficar atrás. Monira mostrou muita habilidade em passar por cima dos obstáculos que havia no caminho. Depois de algum tempo atingimos uma clareira e defrontamo-nos com um grupo de lemurenses armados, que pareciam estar à procura da moça. — Não atirem! — gritou Monira. A advertência foi dirigida tanto a nós como aos seus amigos. Os homens aproximaram-se devagar. Eram todos altos e robustos. Suas roupas eram simples, mas limpas. Traziam carabinas energéticas e bombas de arremesso no cinto. Monira contou em poucas palavras o que tinha acontecido. A expressão de dureza abandonou os olhos dos homens. Felicitaram-nos. Um deles chegou a bater no meu ombro. Ao contrário de Monira, pareciam sentir-se felizes porque pretendíamos entrar em contacto com seu grupo. — Vamos levá-lo onde está Baton, que é nosso chefe — disse um dos homens. — Ficará contente em vê-los. — Quanto a isso não tenho a menor dúvida — disse Monira com uma ponta de ironia na voz. Os lemurenses nem pareciam ter notado as preocupações da moça. Levaram-nos pela metade em meio a ruidosas demonstrações de alegria. Depois de algum tempo atingimos uma área aberta. Vimos alguns edifícios cobertos pela vegetação. — Só conservamos os edifícios mais importantes—disse um dos homens que nos acompanhavam. — Principalmente aqueles em cujo interior foram montadas as instalações técnicas. Habitamos os abrigos que ficam do outro lado do porto espacial Estes edifícios não estão sujeitos aos ataques dos mutantes de Makata. Uma trilha atravessava ao antigo espaçoporto. Quando tínhamos percorrido mais ou menos metade da área livre, uma sentinela nos fez parar, mas permitiu que passássemos assim que ficou sabendo de nossa história.
Finalmente chegamos aos abrigos. À frente dos edifícios baixos a terra estava limpa e batida. Havia várias sentinelas. Um homem de meia-idade, de ombros largos, saiu do edifício maior e veio correndo em nossa direção. — É Baton! — exclamou Monira. Apesar da pressa, o lemurense irradiava uma aura de dignidade e autoridade. Um sorriso indiferente brincava em torno de seus lábios estreitos. Seus olhos eram vigilantes. Pousaram em cada um de nós, até que voltaram a concentrar-se em Redhorse, que Baton parecia ter identificado imediatamente como nosso chefe. — Sejam bem-vindos em nossa base — disse Baton com a voz calma. Levantou a mão num gesto de cumprimento. — Ficamos gratos pela recepção amável — disse Redhorse. Baton aproximou-se de Monira e colocou o braço sobre os ombros da moça. Tive a impressão de que Monira tolerava o contacto desse homem a contragosto, mas olhou para ele e sorriu. — Os senhores salvaram a vida de Monira — disse Baton. — Sentimo-nos obrigados por isso. Fiquem conosco o tempo que quiserem. Redhorse agradece e fez a apresentação dos homens. Um dos lemurenses, um homem esbelto cujo nome era Roulos, levou-nos a um abrigo coberto pela vegetação. — Fiquem morando aqui — disse. — O interior da residência pode parecer um tanto relaxado, porque o abrigo não estava habitado. Mas vamos ajudar para que fiquem confortavelmente instalados. — Obrigado — disse Redhorse. Roulos retirou-se, deixando-nos sós e abandonados à frente do edifício que seria nossa residência nos próximos dias. — Foi uma recepção ligeira — observei. — Parece que nenhum dos lemurenses se interessa pelo nosso passado. Pensei que fôssemos interrogados. — Eles têm de travar uma luta dura pela vida — respondeu Redhorse. — Antes assim que derramarem uma amabilidade exagerada sobre nós. Tenho certeza de que ficarão de olho em nós. Mas não demonstrarão sua natural desconfiança — pensativo, coçou o queixo. Via-se que estava com a barba por fazer. — Acabarei de dizer aos lemurenses de onde viemos. — Acha que deve fazer isso, senhor? — perguntou o Tenente Bradon, estupefato. — Por aqui existem aparelhos de hiper-rádio — lembrou Redhorse. — Se quisermos usá-los, teremos de apresentar um motivo plausível. Por que não vamos contar que saímos de uma colônia, numa nave lemurense, para examinar o setor de Vega? O resto poderemos contar como realmente aconteceu. Talvez os lemurenses estejam informados sobre a existência da estação tefrodense na área das geleiras. — Sugiro que antes de mais nada demos uma olhada em nosso alojamento — disse Papageorgiu. — Certamente teremos muito trabalho. Afastamos as trepadeiras e os arbustos que obstruíam a porta. Redhorse foi obrigado a abrir a fechadura a tiro. Finalmente pudemos entrar. Uma lufada de ar viciado bateu em nossos rostos. Ligamos as lanternas. Um lemurense entrou depois de nós. — Foi Baton que me mandou — disse o jovem, ofegante. — Vim para ajudá-los a arrumar sua residência — riu embaraçado. — Já temos alguma experiência nisto. Meu nome é Tebos. — Fico-lhe muito grato — disse Redhorse.
Tive certeza de que Tebos viera não somente para ajudar-nos, mas também para espionar. Os lemurenses ainda não confiavam em nós. Achei isso bem natural. Tebos, que trouxera sua própria lanterna, ligou o suprimento de energia do abrigo. No mesmo instante as lâmpadas presas no teto se acenderam. Estávamos numa sala de cerca de quarenta metros quadrados. As instalações consistiam apenas em algumas máquinas velhas, cobertas com plásticos transparentes. Havia poeira em toda parte. — O ar-condicionado está funcionando — afirmou Tebos, orgulhoso, e ligou a ventilação. — Acho que estas máquinas não os incomodarão. A maior parte delas está inutilizada. Os senhores terão de fabricar seus próprios móveis de madeira. Isto também se aplica às camas. Doutreval franziu o nariz. — Antes de mais nada temos de retirar a sujeira — disse. — Não quero dormir no meio de nuvens de poeira. Quem sabe se por aqui não existem os antepassados dos animaizinhos que costumamos chamar de percevejos? Tebos fitou-o com uma expressão de perplexidade. — Percevejos? — repetiu. — Que é isso? — Nada! — respondeu Redhorse, apressado, e lançou um olhar de alerta para o rádio-operador. — Ele só estava brincando. Doutreval compreendeu a advertência. Não devíamos dizer nada que pudesse mostrar que vínhamos de outra época. Isto só traria complicações desnecessárias. — A moça que salvamos é casada? — perguntou Papageorgiu. — Casada? — o lemurense fitou-o como quem não tinha compreendido. — O que significa isso? — Quero saber se ela tem um homem — disse Papageorgiu, inseguro. Tebos entesou o corpo. Via-se que não gostava de falar nisso. Provavelmente não sabia exatamente o que poderia contar e o que devia permanecer em segredo. Tiramos os trajes de combate e pusemo-nos a limpar a sala. Devo confessar que Tebos era melhor que nós neste trabalho. Levava mais sujeira para fora que todos nós juntos. No fim até chegou a trazer dois baldes de água. — Os senhores não possuem sua própria ligação de água — disse como quem pede desculpas. — Mas ali adiante, entre os dois abrigos maiores, existe uma fonte. A maior parte dos habitantes vai buscar água lá. Quando começou a escurecer, tínhamos arrumado nosso alojamento o suficiente para que se pusesse dizer que estava limpo. Tebos explicou que naquela noite ainda teríamos de dormir em cima dos trajes de combate. No dia seguinte ajudaria na fabricação de camas e outros móveis. Em seguida o jovem lemurense desejou que tivéssemos uma boa noite e retirou-se. — Cheguei a pensar que fiaria conosco de vez — observou Bradon. — Já está na hora de conversarmos sobre a situação em que nos encontramos — apontou para a porta. — Já notou que não faz muito tempo que os lemurenses chegaram aqui? — Por que diz isso? — perguntou Redhorse, espantado. — Fiquei de olho nas coisas. O caminho que atravessa o porto espacial foi aberto há pouco tempo. E as plantas que cobriam os edifícios habitados pelos lemurenses foram retiradas há pouco tempo. — Os lemurenses são obrigados a fazer regularmente este trabalho — observou o major. — As plantas levam pouco tempo para cobrir os caminhos e as construções. Acho perfeitamente natural que se tenha a impressão de que os lemurenses limparam o terreno pouco antes de termos chegado aqui.
Achei que a objeção de Bradon tinha sua razão de ser, mas mesmo que fosse verdadeira, não tínhamos motivo para desconfiar dos lemurenses. Já tinha escurecido de vez, quando alguém bateu à porta. Doutreval abriu e vi um sorriso amável em seu rosto quando Monira entrou. A moça trazia um recipiente com comida embaixo do braço. — Trouxe alguma coisa para comer — disse. Em seguida atravessou rapidamente a sala e colocou a panela em cima de uma máquina, que por enquanto estávamos usando como mesa. — Muito obrigado — disse Redhorse. Monira acenou com a cabeça e ia saindo, mas Redhorse deteve-a antes que chegasse à porta. — Há quanto tempo a senhora e seus amigos já se encontram nesta área, Monira? — perguntou. A moça parecia apavorada. Doutreval, que se encontrava perto da porta, fechou-a cuidadosamente. A moça olhou rapidamente para trás. — Não compreendi — disse em tom inseguro. Redhorse apontou para Bradon e sorriu. — Meu amigo acha que só faz alguns dias que seu grupo chegou aqui — disse. Monira engoliu em seco. — Por que teve essa idéia? — perguntou. — Vivemos aqui há muito tempo. É ...é um bom lugar. — A senhora tem medo de alguma coisa — afirmei. Monira olhou para mim. Em seguida virou-se para sair. O major fez um sinal e Doutreval abriu a porta. Quando a moça estava passando perto dele, o rádio-operador fez uma mesura irônica. Bateu a porta atrás dela. — Há algo de errado por aqui, senhor — resmungou Bradon. — Também tenho essa impressão — confirmou Redhorse. — Mas não se esqueça de que por aqui existe um hiper-transmissor. Se quisermos usá-lo, teremos de chegar a um acordo com os lemurenses. Fui para perto da panela trazida por Monira. — Sopa de legumes com carne — informei aos meus amigos. — Não é bom discutir com o estômago vazio. Depois de jantar voltaremos a conversar. Quando estávamos comendo, Papageorgiu disse em tom pensativo: — Se os mutantes de Makata não possuem outras armas além de clavas e machados de pedra, então não compreendo por que os lemurenses, que afinal dispõem de armas modernas, ainda não atacaram a cidade em ruínas e expulsaram seus habitantes. — Talvez ainda não tiveram tempo depois que chegaram aqui — disse Bradon. *** Fui despertado por um ruído indefinível e ergui-me imediatamente na cama. A porta estava entreaberta. Vi à luz de uma grande fogueira que os lemurenses tinham acendido na praça livre situada entre os abrigos. A fogueira provavelmente servia para espantar os animais selvagens e os mutantes de Makata. Peguei a lanterna e iluminei os lugares em que meus companheiros estavam deitados. Redhorse tinha desaparecido. Os outros estavam mergulhados num sono profundo. Levantei bem devagar e fui até a porta, cuidando para não fazer nenhum ruído. Havia duas figuras agachadas perto da fogueira. Eram lemurenses montando guarda. Não vi o menor sinal do major. Saí e fechei cuidadosamente a porta.
Redhorse estava sendo leviano, andando sozinho na escuridão. Tratei de ficar na sombra de nosso abrigo e afastei-me da porta. Do abrigo maior, que estava com a porta aberta, saía uma luminosidade. Nesse abrigo morava Baton. Será que Redhorse resolvera procurá-lo? Tive minhas dúvidas. Se o major tivesse a intenção de entrar em contacto com Baton, ele certamente nos teria informado. O vento frio da noite me fez estremecer. O grito triste de um animal veio da selva próxima. Os lemurenses que montavam guarda junto à fogueira não faziam nenhum movimento. Certamente já estavam habituados a este tipo de ruído. De repente Baton apareceu na entrada de seu abrigo. Os contornos de sua figura alta e muito larga nos ombros eram inconfundíveis. O lemurense ficou algum tempo no mesmo lugar. Finalmente veio andando rapidamente em direção a outro abrigo. Perdi-o de vista, mas ouvi o rangido de suas botas na areia. Dali a pouco ouvi-o chamar um nome em voz baixa. Uma porta rangeu ao ser aberta. Esperava que aparecesse alguma luz, mas no interior do abrigo ao qual Baton se dirigia estava escuro. Ouvi Baton dizer algumas palavras que não compreendi. Em seguida desapareceu no interior do abrigo. A porta foi fechada ruidosamente. Levantei os ombros num gesto de resignação. Se o chefe dos lemurenses era dado a visitas noturnas, isto era uma coisa que dizia respeito exclusivamente a ele. Ou será, perguntei a mim mesmo, numa súbita desconfiança, que essa atividade tem algo a ver com nossa chegada? Atingi a extremidade do edifício no qual fôramos alojados. Hesitei. Não era nenhum índio como Redhorse. O major sabia encontrar seu caminho, por mais escuro que estivesse. Sabia interpretar qualquer ruído. Eu não possuía esta capacidade. Apesar de tudo prossegui. O primeiro abrigo que atingi estava habitado, mas em seu interior reinava o silêncio. Passei por ele sem fazer ruído, o mais depressa que pude. Redhorse não ficaria muito satisfeito se descobrisse que eu também saíra. Mas, disse a mim mesmo em minha defesa, ele deveria ter-nos avisado. Estava na altura em que ficava a fogueira. Um dos guardas lemurenses levantou, espreguiçou-se e bocejou. O outro olhava para ele com uma expressão de tédio. — Será que ainda vai demorar muito? — perguntou o homem que acabara de levantar. — Sei lá — resmungou o outro. — Quem dá as ordens não sou eu. Os dois pareciam ser um tanto calados, pois não conversaram mais nada. Refleti sobre o sentido de suas palavras. Podiam significar muita coisa, e não se podia saber se tinham alguma coisa a ver conosco. Mas tive uma forte impressão de que os dois lemurenses estavam pensando em nós quando tiveram sua conversa. Os homens atiraram lenha na fogueira. Aproveitei o barulho para andar um pedaço. Não sabia o que estava procurando, mas o sentimento de que uma desgraça estava para acontecer me fez avançar cada vez mais. Quando me encontrava a cerca de duzentos metros de nosso abrigo, alguém me agarrou de repente pelo braço e me puxou para o lado. Fiquei tão assustado que fui incapaz de esboçar qualquer gesto de defesa. — Se acha que tem de ficar rastejando por aí, pelo menos não faça o barulho de um mamute — disse a voz bem conhecida de Redhorse. — Ouço-o há vários minutos. Meu coração batia com violência. — Senhor! — exclamei, perplexo. — Pensei que estivesse andando sem barulho. — Sem barulho! — repetiu Redhorse, irônico. — O que faria se em vez de mim se encontrasse com um estranho, que apontasse uma arma para o senhor?
— Fiquei preocupado — respondi. — Notei que tinha saído e resolvi ir atrás do senhor. — Quando precisar de auxílio, avisarei, cabo Surfat — cochichou Redhorse, indignado. — Sim senhor — respondi, desolado. Tive a impressão de que era supérfluo e tive vontade de voltar. — Olhe para lá — pediu, ligando a lanterna por um instante, para mostrar a direção. Do outro lado da selva, no lugar em que ficava o planalto, via-se o clarão de várias fogueiras no céu noturno. — É Makata, a cidade em ruínas dos mutantes — cochichou Redhorse. — Gostaria de saber o que está acontecendo por lá. — Quer dizer que vamos visitar a cidade em ruínas? — perguntei. — Depende, Brazos. Coisas esquisitas estão acontecendo aqui. Talvez tenhamos uma possibilidade de negociar com os mutantes. Ouvi Redhorse virar a cabeça. — Por enquanto vamos voltar ao nosso abrigo. Redhorse foi na frente. Quando passamos por uma construção menor, ouvimos uma mulher soluçando pela porta entreaberta. Redhorse parou tão de repente que esbarrei nele. — Monira mora aqui — disse. — Parece que alguma coisa a entristece. — Não consigo compreender essa moça, major — respondi cochichando. Redhorse empurrou-me à sua frente. Dali a alguns minutos chegamos ao nosso abrigo. Papageorgiu estava à nossa espera junto à entrada, de arma na mão. — Já ia saindo para verificar o que estava acontecendo — resmungou. Parecia aborrecido por ter perdido a oportunidade de participar da excursão noturna. — Tudo bem — respondeu Redhorse. —Vamos dormir.
3 Quando estava amanhecendo, Baton veio fazer-nos uma visita. Estávamos tomando a refeição preparada por Tebos. Baton sentou no chão a nosso lado e esperou em silêncio até que terminássemos. Em seguida fez um gesto para que Tebos saísse. Aquele homem grande parecia desfrutar uma autoridade sem limites. Baton fitou-me com uma expressão irônica. Não consegui livrar-me da impressão de que estava informado sobre minha excursão noturna. — Os senhores tiveram toda a noite para pensar — principiou Baton. — Estou ansioso para saber se resolveram ficar conosco. Redhorse limpou cuidadosamente a boca. Olhou demoradamente para Baton, como se quisesse descobrir seus pensamentos. — Sabemos perfeitamente que, ao participarmos de seu grupo, teremos de desempenhar determinadas tarefas. Que tarefas seriam estas? Baton deu uma risada. Seu cabelo, que já estava ficando grisalho em alguns lugares, tinha sido cuidadosamente penteado. A figura de Baton combinaria melhor com uma grande sala de reuniões que com o mundo perigoso em que nos encontrávamos. — Nosso trabalho consiste principalmente na manutenção das diversas máquinas e instalações energéticas — respondeu. — Além disso há os trabalhos de limpeza, construção e, naturalmente, precisamos de homens que saiam para caçar. — Suponhamos que aceitamos sua generosa oferta — respondeu Redhorse. — Nesse caso teríamos de cumprir invariavelmente suas ordens e as normas que promulgar? — Sei perfeitamente que viveram em condições bem diferentes das que estamos acostumados a encontrar aqui — respondeu Baton, calmo. — Por isso julgo conveniente conceder-lhes um prazo de adaptação. Mas depois disso teriam de submeter-se às minhas ordens, tal qual os outros — Baton voltou a sorrir. — Não sou nenhum tirano, mas para sobreviver neste ambiente é importante que minhas ordens sejam fielmente cumpridas. — Parece razoável — respondeu Redhorse. — Temos... Ouviu-se o ruído de uma sereia do lado de fora. Baton levantou e foi para a porta. — É o alarme — disse. — Esta sereia anuncia um ataque dos mutantes. Papageorgiu e eu entreolhamo-nos por um instante. Os abrigos dos lemurenses não eram considerados inexpugnáveis? Baton parou na entrada. — Aí está sua primeira tarefa — disse. — Ajudem-nos a repelir os atacantes. Seguimos Baton, sem colocar os trajes de combate. Havia mais de cem lemurenses armados na praça aberta. Baton gritou algumas ordens. Os homens espalharam-se. Baton apontou para o campo de pouso do antigo porto espacial, que estava tomado pela vegetação. — Virão de lá — disse. — Sem dúvida terão uma superioridade de dez para um. Tomamos posição atrás de um talude, juntamente com Baton e outros vinte lemurenses. A sereia parou de tocar. Um silêncio que parecia anunciar uma desgraça espalhou-se pela área. A fogueira acesa no centro da praça estava reduzida a um pequeno monte de cinzas fumegantes. Nuvens baixas passavam por cima da selva. Fiquei sentado ao lado de Redhorse e Papageorgiu. Do outro lado havia alguns lemurenses deitados. Olhei por cima do talude. Um estranho exército se aproximava,
vindo da selva. Os antepassados dos seres que o compunham tinham sido lemurenses, mas entre nossos inimigos eram raros aqueles que ainda tinham uma aparência humana. — Não atirem! — gritou Baton. Sua voz atravessou o campo de pouso. — Deixemnos chegar mais perto. Os mutantes que o ouviram irromperam numa gritaria ensurdecedora. — Quantas vezes eles já atacaram? — perguntei ao lemurense que se encontrava à minha direita. O homem limitou-se a dar de ombros. Certamente não queria dar nenhuma informação, ou então não sabia que resposta devia dar. De repente veio alguém correndo de trás, virei a cabeça e vi Monira, que veio ao lugar em que estávamos abrigados, carregando uma carabina energética. Sentou ao lado de Redhorse. Vi Baton franzir a testa. Mas não deu ordem para que a moça voltasse. Levantei um pouco para ver onde havia outros lemurenses deitados. Baton espalhara seus homens por seis lugares. As mulheres ficaram paradas na entrada dos abrigos. Também estavam armadas. Os atacantes já tinham atravessado metade do campo de pouso. Sacudiam ameaçadoramente suas armas primitivas. — Fogo! — gritou Baton. A luta não durou mais de seis minutos. Os mutantes que ainda estavam em condições de fugir correram para a selva. Baton levantou e enfiou a arma no cinto. — Que isso lhes sirva de aviso — disse em tom de desprezo e fez um sinal para Redhorse. — Faça o favor de comparecer ao meu abrigo daqui a uma hora, trazendo seus companheiros, para que possamos conversar. Redhorse confirmou com um gesto. Os lemurenses recolheram-se aos seus alojamentos. Monira foi a única que ficou perto de nós. Fitava o campo de pouso com os olhos arregalados. — Que coisa horrível! — disse. — Há centenas de mortos por lá. — Fique conosco, Monira — disse Redhorse em tom resoluto. — Surfat e eu vamos verificar se há feridos. — Querem sair para o campo de pouso? — perguntou a lemurense, apavorada. — Queremos — confirmou Redhorse. — Vamos, Brazos. — Um instante! — disse a moça e colocou a carabina energética sobre os ombros. — Irei com o senhor, Don. — Isto não é para mulher — respondeu o major, aborrecido. — Fique com meus amigos até eu voltar. — Não aceito ordens do senhor — insistiu Monira. — Também irei. Pensei que Redhorse fosse perder a paciência, mas ele só se virou abruptamente e passou por cima do talude. Monira e eu fomos atrás dele. Os lemurenses não se preocuparam com os mutantes atingidos pelos tiros. Certamente esperavam que na noite seguinte os animais selvagens devorassem os horríveis restos da batalha. Esforcei-me para ficar com os olhos presos nas costas largas de Redhorse, uma vez que não queria ver os cadáveres dos mutantes. Monira caminhava a nosso lado, com o rosto pálido e os lábios cerrados. De repente ouvimos um gemido. — Ali! — gritou Redhorse. Uma das pobres criaturas se erguera. Estava mortalmente ferida. Redhorse inclinou-se sobre ela. — O senhor me compreende? — perguntou em tefrodense. O ferido tentou golpear o major, mas este recuou imediatamente.
— Cuidado! — gritou Monira. — Viemos para ajudar — disse Redhorse ao mutante. — Fique quieto. Os olhos de gato do mutante desapareceram atrás das pálpebras, que antes pareciam córneas. A criatura gemia de dor. Mexeu os lábios carnudos. — Nossas... cavernas... — disse o mutante de forma quase imperceptível. Redhorse apoiou o moribundo. — Sim — disse. — O que há com as cavernas de vocês? — Eles... nos expulsaram... — conseguiu dizer o mutante, fazendo um grande esforço. — Mas nós... as reconquistaremos. O sangue correu pelos lábios carnudos. A cabeça do mutante caiu para trás. Monira virou o rosto para outro lado e soluçou. Redhorse levantou. — O que significa isso? — perguntou a Monira. — Os mutantes habitavam os abrigos que ficam em torno do porto espacial antes que o grupo de Baton aparecesse aqui? Monira sacudiu lentamente a cabeça. — Deixe-me em paz! — gritou subitamente. Cerrou os punhos pequenos e bateu várias vezes no peito de Redhorse. — Por que fica me maltratando? — gritou. Virou-se abruptamente e saiu correndo na direção dos abrigos. Seguimo-la com os olhos, estupefatos. — Vamos falar com Baton — disse Redhorse. — Já está na hora de ele me dizer o que está acontecendo aqui.
Interlúdio
Perry Rhodan estava parado na entrada da cabine, olhando para a ruína mental que antigamente tinha sido o agente do tempo Frasbur, tão seguro de si. Frasbur jazia na cama, imóvel. Estava com os olhos arregalados, mas não parecia ver as coisas que o cercavam. Rhodan viu o telepata John Marshall, que estava sentado na cama, levantar e acenar lentamente com a cabeça. Compreendeu o sentido do gesto e saiu para o corredor. Marshall foi atrás dele e fechou a porta. A nave-capitânia da Frota Solar, a Crest III, abandonara o planeta Pigell, situado no setor de Vega, depois que os moduladores de gens suspenderam as hostilidades. A estação do tempo do sexto planeta de Vega fora avariada pelos termolança-chamas e pelos polarizadores, a ponto de se ter tornado inútil não somente para os terranos, mas também para os senhores da galáxia. Os exames haviam revelado que o Major Don Redhorse passara pelo transmissor de matéria dessa estação, juntamente com cinco tripulantes, e fora sair num lugar desconhecido. Rhodan dera ordem para decolar. O ultracouraçado afastara-se do setor de Vega com algumas manobras lineares realizadas com o maior cuidado. — Nossas suspeitas se confirmaram, senhor — disse Marshall, dirigindo-se a Rhodan. — Dos dados armazenados na mente de Frasbur conclui-se que é muito provável que o grupo de Redhorse tenha sido irradiado para a Terra, onde existe uma estação do tempo parecida com a de Pigell. — Obrigado, John — disse Rhodan laconicamente. Sabia que o mutante tinha de fazer um grande esforço para penetrar na mente arruinada de Frasbur. Rhodan e Marshall foram à sala de comando da Crest III, Rhodan contou em poucas palavras aos oficiais e cientistas presentes o que Marshall tinha descoberto. — Será que Frasbur não tenta enganar-nos? — perguntou um dos cientistas. — Isso é impossível! — observou Gucky. — O agente do tempo foi completamente privado de sua vontade. Posso confirmar o que John acaba de dizer. Frasbur tem certeza de que o transmissor de Pigell estava conjugado com um aparelho da mesma espécie situado na Terra. Quer dizer que não existe a menor dúvida de que Redhorse e seus companheiros saíram na Terra. Infelizmente nem mesmo Frasbur sabe o que os espera por lá. A estação da Terra fica na área das geleiras e é controlado pelo agente do tempo Rovza. — Acho que no setor de Vega não conseguiremos mais nada — disse Rhodan. — Seguiremos com destino ao Sistema Solar. Uma vez terminada a discussão, Atlan aproximou-se de seu amigo terrano. Como ficara quieto o tempo todo, Rhodan sabia que ele tinha suas dúvidas. — Parece que você resolveu salvar de qualquer maneira os seis homens desaparecidos — disse Atlan. Foi uma observação corriqueira, que Atlan lançara para levar Rhodan a revelar seus planos. O Administrador-Geral teve de sorrir. Os dois já se conheciam há tanto tempo que os truques de um já não enganavam o outro. Mas viviam tentando enganar-se: Atlan compreendeu o sorriso do terrano. — A excursão para a Terra é possível, desde que seja cumprido um sem número de condições — prosseguiu Atlan.
— Permita que eu lhe pergunte o que pretende fazer. Afinal, não podemos excluir a possibilidade de encontrar naves halutenses ou tefrodenses pela frente. Até é possível que ainda haja algumas naves lemurenses no Sistema Solar. — Não tenho a menor idéia do que iremos encontrar na Terra. Muita coisa pode ter acontecido nos quinhentos anos que penetramos no futuro relativo. — Vamos tentar algumas hipóteses — sugeriu Atlan. — Os lemurenses foram quase totalmente exterminados. As geleiras avançavam até a latitude quarenta. E a atividade dos halutenses restringe-se a alguns vôos de patrulhamento. — E qual é o lugar dos senhores da galáxia neste quadro? — perguntou Rhodan. — Nenhum — confessou o arcônida. — Não há como enquadrá-los no conjunto. Representam o fator de insegurança. Por isso teremos de agir com a maior cautela. Precisamos acostumar-nos à idéia de que o grupo de Redhorse caiu nas mãos dos senhores da galáxia. E com os recursos que nossos inimigos possuem, eles de certo não tiveram nenhuma dificuldade em fazer com que os prisioneiros lhes revelassem tudo que queriam saber. — Na pior das hipóteses, isso pode ter acontecido — confirmou Rhodan. — Mas espero que Redhorse tenha conseguido levar seu grupo a um lugar seguro. Qualquer oficial, inclusive Redhorse, sabe o que está em jogo. Atlan deixou-se cair na poltrona. Os dois ficaram absortos em pensamentos por algum tempo. Rhodan tinha consciência do risco que estaria assumindo se levasse a Crest III para perto da Terra. Mas por outro lado não podiam permanecer inativos, se ainda quisessem ter uma esperança de voltar à sua época. Se os dados que Gucky e John Marshall tinham recebido de Frasbur eram corretos, na Terra também havia uma estação do tempo. Pelo que se dizia, esta era parecida com a de Pigell. Portanto, a estação acompanhava o movimento quando era dado um salto pelo tempo, ao contrário da armadilha do tempo do planeta Vario, que permanecia em sua própria época. Esta circunstância poderia causar dificuldades imprevisíveis, pois era perfeitamente possível que o grupo de Redhorse tivesse sido aprisionado pelos senhores da galáxia ou seus ajudantes e levado a uma época diferente. Perry Rhodan combateu a sensação de desamparo que ameaçava tomar conta dele. Os senhores da galáxia pareciam ser superiores em tudo, mas a experiência do passado mostrara que também eram vulneráveis. — Você deveria avisar todos os tripulantes de que a Terra da qual nos aproximamos é um planeta desconhecido e perigoso — disse Atlan em meio aos pensamentos de Rhodan. — Muitos deles se sentirão inclinados a ver no planeta o mesmo do qual decolou a Crest. — Psicologicamente isso é perfeitamente compreensível — disse Rhodan. — E a observação também se aplica a nós dois, especialmente a você — disse Atlan. — Temos de partir do pressuposto de que travaremos uma guerra. Uma guerra contra o mundo que dentro de cinqüenta mil anos será o nosso.
4 Entramos no abrigo. Baton estava parado perto duma mesa metálica, conversando com Roulos e mais três lemurenses. Notei que os homens demonstravam um respeito que quase chegava a ser humilhante para com o chefe. Baton virou a cabeça ou ouvir-nos entrar. — Ah, sim! — disse. — Vieram cedo. Fez um sinal para que os quatro lemurenses que estavam em sua companhia recuassem para a parede oposta. Em minha opinião, ficariam lá para vigiar-nos e impedir qualquer ato de hostilidade. — Podemos continuar a conversa interrompida — sugeriu Baton e apontou para algumas cadeiras feitas de galhos de árvores. Redhorse empurrou violentamente duas cadeiras e aproximou-se da mesa. — Antes de discutirmos a possibilidade de nos juntarmos ao grupo, quero saber quem são os mutantes de Makata — exigiu. — Tive oportunidade de falar com um dos feridos, que morreu em seguida. Pela primeira vez Baton deu a impressão de não se sentir tão seguro. O lemurense alto contornou a mesa e apoiou-se com os braços na tampa. — Os mutantes são descendentes do grande povo dos lemurenses, da mesma forma que nós — respondeu. — Conseguiram salvar-se antes que o continente Lemúria fosse tragado pelo mar. — Por que em seu grupo não existem mutantes? — perguntou Redhorse em tom enérgico. — Não venha me dizer que seus membros não estavam sujeitos a mutações. Baton baixou a cabeça. Quando voltou a levantar os olhos, havia uma expressão resoluta em seu rosto. — Não toleramos mutantes entre nós — disse. — Toda vez que nasce uma criança, ela é cuidadosamente examinada. Se houver a menor suspeita de que... — Compreendo — interrompeu Redhorse. — Acho que é um procedimento desumano, mas não temos o direito de ditar regras aos senhores. De qualquer maneira, queremos fazer um jogo franco. Vou contar a verdade sobre nossa origem, Baton. Viemos de Godlar, mas não pertencemos aos sobreviventes desta cidade. Mais ao norte existe um estabelecimento pertencente a um povo que o senhor provavelmente não conhece. E dentro deste estabelecimento está instalado um transmissor. Don Redhorse contou em detalhes a história de nossa fuga. Mas não disse que éramos terranos vindos do futuro. Fez Baton acreditar que pertencíamos a um grupo de colonos que saíra para procurar uma nova pátria no setor de Vega. — Então — mentiu o major — afastamo-nos demais de nossa nave e fomos parar na estação de Pigell. Baton não interrompeu a exposição de Redhorse. Seu rosto não mostrava se acreditava no que o major estava dizendo. — Já contei tudo a nosso respeito. Espero que a oferta de entrarmos em seu grupo seja mantida. — Sei que no norte existe um estabelecimento construído por seres desconhecidos — disse Baton para nossa surpresa. — Acontece que até hoje nunca tivemos problemas com estes desconhecidos. Parece que só estão aqui para fazer observações.
— Nunca tentaram entrar em contacto com o senhor? — perguntou Bradon, perplexo. Baton sacudiu a cabeça. O comportamento dos tefrodenses não me deixou nem um pouco espantado. Para eles podia ser indiferentes que mais de mil quilômetros ao sul algumas centenas de lemurenses lutassem pela vida. Baton e seus homens não representavam qualquer poder militar, da mesma forma que os mutantes. — Gostaríamos de usar o rádio para tentar entrar em contacto com nossa nave — disse Redhorse em meio às minhas reflexões. — Será que a aparelhagem do antigo porto espacial de Makata ainda está em condições de funcionar? Notei que Baton hesitou antes de dar a resposta. Não parecia gostar da idéia de chamar uma nave. Sua desconfiança era justificada. De repente o rosto de Baton mudou de expressão. — Nenhum dos aparelhos de hiper-rádio ficou intacto — disse. — Mas acredito que poderão consertar pelo menos um deles. Os especialistas pertencentes ao meu grupo poderão ajudar. Redhorse respirou aliviado e agradeceu. — Sei que, permitindo que chamem sua nave, estarei assumindo um risco — disse. — Espero que nunca tenha de arrepender-me da decisão que acabo de tomar. — Garanto que não se arrependerá — asseverou Redhorse. Baton fez um gesto vago. — O senhor certamente compreenderá que depois do ataque dos mutantes ainda tenho algumas coisas a resolver. Amanhã cuidaremos dos aparelhos de rádio. Enquanto isto poderão sair para caçar. Tebos os acompanhará. Tenham cuidado. Saímos do abrigo de Baton. Não consegui livrar-me da impressão de que ele nos enganara. — Não compreendo sua generosidade, senhor — disse Bradon, desconfiado. — Com seu povo ele não se mostra tão amável. Expulsa os mutantes e domina o grupo como um ditador. — O Tenente Bradon tem razão, major — confirmei. — Quem sabe se não tem esperança de conquistar a nave e usá-la em seu benefício? Pela primeira vez desde o momento em que tínhamos chegado ao antigo porto espacial de Makata vi Redhorse dar uma gostosa gargalhada. — Pois então Baton terá uma boa surpresa quando a Crest aparecer aqui. Certamente pensa que viajávamos numa pequena nave exploradora. Por enquanto deve continuar a pensar assim. Quando o ultracouraçado aparecer perto dele, ele se esquecerá de seus planos de conquista e nos quererá ver longe daqui. Voltamos ao nosso abrigo. Depois de algum tempo apareceu Tebos. Carregava uma arma energética e ficou parado na entrada. — Baton mandou que viesse para cá — disse. — Quer que os acompanhe quando saírem para caçar. Redhorse foi para a porta. Deu um ligeiro empurrão em Tebos. O jovem lemurense recuou. Redhorse nem tentou esconder sua contrariedade. — Não precisamos de uma babá — disse, furioso. — Volte para onde está Baton e diga-lhe que iremos caçar sozinhos. Tebos engoliu em seco. — Não façam isso — protestou num murmúrio. — Terei problemas. — Isso não nos interessa — retrucou Redhorse e empurrou-o. Em seguida fez um sinal com a cabeça. — Vamos!
— pediu. — Está na hora de arranjarmos alguma coisa para o jantar. Tebos saiu correndo. Sem dúvida dirigia-se ao abrigo de Baton. Informaria o comandante sobre a recusa que acabara de ouvir. Não acreditei que Baton nos impedisse de entrar na selva sozinhos. — Por que o mandou embora, senhor? — perguntou Bradon. — Acha recomendável provocar Baton? — Não quero provocá-lo, mas não faço nenhuma questão de ser acompanhado constantemente por um espião. Tebos foi enviado para vigiar-nos. Se ficarmos sós, poderemos explorar a área. — As ruínas de Makata — cochichei para Papageorgiu. — Receio que o major queira ir para lá. — O senhor disse alguma coisa, cabo? — perguntou Redhorse. — Não senhor! — apressei-me em responder. Saímos do edifício baixo e atravessamos sem incidentes a área livre. Atingimos as primeiras árvores. Redhorse mandou que parássemos. Passamos alguns minutos observando os abrigos. Parecia que ninguém nos seguia. Prosseguimos, ficando sempre na borda da mata, para podermos ficar de olho nos abrigos. Fiquei aliviado ao notar que Redhorse seguia em direção oposta à que ficava a cidade em ruínas. Quando atingimos o porto espacial, paramos de novo. A vegetação era tão densa que não se via mais nada do chão aplainado do porto espacial. Com o tempo o piso duro tinha sido rompido pelas raízes. — Se não estou enganado, ali ficam os restos de uma torre de tele controle — disse Redhorse, apontando para uma elevação em forma de pirâmide situada a uns duzentos metros do lugar em que nos encontrávamos. — A torre desabou, mas talvez possamos entrar nos pavimentos inferiores. — Espere, senhor! — exclamou Doutreval. — Veja este sujeito lá atrás. Viramos a cabeça. Tebos aproximava-se da mata virgem, com a arma sobre o ombro direito. Provavelmente não acreditava que ainda pudéssemos vê-lo. Certamente pensava que tínhamos penetrado mata a dentro. — Foi enviado por Baton — constatou Papageorgiu, contrariado. — Levará algum tempo para encontrar-nos. Redhorse apontou para o outro lado do campo de pouso. — Ali há mais um homem nos vigiando. Vimos um lemurense correr abaixado pela área livre. Se continuasse na mesma direção, chegaria perto do monte de escombros que, na opinião de Redhorse, era o que restava da antiga torre de telecomando. — Vamos ficar de olho nos dois — decidiu Redhorse. — Se chegarem muito perto, nós lhes daremos uma surra. Afinal, Baton prometeu que nos concederia um prazo para nos adaptarmos ao ambiente. Voltei a olhar para Tebos. Dei um passo para o lado, para que Doutreval tivesse oportunidade de observar o outro vigia enviado por Baton. Foi o que salvou minha vida. Uma sombra saiu entre dois troncos e veio em minha direção. A força do impacto foi tamanha que me atirou a alguns metros de distância. Ouvi uma coisa fungando. Redhorse deu um grito. Rolei no chão e vi a boca enorme da fera em cima de mim. Dois dentes de punhal saíam dessa boca. Era um tigre-sabre, que rasgava o chão com as garras. Estava perturbado por não me ter alcançado no primeiro salto. Tirei apressadamente a arma. Papageorgiu deu um tiro, mas não acertou no monstro. O calor do disparo fez com
que o tigre se virasse abruptamente. De seus dentes pingava espuma. Os olhos pareciam chispar fogo, e as orelhas tremiam de tão nervoso que estava. Voltei a rolar para afastar-me do animal. Redhorse atirou. Atingiu o tigre nas costas. O animal gritou enfurecido. Doutreval não podia atirar. Estava muito longe e podia atingir um de nós. O tigre levantou de um salto. Revelou uma força tremenda ao saltar. Vi-o precipitarse sobre Papageorgiu. Não perdi tempo: atirei. O animal foi atingido durante o salto e tombou no chão. Roncou mais uma vez e o corpo ficou em repouso, depois de alguns movimentos convulsivos. Só então voltei a pôr-me de pé. Redhorse afastou os cabelos da testa. Doutreval aproximou-se e deu um pontapé no cadáver do animal selvagem. — Cuidado! — advertiu Redhorse. — Se este felino desferir um golpe enquanto estiver em agonia, ainda poderá tornar-se perigoso. Papageorgiu fitou-me com uma expressão de evidente desagrado. — Eu sabia que seria arriscado entrar na mata virgem com o senhor — disse. — Sua figura atrai qualquer animal carnívoro. — Se não quiser, não entre! — resmunguei. — Se tivesse prestado mais atenção, nem teria havido o ataque. — Que isto nos sirva de aviso! — disse Redhorse em tom sério. — Cada passo nesta terra desconhecida pode trazer novos perigos. Olhei para o felino gigante. Era um belo animal, com músculos vigorosos e um lindo couro. Quanto não pagaria um colecionador do ano 2.404 por um exemplar destes? Sacudi a cabeça. O couro de um animal destes não pertencia ao futuro. — Vamos andando — ordenou Redhorse. — Fiquem um atrás do outro e prestem muita atenção. A luta com o tigre despertara a atenção de Tebos e do outro lemurense. Desapareceram imediatamente entre as árvores. Já sabiam onde procurar-nos. Mas nem por isso Redhorse parecia disposto a abandonar seu plano. Atingimos os escombros da torre de tele controle, cobertos pela vegetação. Atrás deles encontramos o que restava de outro edifício. Mas este fora totalmente destruído. Doutreval e Bradon entraram nos escombros, à procura de uma entrada. — Não compreendo por que os lemurenses ainda não desobstruíram esta torre — observei, dirigindo-me a Redhorse. — Por aqui há muita coisa difícil de explicar — retrucou o major. — Baton não confia em nós. Logo, não deve ter contado tudo. — Aqui, senhor! — exclamou Bradon. — Podemos passar entre as pedras. Antes que pudéssemos seguir Bradon e o pequeno rádio-operador, um lemurense saiu da mata. Aproximou-se com a arma apontada. Era o mesmo que já tínhamos visto antes. — Baton não quer que fiquem bisbilhotando aqui — disse em tom áspero. — Mate quantos animais quiser, mas fique longe das construções. — Dê o fora! — gritou Redhorse e saiu andando. O lemurense levantou a arma. Redhorse não lhe deu atenção. Fez sinal para que Papageorgiu e eu o seguíssemos. Fui atrás dele, embora não me sentisse muito à vontade. Não sabia até onde chegavam os poderes do lemurense. Quem sabe se Baton não lhe dera ordem para, se necessário, deter-nos à força? — Fiquem onde estão! — gritou o lemurense. Estava nervoso, e parecia ter medo de não poder cumprir as ordens de Baton.
Bradon e Doutreval tinham afastado algumas pedras, criando uma passagem bastante ampla para deixar passar um homem. O lemurense disparou um tiro de alerta para cima de nossas cabeças, quando estávamos dispostos em torno da entrada. Mas logo pareceu dar-se conta de nossa superioridade. Virou-se e saiu correndo na direção em que ficavam os abrigos. — Foi buscar reforços — opinou Bradon. — Acho que não devemos forçar demais as coisas, senhor. — Não acredito que Baton faça mais alguma coisa. — O quê? — exclamei, surpreso. — Pensa que ele nos deixará vasculhar calmamente este lugar? — Naturalmente — retrucou Redhorse. — Ele quer nossa nave. E para isso deverá deixar-nos mais ou menos bem-humorados. Se houver uma luta declarada, Baton correrá o risco de nos recusarmos a transmitir uma mensagem pelo hiper-rádio. Bradon inclinou-se sobre a abertura e iluminou os escombros. — Há alguém lá dentro, major! Fiquei de joelhos e olhei pela abertura. Vi dois homens cobertos de peles, iluminados pela lanterna de Bradon. Estavam agachados num canto. A sala que ficava logo embaixo de nós estava quase toda cheia de escombros, entre os quais cresciam musgos e cogumelos. — São mutantes — disse Redhorse. Vi que um dos homens tinha cabelos no rosto e mão atrofiadas. O outro, que segurava firmemente uma lança de madeira, era calvo. Seu crânio estava coberto de grandes verrugas. — Apague a lanterna, tenente — ordenou Redhorse. — Não vamos assustá-los. Talvez possamos entrar em acordo com eles. Bradon retirou a lanterna da abertura. Imaginei o medo que os dois mutantes deviam sentir. Certamente acreditavam que pertencíamos ao grupo de Baton. — Somos amigos! — gritou Redhorse em tefrodense para dentro da sala desabada. — Saiam, que nada lhes acontecerá. No meio dos escombros continuou tudo em silêncio. Não sei por que, mas fiz votos para que os dois mutantes não saíssem do esconderijo. Não tinha muita vontade de vê-los à luz do dia. O cheiene esperou alguns minutos e tentou de novo. — Saiam! — gritou. — Queremos ajudá-los. Um dos mutantes resmungou alguma coisa, mostrando que estava de acordo. Afastamo-nos da entrada. O homem que segurava a lança foi o primeiro a sair. Sua posição mostrava que estava com medo. Parou junto à entrada, com o corpo encurvado. Redhorse esperou que o outro mutante saísse. — Não pertencemos ao grupo dos seus inimigos — disse o major. O mutante que segurava a lança grunhiu alguma coisa que ninguém compreendeu. Levantou o braço e apontou na direção em que ficava a cidade em ruínas chamada Makata. Depois levou a mão à boca e fez um ruído de quem está comendo. — Parece que está com fome, senhor — conjeturou Doutreval. — Caçar com lança de madeira não deve ser nenhum perigo. — Vamos levá-los para onde está o tigre-sabre — decidiu Redhorse. — Assim demonstraremos nossa boa-vontade e provaremos a força de nossas armas. Quem sabe se depois disso não estarão dispostos a ajudar-nos?
Compreendi que Redhorse queria que os mutantes lhe contassem alguma coisa a respeito do grupo de Baton, mas julgava muito arriscado tomar abertamente o partido dos habitantes da cidade em ruínas. O major apontou para a selva. — Ali há carne que chega para vocês — disse. Os dois selvagens pareciam ver em sua bondade um sinal de indecisão. O calvo levantou a lança, num gesto de ameaça. Papageorgiu deu dois passos em sua direção. O mutante tomou impulso com a lança, mas o robusto astronauta abaixou-se e arrancou-lhe a arma das mãos. O segundo mutante soltava sons inarticulados. — Tenho minhas dúvidas de que entendam o tefrodense — disse Bradon. — Estão nervosos — reconheceu Redhorse. — Talvez tenham esquecido sua própria língua — pediu que Papageorgiu lhe entregasse a lança e devolveu-a ao antigo dono. Em seguida pegou a arma energética e abriu uma vala no meio dos destroços. Os dois mutantes cobriram os olhos com as mãos. Certamente pensavam que sua hora tinha chegado. — Somos seus amigos — disse Redhorse, paciente. — Amigos — repetiu o calvo, falando com dificuldade. — Sim — concordou Redhorse em tom de triunfo. — Vamos... Os dois mutantes morreram. Foram mortos pelos tiros disparados por duas carabinas energéticas lemurenses, antes que Redhorse pudesse prosseguir na conversa que mantinha com eles. Tebos estava parado junto à torre desabada, com a arma apontada. A seu lado estava o lemurense que dissera que não deveríamos entrar nessa torre. Também atirara em um dos mutantes. — Chegamos bem na hora! — gritou Tebos e subiu ao lugar em que estávamos. — Não se pode confiar nestes mutantes. Atordoado, contemplei os dois mutantes que acabavam de ser mortos. Não compreendia que alguém os pudesse fuzilar a sangue frio. Redhorse ficou em silêncio, à espera de que Tebos se aproximasse. Bateu com o punho fechado no rosto do lemurense. Tebos perdeu o equilíbrio e escorregou para onde estava seu companheiro, arrastando pedras e escombros. — Foi um assassinato — disse Redhorse. — Os lemurenses queriam impedir que os mutantes nos revelassem certas coisas — disse o Tenente Bradon. Tebos conseguiu pôr-se de pé e apalpou o rosto dolorido. Levantou a arma que perdera na queda e virou-se para ir embora. O outro lemurense olhou-nos com uma expressão odienta. Finalmente virou-se abruptamente e foi atrás de Tebos. — E agora? — perguntou Papageorgiu, deprimido. — Aconteça o que acontecer, não devemos perder os nervos — disse Redhorse. — Baton não recua diante da idéia de ordenar aos seus homens que cometam um assassínio. Já sabemos o que nos espera aqui. Se não fossem os transmissores, abandonaríamos imediatamente o porto espacial. Levamos os cadáveres dos mutantes para a caverna em cujo interior estiveram escondidos. Minha mente levou algum tempo para absorver o terrível acontecimento. O assassínio dos mutantes me deixara chocado. Fechamos com pedras o acesso à sala destruída. Desta forma os animais não poderiam devorar os cadáveres. — Está interessado em continuar a caçada, senhor? — perguntou Bradon com a voz áspera, dirigindo-se a Redhorse.
— Não — respondeu o major. — Vamos voltar. Quando chegamos perto dos abrigos, ninguém tomou conhecimento de nossa presença. Entramos novamente na construção que fora reservada para nós. De noite Monira nos trouxe o jantar, mas colocou-o junto à entrada e foi embora imediatamente. Provavelmente soubera dos incidentes a preferia não falar conosco. Na noite que se seguiu dormi muito mal. Meus pensamentos giravam em torno do assassínio de que tinham sido vítimas os dois mutantes. O crime fora executado por Tebos e seu companheiro, mas a responsabilidade era de Baton. Este homem grande, que irradiava tamanha autoridade, parecia não ter escrúpulos. Ninguém podia negar que Baton era uma personalidade fora do comum, mas nem por isso tinha o direito de colocar-se acima das regras que diziam o que era justo e o que era injusto. — Tenho certeza de que amanhã Baton terá uma explicação bem preparada — disse Papageorgiu, que estava deitado no chão a meu lado. Parecia que o rapaz também não conseguia dormir. — Precisamos dos lemurenses — respondi para esquivar-me a uma resposta direta. Ouvi-o fazer alguns movimentos violentos. — São assassinos! — chiou. — Acha que devemos apoiar esses criminosos, somente porque isso poderá trazer-nos uma vantagem? Fiz votos de que Redhorse estivesse dormindo e não pudesse ouvi-lo. — Escute, rapaz — respondi, calmo. — Os descendentes dos lemurenses têm suas próprias leis. Querem sobreviver de qualquer maneira. Não podemos aplicar a eles os mesmos padrões que valem para nós. — Um assassinato sempre é um assassinato! — resmungou Papageorgiu. — Acho que deveríamos mudar-nos para Makata e lutar ao lado dos mutantes. — Sem dúvida não seríamos recebidos de braços abertos — disse Redhorse no meio da escuridão. — Eles nos matariam ou expulsariam. Compreendo suas preocupações, mas não temos alternativa. Precisamos ajudar os lemurenses a consertar um transmissor. Quando levantamos, dia claro, Baton veio ao nosso abrigo, acompanhado de seis homens. Cumprimentou-nos com uma estranha amabilidade. — Estes são os homens que os ajudarão a consertar um dos transmissores — disse. — Este aqui é Sanosta. É o melhor técnico que temos. Sanosta era um homem alto e magro, com dentes à vista e cabelos curtos. Manteve os braços afastados do corpo, com os polegares apoiados no cinto. Parecia malhumorado. Limitou-se a cumprimentar-nos com certo desprezo. Redhorse agradeceu a ajuda. — Outra coisa — disse Baton em tom indiferente. — Ouvi dizer que ontem houve um incidente do outro lado do porto espacial — um sorriso frio apareceu em seu rosto. — Os senhores devem compreender que meus homens ficam nervosos quando se trata dos mutantes. Somos atacados constantemente pelos habitantes da cidade em ruínas. Tebos e Grolam temiam que eles pudessem matá-los. Mas compreendo sua reação violenta. Os dois foram punidos por sua ação irrefletida. Baton saiu. Sanosta atravessou nossa sala a passos largos. — Não podemos montar o aparelho aqui — disse, contrariado. — Acho que será preferível fazer o conserto no lugar em que se encontra. Acompanhem-me. Quando saímos, vimos o castigo que estava sendo aplicado a Tebos e Grolam. Uma estaca fora colocada no centro da área livre que ficava entre os abrigos. Os dois homens estavam amarrados na ponta da estaca, com as pernas penduradas para baixo. Quando nos viu, Tebos começou a insultar-nos.
— Quanto tempo ficarão amarrados? — perguntou Redhorse a Sanosta. O técnico olhou para o chão e deu de ombros. Preferi não olhar para a estaca na qual estavam amarrados os dois homens. Quando passamos pelo abrigo habitado pelas mulheres, Redhorse parou. Bateu à porta e chamou Monira. A moça não demorou a aparecer. Notei que quase não tinha dormido. Havia manchas escuras sob os olhos. — Leve alguma coisa para beber a esses homens — pediu Redhorse, apontando para a estaca. — Não devem receber nada — respondeu a moça. — Baton não permite. Redhorse fitou a moça por alguns instantes. Finalmente seguimos nosso caminho. Monira acompanhou-nos até o último abrigo. Fui o último do grupo. — Peça a Don que tenha cuidado — sussurrou a moça de repente ao meu ouvido e foi-se afastando. Sanosta abriu a porta do abrigo que era o último da fileira. Entrou e acendeu a luz. Fomos atrás dele. A sala na qual entramos parecia limpa. Numa parede oposta via-se um equipamento completo de rádio. Sanosta virou o rosto para nós. Pôs à mostra seus dentes feios num sorriso. — Que tal? Gostaram? — perguntou a Redhorse. — Gostamos muito — respondeu o major. — Desde que funcione. — Vai funcionar — prometeu o técnico, apontando para a entrada. — E aquilo ali? Gostaram? — perguntou em tom malicioso. — Não sei do que está falando — respondeu Redhorse. — Não sabe? — Sanosta soltou uma risada aguda. — Refiro-me à moça, a Monira. Deixem-na em paz — bateu na testa, para mostrar que ela não estava muito bem na cabeça. — Ela tem um tique. Compreendeu? Um dia Baton a obrigará a ir para Makata. — Pensei que tivéssemos vindo para consertar o rádio — observou Bradon. — Não estamos interessados na moça. Lancei um olhar para as mãos de Redhorse, que estava com os punhos fortemente cerrados, a ponto de fazer aparecer os ossos das juntas. Compreendi que Sanosta poderia dar-se por feliz se Redhorse não o derrubasse com um soco. O cheiene não costumava descontrolar-se tão depressa. Do fato de que estava perdendo o autocontrole só se podia concluir que o técnico tinha razão. Para o major Monira não era uma moça igual a qualquer outra. Parecia que gostava dela. Respirei profundamente. Se a suposição de Sanosta era correta, nossa situação tornava-se mais complicada. — Por que o hiper-rádio foi instalado neste abrigo? — perguntou Redhorse. A tensão diminuiu. O técnico, que nem parecia ter-se dado conta do perigo a que se expusera, bateu no revestimento do aparelho. — Quando as naves halutenses passaram a atacar-nos sem parar, a maior parte dos aparelhos mais importantes foi guardada nos abrigos — explicou. — Ainda bem. Só assim conseguimos salvar os reatores, que nos abastecem de energia. — Assim que este aparelho voltar a funcionar, transmitiremos uma mensagem — disse Redhorse. — O senhor há de compreender que faremos a transmissão em código. — Naturalmente — respondeu Sanosta. — Os senhores não devem estar interessados em despertar a atenção dos halutenses. Sanosta podia não ser muito simpático, mas sabia fazer seu trabalho. Dirigiu os trabalhos juntamente com Doutreval. De vez em quando um dos lemurenses saía para trazer peças sobressalentes. Admirei-me de que estas chegassem tão depressa. Quando
tínhamos trabalhado durante quatro horas fizemos uma pausa. Um dos auxiliares de Sanosta trouxe alguma coisa para comer. Quando reiniciamos o trabalho apareceu Baton para dar uma olhada. — Devemos terminar dentro de duas horas — disse Doutreval. — Fico admirado de que o aparelho ainda se encontre em bom estado. — O senhor pensava que deixaríamos que nossas preciosas instalações se estragassem? — perguntou Baton em tom grosseiro. — Avise quando tiverem terminado, Sanosta. Já não tive a menor dúvida de que os descendentes dos lemurenses nos ajudavam por motivos puramente egoísticos. Pensavam mesmo que poderiam apoderar-se de nossa espaçonave. Baton certamente já tinha um plano detalhado. Tive de fazer um esforço para não rir. Quando visse a Crest III, Baton já não se sentiria tão seguro. Redhorse e Doutreval eram os únicos que entendiam alguma coisa de transmissores, e por isso Bradon, Papageorgiu e eu só podemos realizar serviços manuais. Fiquei satisfeito quando Sanosta finalmente anunciou que o transmissor estava em condições de funcionamento. Mandou que um dos seus homens fosse informar Baton. — Transmitirei um impulso condensado — disse Redhorse, dirigindo-se a nós. — Comunicaremos nossa posição à Crest. A resposta certamente demorará um pouco. Baton entrou. Soube reprimir muito bem seus sentimentos de satisfação. Fez de conta que aquilo o deixara indiferente. — Chame seus amigos — pediu a Redhorse. — Boa sorte. Lembrei-me de Tebos e Grolan, que estavam pendurados no poste. Se não conseguíssemos fazer com que o ultracouraçado viesse ao lugar em que nos encontrávamos, Baton acabaria fazendo a mesma coisa conosco. Talvez chegasse mesmo a fuzilar-nos ou exigir que nos juntássemos aos mutantes. Redhorse e Doutreval aproximaram-se do transmissor. De repente tive a impressão de que estávamos cometendo um erro grave. Não havia nenhuma explicação razoável para isso. Quando Doutreval pôs a mão nas teclas, tive vontade de puxá-lo para trás. Bradon, que estava a meu lado, sorria. Ele, que era conhecido como o eterno pessimista, parecia muito esperançoso. Baton também sorriu. Mas suas esperanças pareciam ser diferentes das nossas.
Interlúdio
Então era esta a Terra do ano 49.488 antes do nascimento de Jesus Cristo. O planeta que aparecia na grande tela panorâmica da sala de comando da Crest III realmente era parecido com a Terra, mas, visto pelos telescópios, era um planeta gelado. As massas de gelo de ambos os pólos tinham avançado na direção do equador. Era o único lugar em que ainda existiam as afamadas colinas verdes da Terra. Perry Rhodan tirou os olhos da tela do rastreamento espacial, que mostrava a imagem ampliada de todos os objetos abrangidos pelos microscópios. O continente Lemúria, que há quinhentos anos ainda cobrira parte da superfície da Terra, tinha mergulhado no Pacífico. Os outros continentes já apresentavam em sua maioria sua forma característica. A Europa e a América do Norte estavam cobertas de gelo. — Não é um quadro muito acolhedor, senhor — constatou o Coronel Cart Rudo. — Se Redhorse e seus homens realmente se encontram na Terra, eles já devem ter pegado um resfriado. Rhodan achou a expressão usada pelo coronel um tanto petulante, mas assim mesmo ela lhe pareceu apropriada. A Crest III interrompera o vôo linear e circulava em torno da Terra à distância média de 400.000 quilômetros. Rhodan atendera ao pedido de Atlan e por isso ainda não chegara mais perto do planeta. O arcônida insistira para que se abstivesse desse tipo de manobra. Atlan estava de pé ao lado do amigo, observando as telas. Os mutantes também estavam presentes. Rhodan ficou refletindo sobre o que deveria fazer em seguida. Neste momento o hiper-rádio da Crest III recebeu um chamado. O rádio-operador de serviço pediu em tom exaltado que Rhodan se aproximasse. Atlan acompanhou o Administrador-Geral. — Recebemos um impulso condensado. Não há dúvida de que vem da Terra, senhor — informou o rádio-operador, nervoso. — Quero o texto exato — disse Rhodan. — Pois não, senhor. O rádio-operador ficou mexendo por algum tempo na aparelhagem. Finalmente entregou uma fita de plástico estreita a Rhodan. “Estamos naquilo que será o centro do México” — leu Rhodan. — “Procurem localizar um planalto próximo à costa, Tirem-nos daqui. Redhorse.” Rhodan segurou a mensagem de tal maneira que Atlan pôde lê-la. — Estão vivos — disse Atlan, aliviado. — As informações que os mutantes receberam de Frasbur são corretas. Os homens saíram mesmo na Terra. Ainda bem que não se encontram na área das geleiras. — Parece que no momento não correm nenhum perigo — constatou Rhodan. — Gostaria de saber como conseguiram pôr as mãos num hipertransmissor. Rhodan voltou a ficar preocupado. Será que seus homens estavam sendo usados como chamarizes? — Não pousaremos com a Crest — decidiu Rhodan. — O ultracouraçado permanecerá no espaço, na altura da órbita lunar. Faremos sair uma corveta com vinte especialistas. Marshall e Gucky viajarão na nave auxiliar. Antes que a corveta desça à
superfície, Marshall e o rato-castor tentarão captar e examinar eventuais modelos de ondas cerebrais. — Também acho que a Crest não deve chegar mais perto da Terra — concordou Atlan. — A nave deve permanecer no espaço, com os canhões prontos para disparar. Não podemos excluir a possibilidade de algumas naves halutenses aparecerem por aqui. Colocou a mão no ombro de Rhodan. — Assumirei o comando da corveta — disse em tom resoluto. Rhodan hesitou, mas acabou concordando. Gostaria de viajar ele mesmo a bordo da corveta, deixando Atlan na nave, mas era obrigado a ficar para se necessário, fazer a Crest III entrar em ação. Tudo parecia calmo no Sistema Solar, mas isto poderia mudar de uma hora para outra. Atlan saiu e dirigiu-se ao hangar. Um grupo de especialistas estava sendo escolhido e equipado para o vôo. Gucky e Marshall também foram para bordo da corveta. Rhodan estava impaciente, esperando que os preparativos fossem concluídos. De vez em quando o Administrador-Geral lançava um olhar para as telas de imagem. A cortina de matéria cósmica que se formara entre Júpiter e Marte produzia seus efeitos mesmo no espaço. Os raios solares pareciam muito mais fracos que de costume. Finalmente os homens que estavam de serviço no hangar avisaram que a corveta estava pronta para decolar. Rhodan fez um sinal para Rudo. O coronel abriu a eclusa do hangar, usando o centro de computação positrônica da nave. Dali a instantes a nave auxiliar, que tinha sessenta metros de diâmetro, apareceu nas telas de imagem. Seguiu diretamente para a Terra. Rhodan preferiu não entrar em contacto de rádio com Atlan. Se fosse necessário, poderiam fazer isso mais tarde. Qualquer transmissão de rádio que não fosse absolutamente necessária poderia atrair ao local espaçonaves desconhecidas. — Parece que está correndo tudo de acordo com o plano, senhor — disse Rudo, satisfeito. Os canhoneiros de serviço nos centros de artilharia do ultracouraçado estavam preparados para rechaçar imediatamente um eventual ataque. A Crest III estava em regime de rigorosa prontidão. Rhodan não estava disposto a cair novamente numa armadilha. — Nos dois continentes americanos é dia — informou o Major Hefrich. — Assim a tarefa do Lorde-Almirante se tornará mais fácil. Rhodan tentou imaginar as condições reinantes na Terra. Onde estaria Redhorse e seus companheiros? Será que ainda se encontravam no interior da estação tefrodense? Teriam sido obrigados a transmitir a mensagem pelo rádio? Ou será que conseguiram fugir? O grande terrano sacudiu a cabeça de forma quase imperceptível. Seria inútil quebrar a cabeça com isso. Podia confiar em Atlan e seus companheiros. *** Quando a corveta estava penetrando na atmosfera da Terra, John Marshall lembrouse do agente do tempo Frasbur. Mesmo que continuasse vivo, este homem nunca mais recuperaria totalmente as faculdades mentais. Frasbur transformara-se numa ruína. Marshall sabia que Gucky e os outros mutantes não eram constantemente martirizados
pela própria consciência como ele. Os mutantes tinham destruído os diversos bloqueios mentais de Frasbur. E a mente do agente dos senhores da galáxia não resistira a isso. As reflexões de Marshall foram interrompidas por uma hipermensagem vinda da superfície da Terra. Tratava-se de outra mensagem expedida por Redhorse. Atlan recebeu das mãos do rádio-operador a fita de plástico com a mensagem decifrada e entregou-a a Marshall. “Nos limites da área gelada existe uma estação do tempo dos senhores da galáxia” — leu Marshall. — “Há um transmissor instalado nela. Algumas centenas de robôs tefrodenses são mantidas de prontidão.” — Eis aí a prova definitiva de que as informações de Frasbur são corretas — disse Atlan. — Redhorse resolveu prevenir-nos. — Quer que me teleporte para a superfície da Terra? — perguntou Gucky. — Este índio certamente ficará aliviado se eu aparecer à sua frente. — Por enquanto você não sairá desta nave — decidiu Atlan. — John, o senhor e Gucky se concentrarão em eventuais modelos de ondas cerebrais e vibrações mentais. Talvez assim consigamos descobrir o que está acontecendo lá embaixo. O limite da área das geleiras era bem visível. Só havia umas poucas manchas escuras no branco sem fim das geleiras. Mais ao sul Atlan viu o cume fumegante de um vulcão. O fogo e o gelo ficavam bem perto do planeta dos terranos. Atlan deu ordem para que os tripulantes tentassem localizar um planalto junto à costa. O arcônida vasculhou o pacífico. A única coisa que restava de Lemúria eram alguns arquipélagos pequenos. O continente enorme fora tragado pelas águas do oceano. — Há seres inteligentes nas selvas — informou John Marshall. — Os modelos de suas projeções mentais são confusos. Não conseguimos localizá-los. — Também estou captando os impulsos expedidos pelo consciente de algumas centenas de seres — confirmou Gucky. — Acho que se trata de descendentes dos antigos lemurenses que passaram por um processo de mutação. Vivem numa cidade em ruínas que em pensamento chamam de Makata. — São bárbaros — disse Marshall. — Seus pensamentos são quase todos rudimentares e guiados exclusivamente pelos instintos. Pensam principalmente na caça e em certos inimigos. — Será que Redhorse e seus companheiros se encontram entre estes seres? — perguntou Atlan. — Os pensamentos dos mutantes não revelam nada a este respeito — respondeu Marshall, perplexo. — Lá embaixo há um planalto gigantesco, senhor! — exclamou neste instante um dos astronautas. Atlan passou a dedicar sua atenção às telas de imagem. O planalto ficava a apenas algumas milhas da costa. O arcônida mandou que a corveta seguisse mais para o oeste, deixando-a suspensa sobre o oceano a cem milhas da costa. Finalmente deu ordem para que o piloto fizesse descer a nave auxiliar da Crest III para bem perto da superfície do mar. — Vamos aproximar-nos novamente da costa — decidiu. Lançou um olhar para Marshall, mas o telepata sacudiu a cabeça. Gucky também ficou em silêncio. Atlan não tinha a menor dúvida de que encontrariam Redhorse, mas as estranhas emanações mentais captadas por Marshall e pelo rato-castor deixavam-no preocupado.
— Só pousaremos quando tivermos certeza de que não estamos entrando numa armadilha — disse Atlan. — Ativar campos defensivos e preparar todo o armamento disponível. A corveta aproximou-se em velocidade reduzida daquilo que mais tarde viria a ser a costa do México. A bordo reinava o silêncio. Atlan era o único que falava de vez em quando, para dar suas ordens em tom resoluto. Gucky estava encolhido numa poltrona que era muito grande para ele. Marshall ficou de pé atrás da poltrona de Atlan. Era a imagem da concentração máxima. O arcônida sabia que Marshall recebia constantemente fluxos psiônicos, mas deles não conseguia tirar nenhuma informação importante. Os rastreadores mentais da corveta entraram em funcionamento, mas só confirmaram aquilo que já fora descoberto por Gucky e pelo mutante. O mar estava relativamente calmo. A costa formava uma linha escura no horizonte. Ainda não se distinguiam os detalhes. Atlan perguntou-se o que estaria acontecendo na selva que dali a pouco estariam sobrevoando. Foi só mesmo o fato de a poderosa Crest III se encontrar na altura da órbita lunar, pronta para vir em seu auxílio, que o impediu de suspender a operação. Um sentimento seguro lhe dizia que na costa havia uma armadilha à sua espera. Mas os dois tripulantes que possuíam dons telepáticos continuaram em silêncio. Dali só se podia concluir que não tinham detectado qualquer perigo.
5 Quando vi a corveta passar bem alto sobre a costa, meu coração bateu mais forte. Estávamos parado na área livre entre os abrigos. Fazia poucos minutos que Redhorse tinha enviado outro impulso condensado para prevenir os tripulantes da Crest III contra a estação dos senhores da galáxia instalada na área das geleiras. — Uma corveta! — exclamou Redhorse. — A Crest certamente já se aproxima da Terra, senão a nave auxiliar ainda não teria chegado. Enquanto dizia isso, a corveta mudou de rumo e saiu em alta velocidade mar a fora. Logo desapareceu. — Não nos descobriram, senhor — disse Bradon, decepcionado. — Temos de enviar outra mensagem. — Esta manobra só representa uma medida de precaução — respondeu Redhorse para tranqüilizar o tenente. — A nave não demorará a voltar. Só agora me dei conta da presença dos lemurenses, que também tinham observado a aproximação da nave de sessenta metros de diâmetro. Baton olhou para o lugar da costa em que a nave acabara de desaparecer. Parecia distraído. — Tivemos sorte — disse Redhorse, entusiasmado, ao lemurense. — Logo virão buscar-nos. — As inteligências inferiores invariavelmente cometem o erro de deixar que seus atos sejam inspirados em grande parte pelos próprios desejos e sentimentos — disse Baton sem tirar os olhos da zona costeira. Redhorse lançou-nos um olhar de advertência. Pus a mão na arma energética que trazia no cinto. — O que quer dizer com isso, lemurense? — perguntou Redhorse. — Lemurense? — repetiu Bradon e virou-se abruptamente para encarar-nos de frente. De repente os homens que nos cercavam tiraram as armas. Olhei em volta e vi que havia pelo menos sessenta carabinas energéticas apontadas para nós. Seria inútil tentarmos defender-nos. Baton parecia deleitar-se com a situação. Foi para perto de Redhorse e tirou a arma que ele trazia no cinto. Atirou-a ao chão. Depois fez a mesma coisa com Bradon, Doutreval, Papageorgiu e comigo. — Estes homens — disse, apontando para seus companheiros — não são lemurenses, da mesma forma que os senhores não são. Papageorgiu e eu entreolhamo-nos sobressaltados. Doutreval fez alguns movimentos nervosos, mas bastou um sinal de um dos lemurenses para que ficasse imóvel. — São tefrodenses, duplos conforme se costuma dizer — prosseguiu Baton com um sorriso arrogante. A revelação da verdade parecia dar-lhe um prazer todo especial. Conseguira bancar um jogo traiçoeiro. — E quem é o senhor? — perguntou Redhorse, calmo. Baton desabotoou a manta que o envolvia e deixou-a cair ao chão. Vimos que trajava um conjunto-uniforme prateado. — Meu nome é Toser Ban — disse, orgulhoso. — Sou um senhor da galáxia.
O símbolo luminoso que trazia sobre o peito dava um sentido todo especial à revelação grave que acabara de fazer. Sabíamos desde o início que este homem preparava uma armadilha para nós, mas diante do fato de tratar-se de um senhor da galáxia não adiantava nada conhecermos suas intenções. A operação certamente fora planejada por Toser Ban em todas as minúcias. O objetivo final certamente era a destruição da Crest III. Apavorado, compreendi que sem saber tínhamos servido de chamarizes para atrair a nave-capitânia. — Quer dizer que minha suspeita de que estes abrigos começaram a ser habitados há pouco tempo foi correta — disse Bradon, que teve de fazer um grande esforço para recuperar-se da surpresa. — Chegamos pouco antes dos senhores — informou Toser Ban, que parecia divertir-se com nosso espanto. — Vim a este planeta pelo mesmo transmissor usado pelos senhores. Pouco depois de mim chegaram trezentos e vinte e um duplos. Fizemos tudo para dar um caráter real ao espetáculo — Toser Ban bateu na arma. — Até mesmo nossas armas são legítimas. E o radiotransmissor é de construção lemurense. Toser Ban, ou Baton, conseguira deixar-nos chocados. O Major Redhorse parecia calmo, mas sabia que no íntimo se recriminava por não ter descoberto o plano do senhor da galáxia. Agora, que sabíamos quais tinham sido os golpes astuciosos usados contra nós, parecia que tudo teria sido fácil de prever. Ficamos concentrados demais em nossa salvação. — Levem estes idiotas daqui — disse Toser Ban em tom de desprezo, fazendo um gesto relaxado. — Tranquem-nos no abrigo habitado por mim. Podem ficar lá até que tenhamos destruído a nave-capitânia do barco espacial enviado para resgatá-los. Estas palavras atingiram-me com a força de um soco. Toser Ban sabia da existência da Crest III. Mal senti quando alguém me agarrou violentamente e saiu me arrastando. E se o senhor da galáxia conseguisse destruir a Crest III? Rhodan e Atlan encontravam-se a bordo do ultracouraçado. Alguém me deu um empurrão. Caí ao chão. Uma porta foi fechada ruidosamente. Fiquei deitado na escuridão do abrigo, respirando com dificuldade. — Podemos afirmar sem a menor sombra de dúvida que conseguimos colocar a Crest nas mãos dos senhores da galáxia — disse Redhorse. Levantei devagar e saí cambaleante em direção à porta. Apoiei-me nela e tentei localizar uma abertura. Foi em vão. De repente a porta foi aberta violentamente do lado de fora. Toser Ban apareceu na entrada, de arma em punho. Formava uma silhueta grande e impressionante contra o fundo claro e parecia dar-se conta disso, pois sua voz retumbante destruiu nossas últimas esperanças. — Não pensem que os homens com dons parapsíquicos que se encontram a bordo da espaçonave saberão da minha presença neste lugar — disse em tom de deboche. — Eu e todos os duplos usamos um bloqueio especial contra a ação dos telepatas. E este aparelho é tão forte que serve para bloquear até mesmo os pensamentos dos senhores. A porta voltou a ser fechada. Não ouvimos o que se passava do lado de fora, pois as paredes do abrigo eram muito espessas. Avancei tateando para o centro da sala e acabei esbarrando em alguém. — Preste mais atenção! — exclamou Papageorgiu, irritado. Por algum tempo foram estas as únicas palavras pronunciadas por alguém pertencente ao grupo. Todos experimentavam o mesmo sentimento doloroso da derrota final. Além de triunfar, Toser Ban desfrutara seu triunfo até a última gota.
— Precisamos fazer alguma coisa — disse Bradon depois de algum tempo. — Não podemos ficar aqui esperando, enquanto a tripulação da Crest voa para a morte. Redhorse ligou sua lanterna. Haviam deixado as mesmas conosco, mas elas não nos serviam de nada. O cheiene iluminou a sala. Com as peças de mobiliário existentes também não podíamos fazer nada. — Quando ouvirmos uma explosão, saberemos que a corveta não existe mais — disse Redhorse, amargurado. — Felizmente a Crest parece encontrar-se longe demais para que tenhamos de ouvir sua destruição. Senti o desespero que tomara conta de Redhorse. Sua voz parecia calma, mas senti que ele se recriminava fortemente. Não havia como escaparmos do abrigo, mas eu me recusava a aceitar o fato. Da mesma forma que muitas pessoas que se vêem numa situação desesperadora, tive o pensamento absurdo de que poderíamos ter deixado de notar alguma coisa que nos pudesse ajudar. Mas o tempo foi passando sem que acontecesse nada. Fiquei refletindo sobre o que poderia ter acontecido com a corveta. Talvez ainda não tivesse pousado. Nas condições em que nos encontrávamos, só podíamos fazer votos de que fosse assim. A nave auxiliar excedia em forças as dos tefrodenses, mas não tive a menor dúvida de que Toser Ban tinha um meio de destruir uma grande nave. Contara com a chegada da Crest III e certamente estava preparado para isso. Aquilo que os senhores da galáxia não tinham conseguido no tempo real, no interior da nebulosa de Andrômeda, parecia transformar-se em realidade cinqüenta mil anos no passado: a destruição da nave-capitania da Frota Solar e a eliminação dos homens mais importantes do Império. Mesmo a contragosto, admirei a habilidade com que os senhores da galáxia nos tinham enganado mais uma vez. Cada lance de seu jogo fora muito bem preparado. Parecia que desta vez não havia como escapar. — Antes Toser Ban nos tivesse matado — disse Doutreval. — Assim pelo menos não seríamos obrigados a assistir ao fim da Crest III. Estas palavras pareciam ter despertado o velho arrojo de Redhorse. — Não! — exclamou, enquanto iluminava o rosto do pequeno rádio-operador. — Tão depressa não desistimos, Olivier. Doutreval piscou os olhos, uma vez que estava sendo ofuscado. — O que podemos fazer, major? Nenhum de nós é um mutante capaz de atravessar as paredes de concreto como se não existissem. — Toser Ban sem dúvida terá problemas — respondeu Redhorse. — A destruição do ultracouraçado será mais difícil do que os senhores da galáxia imaginam. Não podemos resignar-nos. Talvez exista uma chance de escaparmos deste abrigo — iluminou o teto. — Vamos examinar cuidadosamente as paredes, o chão e o teto — decidiu. — Tenho minhas dúvidas de que encontremos uma saída, mas antes isto do que ficarmos inativos, à espera do momento em que Toser Ban mandará fuzilar-nos. As palavras de Redhorse despertaram uma nova atividade em nós. Examinamos as paredes do abrigo, centímetro por centímetro. O exame foi mais cuidadoso junto à entrada. Isto ajudou-nos a esquecer nossas tristezas. Fiquei iluminando constantemente a porta. Papageorgiu carregou Doutreval nos ombros, para que o pequeno rádio-operador pudesse verificar o teto. Um ruído vindo da porta levou-me a interromper meu trabalho. — Senhor! — gritei para Redhorse. — Acho que está chegando alguém.
Os outros também interromperam as buscas. A luz de cinco lanternas foi dirigida para a entrada, mergulhando-a numa claridade ofuscante. A porta foi aberta e Monira esgueirou-se por ela. Apressou-se em fechá-la de novo. Trazia duas carabinas energéticas lemurenses sobre os ombros. Seu rosto estava pegajoso de tão sujo. Vi que tinha chorado. Estava com os cabelos desgrenhados. Ficou parada, olhando para nós. Sua respiração era ofegante. Em minha opinião devemos ter levado pelo menos um minuto para recuperar-nos da surpresa. — Monira! — exclamou Redhorse, perplexo. — Que é isso? — Ninguém me viu! — respondeu Monira em tom apressado. Pegou as carabinas e entregou-as a Redhorse. — Os homens estão de olho na nave que se aproxima, vinda da costa. Fujam antes que eles os matem. — Monira! — voltou a exclamar Redhorse. A moça irrompeu em soluços. Redhorse fitou-a como quem não sabe o que fazer. Entregou-me uma das carabinas. — Não podemos deixar a moça aqui — disse Doutreval. — Toser Ban mandaria fuzilá-la. Monira sacudiu fortemente a cabeça. — Sou um duplo—disse. — Ficarei com os tefrodenses. — Venha conosco! — insistiu Redhorse. — A bordo de nossa nave você poderá ser ajudada. Monira sacudiu a cabeça e recuou para a porta. Tive pena dela, mas ao mesmo tempo a admirava pelo risco que tinha assumido. Compreendi que não o fizera por nós, mas por Redhorse. O major foi para a porta, abriu um pedaço e olhou por ela. — Não vejo ninguém — informou, aliviado. — Quando estivermos lá fora, fugiremos para a cidade em ruínas. — Fez um sinal. — Vocês irão na frente — decidiu. Saímos um por um. Redhorse e Monira foram os únicos que continuaram no interior do abrigo. Corremos para os fundos da construção o mais depressa que pudemos. Ali pelo menos não podíamos ser vistos pelos tefrodenses. Vi alguns duplos do outro lado do antigo campo de pouso de Makata. Pareciam nervosos. Certamente a corveta se aproximava. — Vou ver o que está acontecendo ao major — avisei. Fui para a frente da construção, bem encostado à parede, e vi Monira sair do abrigo. Neste momento apareceram três homens do outro lado da área livre. Acabavam de sair de um dos abrigos. Avistaram Monira e em seguida Redhorse, que saía atrás dela. Deitei no chão para não ser visto. Redhorse advertiu a moça, mas ela continuou a andar com o corpo levantado, como se não visse o que acontecia em torno dela. Os três tefrodenses puxaram as armas. Redhorse deixou-se cair no chão e fez pontaria com a carabina energética. Monira parou e virou a cabeça para o major. — O comandante de sua nave deve prestar muita atenção! — gritou para Redhorse. — Na Lua existe uma... Os três tefrodenses atiraram. Monira foi atingida e cambaleou. Caiu ao chão bem à frente de Redhorse. Abri fogo contra os duplos. Os tefrodenses que se encontravam do outro lado do porto espacial tiveram a atenção despertada. — Major! — gritei. — Temos de dar o fora.
Redhorse rastejou em direção à moça, que estava deitada no chão, com o corpo encurvado. Um dos três homens que tinham atirado nela estava morto, enquanto os outros se haviam abrigado atrás de algumas elevações. — Está morta! — gritou Redhorse, desesperado. Sua voz era parecida com a de um louco. Fiquei apavorado ao vê-lo levantar e sair correndo em direção aos dois tefrodenses que continuavam em seus abrigos. Atirava ininterruptamente com sua carabina energética. Parecia que enlouquecera. Neste momento minha inteligência deixou de funcionar. Com um salto pus-me de pé e saí correndo atrás de Redhorse. Os dois tefrodenses atiravam de dentro do esconderijo, no qual se sentiam seguros. Mas a audácia de Redhorse os pegara de surpresa. Não conseguiram fazer boa pontaria. Neste momento algumas dezenas de tefrodenses se aproximaram, vindos do outro lado do campo de pouso tomado pela vegetação, para ajudar os dois companheiros que se viam em dificuldades. Um de nossos adversários perdeu os nervos e saltou para fora do abrigo. — Major! — gritei com a voz se atropelando. — Temos de recuar. O outro tefrodense também saiu do abrigo. Esticou o braço e fez pontaria com toda calma. Neste momento Papageorgiu saiu de trás do abrigo, gritando desesperadamente para nós. Fuzilei o duplo que estava com a arma apontada para Redhorse. — Para trás! — gritou Papageorgiu. — Volte, major. Redhorse passou a andar mais devagar. O terceiro tefrodense atirara fora sua arma e ficou parado a alguns metros de Redhorse, com os braços levantados. Seus olhos brilhavam de medo. Alcancei o cheiene e fiquei parado a seu lado, respirando com dificuldade. Don Redhorse apontou a arma para o homem indefeso. Empurrei o cano da arma para baixo. — Senhor! — exclamei em tom insistente. — Pelo amor de Deus! Ele está desarmado. Só neste instante Redhorse parecia tomar conhecimento de minha presença. Virouse, sem dar atenção ao tefrodense. — Vamos voltar para perto do abrigo! — exclamou, fungando. — Temos de fugir para a selva antes que os homens de Toser Ban nos alcancem. Passamos correndo pelo cadáver de Monira. — Ela disse alguma coisa sobre a Lua antes de morrer — lembrei a Redhorse. — Temos de avisar a Crest. — Não conseguiremos chegar perto do rádio — respondeu o cheiene. — Olhem a corveta! — gritou Papageorgiu e atirou os braços para o alto. Virei a cabeça. A nave de sessenta metros de diâmetro apareceu sobre o campo de pouso. Os tefrodenses se haviam recolhido aos abrigos e a outros esconderijos. — Vamos! — insistiu Redhorse. — Não podemos ficar aqui. Os tefrodenses nos agarrarão antes que os tripulantes tenham saído. Voltamos a correr. Fosse quem fosse o comandante da corveta, ele parecia não saber o que pensar dos acontecimentos que se verificaram no antigo campo de pouso. Não se podia acusar o comandante por ele ser tão cuidadoso. Atingimos as primeiras árvores. Fiquei sem fôlego e deixei-me cair ao chão. Redhorse apoiou-se numa árvore. Algumas figuras que corriam abaixadas apareceram entre os abrigos. Os tefrodenses certamente estavam dispostos a fazer tudo para prendernos de novo. A corveta ainda se encontrava acerca de mil metros acima do campo de pouso.
— Aqui não poderemos defender-nos — disse Redhorse depois de olhar ligeiramente em volta. — Logo seremos cercados pelos duplos. Vamos para a frente. O Tenente Bradon apontou para a selva. — Estamos correndo diretamente para as ruínas de Makata — objetou. Receio que os mutantes já estejam à nossa espera com suas lanças. — Tem uma sugestão melhor? — perguntou Redhorse, apontando para os tefrodenses que se aproximavam rapidamente. — A corveta não demorará a pousar. Aí os duplos ficarão em situação de inferioridade — respondeu Bradon. — Não podemos esperar tanto tempo — disse o major. O cheiene já recuperara completamente o autocontrole. Decidia com a rapidez de sempre. E tive a impressão de que suas decisões eram certas. Levantei do chão. Entramos na selva. Redhorse e eu corríamos à frente do grupo, porque éramos os únicos que tinham carabinas energéticas. Quando tínhamos percorrido apenas alguns metros notamos que só conseguíamos avançar devagar, porque a vegetação era tão densa que às vezes chegava a transformar-se numa muralha. Tivemos de passar por cima de raízes de dois metros de altura, passamos com dificuldade pelos cipós e tivemos de sacudir os galhos que pendiam sobre nós. Ouvimos barulho vindo de trás. Eram os perseguidores. Toser Ban mandara pelo menos cinqüenta homens atrás de nós. As árvores ficavam tão juntas que não víamos o céu nem a corveta. Tivemos de esforçar-nos para reconhecer os objetos mais próximos na penumbra. Só podíamos fazer votos de que de repente não nos defrontássemos com um animal selvagem. Finalmente alcançamos uma pequena clareira. Redhorse mandou que fizéssemos uma pausa ligeira. Estava exausto e respirei com dificuldade. Como sou um homem obeso, tive de fazer um esforço muito maior que os outros para acompanhar Redhorse. A pausa durou pouco. Os gritos dos tefrodenses que nos perseguiam fizeram com que saíssemos bem depressa. Voltamos a entrar na vegetação densa. Ouvi o grito de um animal espantado, vindo não sei de onde. O sangue martelava nos meus ouvidos. As pernas e os quadris estavam feridos, e as mãos tinham sido arranhadas pelos espinhos. O sangue e o suor atraíram bandos de insetos que nos perseguiam obstinadamente. De repente o chão em que pisei cedeu. Fiz um esforço desesperado para segurar-me num cipó, mas minhas mãos erraram o alvo. Papageorgiu praguejou. Formamos um bolo confuso no fundo duma armadilha. Quando finalmente consegui ficar de pé, havia pelo menos trinta mutantes parados na borda da armadilha, olhando para nós. Carregavam lanças, machados e clavas. O chefe, que era um homem enorme vestido com uma pele de tigre-sabre, abriu a boca desdentada e gritou palavras triunfantes para nós. Procurei minha carabina energética. Quando a encontrei e quis levantá-la, Redhorse deu-me um empurrão. — Quer morrer, Brazos? — Apontou para cima. — Assim que levantarmos uma arma que seja, seremos perfurados pelas lanças. Caí cambaleante contra a parede da armadilha. Areia e sujeira caíram na minha nuca. Os insetos executavam uma dança à frente de meu rosto. As vozes animalescas dos mutantes faziam-se ouvir lá em cima. Tentei em vão distinguir alguns ruídos causados pelos nossos perseguidores. Certamente tinham perdido nossa pista. Cinco mutantes, que eram verdadeiras figuras de pesadelo em carne e osso, saltaram para dentro da armadilha, munidos de cordas, e começaram a amarrar-nos.
Por enquanto nossa fuga chegara ao fim. Éramos prisioneiros dos mutantes de Makata, para os quais éramos inimigos mortais.
Interlúdio
A faixa de terras planas que se estendia entre a costa e a selva certamente já fora o campo de pouso de um porto espacial dos lemurenses. A vegetação fora removida de algumas das construções que serviam de abrigo, o que era um sinal seguro de que ainda eram habitadas. — Já sabemos como Redhorse conseguiu pôr as mãos num hiper-rádio — disse Atlan e John Marshall, que estava de pé a seu lado. — Lá embaixo ainda deve haver algumas instalações intactas. Marshall observou com os olhos semicerrados a paisagem que se estendia embaixo da corveta. Há poucos instantes os rastreadores supersensíveis da nave tinham registrados as descargas energéticas de várias armas, mas o campo de pouso parecia abandonado. — Tenho certeza de que alguém nos observa — disse Gucky. — Mas não consigo captar nada além dos impulsos mentais confusos dos mutantes. — Acho que deveríamos assumir o risco de descer mais um pouco — disse o arcônida. Atlan sabia que a ordem que acabara de dar poderia significar o fim da nave sob seu comando e a morte de sua tripulação. Poderia mandar sair os homens, mas com isso os astronautas enfrentariam um perigo ainda maior. — Há uma coisa que não compreendo. Se Redhorse está lá embaixo, ele já deveria ter entrado em contacto conosco pelo rádio — disse Marshall, estupefato. — Pelo menos teria dado algum sinal. Atlan girou cuidadosamente os botões da ampliação ótica. Um setor da paisagem apareceu na tela. Bem no centro do quadro viu-se um mastro com dois homens pendurados na ponta. Estavam mortos ou pelo menos inconscientes. Atlan ficou tão assustado que afastou rapidamente as mãos dos botões. Mas só levou alguns segundos para perceber que os homens pendurados no mastro não pertenciam à tripulação da Crest III. — Que métodos bárbaros! — observou o piloto que estava sentado ao lado de Atlan. — Estes prisioneiros estão sendo torturados. Atlan estava cada vez mais nervoso. Alguém que usava estes métodos também não hesitaria diante de um assassínio. Era possível que a vida de Redhorse e seus companheiros já corresse um perigo extremamente grave. Nestas condições não se devia retardar mais o pouso da nave. Atlan inclinou o corpo em direção ao piloto. — Vamos pousar! — disse, enquanto ligava o intercomunicador. — Vamos pousar! — gritou para dentro do microfone. — Todos os postos de combate serão guarnecidos. Se houver um ataque, responderemos imediatamente ao fogo. Ninguém sairá da nave sem minhas ordens expressas. A corveta desceu devagar. O sistema de propulsão antigravitacional manteve a nave de muitas toneladas calmamente em sua trajetória. — Será que o solo é estável? — perguntou o piloto. Atlan fez um gesto afirmativo. — Quando muito, esmagaremos alguns arbustos — respondeu com um sorriso forçado. — Não será nenhuma tragédia.
— Há alguém deitado lá embaixo! — gritou Marshall. Atlan olhou para a tela. Havia uma moça jogada no chão, à frente de um dos abrigos. Atlan viu logo que estava morta. Havia sinais de um tiro energético em suas costas. O arcônida sentiu-se dominado pela raiva. Alguém que era capaz de amarrar homens numa estaca e matar mulheres não merecia nenhuma compaixão. O Lorde-Almirante teve suas dúvidas de que o Major Don Redhorse ou seus homens ainda estivessem vivos. A corveta pousou sobre as doze colunas de sustentação. Os canhões energéticos pesados foram apontados ameaçadoramente para os abrigos que faziam parte do antigo porto espacial lemurense. Atlan passou os olhos pela fileira de telas de imagem. Não se via o menor movimento no campo de pouso. — Está tudo quieto — disse Gucky, que parecia estar pensando a mesma coisa que seu amigo arcônida. — Acho que já posso arriscar um salto. — Não — respondeu Atlan. — Tenho certeza de que estamos sendo observados. Assim que um de nós puser a cabeça fora da eclusa, seremos atacados. — Tem certeza? — perguntou o rato-castor. — Não se esqueça de que John e eu não estamos captando nenhum impulso. — Isso não quer dizer nada. Existem muitas possibilidades de bloquear os fluxos mentais. Para nós isto não é nenhuma novidade. — Enquanto eu for obrigado a ficar sentado aqui, parado que nem um aposentado, nunca saberemos o que está acontecendo lá fora — resmungou Gucky, aborrecido. Notava-se que sua sede de aventura fora despertada. — Abrir eclusa do hangar! — ordenou Atlan pelo microfone do intercomunicador. — Descer passadiço. Preparem um carro voador. Gucky bateu palmas com as mãozinhas em cima da cabeça. — Um carro voador? — gemeu, fora de si. — Não venha me dizer que quer sair num blindado aéreo. — Vamos fazer com que os habitantes invisíveis dos abrigos saíam dos esconderijos. Pouco importa quem sejam — asseverou Atlan em tom resoluto. Depois passou a dirigir-se a Marshall. — John, assuma o comando da corveta. Warner e Gucky irão comigo ao hangar. Warner, que era o piloto, levantou da poltrona. Gucky seguiu os dois, arrastando os pés como era seu costume. Normalmente se teria teleportado para o hangar, mas deixara de fazê-lo para manifestar seu protesto contra as ordens que Atlan acabara de dar. Sabia perfeitamente que o arcônida só resolvera levá-lo para evitar que agisse por conta própria assim que ele saísse da sala de comando. Atlan, Warner e Gucky entraram no elevador antigravitacional e desceram para o hangar. O carro voador estava pronto para decolar. Atlan deu mais algumas ordens aos tripulantes da corveta. — Se o carro voador for atacado, respondam ao fogo — disse. Entraram no blindado voador. Atlan ocupou a poltrona do piloto. O potente sistema de propulsão do veículo versátil entrou em funcionamento. O carro voador subiu do chão do hangar e flutuou na direção à eclusa, que estava aberta. Em pouco tempo deixou para trás a corveta e sobrevoou o campo de pouso. Atlan seguiu diretamente para a área livre entre os abrigos. O arcônida acompanhara a vida do planeta em muitas épocas de sua história, mas ignorava tudo a respeito do tempo em que se encontravam. Era como se um velho amigo tivesse mudado completamente. — Prepare o canhão, Warner — disse Atlan ao terrano que o acompanhava.
— Sinto uma coisa! — exclamou Gucky, nervoso. — Vem da selva, que fica bem perto. — E lá embaixo? — Nada! — respondeu o rato-castor. — Parece que os edifícios estão abandonados. — Lá vêm eles, senhor! — berrou Warner de repente. Homens e mulheres armados estavam saindo dos abrigos. Atlan viu imediatamente que usavam trajes protetores. Os desconhecidos abriram fogo contra o carro voador com suas carabinas energéticas pesadas. — Vamos pousar! — resmungou Atlan, zangado. — Que diabo está esperando, Warner? Atlan olhou para trás. Viu que o lado esquerdo do rosto de Warner tremia. O homem estava inclinado sobre a mira ótica, mas demonstrava uma hesitação inexplicável. Atlan compreendeu que não conseguia atirar contra os desconhecidos. O campo defensivo do carro voador foi rompido pelo fogo concentrado do inimigo. O veículo balançou. Quando ainda se encontrava a cinco metros do chão, caiu. O impacto foi tão forte que Atlan saltou da poltrona e foi arremessado contra a parede interna da carlinga de comando. O arcônida pôs-se de pé e com dois saltos foi para perto de Warner, que se segurava no canhão. Atlan arrancou-o do lugar. O arcônida olhou para a tela e viu uma horda de inimigos gritando entusiasmada e correndo para o carro voador. — O que estava esperando, seu idiota? — gritou Atlan. — Havia mulheres entre eles — respondeu o piloto. — Estão armadas — disse Atlan. — E atiram para matar. Quanto tempo os terranos ainda levarão para compreender que... Interrompeu-se, sacudiu a cabeça e ocupou a poltrona do artilheiro. Neste instante o raio de fogo de um canhão energético passou chiando por cima do carro voador. A tripulação da corveta acabara de entrar na luta. A área que se estendia à frente do blindado ficou em chamas. Não se via mais o menor sinal dos atacantes. Warner olhou para fora da carlinga. Tremia fortemente. — Vamos embora! — gritou Atlan. — Temos de sair deste mar de chamas para ver o que está acontecendo nos abrigos — deu um empurrão em Gucky. — Transmita uma mensagem telepática a Marshall, baixinho. Peça-lhe que suspenda o fogo por enquanto, para que o carro voador não seja atingido. — Entendido! — respondeu o rato-castor com a voz estridente. Warner acabara de ocupar a poltrona do piloto. O carro voador deu partida lentamente. Suas esteiras cravaram-se no chão macio. As chamas que saíam dos arbustos incendiados subiam até a carlinga de comando. Atlan esforçou-se para distinguir alguma coisa no meio do fogo e da fumaça.
O veículo saiu rolando da área incendiada do campo de pouso, à sua frente havia cem inimigos armados à sua espera. Atiraram assim que viram o carro voador. A carlinga do veículo arrebentou numa explosão. O calor parecia fazer ferver o ar. Atlan abaixou-se e puxou o acionador do canhão energético. O carro voador prosseguia em sua viagem. — Warner! — piou Gucky. — Parece que está ferido. Atlan olhou para a poltrona do piloto. Warner pendia de lado. As mãos seguravam os comandos, mas permaneciam imóveis. O arcônida levantou de um salto. Havia um único homem parado à frente do carro voador, atirando. Gucky o fez subir telecineticamente alguns metros e deixou-o cair. O homem bateu violentamente no chão e saiu rastejando às pressas. A área entre os abrigos ficou livre. Atlan puxou Warner. O piloto revirou os olhos. Parte da carlinga não se pulverizara logo sob o efeito do tiro. O calor a transformara numa massa incandescente, que pingava em cima de Warner. O material atravessara o traje protetor de Warner — e avançara mais um pedaço. Warner estava com os lábios muito pálidos. — Não ficou satisfeito comigo, Lorde-Almirante? — perguntou. Foram suas ultimas palavras. O corpo amoleceu nos braços de Atlan. — Está...? — principiou Gucky, apavorado. Atlan fez um gesto afirmativo. Já se defrontara com a morte nas mais diversas formas, mas a morte deste astronauta deixara-o bastante abalado. Fora ele que o fizera vir a esse lugar. — Cuidado! — gritou Gucky de repente. Atlan deixou cair o corpo de Warner e abrigou-se atrás dos controles. O fogo de pelo menos cem carabinas energéticas passou por cima do carro voador, tornando incandescente sua face externa. — Diga a Marshall que entre em ação, Gucky! — exclamou Atlan. — Rápido! Gucky não respondeu, mas dali a instantes as armas da corveta foram acionadas. Atlan ouviu os gritos de um ferido. Os últimos tiros chiaram. O arcônida levantou. Estava banhado em suor. — Não vejo mais ninguém! — gritou para Gucky. — Teleporte-se para a corveta. Darei mais uma olhada por aqui. — Não posso deixá-lo só — protestou Gucky. Atlan pegou a arma e apontou-a para o rato-castor. — Quer que deixe seus pêlos chamuscados? — Vou requerer aposentadoria — gritou Gucky em tom choroso e dissolveu-se à frente do arcônida. Atlan sorriu e tentou mover a chave para abrir a eclusa, mas esta fora deformada pelo calor e não obedeceu ao impulso eletrônico. Atlan lamentou que não estivesse usando seu traje protetor, cujo protetor antigravitacional poderia levá-lo para fora. A única coisa que poderia fazer era sair pela carlinga. O material que tocava com as mãos estava superaquecido. Teve de sair na parte de trás, porque a parte dianteira do carro voador ainda estava incandescente. O material forçado ao máximo estalava constantemente. Atlan deixou-se cair no chão e abrigou-se atrás do carro voador. Olhou em volta. Não viu nenhum inimigo. Os que não tinham sido mortos haviam fugido. Atlan perguntou a si mesmo se os seres que os tinham atacado eram descendentes dos lemurenses ou membros da guarnição da estação do tempo que ficava mais ao norte. Atlan saiu do lugar em que se abrigara e correu para o abrigo mais próximo. Ninguém atirou nele. Ficou deitado alguns minutos atrás da parede lateral do abrigo.
Finalmente saiu do esconderijo. A porta do abrigo só estava encostada. Dentro dele estava escuro. Atlan abriu a porta com um pontapé. — Saiam! — gritou. — Senão jogarei uma bomba. Se havia algum inimigo dentro do abrigo, o truque não deixaria de produzir efeito. Mas ficou tudo em silêncio. Atlan entrou. Viu três cadáveres no chão, iluminados pela luz que penetrava pela porta. Tinham fugido para dentro do abrigo, gravemente feridos, e acabaram morrendo. Havia algumas máquinas lemurenses do outro lado da sala. O arcônida bem que gostaria de examiná-las, mas não tinha tempo. Retirou-se do abrigo. A estaca cravada no centro da área livre se quebrara. Atlan correu para lá, na esperança de que um dos dois homens amarrados nela tivesse sobrevivido à luta, mas viu que os dois estavam mortos. Atlan viu uma construção do outro lado. A porta estava aberta. Seguiu nessa direção. Quando já se encontrava bem perto do abrigo, uma figura alta que trajava um conjunto-uniforme prateado apareceu na entrada. Atlan deixou-se cair no chão e atirou. Uma bolha luminosa formou-se em torno do desconhecido. Atlan compreendeu que ele usava um campo defensivo muito forte. O desconhecido deu uma risada debochada e continuou a caminhar na direção em que estava Atlan. Furioso, o arcônida enfiou a arma no cinto. O homem com que se defrontava, e que continuava a rir debochado, era mais velho do que parecera à primeira vista. — Antes assim — disse, dirigindo-se a Atlan. — Não venha me dizer que o senhor pensa que com esta arma ineficiente pode atravessar o campo defensivo de um senhor da galáxia. Atlan olhou meio atordoado para o símbolo que o desconhecido trazia sobre o peito. Defrontava-se com um senhor da galáxia. De repente compreendeu tudo. Tinham sido atraídos a este lugar pelo inimigo que agira com uma astúcia diabólica. Um véu parecia cobrir os olhos de Atlan. Uma coisa atingiu sua nuca. Era um pingo de chuva. O arcônida olhou para o céu nublado. — Dentro de algumas horas escurecerá — disse o senhor da galáxia. — O que está esperando? — perguntou Atlan. — Meu nome é Toser Ban — disse o homem a título de apresentação. — Faço questão de que saiba este nome. Sou eu que destruirei a nave que nos causou tantas dificuldades. — Destruir a nave? — repetiu Atlan com a voz cansada. Apontou para a arma do senhor da galáxia. — Acha que vai derrubar a Crest como se fosse um passarinho? O senhor só pode estar louco. Seus homens fugiram ou estão mortos. Não conseguiram enfrentar sequer o blindado voador. E o senhor vive sonhando em destruir a Crest? Toser Ban voltou a rir. Até parece um diplomata, pensou Atlan, indiferente. Era alto, de ombros largos e com fios prateados nos cabelos. Um homem vistoso, ao qual se poderia confiar uma missão diplomática. — O senhor acha que nossa organização é ingênua a ponto de atacar uma nave como esta com trezentos e vinte duplos? — perguntou. — Não esquecemos nenhum detalhe. A morte dos meus homens não significa nada. Nossos multiduplicadores podem fabricar reforços à vontade. A chuva era mais forte. Atlan sentiu que tremia de frio e cansaço. As palavras de Toser Ban pareciam seguras e arrogantes. Será que a Crest III estava mesmo condenada à destruição?
— A propósito. Quem é o senhor? — perguntou Toser Ban. — Não parece um soldado raso. — Sou um oficial — respondeu Atlan. — Recebi ordens para fazer uma verificação neste porto espacial. — Nada disso. O senhor está procurando os seis homens que vieram a este mundo pelo transmissor. O cadáver de um deles se encontra numa caverna das geleiras. Os outros cinco fugiram para a selva. Duvido que ainda estejam vivos. Devem ter sido liquidados pelos mutantes de Makata. Atlan sentiu o olhar penetrante do homem pousado nele. — O senhor não é um oficial qualquer — disse Toser Ban em tom pensativo. — É um dirigente. Tenho um sentimento para estas coisas. Talvez devesse torturá-lo para descobrir a verdade. Atlan não respondeu. Os dois encararam-se em silêncio por alguns minutos, na chuva. Até parecia que cada um queria avaliar as forças ocultas do outro. Finalmente Toser Ban pegou a arma. — Não acredito que haja um meio de juntarmos nossos interesses. Mas acho que talvez possa chegar à conclusão de que deve colaborar com nossa organização. — Só trabalho para uma organização — disse Atlan. — Esta organização já sofreu muitas derrotas, mas um dia sairá vitoriosa, porque sempre aparece alguém que se empenha por ela. — Que dramático — escarneceu Toser Ban. — O senhor se refere à liberdade, não é mesmo? — Atlan confirmou com um gesto e o senhor da galáxia prosseguiu em sua fala. — Como vê, conheço suas idéias. Mas posso garantir que o poder total, exercida com brutalidade e precisão, é capaz de esmagar sua organização. Toser Ban levantou a arma e fez pontaria. — Quero que veja em sua morte uma peça de um ritual, amigo — disse. — Fuzilando o senhor, enfraqueço a organização da liberdade. Toser Ban puxou o gatilho e Atlan sentiu-se levantado. O tiro passou embaixo de suas pernas. O arcônida compreendeu imediatamente que fora salvo pela força telecinética de Gucky. Embaixo dele Toser Ban olhava com uma expressão de perplexidade para o lugar em que pouco antes estivera seu inimigo. Neste instante um dos canhões energéticos da corveta disparou. Apesar de seu potente campo defensivo, Toser Ban foi atirado para longe. O campo defensivo desmoronou e o senhor da galáxia saiu cambaleante de uma cortina de fogo. Atlan desceu suavemente. Tentou em vão descobrir Gucky. Toser Ban perdera seu campo defensivo, mas ainda estava vivo. Atlan pôs os pés no chão. — Agora nos enfrentaremos em igualdade de condições! — gritou para o senhor da galáxia. Toser Ban deu uma gargalhada de louco. Fez pontaria e atirou. O tiro passou chiando ao lado de Atlan. O arcônida pegou o desintegrador e fez fogo. Toser Ban, que vinha correndo em sua direção, parou como se tivesse esbarrado num obstáculo invisível. O grande homem cambaleou. Seu uniforme prateado dissolveu-se numa fração de segundo. Finalmente o senhor da galáxia caiu ao chão. Atlan foi devagar para onde estava ele. A chuva forte caía nele. O cabelo estava grudado na testa.
Toser Ban estava deitado de rosto para baixo no chão encharcado. Uma poça de água começava a formar-se junto aos seus pés. Atlan inclinou-se sobre ele. Toser Ban estava morto. O arcônida viu Gucky materializar a seu lado. — Obrigado, baixinho — limitou-se a dizer. — Não acha que foi muita coisa para um aposentado? — perguntou Gucky. Atlan conseguiu esboçar um sorriso apagado. — Dê uma olhada neste homem — pediu ao pequeno amigo. — E bom que saibamos que Toser Ban e outros que são iguais e ele nunca deverão governar o Universo. — Estou completamente molhado — queixou-se Gucky. — Acho que em vez de fazer discursos deveríamos voltar para a corveta. Atlan deu-lhe uma palmadinha no ombro. — Vamos embora, aposentado — pediu ao rato-castor. — Procure controlar-se. Temos de entrar na selva.
6 Os mutantes tiraram-nos da cova-armadilha. Ficamos com as mãos amarradas nas costas. Fiquei triste ao lembrar-me das duas carabinas energéticas que tinham ficado no fundo da cova. Os mutantes golpearam-nos com as mãos e os pés para obrigar-nos a andar mais depressa. Havia uma trilha no meio da selva. Sem dúvida fora aberta pelos mamutes. O fato de não termos sido mortos imediatamente fez renascer minhas esperanças. Talvez os mutantes já tivessem descoberto que não tínhamos nada com os tefrodenses que tinham invadido sua área. Não pudemos conversar. Bastava que disséssemos uma palavra para que fôssemos golpeados com varas. Pelo menos vinte mutantes caminhavam na frente. Depois vieram Redhorse e Papageorgiu, seguidos por uma dezena dos seres que nos tinham subjugado. O Tenente Bradon, Doutreval e eu fomos no fim, com sete mutantes. Não pude evitar que os galhos e os cipós batessem no meu rosto, já que estava com as mãos amarradas nas costas. Por mais que me esforçasse para soltar as amarras, a corda não cedia. Os mutantes conversavam através de grunhidos incompreensíveis, e que dificilmente poderiam ser considerados uma linguagem. Alguns destes seres lastimáveis não podiam andar com o corpo ereto. Saltitavam ou rastejavam no chão. Como conviviam com indivíduos de sua espécie, o aleijão não tinha a menor importância. Ainda bem que não havia lemurenses civilizados na região. Certamente seriam capazes de olhar para seus descendentes degenerados. Finalmente saímos numa clareira na qual havia três cabanas. Vi imediatamente que não era a cidade em ruínas. Tratava-se de um acampamento construído pelos mutantes, que o usavam em suas caçadas. Fomos tangidos para uma das cabanas. Sacos pendurados encobriam a entrada. Os sacos foram afastados. Uma lufada de ar com cheiro de mofo nos atingiu quando a porta foi aberta. Redhorse e os outros já tinham desaparecido no interior da cabana. Um pontapé violento obrigou-me a atravessar a soleira da porta. Não levei muito tempo para acostumar-me à penumbra reinante no interior da cabana. Um mutante que entrara atrás de mim cortou minhas amarras. Esfreguei o pulso para ajudar a circulação. Havia um homem de pé junto à janela encoberta por sacos pendurados. Parecia completamente normal, mas na luz mortiça que enchia a cabana isso não significava muito. Vi o desconhecido levantar o braço e levantar o pano que encobria a janela. Pude ver o rosto do homem. Estava cego, mas a testa alta mostrava que se tratava de um homem inteligente. Estava vestido com uma pele de animal. Tive a impressão de que não se tratava de um mutante igual aos outros. A porta foi fechada ruidosamente. Ficamos a sós com o cego. O mutante apontou para um tronco que devia servir de banco. — Podem sentar ali — disse num tefrodense bem compreensível. Redhorse fez um sinal para nós. Sentamos no tronco, do qual fora retirada a casca. — Não os vejo — disse o mutante. — Mas podem ter certeza de que sou capaz de fazer uma imagem dos senhores. — O senhor é um dos mutantes da região? — perguntou ao Major Redhorse.
O cego parecia prestar atenção ao tom da voz. Tive a impressão de que era capaz de tirar do timbre de uma voz suas conclusões sobre o caráter da pessoa. — Sou um mutante — confirmou o homem. — Mas não pertenço ao grupo que habitava as ruínas de Makata. — Habitava? — repetiu Redhorse. — Quer dizer que os mutantes abandonaram suas residências? — Foram expulsos por seus amigos, que incendiaram suas casas — informou o cego. — O lugar em que nos encontramos é a última base de que os mutantes de Makata ainda dispõem nesta região. Lembrei-me do clarão no céu que Redhorse e eu tínhamos visto de noite. Não tinham sido as fogueiras dos mutantes, mas suas cavernas que os tefrodenses tinham incendiado. — Os tefrodenses não são nossos amigos — disse Redhorse. — Fomos obrigados a entrar na selva para fugir deles. — Sobre isso conversaremos mais tarde — disse o mutante. — Pertenço a um grupo que se fixou a apenas sessenta quilômetros daqui. Numericamente somos mais fracos que os mutantes de Makata, mas em compensação há entre nós vários produtos de mutações positivas. Eu sou um deles. Meu nome é Sagrana. Vim para cá com a intenção de estabelecer contato com outros mutantes. Queríamos unir-nos aos poucos e tentar tornar habitável uma das grandes cidades. Não devemos abandonar a luta. — Quer dizer que presenciou os incidentes por acaso? — perguntou Redhorse. — Já estou aqui há muito tempo — respondeu Sagrana. — Os habitantes de Makata reconheceram imediatamente minha superioridade. Não demorei a descobrir que estas criaturas são tão primitivas que não poderão ajudar nos trabalhos que planejamos. Descerão cada vez mais e depois de algum tempo levarão uma espécie de vida animal. Resolvi ficar com eles para ajudá-los no que for possível. — O senhor é cego — disse Redhorse em tom áspero. — Não venha me dizer que caminhou sessenta quilômetros pela selva sem que ninguém o ajudasse. — Caminhei, sim — respondeu Sagrana. Pôs a mão atrás das costas e tirou um besouro de cerca de dez centímetros de comprimento que estava guardado na manta de pele. — Ele me guiou. — Esse inseto?—Redhorse abanou a cabeça, incrédulo. — Preste atenção! — pediu Sagrana. Colocou o besouro na mão. O animal levantou a cabeça, hesitante. Suas antenas vibravam. — Os senhores estão sentados no tronco — disse Sagrana. — Quero que dois se levantem. Redhorse fez um sinal para Doutreval e para mim. Levantamos sem fazer o menor ruído. — O homem que se encontra junto à porta levantou — disse Sagrana. — O gordo, que está bem à direita, também se pôs de pé. Sagrana voltou a enfiar o besouro embaixo da pele com um gesto relaxado. — Não é fácil aprender a língua dos insetos — disse. — Talvez só foi possível porque sou um mutante positivo. Trabalhei pacientemente com este besouro por dois meses a fio para comunicar-me com ele. Não se trata de uma linguagem no sentido usual
da palavra. Durante a comunicação, o besouro desencadeia certos estímulos em meu cérebro. — O senhor e o besouro formam uma dupla terrível — disse Redhorse em tom de espanto. — Em nosso meio existem pares ainda mais incríveis — respondeu Sagrana. — Talvez o inseto possa explicar-lhe que não somos inimigos dos mutantes — disse Redhorse, esperançoso. — Nossa espaçonave não demorará a aparecer em cima desta clareira. Quando isso acontecer, será melhor para seus amigos que estejamos em liberdade. — Diante das desgraças que atingiram meu povo, sua ameaça não faz sentido — disse Sagrana todo compenetrado. Deu um assobio estridente. A porta abriu-se e uma dezena de mutantes armados passou por ela. Seus grunhidos eram horríveis. — O que será feito destes desconhecidos, homem do besouro? — perguntou o chefe. Sagrana fez um gesto de desprezo. — Não quero vê-los mais — disse. — Fiquem com eles. O mutante traduziu as palavras que Sagrana acabara de pronunciar em alguns sons incompreensíveis. A horda irrompeu em uivos triunfais. Fomos agarrados e arrastados para fora. Dentro de instantes ficamos jogados no chão, com as mãos e os pés amarrados. Um número cada vez maior de mutantes ia chegando perto de nós. — Maldito idiota do besouro — disse Bradon, furioso. — Entregou-nos a estes bárbaros. Os mutantes apressaram-se em juntar lenha e fizeram uma grande pilha. — Vão fazer uma fogueira para festejar o acontecimento — disse Papageorgiu em tom sombrio. — Nem me atrevo a pensar no que farão conosco. Cinco estacas foram cravadas no chão mole, em torno da fogueira. — Sagrana! — gritou Bradon. — Saia e impeça este espetáculo selvagem. O chefe dos mutantes, que era um homem com uma enorme corcova nas costas e nas mãos, que antes pareciam pés de pássaros, deu um pontapé em Bradon. — Homem do besouro não vir — disse em tom insistente. — Ficar quieto. Bradou empinou o corpo, mas suas amarras não cederam. — Pare com isso, tenente — advertiu Redhorse. — O senhor está se cansando à toa. Espero que a fogueira atraia os tripulantes da corveta. Antes que terminasse de falar, começou a chover. Os mutantes uivaram decepcionados. — Tomara que chova mais forte — disse. — Assim nossos anfitriões terão dificuldade em fazer seu foguinho. Fomos colocados de pé e arrastados para junto das estacas. Os mutantes apertaram tanto as cordas com que me prenderam que mal consegui respirar. A chuva era cada vez mais forte e refrescou meu rosto ardente. Um dos mutantes tentou acender o fogo. Sagrana saiu da cabana, encostou-se ao batente da porta e fitou-nos com uma expressão apagada. Estava com uma mão estendida. O besouro preto estava sentado nesta mão. — Sagrana! — gritou Redhorse. — Se não fizer parar imediatamente estes mutantes, o senhor será responsável por sua morte.
A lenha empilhada pegou fogo, apesar da chuva. Ouvi o chiado dos pingos de água que se evaporavam. Reunindo as forças que ainda me restavam, empurrei com o corpo a estaca à qual estava amarrado. O tronco cedeu. Senti quando tombou para trás. Esforcei-me em vão para não perder o equilíbrio. Girei durante a queda e bati pesadamente no chão desmanchado. Papageorgiu, que estava amarrado bem a meu lado, soltou um grito. Saí rolando em direção à fogueira, mas os mutantes se aproximaram e bateram em mim. Não pude desviar-me de seus socos e pontapés. A água corria por meu rosto e esguichos de sujeira se levantavam no chão. Observei Sagrana pelos cantos dos olhos. Era uma figura magra e ereta caminhando lentamente em direção à lenha empilhada. Uma nuvem de fumaça negra subiu ao céu. Deitaram-me de costas. Alguém rasgou o casaco de meu uniforme. De repente vi Sagrana perto de mim. Deu uma ordem aos mutantes, que se retiraram. Sua gritaria era parecida com os uivos de uma alcatéia de lobos. A pilha de lenha caiu, lançando fagulhas que chegaram ao lugar em que nos encontrávamos. Sagrana deu alguns passos para trás. Tropeçou e perdeu o besouro. Vi o inseto caído na lama. Suas antenas tremiam nervosamente. Sagrana tateava com as mãos, desorientado. Os mutantes ficaram calados. De repente uma esfera gigantesca apareceu em cima da clareira. Estava com a garganta ressequida, mas consegui soltar um grito rouco de alívio. Vi homens em trajes de combate, com carabinas energéticas nas mãos. Sagrana agarrou um galho em chamas e veio cambaleante em minha direção. Alguns mutantes atiraram lanças e clavas contra os astronautas que estavam descendo da nave. O mutante cego encontrou-me. Suas mãos começaram a puxar os nós das cordas que me prendiam. Nos lugares em que não conseguia soltar as amarras, usava o galho em chamas. — Rápido! — exclamou. — Preciso de meu besouro. De repente agitou furiosamente o galho à frente de meu rosto, enquanto me segurava com uma das mãos. “Pelos planetas do Universo”, pensei, “ele só pode estar louco”. Revistei o chão com os olhos. Vi alguma coisa rastejando na lama, perto da fogueira. — Ali! — gritei. — O inseto. — Preciso tocar nele! — berrou Sagrana fora de si. — Sem isso não consigo estabelecer contato. Quis dar-lhe um soco no queixo, mas neste momento ele me arrastou. Perdi o equilíbrio. Sagrana desenvolvia a força de um louco. Na clareira os tripulantes que tinham saído da nave lutavam com os mutantes que vinham correndo de todos os lados. Os habitantes da cidade em ruínas possuíam uma superioridade numérica de dez para um. Se não fosse o armamento muito mais avançado, os astronautas teriam sido mortos imediatamente. Sagrana e eu estávamos de pé junto à fogueira. O cego abaixou-se e puxou-me para o chão. Os dedos magros da mão livre reviravam a lama. Atirei-me sobre ele e o peso de meu corpo comprimiu-o contra o chão. Neste instante levei uma forte pancada vinda de trás. Tive a impressão de que o mundo girava em torno de mim. Ouvi Sagrana dar um gemido. Saiu rastejando debaixo de mim e gritou, chamando seu besouro. O chiado dos tiros energéticos superava a gritaria dos mutantes que participavam do ataque. A confusão era tamanha que se tornava
quase impossível saber quem era amigo e quem era inimigo. A corveta não podia intervir mais na luta, porque qualquer tiro que desse poderia pôr em perigo seus próprios tripulantes. Fiquei deitado de costas, lutando contra o enjôo e esforçando-me para não perder os sentidos. Sagrana estava ajoelhado a meu lado. Segurava o besouro na palma da mão. Parecia satisfeito. — Chegaram estranhos, não é mesmo? — perguntou. — A nave deles encontra-se suspensa sobre a clareira. — São meus amigos, Sagrana — respondi. — O senhor foi avisado. A luta poderia ter sido evitada. — Não acha que para os mutantes é melhor que morram? — perguntou. — Essa idéia faz parte de sua filosofia de vida? Neste caso só se poderia ter desejado que o senhor nunca tivesse aparecido aqui para não prejudicar os mutantes de Makata. Sagrana gritou uma ordem incompreensível para um mutante que passava cambaleando. O homem entregou o machado de pedra ao cego. Tentei levantar, mas senti-me dominado pela dor e pelo enjôo. Soltei um gemido e caí para trás. Sagrana levantou o machado. — O senhor é inteligente demais para fazer uma coisa dessas! — gritei. — O besouro me mantém informado sobre o que está acontecendo na clareira. Os mutantes estão fugindo. Seus amigos ocuparam as três cabanas e libertaram dois dos nossos prisioneiros. Se não estivéssemos escondidos atrás da pilha de lenha, eu também não estaria mais vivo. Fiquei paralisado. O machado ficou suspenso em atitude ameaçadora em cima de minha cabeça. — Acertarei o alvo — disse o cego. — O besouro me ajudará a encontrar o lugar certo. O machado desceu abruptamente. Desviei a cabeça para o lado. A pesada pedra polida, presa ao cabo com cordas, atingiu a lama bem a meu lado. O movimento foi tão repentino que Sagrana deixou cair o besouro. — Onde está o senhor? — gritou o mutante. Consegui ficar de joelhos. Sagrana saiu rastejando. O instinto parecia dizer-lhe onde eu estava. Passou escorregando com os joelhos sobre o besouro e matou-o. — O senhor matou seu besouro, Sagrana! — gritei. Sagrana estremeceu como se tivesse sido atingido pelo tiro de uma arma paralisante. O machado de pedra caiu-lhe das mãos. Finalmente fiquei de pé à sua frente. Na clareira já estava tudo em silêncio. Redhorse e dois tripulantes da corveta vieram correndo em minha direção. — Está tudo bem com o senhor, Brazos? — gritou o major de longe. Fiz um sinal para que se aproximasse. — Levante — disse a Sagrana. — Pode vir conosco. A bordo de nossa nave poderá ser examinado e ajudado. Redhorse e os dois astronautas chegaram perto de mim. O major compreendeu imediatamente o que tinha acontecido. Deu ordem para que os dois astronautas se mantivessem afastados. — Venha, Sagrana — disse o cheiene, calmo. — Não — respondeu o mutante com uma voz surpreendentemente clara. — Ficarei aqui. Os sobreviventes da luta horrível que acaba de ser travada precisarão de mim.
— Não houve muitos mortos — disse Redhorse. — Nossos amigos só usaram armas paralisantes. Estamos com pressa de sair daqui. Venha conosco. O senhor é um homem inteligente. Acreditamos que poderá dar-nos informações preciosas. — Os senhores vieram de um outro mundo? — perguntou Sagrana. — Somos filhos do mesmo planeta, Sagrana, mas infelizmente não viemos do mesmo tempo. O cego pôs-se a refletir sobre estas palavras. — Não irei com os senhores — disse finalmente. — Pertenço ao tempo em que me encontro. — Vamos levá-lo à força? — perguntei a Redhorse. — Não — respondeu o major. — Deixe-o em paz. — Um momento — exclamou Sagrana. — Quero que o gordo me dê meu besouro. — Está morto — respondi. — Foi esmagado pelo senhor. Peguei o inseto no chão e coloquei-o nas mãos de Sagrana. Para minha surpresa ele sorriu. — Sou o homem do besouro. O senhor compreende? O inseto transformou-se num símbolo para os mutantes. E justamente agora eles precisam de alguém em que possam confiar. Sacudi a cabeça e olhei para a lama que cobria as pontas de minhas botas. — Cheguei a pensar que o senhor estivesse louco, Sagrana — disse. O mutante deu de ombros, virou-se e saiu andando na direção das cabanas, com o besouro morto nas mãos. — Quase todos os mutantes fugiram para a selva — disse Redhorse. — Não demorarão a voltar. Vamos embora, Brazos. Está na hora de voltarmos à corveta. Subimos para a nave que estava à nossa espera, cada um ladeado de dois homens que usavam trajes de combate. — Bradon, Papageorgiu e Doutreval já estão a bordo! — gritou Redhorse quando passávamos pela eclusa de ar. Lancei mais um olhar para a clareira abandonada, cujo chão tinha sido amolecido pela chuva. Já estava escurecendo. Nuvens de fumaça subiam do que restava da fogueira. Havia o cadáver de um mutante à frente de uma das cabanas. Senti o calor e o cheiro da nave, a qual já estava habituado, e esqueci imediatamente as canseiras das últimas horas. Fui à sala de comando juntamente com Redhorse. Atlan, John Marshall e Gucky já estavam à nossa espera. O Tenente Bradon, Papageorgiu e Doutreval também estavam lá. Já tinham mudado de uniforme. — Ali vem ele! — exclamou Papageorgiu ao ver-me entrar e apontou para mim. Gucky movimentou-se. Saiu em minha direção, arrastando os pés, e parou a três metros de distância. — Fiquei sabendo que o senhor matou um castor neste planeta, cabo — principiou em tom ameaçador. — E não foi só. Também disse que a carne de castor é muito saborosa. Com isto abriu as comportas para o extermínio dos castores. Lancei um olhar furioso para Papageorgiu. O fato de o rato-castor me chamar de senhor mostrava que estava mal-humorado. — Escute aí — respondi, cauteloso. — Você não deve acreditar em tudo que esse bebê gigante resolve contar. — Comeu carne de castor ou não comeu? — gritou Gucky com a voz estridente. — Comi — confessei, hesitante. — Um pouco. Mas os outros... Gucky fez um gesto enérgico para que me calasse.
— Basta — disse. — Pelo menos já sei por que recebi o tempo todo os fluxos mentais de um ser primitivo. Bem que poderia ter imaginado que estes pensamentos vieram de você, Brazos. Ameacei Papageorgiu com o punho fechado. — Será que não captou também os pensamentos de uma vara maluca com pés de chumbo? — perguntei, dirigindo-me a Gucky. — Neste caso você já saberia quem matou o castor. — De uma vara? — uivou Papageorgiu. — Eu lhe mostrarei quem sou, seu conven... — Silêncio! — interrompeu Redhorse em tom enérgico. — Vamos voltar para a Crest o mais depressa possível. A advertência que Monira gritou antes de morrer me deixa preocupado. Compreendi que ainda não tínhamos motivo para rejubilar-nos com a liberdade que acabáramos de reconquistar. Havia um perigo que ameaçava o ultracouraçado no interior do Sistema Solar. Não sabíamos que perigo era este. Mas sabíamos que estava ligado à Lua.
Interlúdio
“Então é este o poder”, pensou o agente do tempo Rovza, espantado. O poder de apertar um botão e matar centenas de seres desconhecidos que se encontram a bordo uma gigantesca nave esférica. Rovza não sabia exatamente quando iria apertar este botão, mas acreditava que não iria demorar muito. O agente do tempo estava sozinho, sentado na sala de controle da estação do tempo da Terra, observando as telas de imagem. O ponto cintilante que se via não muito longe da Lua era a gigantesca espaçonave inimiga. O ponto menor era uma nave auxiliar que os desconhecidos fizeram sair. A bordo desta nave auxiliar devia estar o homem que matara Toser Ban. Horas atrás, quando o senhor da galáxia morrera, Rovza ainda tivera suas dúvidas de que um homem poderoso como Toser Ban pudesse ser morto. Mas os instrumentos não enganavam. Toser Ban andava constantemente com um goniômetro cujos impulsos eram registrados no interior da estação. Há algumas horas estes impulsos tinham silenciado de repente. Dali só se podia concluir que Toser Ban estava morto. Rovza espantou-se ao compreender que o senhor da galáxia incluíra a própria morte em seus cálculos. Rovza franziu a testa. Era uma atitude incompreensível, fora do comum. Representava mais uma prova de que os senhores da galáxia eram personalidades extraordinárias. — Caso eu seja morto em ação, isso não será nenhuma tragédia — dissera Toser Ban pouco antes de ir para o sul. — O senhor ainda estará aqui, para fazer o que tem de ser feito. Rovza passou os dedos sobre o botão que tinha de apertar para provocar o caos na nave inimiga. Sobressaltou-se com um ruído. Retirou apressadamente a mão dos controles e afundou na poltrona. Bellogh acabara de entrar. Parou na entrada e fez uma mesura. — Que houve?—perguntou Rovza em tom impaciente. — O controle de rotina, agente do tempo. O Maghan deu ordem para que este controle seja efetuado a intervalos regulares. A probabilidade de o senhor morrer justamente agora é bastante reduzida, mas o Maghan não quer assumir nenhum risco. Se o senhor morresse, os controles ficariam a meu cargo. Rovza sentiu a sede do poder na voz do duplo. Da mesma forma que Rovza queria encontrar um meio de dar uma prova de seu valor, para não ser para todo o sempre um nada insignificante numa fileira de duplos. — Estou vivo! — resmungou Rovza. — E destruirei a nave. Bellogh retirou-se. Não escondia sua decepção. Rovza sacudiu a cabeça. Como alguém podia ser louco a ponto de esperar que num momento destes houvesse um incidente? O agente do tempo voltou a olhar para a tela de imagem. A nave grande continuava na mesma posição, mas a nave auxiliar se deslocara um pouco para o leste. Pelos cálculos de Rovza, devia encontrar-se nas imediações de Makata. “Por que”, perguntou a si mesmo, “o barco espacial não volta logo à nave-mãe?” Normalmente Rovza já deveria ter dado início ao ataque contra a nave maior. Ainda
estava hesitando por causa do barco espacial. Queria que a tripulação da nave menor também fosse morta, porque o assassino de Toser Ban estava incluído nela. Rovza ouviu os estalos dos impulsos de comando dos diversos dispositivos positrônicos montados do outro lado da sala. Esta aparelhagem levaria apenas alguns segundos para interpretar e calcular qualquer mudança de rota da nave inimiga. Os inimigos tinham entrado na armadilha. Rovza umedeceu os lábios ressequidos com a língua. Preferiu não levantar para arranjar alguma coisa para beber, pois neste maior tempo poderia acontecer alguma coisa que exigisse toda sua atenção. Ainda bem que o inimigo não estava informado sobre a fortaleza lunar e seus canhões de grande alcance. Quando abrisse fogo contra a grande nave, esta seria destruída imediatamente. Infelizmente os inimigos dos senhores da galáxia nem sequer sentiriam a morte. Seria tudo muito rápido. Rovza viu que a nave menor mudara novamente de posição. Muito tenso, inclinouse na poltrona. A mancha luminosa corria pela tela de imagem. A nave maior mantinhase em posição de espera. Rovza ficou com os olhos semicerrados. Será que a nave auxiliar estava regressando para a nave-mãe? Rovza esperou impaciente os resultados que seriam fornecidos pelos computadores positrônicos. Estes resultados foram fornecidos numa questão de segundos. A rota provável da nave auxiliar apareceu em forma de uma linha luminosa na tela do rastreamento espacial. Rovza acompanhou esta linha. Viu que levava diretamente ao grande ponto luminoso que representava a nave-capitânia. O agente do tempo ficou trêmulo. Isso só podia significar que a nave auxiliar estava regressando. Dentro de alguns minutos — dependia da velocidade que desenvolvia — devia entrar no hangar da nave maior. E quando isso acontecesse... Rovza tentou controlar a tensão que ameaçava apoderar-se dele, cravando as mãos nas braçadeiras da poltrona. Estava com as palmas das mãos suadas. Neste instante Bellogh voltou a entrar. — Fora! — gritou Rovza fora de si. — É o controle — respondeu Bellogh, que se espantara com o nervosismo do agente do tempo. — Há algo de errado? Rovza ouviu o outro aproximar-se em passos firmes. Sabia que Bellogh tinha a obrigação de fazer isso. Cumpria ordens de Toser Ban. Bellogh parou atrás da poltrona de Rovza e disse em tom embaraçado: — A nave auxiliar está regressando. — Sim, o senhor está vendo — respondeu Rovza, fazendo um esforço enorme para não perder o autocontrole. — Pode retirar-se. Bellogh hesitou. Não sabia se devia ceder ao respeito que lhe inspirava o senhor da galáxia que fora morto ou ao medo que sentia por seu superior imediato. — Prefiro ficar, agente do tempo. O senhor parece muito nervoso. Isso pode trazer complicações no momento decisivo. Rovza viu o pontinho luminoso que representava a nave auxiliar deslizar pela linha projetada, aproximando-se lenta mas constantemente do ponto luminoso maior. Rovza sacou a arma e apontou-a para Bellogh. — Fora! — voltou a gritar.
Bellogh olhou apavorado para a arma apontada para ele. Parecia desconfiar de que desencadeara alguma coisa na mente do chefe, da qual ele nem sabia que existia. Virouse e saiu. Rovza respirou aliviado. A nave maior continuava na mesma posição. Não seria necessário fazer novos cálculos. A nave auxiliar parecia ter aumentado a velocidade. A linha que representava a trajetória ia se encolhendo. Os computadores positrônicos zumbiam, mas Rovza nem notou este ruído. Na tela a manobra de aproximação da nave auxiliar à nave-capitânia parecia um fio sem fim sendo enrolado numa espula. Mas o fio que representava a rota da nave auxiliar não era infinito. Na tela só restavam uns três centímetros dele. Isto significava que poucas milhas separavam as duas naves. De repente Rovza teve a impressão de que apertar um botão seria um gesto muito pobre. Bastava um movimento do dedo indicador para destruir uma nave gigantesca. Parecia uma tarefa de matemática. Rovza sentiu-se como uma cifra insignificante numa enorme combinação de números. Um centímetro na tela de imagem ainda separava as duas naves da destruição. Finalmente os dois pontos luminosos fundiram-se, o menor foi absorvido pelo maior. A linha que assinalara a trajetória desapareceu. Só restava a nave maior. Rovza apertou o botão. Parecia que a tela do rastreamento espacial estava explodindo. Rovza tentou imaginar centenas de canhões atirando ao mesmo tempo e arremessando sua energia para o espaço. Ouviu o matraquear dos computadores positrônicos, enquanto na tela tudo se passava com um silêncio medonho. A incandescência ficou mais fraca. Algumas manchas negras apareceram na margem da tela. Os canhões da fortaleza lunar ainda estava atirando. Rovza deu-se conta de que ainda estava apertando o botão. Apertava-o com tanta força que seu dedo doía. Uma nuvem incandescente surgiu no centro da tela. As manchas negras que se formavam nas margens eram cada vez maiores. Rovza soltou o botão. Ficou mais descontraído. Recostou-se na poltrona. Neste instante um grande ponto luminoso saiu da nuvem feita de energia, que estava encolhendo. Rovza soltou um grito. Atirou-se para a frente e voltou a apertar o botão. A tela mostrou a rota da grande nave, que certamente resistira ao bombardeio. A rota terminou depois de ter traçado três centímetros na tela. Rovza sabia o que isso significava. A nave desaparecera no espaço linear. Nenhum poder do mundo seria capaz de detê-la. Rovza encolheu-se na poltrona. O comandante inimigo acelerara ao máximo assim que a nave auxiliar fora recolhida a bordo. Desta forma a nave maior só fora atingida pela periferia dos tremendos fluxos energéticos. O veículo devia possuir um campo defensivo muito forte para resistir ao bombardeio cerrado. Rovza desligou as telas. Sentiu-se como se tivesse envelhecido alguns anos. Quando levantou, Bellogh estava entrando. Bellogh viu imediatamente que todos os controles tinham sido desligados.. — Terminou tudo? — perguntou. Rovza não respondeu. Saiu caminhando com as pernas duras. Só começou a falar quando se encontrava no corredor. — Sim, terminou tudo — disse.
Ouviu o eco de seus passos refletidos pelas paredes. Parecia uma música irônica acompanhando a terrível derrota que acabara de sofrer.
7 Quando recuperei os sentidos, tive a impressão de que meu crânio iria estourar. Soltei um gemido e abandonei as tentativas de levantar-me. A voz bem conhecida do Major Don Redhorse se fez ouvir em cima de mim. — Foi atingido exatamente no lugar em que Sagrana o tinha machucado — disse o major. Abri os olhos e vi os contornos confusos de duas figuras inclinadas sobre mim. Eram Redhorse e aquele menino de nome grego. — Que... que houve? — perguntei com a voz rouca. Estava com a garganta ressequida. — Quando estávamos entrando no hangar, a fortaleza lunar dos senhores da galáxia abriu fogo contra a Crest III — informou o major. — Houve um tremendo solavanco. O senhor perdeu o equilíbrio e bateu com a cabeça numa mesa da sala de comando da corveta. — Fortaleza lunar? — perguntei. Não tinha compreendido nada. — A fortaleza possui instalações inteiramente automáticas — confirmou Redhorse. — Parece que os canhões foram acionados a partir da Terra. Se não fosse o campo hiperenergético e um pouco de sorte que tivemos, não teríamos escapado. — E agora? — perguntei. — Agora estamos em segurança no espaço linear, sargento. Arregalei os olhos. — Sargento? — exclamei, surpreso. — Antes de desmaiar eu era cabo. Redhorse sorriu. — Isso pode mudar depressa — disse em tom bonachão. — É bem verdade que sua promoção depende de uma condição estabelecida por certo oficial. — De uma condição? — perguntei, desconfiado. — Quem foi o oficial que a estabeleceu? — Gucky — respondeu Redhorse. — O senhor terá de prometer por escrito que nunca mais comerá carne de castor, Sargento Surfat. Engoli em seco. — Carne de castor? Ninguém come isto se não for absolutamente necessário. Papageorgiu aproximou-se. — Não deixe que Gucky ouça isso — advertiu. — A esta hora ele imagina que não existe coisa mais deliciosa que a carne de castor. E ficou convencido disso. — Mas... — principiei e fiz mais uma tentativa de erguer-me na cama. Redhorse empurrou-me para baixo. — Trate de descansar — pediu. — O senhor ainda acabará compreendendo. Ouvi-os caminharem para a porta. — Não quero ser sargento! — gritei atrás deles. — Não nestas condições. Ouviram? Levem estas divisas. Não quero ser sargento. Os dois ignoraram minhas palavras. A porta foi fechada ruidosamente e voltei a ficar só.
*** ** *
Enquanto a Crest mal e mal escapa da armadilha para a qual tinha sido atraída pelo senhor da galáxia chamado Toser Ban, Mory Rhodan-Abro, esposa do Administrador-Geral e chefe do governo de Plofos, não permanece inativa. Entra em contacto com o Marechal de Estado Reginald Bell e promove uma expedição de busca, à procura dos perdidos no tempo... Leia a história dessa expedição e de suas conseqüências dramáticas no próximo volume da série Perry Rhodan, com o título de Voando Para Barkon.
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