P-019 - O Imortal - K. H

  • November 2019
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  • Words: 26,803
  • Pages: 58
(P-019)

O IMORTAL Autor K. H. SCHEER

Tradução MARIA M. WÜRTH TEIXEIRA

Digitalização e Revisão ARLINDO_SAN

Gucky, o inteligente ser peludo do planeta Vagabundo, é o responsável pelo involuntário desvio por Tuglan, antes de Perry Rhodan poder retornar ao sistema Vega. E, quando o senhor da Terceira Potência emerge do hiperespaço com a possante Stardust-III, depara com um caos: Vega, o sol estável, está se transformando em estrela nova! Resta uma única possibilidade de salvar os ferrônios, caso seja esta a intenção de Perry Rhodan: cumprir as tarefas restantes, impostas pelo Imortal.

= = = = = = = = = = Personagens Principais: = = = = = = = = = = Perry Rhodan — Chefe da Terceira Potência. Reginald Bell — Ministro da segurança da Terceira Potência. Manuel Garand — Engenheiro-chefe da Stardust-III. John Marshall — Membro do Exército de Mutantes da Terceira Potência, telepata. Betty Toufry — Membro do Exército de Mutantes da Terceira Potência, telecineta. Gucky — O animal inteligente do planeta Vagabundo. Thora e Crest — Dois arcônidas que Perry Rhodan conduz ao objetivo desejado. “Ele” ou “Aquilo” — Um ser despojado, há muito tempo, do invólucro material.

No aparelho estava o engenheiro, Dr. Manuel Garand. O murmúrio de uma voz de som quase irreal inundou o ambiente, atingiu os órgãos dos sentidos transmissores e impôs-se ao cérebro, de onde partiram as reações. A rechonchuda face de querubim de Garand irradiava contentamento interior. Perry Rhodan sorriu inconscientemente. Não havia o que criticar na aparência de Garand. Toda sua personalidade transmitia otimismo, exercendo ação tranqüilizadora sobre os nervos de seus congêneres. No entanto, a voz tinha som estranho. Rhodan ficou escutando o insinuante cochicho até sentir a violenta onda de dor lhe percorrer o corpo. Um homem contorceu-se, gemendo na poltrona de encosto alto do piloto. Duas mãos crisparam-se sobre os pulmões doloridos. Tudo em vão, tão inútil quanto as torturadas exclamações de agonia ditadas pelo subconsciente. — Para onde quer que eu olhe, não vejo nada que não seja perfeito! — disse Garand, solenemente. Um espiralado clarão luminoso tomou o lugar de seu rosto. Na tela só ficou um borrão branco acinzentado. Perry Rhodan, senhor da Terceira Potência e comandante da nave espacial de guerra Stardust-III, recuperou-se finalmente da caótica confusão de sentidos resultante de uma transição em grande escala. De repente viu claramente, e com assustadora objetividade. Dificilmente um ambiente tecnificado poderia ter aparência aconchegante. Abrindo os olhos, confuso, Rhodan percebeu uma imagem palpitante nos refulgentes aparelhos à sua frente; levou alguns instantes para reconhecer nela seu próprio rosto. Reginald Bell, o capitão Klein e Crest pareciam estar inconscientes. A única realidade palpável era a enorme central de comando de uma nave ainda mais imensa. — Alô, Garand! Está me ouvindo? — balbuciou Rhodan, com dificuldade. — Alô, Garand! Que foi que disse há pouco? A tela do intercom permaneceu vazia. Manuel Garand, engenheiro-chefe da nave espacial, não tinha falado. Perry Rhodan afugentou as últimas alucinações. Seu cérebro voltou espontaneamente a raciocinar com clareza. Na face havia tensão; os lábios deixaram escapar uma imprecação apenas murmurada. Forçou o corpo entorpecido a deixar o assento do piloto. Nas amplas telas panorâmicas dianteiras luzia um gigantesco sol.

Uma chamejante estrela azul, de inacreditável luminosidade. Mesmo o sistema automático de filtragem parecia deixar passar boa parte de intensa radiação ultravioleta. Os olhos de Rhodan começaram a doer. Seria Vega? Seria de fato o sol daquele sistema planetário de onde tinham partido há pouco tempo, esta inflada bola de fogo? Uma onda de pânico descoloriu a face de Rhodan. Sem se voltar sequer, berrou o nome do amigo: — Bell! Mas o homem atarracado não se mexia. Só o rosto largo estremecia; o sistema nervoso perturbado causava reflexos musculares incontroláveis. Rhodan, classificado pelos psicólogos da Força Espacial dos Estados Unidos, já há anos, como tipo psíquico de adaptação imediata, reagiu com a precisão de uma máquina. Sua mão calcou o botão vermelho-vivo do sistema de alarma. Apesar de não poder avaliar imediatamente o que acontecera, sua intuição lhe dizia de que se tratava. Algo estava errado; alguma coisa saíra exatamente ao contrário do que fora planejado. O salto através do plano superior da quinta dimensão parecia ter dado certo. As pessoas inconscientes dentro da vasta central da nave ainda podiam ser encaradas como estados de matéria mais ou menos concebíveis e reais. Em hipersaltos de mais de trinta e cinco mil anos-luz era bem possível que a rematerialização dos organismos totalmente desintegrados acarretasse algumas complicações. Ele próprio estivera aparentemente sem sentidos, só que voltara a si mais depressa. A Stardust-III fora requisitada até o limite máximo de sua capacidade de resistência. Por que esperar desempenho melhor por parte dos homens? Rhodan podia aguardar tranqüilamente o despertar dos membros da tripulação. Pois tudo que parecia errado na situação era aquela gigantesca estrela azul, que parecia pulsar fortemente, e apresentava vaga semelhança com Vega. O botão acionado por Rhodan desencadeara o alarma para situações de catástrofe. Mesmo com os homens incapacitados para qualquer reação, os robôs positrônicos da supernave de guerra se encarregariam das providências necessárias. — Determinar posição, baseando-se nos valores das coordenadas da transição. Levar em conta tempo relativístico do salto. Medir a estrela avistada, transmitir os valores. Estender sondas de massa, a fim de localizar eventuais planetas. Fim. Avaliar imediatamente. O cérebro-robô de bordo confirmou o recebimento da programação a jato por via acústica. Nas profundezas da gigantesca nave, as palavras foram transformadas em símbolos matemáticos, fornecendo ao cérebro positrônico os elementos básicos para operar. Rhodan lançou um olhar ao indicador de controle do enorme robô. A máquina estava funcionando; portanto trabalhava. Muito mais depressa do que todo um grupo de cientistas, ela diria se a transição se processara de acordo com o desejado, onde se encontravam agora, e o porquê da fenomenologia resultante. Rhodan deixou-se cair novamente no pesado assento de piloto. Os propulsores da nave esférica com oitocentos metros de diâmetro roncavam de leve, com rendimento nulo. Só a estação de força no setor B funcionava com capacidade plena. Sua tarefa era abastecer a gigantesca nave com a corrente necessária ao funcionamento da inúmera aparelhagem auxiliar, e dos anteparos protetores, gulosos devoradores de energia. Portanto, a reentrada na estrutura habitual do espaço quadridimensional se efetuara com total êxito. A Stardust-III disparou, logo depois, com velocidade quase idêntica à da luz na direção do ainda distante sol.

A estrela brilhava nas telas fronteiras do visor panorâmico em glorioso e quase irreal fulgor. Tremendas explosões pareciam estar ocorrendo nela. As protuberâncias, fora do alcance das telas, deviam projetar-se a fabulosas distâncias no espaço cósmico. — Engulo a Stardust-III inteirinha, a título de analgésico, se essa bola de fogo não virar bomba atômica tamanho família daqui a pouco! — disse uma voz rouca e rascante. Rhodan virou-se com um movimento brusco. Reginald Bell devia ter acordado sem emitir um som. A cara larga e sardenta parecia uma mancha de tinta desbotada. As cerdas dos cabelos cor de ferrugem contrastavam ainda mais do que o habitual com a impressionante palidez da testa. Bell tossiu, repuxando para baixo os cantos da boca. — Dores? — indagou Rhodan, preocupado. — Onde é que dói? — Neca — replicou Bell, laconicamente. — Sinto-me como o franguinho renitente que escapuliu da panela do cozinheiro no último instante. Depenado, claro... Entende o que quero dizer? Rhodan sorriu, divertido. Típico de Bell, aquilo. — A vizinhança ainda dorme, não é? — grunhiu o homem atarracado. — Empreste-me sua seringa de energia, chefe. A minha ficou guardada no armário de armas. Rhodan franziu o cenho. Não estava gostando do sorriso de Bell. Era fixo demais para ser natural. — Para quê? Gemendo, Bell se ergueu do assento do co-piloto. Depois de lançar um breve olhar à fiel reprodução do sol flamejante, disse, calmamente: — Sinto muito, mas vou fuzilar Gucky. Já deve ter percebido que o rato-castor nos pregou mais uma de suas peças. Na transição anterior, que ia nos fazer transpor desprezíveis dois mil e quatrocentos anos-luz e nos deixar em Vega, o bicharoco usou seu tremendo potencial telecinético para nos jogar sem mais nem menos a trinta e cinco mil anos-luz no hiperespaço, nos fazendo topar com uma raça inteligente que não tínhamos a menor intenção de conhecer. Tempo perdido, entende? Tempo precioso e irrecuperável, jogado fora num mundo que não é nem nosso, nem de ninguém. Garanto que, pouco antes do salto, o rato-castor andou brincando de novo. Ele simplesmente não pode deixar disso. Assim como eu não posso deixar de comer. É inerente à natureza dele. — Ora, ora... Bell ficou rubro, e suas mãos rechonchudas se crisparam. — É, fique fazendo pouco! — reclamou. — Você se encantou por esse bicho maluco. A ponto de esquecer os perigos em que ele já nos meteu com sua clássica mania de brincar. Mas eu vou fuzilar aquele gambá de beiços arreganhados! — Ele vai fazer você olhar para dentro do cano de sua arma — zombou Rhodan. — Não esqueça que Gucky é um ser inteligente. A bordo de minha nave não se fuzila ninguém. — Pouparia também o autor de um assassinato em massa? O rato-castor poderia aniquilar a nave toda. Temos quinhentas pessoas a bordo! — Um assassino seria posto diante de um tribunal de bordo. Gucky não é responsável por isso aí... A mão de Rhodan abrangeu com um gesto circular as telas. O sol inchava gradualmente. A avaliação do cérebro positrônico ainda não chegara. Mais adiante, à direita, sentava-se Crest, o mais destacado cientista arcônida. O corpo magro, de estatura mais elevada do que a comum, estava caído para a frente; os traços fisionômicos estavam distorcidos. O brilho das multicoloridas sinaleiras luminosas arrancava reflexos fluorescentes de seus cabelos brancos.

— Não agüentam grande coisa, esses arcônidas — murmurou Rhodan, pensativo. — Alcançaram o extremo final de seu ciclo positivo de evolução. Seu reino estelar se desintegra sob os golpes sucessivos dos povos coloniais amotinados. — Nós absorvemos a sabedoria arcônida, e isso basta — rosnou Bell. — Crest veio procurar a vida eterna em nosso setor espacial. Mas teve que fazer um pouso forçado na Lua, onde o encontramos. Com os incríveis conhecimentos que nos transmitiu, erigimos a Terceira Potência. Conseguimos evitar uma guerra atômica, unificar satisfatoriamente a Humanidade, e extrair do chão, em pleno deserto de Gobi, uma supermoderna cidade, com avançadíssimas instalações industriais. Tudo por conta da sabedoria arcônida. Certo, chefe, sei disso tudo há séculos! Não fuja do assunto! Fizemos o possível e o impossível, mas não podemos tornar inócuo um rato-castor biruta, equipado com qualidades altamente perigosas, não é? Rhodan pigarreou. Mais adiante, o capitão Klein recuperava os sentidos. Gemendo, e de olhos vidrados, se endireitou na poltrona. — Humm!. — exclamou, perplexo, sem dizer mais nada. A nave voltava à vida. Alguém clamou, alto e estridentemente, através do sistema de comunicação interna, que a Stardust-III se precipitava para dentro de um sol. Instantes após, o ar junto à poltrona de Rhodan começou a tremeluzir. Do nada emergiu Tako Kakuta, o mutante japonês dotado da espantosa capacidade da teleportação. Com um sorriso inocente acenou para o segundo astronauta, que se afastara num pulo. — Um dia ainda acabo com você! — arfou o indignado Bell, fora de fôlego. — Só falta você aterrizar em cima de minha barriga, desastrado! Será que todo mundo ficou maluco por aqui? Rhodan prestava atenção aos comunicados de “Todos a postos!”, que chegavam, em rápida sucessão, das diversas partes da nave. Desta vez, era realmente o engenheiro-chefe Garand quem falava. Com sua voz aguda, que parecia jubilar, anunciou calmamente: — Tudo em ordem, senhor — sorrindo, indagou: — Alguém andou fazendo tolices por aqui? — viu?! — exclamou Bell. — Ele pensa como eu. Quem sabe aquele bicho é capaz de empurrar o enorme sol azul para fora de nosso caminho, não acha? Rhodan cortou o contato audiovisual com a seção do engenheiro-chefe. Pelo visto, a situação a bordo não sofrerá alteração alguma. O Dr. Haggard entrara discreta e silenciosamente na central. O medicamento estabilizador jorrou da pistola de pressão para a circulação sangüínea de Crest. — Muito instável... — comentou, baixinho. — Thora ainda está bastante abalada. Que foi que houve? Nunca passei por transição igual a essa. — O limite de capacidade dos conversores para o hipercampo situa-se em torno de trinta e cinco mil anos-luz. Arriscamos a transposição num só salto. Jamais repetirei a experiência. Haggard, o médico que curara a leucemia de Crest com o novo soro descoberto, deu de ombros sem falar. O comandante devia saber o que fazia. O treinamento hipnopédico arcônida lhe transmitira tudo que a outrora ativa e empreendedora raça, tão semelhante à humana, criara e desenvolvera. — Se eu soubesse pelo menos onde estamos, afinal! — lamuriou Klein, com voz rouca. Ainda falava com dificuldade. — Isto aí é Vega? O alarma se manifestou enquanto Rhodan tentava ligar para a seção astronômica. O processo decorreu da forma usual, sempre que o sistema de detecção positrônico fazia soar

as sirenas sem interferência humana. Cabeças se levantaram para o alto, escutando; conversas foram interrompidas, corpos até então relaxados enrijeciam sob a ação de músculos reagindo puramente por reflexo. Um bem treinado time de quinhentos homens entrou em atividade febril. Dez segundos após o primeiro uivo das sirenas, as pesadas portas blindadas da nave bélica encaixavam firmemente nos respectivos lugares, hermeticamente vedadas. A avolumada esfera se transformara numa massa mil vezes subdividida; sua resistência mecânica era indubitável. As naves arcônidas gigantes do renomado tipo império não poderiam ser abatidas com um único tiro. Nem mesmo com cinqüenta tiros! Muito abaixo da central principal, encravada no centro geométrico do invólucro externo, os reatores a fusão, de construção arcônida, começaram a funcionar. Todas as estações de força aumentaram a carga até o máximo de sua capacidade. No incomensurável espaço vazio entre as estrelas, as dimensões externas de uma nave só adquirem significação quando ela é capaz de gerar em seu bojo a força necessária para alimentar propulsores, armamento e aparelhagem secundária. Rhodan viu os brilhantes pontinhos luminosos luzirem em sua escala de controle. Os torretes armados da Stardust-III foram projetados para fora automaticamente. Em seu posto de comandante de tiro, Klein observava o surgir das pulsações dos ecos retornantes nas telas registradoras. A computação automática entrou em ação. Naquele caos tecnificado o homem representava papel apenas subalterno. — Detecção no setor verde, a 86,4 graus horizontais e 22,8 graus verticais — guinchou a voz humanóide do macrocalculador. Klein calcou um botão, ligando os sensores automáticos para detecção de corpos estranhos. — Central de armamento pronta para ação! — anunciou, com voz impassível. Repentinamente raciocinava com a maior lucidez. Uma calma irreal espalhou-se nas diversas dependências. O equipamento automático cumprira sua função. Porém em última instância a iniciativa ia depender do comandante. Rhodan observava estaticamente as telas frontais. Os corpos estranhos detectados pelos sensores mais rápidos do que a luz deviam estar diretamente à frente, para a direita, em plano superior ao da nave. Segundos após chegavam mais informações. O cérebro-robô concluíra seus cálculos. — Avaliação segundo instrução recebida oralmente, às 13:52 h, hora de bordo, do comandante em pessoa. A nave se encontra no sistema Vega. Transição efetuada com absoluto êxito. A estrela pulsante é a própria Vega, já conhecida. Foi determinado, com 100% de certeza, que este sol está em vias de se transformar numa estrela nova. Desaconselhável prosseguir no curso de aproximação. O processo ocorre com rapidez anormal, totalmente em desacordo com os conhecimentos da ciência astronômica. Mensagem encerrada. Bell arregalou enormemente os olhos, olhando perplexo para Rhodan, que demonstrava profunda preocupação. — Nova? O quê? Vega pode ter se tornado, no espaço de tão pouco tempo, uma prénova? Qual! Isso não existe! Processos desta natureza costumam durar uma pequena eternidade! Bell olhou em torno desalentado. Tomou ciência, apenas superficialmente, do despertar do cientista arcônida. Crest, porém, não tardou a apreender a situação. Sua constituição, diferente da dos habitantes da Terra, sobrepujara instantaneamente a debilidade.

— Grande Império! Exatamente o que eu receava! — murmurou ele. Seus olhos vermelhos procuraram os de Rhodan. — O quê? — perguntou o comandante. As fortes rugas entre o queixo e o nariz tornaram-se ainda mais profundas. — A última charada do imortal ameaça explodir todo um sistema solar. Vega é ponto de referência essencial para o cálculo posicional. Caso a estrela desapareça, jamais encontraremos a posição do planeta procurado. Incendiar uma estrela! A que ponto ele chegou! — E os ferrônios que habitam aqui? — balbuciou Bell. — Os pobres-diabos vão torrar no planeta que está virando lava incandescente. E as naves deles alcançam mal e mal a velocidade da luz. Nunca conseguirão se pôr a salvo de seu sol que explode. Será que o imortal ficou louco? — Apenas chegamos um pouco tarde — disse Rhodan, deprimido. — Tarde demais. A transição errada nos custou semanas. E neste espaço de tempo, os fatos continuaram a acontecer. Crest, por favor, determine o curso para o oitavo planeta. Manobra de volta de três minutos. Grato... Mais de quinhentas pessoas se entreolharam dentro da nave. Os controles do armamento permaneceram intocados. Os corpos estranhos detectados eram naves espaciais ferrônias. Os contornos externos em forma de ovo eram tão inconfundíveis quanto o fato de que se tratava de uma frota imensa, com mais de seiscentas unidades. — Fogem para o planeta mais afastado — gemeu Bell. — Meu Deus, o que foi que se passou por aqui? Rhodan não respondeu. Parecia saber, ou pelo menos adivinhar, o que sucedera naquela estrela de respeitáveis dimensões. Exatamente três minutos após, os propulsores da supernave de guerra começaram a rugir. A alteração de curso, calculada positronicamente, implicava numa curva de correção de cerca de vinte e um milhões de quilômetros, percorridos em velocidade próxima à da luz. A flamejante Vega deslizou vagarosamente para fora das telas frontais, onde sua imagem foi substituída pela profunda escuridão do espaço interestelar, com sua multidão de estrelas. O oitavo planeta de Vega, denominado Ferrol, ainda estava a sete bilhões de quilômetros dali. Depois de corrigir o curso, Rhodan decidiu-se por uma transição curta, a velocidade acima da da luz. Mesmo voando tão depressa quanto a luz, levariam cerca de sete horas para alcançar o oitavo mundo do gigantesco sistema. O espaço foi abalado quando a nave de guerra sumiu por entre refulgente clarão luminoso. Era como se nunca tivesse existido uma Stardust-III.

Era próprio dos sensores estruturais arcônidas acusar instantaneamente qualquer alteração na conformação habitual do espaço quadridimensional. O hiperespaço, cujas leis totalmente diferentes não admitiam o conceito tempo, transmitia no mesmo momento a onda de choque provocada por corpos que nele penetravam. Em conseqüência, as sonoras pragas de John MacClears foram abafadas por um enervante estrondo. A central de seu módulo de sessenta metros de diâmetro, nave auxiliar do tipo da Good Hope, parecia ter se transformado de repente num veículo sacolejante e mal vedado. A micro-sintonização dos sensores estruturais embutidos estourou; o setor de macro-sintonização ameaçava se destruir igualmente, sob a repercussão tonitroante dos sinais acústicos recebidos. O pé de MacClears adiantou-se ao seu pensamento; o comutador principal foi apertado para baixo. Os rugidos cessaram. — Um abalo estrutural, não é? — comentou impressionado o tenente Everson, comandante substituto do girino número 3. — Um barulhão dos diabos, sem dúvida. — Ora, não enche! — rosnou o capitão MacClears. Pachorrentamente, Everson deslocou o imenso corpanzil para perto do sensor estrutural agora imprestável. Em tom displicente, falou: — Muito bem, vamos deixar a banheira em condições de brigar. Parece que o tiroteio vai começar! E eu que achei que tínhamos enxotado de vez aquelas crias de lagartixas do sistema Vega! Pelo estouro, eu diria que o hiperespaço nos mandou dez naves das grandes de uma só vez. — Ou uma só, mas descomunal — resfolegou MacClears, deixando-se cair exausto em seu assento de controle. O girino número 3 dispunha de uma tripulação de dez homens apenas. Ninguém contara seriamente com o aparecimento de dificuldades daquela espécie. MacClears era do grupo de jovens pilotos espaciais a quem a Academia Espacial de Perry Rhodan dera o polimento final. Outrora, seu mais ardente desejo era poder voar para a Lua, pelo menos uma vez na vida, a bordo de um dos estrondeantes foguetes da Força Espacial dos Estados Unidos. Até a Lua apenas... Sua ambição não ia além disso.

Perry Rhodan, ainda major da Força Espacial, fora o primeiro homem a pousar no satélite terrestre com sua tripulação. Naquela ocasião, MacClears era ainda um modesto tenente, sem qualquer privilégio. Situação rapidamente modificada depois de concluir sua formação. Num período de apenas quatro anos Perry Rhodan criara a Terceira Potência. E MacClears fora um dos primeiros oficiais a embarcar, sob o comando de Rhodan, na Good Hope, a nave agora destruída. Assim fora parar no sistema Vega. E presentemente via-se no comando de uma nave que algum tempo atrás o deixara boquiaberto de espanto. A seu ver, o girino número 3 representava uma maravilha tecnológica, de dimensões titânicas. Maravilhosa ela era, sem dúvida alguma; porém para ser chamada de titânica faltava-lhe tamanho. Fato que MacClears acabava de constatar. Já levara à boca o microfone do telecomunicador, que funcionava com velocidade superior à da luz. — MacClears a todos os girinos, urgente! Cancelar imediatamente operação resgate. Reunir-se no espaçoporto de Ferrol. Preparar para decolagem de emergência. Quero saber o que é que vem zunindo lá de fora. Se for o chefe, demos graças a Deus. Em caso contrário, preparem-se para enfrentar barulho. Fim. Sete outras naves auxiliares confirmaram o recebimento da mensagem. Em toda parte no oitavo planeta interrompeu-se o trabalho de salvamento. Escotilhas blindadas eram fechadas, e propulsores puseram-se a uivar. Os habitantes daquele mundo corriam em pânico das naves que decolavam. Seguiramse cenas de desespero, ao perceber que a única alternativa era refugiar-se apressadamente nas cidades e vias de circulação subterrâneas, únicos pontos onde ainda era possível sobreviver. Sobre o planeta Ferrol pairava uma bola de sangue de tremendo potencial luminoso. Sempre sofrerá intensa radiação ultravioleta, porém nunca tão violenta como agora. Os comandantes das oito naves auxiliares da Stardust-III sabiam perfeitamente que seria inviável evacuar a tempo seis bilhões de ferrônios. Além disso, o aniquilamento atingiria o sistema inteiro, com todos os seus quarenta e dois planetas, caso a até então pacífica Vega estivesse realmente se transformando numa estrela nova. Os cientistas ferrônios debatiam, perplexos, sobre a impossibilidade do fenômeno. Os fatos provavam exatamente o contrário. MacClears, cuja nave estava pousada no imenso espaçoporto de Thorta, acompanhava no telecom a rápida decolagem das demais naves. Em toda a parte havia transmissores ligados. Fazia-se muita questão de se manter permanentemente em contato mútuo. MacClears tinha os cabelos cor de fogo grudados na testa. Emitia seus comandos com compreensível rispidez; ninguém poderia recriminá-lo por seu nervosismo. Ao dispensar os oito girinos, já há algum tempo pelo calendário terrestre, Perry Rhodan pusera MacClears no comando. E infelizmente ninguém o liberara ainda do encargo. Pois Rhodan sumira de repente, junto com a nave-mãe. Everson remendava, resmungando, os sensores estruturais arcônidas. Recebera treinamento hipnopédico apenas suficiente para poder entender a função do aparelho. Delicadamente levou a extremidade fundida de um cabo ao ponto de contato. Luzes de controle vermelhas se acenderam. A centelha ziguezagueante não perturbava um homem como Everson. — Funciona! — exclamou ele, jubilante. Um milisegundo mais tarde a coisa não funcionava mais. Em troca, Everson foi violentamente lançado contra as pernas de um soldado robô, parado num canto. O aparelho

emitira um único e curto estalido. Depois rendeu definitivamente seu hiper-freqüente espírito, a despeito dos selecionados materiais arcônidas de que era feito. — Quero ser mico se isso não é outra transição! — lamentou-se Everson. — Da primeira vez, alguém emergiu do hiperespaço. Lindo! E desta vez? Mas nada disso me obriga a ficar aqui jogado no canto. — MacClears, é você? — gemeu uma voz no alto-falante. — Stardust-III para todos os girinos, onde quer que se encontrem no momento. Instruções: Aterrizar imediatamente no espaçoporto de Thorta. Aprontar-se para recolhimento a bordo, sem delongas. Estavam auxiliando na evacuação da população? — Sim, senhor! — berrou MacClears no microfone, com radiante sorriso. — As naves encontram-se todas em Ferrol. Comuniquei-me já com os respectivos comandantes, assim que detectamos seu salto. — Sorte sua! — veio a lacônica resposta. — Atrasamos um bocadinho. Esqueça, sim? Preciso de cada homem a bordo. Mais perguntas? MacClears teve a indefinida impressão de que os acontecimentos se precipitavam. Sensação idêntica dominou o tenente Everson. — Sim, uma única — gritou o capitão, nervoso. — Por que é que Vega começou a fazer papel de doida nos últimos trinta e dois dias? Está virando nova! — É mesmo? MacClears engoliu em seco, aborrecido. Everson abriu um largo sorriso. Se aquilo não era típico do velho, estava disposto a voltar a pé para casa. — Mas é verdade, senhor! — suspirou MacClears. — Temos voado para o planeta mais afastado, dia após dia, levando ferrônios para as bases ali existentes. O Thort vai ficar possesso se sumirmos de repente com a nave de guerra. O regente continua aqui ainda. A temperatura média de Ferrol subiu exatamente dezoito graus nestes trinta e dois dias. Não nos aventuramos mais ao ar livre sem trajes de proteção; se decolarmos realmente, adeus acordo comercial com o Thort. — Se não decolarmos imediatamente, em breve não existirá mais Thort algum, capitão MacClears — respondeu Rhodan impassivelmente. — Siga minhas instruções. Farei uma rápida visita ao Thort. Fim. A ligação foi interrompida. Rhodan se portara como se sua ausência tivesse durado apenas algumas poucas horas. MacClears voltou-se vagarosamente. O radiotelegrafista de plantão demonstrava espanto; o tenente Everson franzira o cenho. Os homens entreolharam-se, confusos; MacClears murmurou, pensativo: — Que será que ele queria dizer? Everson ergueu de leve um ombro. — Sei lá! Mas desconfio que a coisa tem relação com aquele maluco jogo de charadas. MacClears riu nervosamente. Depois concedeu-se o primeiro cigarro em quatro semanas. Começava a sentir alívio. O chefe estava de volta. Agora tudo estava em ordem. *** Uma monstruosidade esférica, composta de aço arcônida e energia concentrada, lançou-se através da atmosfera incandescente do oitavo planeta de Vega. Perry Rhodan executava uma violenta aterrizagem direta segundo o padrão arcônida. Isto é, dispensava a elipse inicial de frenagem, fazendo a nave rumar diretamente para o corpo celeste. Processo que só o produto de uma tecnologia excepcionalmente avançada tornava possível.

Nas camadas superiores da atmosfera de Ferrol formou-se tremendo turbilhão. Gases incandescentes e ionizados eram arrancados com furiosa violência do trajeto do vôo, e comprimidos para o lado. A Stardust-III tinha pista livre. E nem chegava a formar-se calor de fricção sobre seu invólucro externo. Em troca, ficava no rastro da nave um imenso vácuo, no qual os gases antes expulsos se precipitavam com estrondo. Nas centrais de força da supernave de guerra rugiam os reatores, produzindo corrente. Rhodan fez os propulsores girarem, com a taxa de retardamento de 20 km/s2. O que era suficiente para frear a nave suspensa no campo antigravitacional. Só não era possível evitar o aquecimento adicional das massas de ar já bastante quentes do planeta tão achegado ao sol. Disso se encarregavam os flamejantes feixes de impulsos que jorravam dos escapes dos jatos. A pressa de Rhodan era justificada, mesmo diante do cataclisma que parecia querer consumir todo um mundo lá embaixo. Thora, a esbelta arcônida, derradeiro rebento da dinastia outrora reinante em Árcon, estava de pé por trás do assento do piloto. A arrogância de seu porte não conseguia disfarçar a inquietação de que estava possuída. Sua estranha atração-repulsão por Perry Rhodan começara no momento em que seu cruzador de pesquisa, forçado a pousar na Lua, fora destruído por uma bomba de hidrogênio de fabricação terrestre. Thora conseguira se salvar no último instante, a bordo de uma nave auxiliar, do tipo girino, com sessenta metros de diâmetro. Como a nave, batizada com o nome de Good Hope, fosse incapaz de vencer os trinta e quatro mil anos-luz até Árcon, sua pátria, Thora vira-se à mercê da ajuda dos homens. O ódio inicial por Rhodan desfizera-se gradualmente. Só em ocasiões especiais é que o antigo sentimento voltava a se manifestar. Como agora. Vibrando de reprimida indignação, encontrava-se junto a um homem que classificara de bárbaro subdesenvolvido, com o cérebro de um macaco semi-inteligente, pouco após travar conhecimento com ele na Lua. Porém houve modificações depois. A despeito da oposição maciça da Humanidade, Rhodan constituíra um Estado soberano: a Terceira Potência. Um feroz ataque oriundo dos confins da galáxia fora rechaçado. Na Terra surgira agora, em moldes arcônidas, portentosa obra. Há menos de um ano, os sensores estruturais postados em Plutão tinham acusado vastos abalos espaciais no setor da estrela Vega, a vinte e sete anos-luz de distância. Levado por profunda preocupação, e receando que alienígenas mais poderosos descobrissem a ainda débil Terra, Rhodan levantara vôo na pequena nave auxiliar, a fim de dar uma olhada. A olhada acabara envolvendo-o em sério conflito com a raça reptilóide dos tópsidas; com a ajuda de seu Exército de Mutantes, Rhodan conseguira expulsá-los do sistema Vega. Porém, Crest desejou depois conhecer o segredo da conservação celular. Dirigira-se àquele distante setor da Via Láctea a fim de procurar a vida eterna. O pouso na Lua fora puramente acidental, forçado pelas circunstâncias. Nos planetas de Vega tinham dado com pistas do mundo cujos habitantes diziam conhecer a conservação celular. Rhodan, por sua vez, conseguira se apoderar de uma supernave bélica arcônida. Seus mutantes a arrancaram das mãos dos entes reptilóides, que a tinham tomado dos arcônidas. A partir de então, toda a preocupação de Rhodan se concentrara em solucionar as intrincadas charadas propostas por inteligências desconhecidas. Alguém parecia muito interessado em examinar a fundo as mentes empenhadas na descoberta de seus segredos. Fora uma árdua tarefa, cujas diversas fases haviam sobrecarregado incrivelmente os nervos de todos eles.

E agora, quando se julgavam prestes a encontrar o desaparecido planeta da vida eterna, depois de retornarem de um involuntário desvio, deparavam com um sol em chamas, em nada parecido com a estrela que haviam visto de perto pela primeira vez há tão pouco tempo. Thora remoía na lembrança os enervantes acontecimentos vividos durante a caça às charadas galácticas, apresentadas por uma inteligência que lhes era sem dúvida ilimitadamente superior. Sem os mutantes de Rhodan, teriam perecido já em Gol, o planeta gigante. Os seres constituídos de energia que o habitavam concediam escassa chance aos homens. O mesmo se dera num mundo solitário chamado Vagabundo, habitado pelos pitorescos ratos-castores. Eles seriam completamente inofensivos, não fosse sua irreprimível tendência de aplicar a incrível capacidade telecinética de que eram dotados. Brincavam com todo e qualquer objeto ao seu alcance. Era o traço característico daqueles entes providos de inteligência. E tinham brincado com o armamento. Gucky, o rato-castor que, em Vagabundo, se introduzira na nave, colocara Rhodan em sério risco. O atraso no retorno ao sistema Vega era culpa exclusiva de Gucky. Thora cerrou os lábios, amargurada. Sua única reação ao discreto olhar perscrutador de Bell foi lançar arrogantemente a cabeça para trás. Caso Thora, a comandante do cruzador de pesquisa aniquilado, alimentasse algum resquício de consideração por pessoa nascida na Terra, o objeto dela só poderia ser Perry Rhodan. Lidar com ele era como tocar em rocha viva. — Se fosse você, eu iria mais devagar — disse ela, incontida. — Deste jeito, vai arrasar extensas porções da superfície. Rhodan se limitou a erguer as sobrancelhas. Impassível, continuou a ditar ordens para a casa de máquinas. Depois fitou os ardentes olhos de Thora. Possuíam reflexos levemente avermelhados, o que formava estranho contraste com o cabelo mais branco do que louro. A arcônida era, realmente, uma mulher fascinante. — Ferrol agüenta — replicou ele. — Vai ter que desistir da planejada excursão. Decolamos assim que eu recolher a bordo as naves auxiliares. — Com uma nave arcônida do possante tipo império — observou ela, com sarcasmo. — Uma nave que, de direito, é minha. — Engano seu, minha cara. Seu dorminhoco povo a perdeu para os tópsidas. Eu a tomei às lagartixas, pondo-a novamente em condições de combater. O Império perdeu a Stardust-III quando ele caiu nas mãos dos invasores. Parece-me que já discutimos durante horas a fio sobre o assunto, não? Crest sorriu com a suavidade habitual. Nos seus olhos lia-se compreensão por ambas as facções. Em voz baixa, e um tanto deprimida, disse: — Rhodan, apesar de ter vindo para este setor galático com a intenção de explorar um planeta misterioso, cheguei à conclusão de que seria melhor desistir. Regressamos tarde demais, segundo seu calendário terrestre. — Bem que eu queria acabar com as manhas daquele rato-castor — interrompeu Bell, acremente. — Mas não deixaram... Seu olhar acusador alvejava o comandante. — Uma coisa não tem nada com a outra — apaziguou Crest, meneando vagarosamente a cabeça de testa alta; seu cérebro suplementar, característica que o diferenciava dos homens, possuía o dom da memória fotográfica. — Devíamos desistir, Rhodan, tornou a insistir Crest. — Tenho certeza que os inteligentes imortais estão transformando Vega numa

pré-nova. Sabemos, por melancólica experiência própria, que todas as tarefas e charadas tinham limite de tempo. Vega vai explodir. Perderemos o tão arduamente determinado local de referência; sob o ponto de vista matemático, isso significa que jamais acharemos o planeta errante. Nas telas surgiram as primeiras cadeias de montanhas, aproximando-se com alucinante rapidez. A Stardust-III ainda sobrevoava Ferrol em vertiginosa velocidade. — Mesmo que eu quisesse desistir, não me resta outra escolha a não ser esvaziar a taça até o amargo fim, Crest. Puramente por culpa e curiosidade nossa, por nosso ambicioso desejo de conhecer o maior segredo biológico da onipotente natureza, Vega se transformou em tocha ardente. E eu não tenho condições de resgatar alguns bilhões de ferrônios. — Criaturas subdesenvolvidas — interveio Thora, friamente. Tornava a ser a descendente da dinastia arcônida. Aquela gente devia alimentar conceitos bastante estranhos! Funda ruga surgiu entre as sobrancelhas de Rhodan. Mordazmente replicou: — Grato pelo esclarecimento, madame! É traço inerente à natureza dos homens prestar auxílio sempre que puder. Sob este aspecto, parecemos ser bem diferentes! Minha consciência me força a fazer todo o possível, mas tudo realmente, para salvar os ferrônios ameaçados. Os planetas de Vega se dissolverão em lava ardente assim que a estrela entrar em erupção ativa. Ainda nos resta um pouco de tempo, mesmo que se trate de processo provocado artificialmente, com decurso milhões de vezes mais acelerado do que o natural. Só poderemos socorrer os ferrônios se resolvermos nossa derradeira tarefa. — E qual seria ela? — indagou Thora, hostilmente. — O encontro do planeta desaparecido que, segundo os cálculos finais do cérebrorobô, transita em rumo bem determinado pela galáxia. — Absurdo! Mundo algum pode subsistir sem sol! Havia piedade na voz de Rhodan quando falou: — Thora, afinal você é uma cientista altamente qualificada; já devia ter percebido na muito tempo que estamos lidando com entes do mais elevado gabarito tecnológico os mais avançados do Universo. Gente que solucionou os derradeiros mistérios da natureza. Com toda minha sabedoria arcônida, nem com a melhor boa vontade eu conseguiria fazer de uma estrela, já em si imensa, uma nova. Os desconhecidos nos superam ilimitadamente. — Ora, que dúvida! Claro que são superiores aos bárbaros terrestres! Rhodan foi obrigado a rir. Thora voltava a velha chapa, a que costumava brandir quando esgotava os argumentos lógicos — Certo, você tem toda a razão — suspirou ele. — Mas não lhe parece estranho que esses bárbaros tenham apreendido tão depressa a tecnologia arcônida? — Pouso em dois minutos! — guirichou o automático. O rugido dos propulsores aumentou de volume. Em ângulo agudo a nave de guerra precipitava-se estrondosamente para o espaçoporto já à vista. Thora acabara se calando. Apesar dos tremendamente elevados índices de frenagem, seus movimentos individuais não sofriam limitação alguma, pois os campos de deformação absorviam toda a pressão. — Não adianta bater a porta! — berrou Bell, por sobre o ombro, para Thora. — Ela é de aço reforçado, com um metro de espessura! Crest abaixou a cabeça. Aquela expedição à remota região do sol terrestre representava a mais amarga decepção de toda a sua existência. A raça humana era jovem demais, excessivamente impulsiva e ávida por novos conhecimentos, para poder ser integralmente compreendida pelo rebento de uma raça em processo de degeneração. Mesmo assim, Crest esforçava-se por chegar a um nível de

tolerância aceitável. Em seu mais recôndito íntimo, sabia de há muito que o homem estava em vias de assumir a herança do Grande Império. Pessoas como Rhodan pareciam talhadas para a tarefa. Descomprometidos e ansiosos por aprender, suportavam galhardamente os mais rudes golpes do destino. Era fácil imaginar que uma raça representada por tais espécimes seria capaz de arrancar o próprio universo dos eixos. Qualidades que os arcônidas tinham perdido há muito tempo, apesar de terem constituído outrora parte do patrimônio espiritual de seus remotos antepassados. Mas isso tudo era letra morta e esquecida. A Stardust-III pousou com a violência de um meteoro gigante abatendo-se sobre o solo. A poucos metros do chão, a velocidade foi totalmente anulada. Nos pontos onde os jatos de impulso dos monstruosos propulsores, instalados no cinturão equatorial da nave, açoitavam o solo, formavam-se crateras de lava de apreciável diâmetro. Primeiro esmagando, e depois arrebentando o revestimento plástico duro como rocha do espaçoporto, as largas placas de pouso na extremidade dos pés telescópicos afundaram no chão. A Stardust-III retornava à primeira base cósmica de trocas da raça humana. Cerca de vinte e sete anos-luz separavam a imensa Vega do sol terrestre. Para naves do gabarito da StardustIII isso não representava problema técnico. Os propulsores foram parando, porém seguiu-se o turbilhão. Ondas de choque superaquecidas varriam ritmicamente o terreno plano, com tamanho ímpeto que chegavam a arrancar das rampas de lançamento pequenas naves ferrônias. Pousada, a nave esférica era o que sempre fora naquele espaçoporto: uma montanha subitamente aparecida, impossível de abranger com o olhar, de harmonia perfeita. Dentro das naves auxiliares idênticas à Good Hope, que se aproximavam do gigante recém-aterrizado, os homens se encolhiam em instintiva reação. O tenente Everson regulou os receptores de imagem para recepção normal, com um ar conformado. De estágio em estágio, circunspectamente, girou o botão da ampliação ótica para a direita. Mesmo assim, não pôde captar toda a imagem da nave pousada a apenas quinhentos metros de distância. Conseguiu focalizar apenas uma seção metálica da gigantesca esfera de oitocentos metros de diâmetro, cujo vulto preenchia totalmente o campo de visão lá fora. — É, fomos novamente rebaixados a gafanhotos! — comentou, chateado. — Puxa, há alguns dias eu considerava os girinos espaçonaves mais do que respeitáveis! Ligeiramente deprimente isso, não acham? Lançou um olhar ao capitão MacClears, afobado em envergar seu uniforme das grandes ocasiões. — Graças a Deus que o velho está de volta! — suspirou MacClears. — Homem, me ajuda aqui! — Estou com fome! — objetou Everson. — E viro pamonha quando meus requisitos biológicos fundamentais não recebem o devido atendimento. O fecho está dois milímetros à esquerda da pontinha de seus dedos. MacClears praguejava escandalosamente. O tenente balançou a cabeça desconsolado. — É isso aí, rapaz! — disse, com voz sepulcral. — Mas nem por isso você vai conseguir correr o fecho mais depressa. A gente devia mandar chamar um dos mutantes telecinetas. — A obrigação de me ajudar é sua! — berrou o capitão, fora de si. — Tenho que ir para bordo sem demora. O velho me engole vivo se não der as caras lá dentro de cinco minutos! — Uma trágica perda para a Humanidade, sem dúvida — replicou Everson. — Está bem, chegue para cá. Não estou em condições de levantar no momento.

Rindo às gargalhadas, Everson escutou xingamentos sem conta. Rhodan sabia muito bem que espécie de homens escolhera para tripular sua nave. Nada seria capaz de abalar aqueles homens temerários, a não ser que não lhes dessem nada para fazer. Everson e MacClears ilustravam claramente o espírito reinante no grupo de caça espacial. Digladiavam-se constantemente no dia-a-dia, mas se fundiam por assim dizer num só homem e numa só cabeça quando era preciso. E era isso que importava! *** Os girinos foram recolhidos para bordo com a habitual presteza, exaustivamente treinada. A nave de guerra engolira as esferas espaciais com a mesma facilidade com que um sáurio gigante de Vênus devorava um marisco descuidado. Os girinos eram e ficavam sendo naves auxiliares. Cerca de quinze minutos após o pouso, o Thort de Ferrol mandou anunciar sua presença. O sábio governante de um sistema solar gigantesco ainda ignorava que Rhodan era um terrano. Por obra do poderio tecnológico de que estava investido, passava por representante supremo do Grande Império. Só assim Rhodan pudera fundamentar psicologicamente as negociações. Dificilmente os ferrônios, ilimitadamente superiores aos homens sob todos os aspectos, teriam concordado em assinar um tratado comercial se estivessem a par da verdadeira situação reinante na Terra. O baixo e atarracado Thort quase desaparecia na imensa central de comando da nave de guerra. Apesar de ser musculoso e robusto, via-se claramente que estava seriamente abatido. A pele azul-pálida da face miúda adquirira confrangedor tom acinzentado. O Thort envelhecera, curvado pela mágoa e pela dor. Mal se distinguiam os olhos afundados nas órbitas. A aparência do Thort lançou Rhodan num mar de auto-recriminações. O ferrônio sabia que sua raça estava votada ao extermínio. — Que tenciona fazer? — perguntou ele a Rhodan. — Poderia cooperar na evacuação, com sua imensa nave? Os cientistas do Grande Conselho presentes fitavam ansiosamente o homem alto e magro em seu singelo uniforme. Rhodan sabia que teria que dizer palavras aparentemente amargas. Pigarreou para ganhar tempo. Os oficiais da Stardust-III procuravam disfarçar, fingindo-se de desinteressados. John Marshall, um dos mutantes mais destacados do Exército de Mutantes, sondou discretamente o conteúdo mental do soberano ferrônio. Sem esforço algum, o bem treinado telepata podia ler os pensamentos de inteligências alienígenas. O Thort se preocupava apenas com sua raça. Não alimentava segundas intenções de espécie alguma. “Tudo em ordem!”, sinalizou Marshall para Rhodan. Ainda mais deprimido, Rhodan começou: — Senhor, seria inútil ajudar na evacuação. Mesmo com minha enorme nave, eu não poderia esvaziar os principais planetas habitados de seu reino. E os planetas externos, ainda não afetados por enquanto, também desapareceriam em caso de explosão do sol. Para onde levaria sua gente? Num gesto de desamparo, o idoso ferrônio estendeu as mãos espalmadas para diante. — Não sei... Eu contava com vocês! — Seu sol se transformará numa bomba dentro de mais ou menos três semanas ferrônias. Peço-lhe que aceite meus argumentos. A única solução é fazer a estrela retornar à normalidade. Coisa que não está em meu poder. Mas encontrarei meios e maneiras de

poupar vocês do pior. O Thort empertigou-se; os ombros curvados se endireitaram. — Meios e maneiras? — repetiu, esperançoso. — Vê alguma possibilidade? — Sei exatamente quem são os causadores disso. Vou decolar imediatamente. Cancele, por favor, esses transportes que superam a capacidade de sua frota espacial. Cada ferrônio levado para os planetas externos enfrentará condições de vida extremamente desfavoráveis, sem o costumeiro amparo de sua civilização e tecnologia avançadas. Está automaticamente condenando sua gente à morte. Fique aqui, e espere. “Ele vai perguntar”, comunicou Marshall, apressadamente. Rhodan, no entanto, prosseguiu, antes de ouvir a pergunta: — Eu gostaria de poder contar com sua compreensão. Lamento, mas não devo nem posso revelar onde estão os causadores do incêndio da estrela. Mas hei de encontrá-los. Pode confiar em mim. O Thort despediu-se, recebendo de Rhodan a mais respeitosa das continências que aprendera a executar, há muitos anos atrás, na academia de pilotos da Força Espacial dos Estados Unidos. Mas, ao ver se fechar a pesada porta blindada da central sobre o desesperado Thort, Bell emitiu um profundo suspiro. — Puxa, dá até vontade de chorar! — resmungou, sombriamente. — Jamais encontraremos o segredo da vida eterna. Por que, então, lançamos os pobres ferrônios em tão angustiosa situação? Bem que teria sido dispensável... — Excepcionalmente, concordo com você, bárbaro! — sibilou Thora. Bell voltou-se, indignado. Dos fundos da central veio uma risada tão estridente que o rosto contraído de Bell se alisou instantaneamente. Nenhum homem normal seria capaz de emitir risos em escala tão elevada de vibrações. — Isso mesmo, bárbaro! — chilreou uma voz aguda de soprano. — Queria me matar, não é, bandido? Mas juro que não brinquei desta vez. Palavra de homem de bem! Não fiz voar nem um minúsculo parafusinho para me divertir. Os lábios de Rhodan começaram a tremer de forma suspeita. Os homens presentes precisaram recorrer a consideráveis reservas de força de vontade a fim de manterem a necessária disciplina. Ficaram rígidos como estátuas de granito. Apenas o major Deringhouse sorria. — Está certo, senhor homem de bem — disse Rhodan, esforçando-se por reprimir o riso. — De onde tirou esta expressão? Novamente se fez ouvir a irritante estridência que Gucky chamava de gargalhada. De trás do segundo estereocorretor — destinado ao ajuste exato dos filmes tirados de estrelasalvo, com microchapas pré-preparadas e de alta sensibilidade — surgiu o simulacro mal imitado de um rato terrestre. O inteligente ser peludo do planeta Vagabundo, com seu olhar irresistivelmente confiante, recebera o nome de Gucky. Parecia atrapalhado com a tarefa de deslocar os volumosos quartos traseiros, que terminavam numa cauda em forma de pá de remo, como a dos castores. Gucky media cerca de um metro de altura, andava normalmente ereto, e era muito esperto. Seu mais notável dom parapsicológico era a telecinésia. Levado por sua irreprimível mania de brincar — mania esta que os homens não queriam compreender — Gucky quase acabara levando a gigantesca Stardust-III ao desastre total. Sem a menor má intenção, no entanto. Tudo que queria era brincar com os interessantes objetos tão inesperadamente aparecidos em sua vida. Gucky adiantou-se com ar desconfiado, agitando no ar os braços curtos, terminados

em delicadas patas; lembrava um gordo campeão de boxe pronto para pisar no ringue. Deteve-se diante de Rhodan. Este ficou observando pensativo os olhinhos redondos do estranho ser; eram espertos e astuciosos, apesar da típica face de rato. E Gucky adquirira, no decorrer de poucas semanas, inúmeros hábitos humanos. Aquilo também parecia ser tendência natural nele. O lustroso nariz de rato foi repuxado para cima, expondo uma linha rósea e úmida, da qual emergia o dente único de Gucky, num arremedo de sorriso. A pata miúda elevou-se para a testa coberta de pêlos. Rhodan quase não conseguia conter o riso. Agora o bichinho fazia continência! — Tenente Guc, do Exército de Mutantes, pronto para entrar em ação — pipilou o ser peludo, com a maior seriedade. — Permita-me não dizer Gucky, chefe. Parece-me um nome infantil demais para um homem de bem. Rhodan virou-se, com os ombros sacudidos por incontrolável tremor. Os demais homens contraíam violentamente os rostos. Apenas Bell desfiou a escala completa de seu farto vocabulário, do começo ao fim. Eram terríveis imprecações, que Gucky quitava com repetidas exposições do incisivo. — Assassino! — guinchou o pequeno ser. — Fuzilar-me sem mais nem menos, não é? Eu escutei tudo. Mas não brinquei nem com o sol, nem com a nave. Dei minha palavra ao chefe. Só faço zunir coisas com licença dele. Gucky calou-se, saboreando a nova palavra. — Zunir... — repetiu, deliciado. — Ah, quem me dera! Bastaria manejar à distância os controles de emergência, e eu poderia dirigir a nave sozinho. — Ah, é, seu zunidor? — rugiu Bell, descontrolado. — Pois trate de controlar suas manias, viu? Senão vai ter pra você! Aliás, desde quando é oficial? Que quer dizer esse tenente Guc, do Exército de Mutantes? Gucky virou-se, com um olhar arrasador para Bell. A cauda chata bateu cinco vezes no chão, o que para Gucky representava a suprema demonstração de desprezo. — Cinco batidas, senhor Bell... Credo, que vergonha! — Aprestar nave para decolagem! — estrondeou a voz de Rhodan por entre as risadas sufocadas dos presentes. — Qual é o motivo da gozação? Cada ser inteligente tem peculiaridades próprias. Como pessoas tolerantes, nossa obrigação é aceitá-las. Ou vocês não são tolerantes? Rhodan lançou um olhar gélido aos seus homens, até estourar numa sonora gargalhada diante dos oficiais estarrecidos. Pelo Grande Império arcônida, jamais haviam presenciado tal reação no chefe. Gucky se divertia enormemente. Depois contemplou quase com ternura o homem que sabia compreendê-lo tão bem. Afinal, a idéia de se enfiar num caixote de mantimentos vazio, a fim de fazer-se levar à nave, não fora das piores. Merecera até um hipnotreinamento, para aprender rapidamente o idioma humano mais divulgado. Tudo isso contribuía para que Gucky passasse a encarar Rhodan como uma espécie de divindade. O senhor da Terceira Potência deixou de rir tão abruptamente quanto começara. Seus olhos tornavam a refletir preocupação. — Um ligeiro derivativo para a tensão nervosa, se me dão licença — disse em tom irônico. — Que tal retornar aos respectivos postos agora? Crest, até onde chegou com a avaliação positrônica? Gucky foi instantaneamente relegado ao esquecimento. Homens para quem o termo avaliação positrônica tinha algum significado olharam expectantes para o cientista arcônida. Crest parecia calmo e tranqüilo. Sob a brilhante iluminação da central, seus cabelos

brancos irradiavam reflexos multicoloridos. — Estou trabalhando nela há quatro semanas terrestres. Tenho os dados detalhados à mão. Informações exatas sobre o movimento próprio de Vega acabaram de ser fornecidas ao cérebro positrônico. Levando em conta a velocidade de deslocamento cósmico da órbita, e os fatores secundários averiguados, dentro de mais ou menos duas horas ele terá calculado a posição do planeta procurado. A posição provável... — acrescentou, cauteloso. A face rosada de Garand surgiu numa das inúmeras telas de controle. A sala de máquinas principal estava pronta para a partida. Rhodan consultou o cronômetro. Exatamente 17:58 h. — Decolagem às dezoito horas, tempo de bordo — ordenou ele. — Gucky, você fica perto de mim. Espero que, depois de ter se promovido a oficial do Exército de Mutantes, você não cometa mais tolices. Por mim, pode brincar com o primeiro-oficial. Gucky vibrou, Bell empalideceu, e Rhodan sorriu fugazmente. Às dezoito horas em ponto, os propulsores de impulso da nave de guerra começaram a flamejar. Enormes línguas de fogo estraçalhavam o revestimento da pista. Novamente se fez ouvir o impressionante estrondo. O vulto gigantesco se elevou verticalmente do chão; a seguir lançou-se no vácuo espacial, com tal taxa de aceleração que a atmosfera ferrônia se incandescia ao longo do trajeto de vôo. Segundos mais tarde, a Stardust-III desaparecia de vista. Apenas ardentes ventos turbilhonantes testemunhavam um segredo cuja materialização pressupunha grandiosa supertécnica. Os ferrônios não conheciam nem neutralizadores de pressão, nem refletores energéticos para repulsão de moléculas gasosas. Jamais uma nave ferrônia poderia decolar ou aterrizar daquela maneira. Além disso, apesar de qualitativamente eficientes, os propulsores quânticos dos ferrônios não se prestariam a tais índices de aceleração. Em Ferrol chegara-se ao limite do realizável com o aparelhamento disponível; impossível obter rendimento maior. A conseqüência forçosa era uma estagnação, iniciada há cerca de mil anos, segundo o calendário terrestre. Ligeira melhoria nos detalhes só visavam maior segurança. Era o que impressionara tão favoravelmente Rhodan na tecnologia ferrônia. O que aquela gente construía ou fabricava merecia nota dez com louvor. O acordo comercial assinado com o Thort representava rica e inesgotável mina para os habitantes da Terra. As derradeiras ondas de pressão da violenta decolagem se desfizeram. Minutos após era irradiado o veto do Thort a novas sortidas, válido para todas as unidades de evacuação. Pilotos ferrônios desativavam resignadamente os propulsores prontos para a largada. Atos de desespero eram atos de desespero, obviamente; não tinham sentido lógico, e só em sonhos fantasiosos acenavam com o ambicionado êxito. Os homens tinham deixado novamente o oitavo mundo de Vega.

Convertendo os dados ferrônios, verificou-se que o planeta Ferrol ficava a uma distância média de um bilhão oitocentos e trinta e cinco milhões de quilômetros de seu sol. Como Vega era o mais importante ponto de referência e coordenação no sistema do cálculo quadridimensional, Rhodan julgou necessário aproximar-se da estrela transformada em fornalha atômica, a despeito das opiniões em contrário. Seus motivos podiam ter fundamento. Assim como podiam ser sem importância, ou não ter valor algum. No entanto, baseando-se nas avaliações finais do cérebro positrônico, Rhodan achou desaconselhável qualquer tolerância adicional naquela transição, já em si bastante problemática, uma vez que os próprios dados finais ainda continham algumas incógnitas. Em conseqüência, preferira não arriscar o salto interestelar a um bilhão, oitocentos e tantos milhões de quilômetros de Vega. Pois o bilhão e oitocentos milhões poderia facilmente, ao menor desvio, transformar-se em cento e oitenta bilhões; somado a outros pequenos erros, o desvio os levaria para muito longe do planeta desprovido de luz que procuravam. Crest era de opinião que os rastreadores da Stardust-III seriam capazes de detectar qualquer mundo situado num raio máximo de 0,45 anos-luz, mesmo não sendo iluminado por sol algum. Fora uma discussão muito objetiva. Enquanto estava sendo travada, Bell levara a Stardust-III, com aceleração total, para velocidade semelhante à da luz. Agora a gigantesca nave precipitava-se em queda livre ao encontro do sol flamejante. Dois minutos atrás, o engenheiro-chefe Garand fizera funcionar, ainda, os dois geradores de força suplementares. Nos anteparos protetores levantados rugiam tempestades magnéticas de descomunal violência. Micro partículas de matéria começavam a aglomerar-se diante da nave impelida quase à velocidade da luz. Já há três minutos, a esfera de aço arcônida estava envolvida por uma auréola de fogo. Vega parecia querer se dissolver em chamas. Já nem era mensurável o que a estrela lançava, em autodestruidora fúria, para o espaço. Todos os postos da nave estavam com seu pessoal completo. Como não fora dada ordem de prontidão para combate, os pilotos dos caças espaciais e dos oito girinos funcionavam como reservas diante dos aparelhos mais importantes. Devido à velocidade da Stardust-III, não se percebia mais a intensa gravidade de Vega. No entanto, a micro matéria cósmica se condensava mais e mais. Além disso, havia extensas

nuvens gasosas; mesmo sua pouca espessura representava perigo naquela alucinante velocidade. Rhodan desligara os diversos campos de repulsão da nave, com exceção do repulsor de ionização; mediante reversão dos projetores, concentrara sua maior densidade energética na dianteira da Stardust-III. Já haviam recorrido à capacidade de emergência das centrais de força. Desde a precipitada decolagem, o engenheiro-chefe Garand só calculava em macroescala, com valores a partir de um milhão de quilowatts-hora. Agora chegara a duzentos e cinqüenta milhões para cada gerador. Os astronautas-chefes e técnicos da supernave tinham emudecido. Nas fisionomias contraídas, apenas os olhos pareciam ter conservado vida, e não desgrudavam dos aparelhos medidores. Junto a Rhodan funcionava o segundo terminal do cérebro-robô de bordo. Os dados finais, de absoluta exatidão, obtidos pelo cérebro central eram divulgados ótica e acusticamente pelo painel auxiliar na central. Os dedos de Rhodan repousavam sobre o pulso-contato ainda desligado; um leve aperto desencadearia a transição. O ponto para início do salto, cuidadosamente calculado, situava-se a aproximadamente cento e vinte e três milhões de quilômetros de Vega. Quando a Stardust-III alcançasse aquela imaginária posição, a estrela deveria estar no setor verde, num ângulo oblíquo de 91,3 graus. Era aquele o ponto de partida. Quando a nave cruzou a órbita do primeiro planeta de Vega, as telas mostraram por instantes o semifluido corpo celeste incandescente. Os sensores do telecom retrataram fielmente o mundo distante cerca de duzentos e vinte e oito milhões de quilômetros de seu sol. O que corresponderia, no nosso sistema, aproximadamente à posição do planeta Marte, bastante frio. Aqui, no entanto, um mundo com afastamento médio equivalente era um inferno em ebulição, devido ao volume da estrela-mãe. No sistema Vega prevaleciam padrões de medida gigantescos. A nave prosseguia em vertiginosa disparada. Um minuto-luz após, o invólucro esférico fortemente blindado começou a reboar. Rhodan pigarreou levemente e falou: — Poderia me arranjar uma xícara de café, senhorita Sloane? O autômato de bebidas já deve estar reabastecido. Grato pela gentileza. Anne Sloane, a graciosa e esbelta mutante com capacidade para a telecinésia, não moveu um só músculo do rosto. Com um olhar cheio de compreensão para o homem magro, concentrou suas forças parapsicológicas sobre o robô. Um copo de plástico escorregou da pilha e flutuou para debaixo da torneirinha. Sem que ninguém a tocasse, o líquido começou a fluir. Depois, mãos fantasmas levaram o recipiente até o assento do primeiro-piloto. Rhodan pegou-o calmamente. Após inúmeras experiências em comum, encarava com a maior naturalidade as inacreditáveis façanhas de seus altamente dotados especialistas. O olhar de Anne perdeu a fixidez. Enquanto o casco da nave reboava com intensidade crescente, e vividos relâmpagos percorriam as camadas externas dos campos de repulsão, ela disse com deliberada determinação: — Lamento não ter xícaras a mao, senhor. Gostaria de um pouco mais de açúcar? Rhodan agradeceu com marcada gentileza Nas fisionomias pétreas dos demais não se via a menor expressão. Conheciam bem o chefe! Quando ele se entregava àquela enervante atuação, era hora de conservar o sangue-frio. Ninguém a bordo da Stardust-III ousaria confessar naquele instante que sentia medo. Todos faziam de conta que o perigo iminente

era coisa sem a menor importância. Seguindo o velho habito dos pilotos de prova da força espacial norte-americana, falavam de tudo, menos do que os esperava nos próximos momentos. Eram os minutos imediatamente anteriores à decisão; o breve hiato que o psicólogochefe da força espacial costumava chamar de hora das palhaçadas; mero derivativo para alívio das tensões. O casco começou a vibrar. Faltavam três minutos-luz para o local da transição. Um ronco irreal se fez ouvir. Muito abaixo dos pés dos homens, os reatores das centrais de força eram espicaçados a entregar suas derradeiras reservas. Cada segundo parecia durar uma eternidade. — Faz um tempo lindo lá fora, só que um tanto nublado — comentou Bell, impassível. Evidentemente interessado, Rhodan observava as telas de imagem, nas quais aparecia um infernal turbilhão. As vibrações tornaram-se tão violentas que as poltronas automáticas lançaram os cintos de segurança em torno dos ombros dos homens. — É, talvez venha a chover... — concordou Rhodan. A face de Garand surgiu numa das telas. Seu sorriso era forçado. Com voz sem expressão, comunicou: — Engenheiro-chefe ao comandante. Perdemos um pouco de velocidade. Matéria mais densa. Tranca um bocado nosso progresso. Devemos...? — Manda brasa! — respondeu Rhodan, depois de demorado sorvo no copo. Mais uma vez os propulsores do gigante espacial começaram a rugir. A fim de manter o ímpeto necessário ao salto pentadimensional, foi empregado 92,85647% do empuxo disponível na aceleração. Um berreiro estridente e lamentoso tornou a transformar os rígidos astronautas em gente. Rhodan voltou-se bruscamente; de repente a impassibilidade desaparecera de sua face. Por trás da máscara surgiu um rosto acinzentado, com olhos esbraseados. — Estou com medo! — guinchou Gucky. — Estou morrendo de medo! Engatinhando com as quatro patas, correu para junto de Rhodan, buscando proteção. Bell riu alto, exclamando sarcasticamente: — E quem é que não está? É preciso pertencer a outra espécie para ter a coragem de confessar, não é? Raios! Daqui a dois minutos o anteparo vai entrar em colapso, e viramos todos farelo. Aquelas palavras pareciam até um sinal. Garand começou a gritar. A seguir todos estavam gritando. Rhodan se encolhera em sua poltrona, diante dos controles. Crest apertava os punhos cerrados contra a boca, fitando com ar alienado a monstruosa estrela palpitante em louco turbilhão. Apesar de já ter ficado em posição oblíqua à da nave há algum tempo, sua imagem ainda preenchia todas as telas. Gigantescas línguas gasosas, provocadas por explosões ainda mais gigantescas, projetavam-se no espaço. A Stardust-III movimentava-se no limite extremo do alcance delas. Apenas Rhodan ouviu os informes finais do cérebro-robô. A luz de controle azul piscava a intervalos cada vez mais freqüentes, acabando por ficar permanentemente acesa, num azul intenso. Vertiginosamente Rhodan fez passar pela memória a seqüência de fatos até então ocorridos durante a busca ao maior segredo do Universo. Tudo principiara inofensivamente com a descoberta dos hiper-transmissores pentadimensionais de matéria dos ferrônios. No entanto, os conhecimentos matemáticos destes nunca poderiam ter lhes permitido fabricar tais aparelhos.

Haviam dado com a pista de um inconcebível ser vivo, fato que logo lhes impusera as primeiras tarefas. Haviam resolvido uma por uma, até que a problemática passou para o campo parapsicológico. No mundo natal de Gucky tinham descoberto por fim o último indício sobre a existência de um planeta errante. No meio de uma sala totalmente vazia aparecera-lhes a reprodução fiel de um setor da Via Láctea. Nela, Vega era inconfundível. Rhodan sabia com certeza que a estrela possuíra outrora quarenta e três planetas, em vez dos quarenta e dois atuais; considerando os demais fatores conhecidos, não restava dúvida de que era aquele o mundo da vida eterna. Seus habitantes tinham arrancado o planeta inteiro do campo gravitacional de Vega, porém haviam deixado pistas. Uma linha curva, claramente identificável, atravessava a constelação. Cálculos revelaram que a curva era parte de uma imensa órbita elíptica, ao longo da qual o corpo celeste devia se deslocar. E a análise matemática revelara uma estranha peculiaridade: a Terra ocupava exatamente um dos dois focos da elipse. Até parecia que os desconhecidos charadistas visavam de modo todo especial a humanidade terrestre. Os cálculos tremendamente complexos, que jamais poderiam ter sido resolvidos sem a ajuda do cérebro positrônico de bordo, baseavam-se num filme do modelo. E agora Perry Rhodan estava em vias de se precipitar diretamente no reduto do desconhecido que vivia, supostamente, mais do que o sol — pressupondo que o salto interestelar decorresse com êxito. Então, repentinamente, o suporte de fixação libertou com audível clique o botão que comandaria o salto, expondo-o livremente no braço da pesada poltrona. Cinco segundos antes da transição, Rhodan enviou o chamado impulso de permissão à hiperpositrônica operante. Homem algum seria capaz de dirigir ou sequer influenciar o processo no hiperespaço. Ouviu-se um grito alto e agudo. As ramificações finais das chamejantes protuberâncias de Vega já ameaçavam atingir os anteparos da nave. Não se conseguia mais entender as próprias palavras. A enorme Stardust-III transformara-se num retumbante sino. Era como se a barreira de fogo de toda uma frota de batalha se abatesse sobre ela. Rhodan calculara que a energia liberada por uma única protuberância de tamanho médio equivalia a cerca de um milhão e duzentas mil bombas de hidrogênio de fabricação terrestre. Nunca, até então, a nave de guerra arcônida fora obrigada a suportar tamanho impacto. Na última fração de segundo antes da transição, Rhodan percebeu o fogaréu roxo do anteparo em colapso. Os fusíveis de todos os reatores de força explodiram simultaneamente. Impossível obter rendimento maior; os homens haviam chegado ao seu limite! O que significava que o casco de aço da espaçonave estava à mercê da fúria titânica de um gigantesco sol em explosão. Novamente os alto-falantes divulgaram o grito estridente. Seu tom agudo se sobrepunha ao clamor intenso das máquinas, até morrer num débil sussurro. Em torno da nave criara-se algo não mais pertencente ao universo presente. O campo estrutural arcônida, para deflexão total de todo fator quadridimensional, ainda pudera ser formado antes da catástrofe. Transformava a matéria sólida da nave em algo inconcebível, que recebia em forma completamente desmaterializada o impulso para o salto. A Stardust-III, ainda há poucos instantes uma flamejante tocha metálica, desapareceu do espaço normal. O cérebro dissolvido de Rhodan levou o grito consigo. E o som ainda permeava seus sentidos quando a nave retornou ao espaço normal, após o curto salto de mil e seiscentos anos-luz. Como sempre, a transição se dera sem decorrência perceptível de tempo, apesar de

a ciência arcônida ter provado que no plano pentadimensional se fazia valer outro fator, o qual, devidamente simplificado, também poderia ser denominado tempo. Segundo esta noção, cerca de cento e vinte e três anos teriam se passado para a tripulação. Alteração alguma ocorrera no espaço normal. De acordo com o cronômetro de bordo, a rematerialização se efetuou após alguns instantes. Desta vez Rhodan conseguiu se libertar rapidamente das últimas impressões sentidas antes do salto. E ninguém ficara inconsciente. Nas telas do circuito panorâmico cintilava o imenso mar de estrelas da Via-Láctea. Nas telas da ré, a ampliação telescópica mostrava um ponto especialmente luminoso. Era a imensa Vega, vista ainda sob sua luminosidade normal. Nada se percebia das vivas labaredas do processo explosivo em andamento. Para isso, teriam que se passar primeiro mil e seiscentos anos. Antes a luz não chegaria até ali. Rhodan não desperdiçou tempo em palavras desnecessárias. Rapidamente verificou os controles das diversas unidades propulsoras. Os sistemas automáticos de pilotagem e produção de energia, programados antes do salto, tinham entrado em funcionamento, muito mais depressa do que o raciocínio ou a ação de qualquer ser humano. Um rumor surdo já fazia a Stardust-III vibrar novamente, porém desta vez por obra de sua própria maquinaria. Os propulsores tinham entrado em funcionamento, a toda a potência, no fugaz instante em que se executava a manobra de reentrada. O supergigante freava à taxa de 500 km/s2, o que exigia o emprego total de todas as unidades de força. Caso a sobrecarga as fizesse falhar, homens e material seriam pulverizados pelas tremendas forças compressoras geradas pela redução de velocidade. Todos os pensamentos de Rhodan se concentravam naquilo. A velocidade continuava quase igual à da luz; com carga máxima, ela poderia ser reduzida a zero dentro de dez minutos, tempo de bordo. Poderia, caso as máquinas estivessem cem por cento em condições. As mãos de Rhodan puseram-se a trabalhar. Bell, que acabava de recuperar, sobressaltado, a mobilidade, entendeu imediatamente. O ronco dos propulsores sobrepujava o ruído das estações de força em funcionamento. E elas precisavam fornecer ainda energia para os famintos absorvedores de compressão, ou tudo estaria acabado num abrir e fechar de olhos. Nas telas de controle viam-se as dependências das estações de força. Algumas das pilhas arcônidas, altas como casas, tinham as luzes violetas acesas; não funcionavam. Outras trabalhavam satisfatoriamente, porém os transformadores não davam conta do recado. Tudo parecia produzir escassamente a energia necessária para os projetores de neutralização. — Catástrofe iminente! — berrou estridentemente um dos alto-falantes. — Medidores do supervisor positrônico recomendam imediata redução dos elevados índices de frenagem. Não há garantia para fornecimento de energia. Era a voz mecânica do cérebro-robô que falava. A mão de Bell disparou para a esquerda. Seus dedos já tocavam o comutador de estágios da central, quando percebeu o olhar de Rhodan. Já não era irônico, e muito menos se lia humor neles. Profundos e dominadores, os olhos expressivos veiculavam um comando mudo. Jamais o poder de sugestão do comandante se fizera impor tão intensamente. Bell sentiu-se como que atingido por um punho invisível, e recolheu a mão. — Não vai fazer isso, não é? — soou a voz de Rhodan, por entre o rugido surdo dos propulsores. — Claro que não! — disse Bell, com um riso forçado, e contra a vontade. Com um

suspiro de alívio, viu os olhos de Rhodan voltarem ao normal. Mas não podia deixar de fitar fascinado o homem cujo poder mental inato fora aperfeiçoado e reforçado a cada sessão de treinamento hipnopédico. Quando Rhodan queria alguma coisa — e especialmente quando, além de querer, estava profundamente excitado — não havia oposição possível. Em momentos destes, até homens do gabarito de Reginald Bell se transformavam em criaturas indefesas. O comandante voltara ao trabalho. Nem pensava em diminuir as taxas de frenagem. Impulsos transmitidos sem fio levavam ordens ao cérebro-robô, determinando as providências para contornar a situação de catástrofe; eram instantaneamente comunicadas aos mecanismos adequados. Nas salas de máquina hermeticamente vedadas da Stardust-III, desprovidas de qualquer presença humana, inúmeros robôs-especialistas se ativaram. Diferentes em características de construção e formatos, puseram-se a trabalhar nas pilhas defeituosas. Quando, instantes após, o alarma automático começou a emitir agudo assobio, e a energia disponível mal bastava para suprir os absorvedores de compressão, quatro das enormes pilhas entraram em funcionamento simultaneamente. Cinco minutos após o início da violenta manobra de frenagem, o perigo tinha sido contornado. Rhodan pediu, então, o segundo copo de café. Depois relanceou circunspectamente os olhos pelos companheiros. Bell passou a ponta da língua nos lábios. Sua admiração por aquele homem era ilimitada. — Não podíamos deixar de frear tão bruscamente, compreendem? — disse Rhodan, em tom quase sonhador. — Claro que os reatores de força estavam parcialmente avariados. Mas, vindo como vínhamos, à velocidade da luz, se não freássemos no momento apropriado, com os valores máximos precisamente determinados, jamais encontraríamos o planeta procurado. Conhecemos a velocidade orbital do planeta; dentro de quatro horas emparelharemos com ele. Porém isso só deve ocorrer no ponto do espaço em que se encontra o planeta sem sol. Já imaginaram que complexos problemas matemáticos se apresentariam caso tivéssemos passado em disparada por este ponto, conhecido apenas teoricamente? Bell engoliu em seco, ruidosamente. — Eu gostaria de saber que diabo me mordeu para botar os pés dentro desta nave espacial! — resmungou ele, com um olhar contrariado para sua mão. — Em vez disso, a estas alturas eu estaria ocupando respeitável posição na sociedade, numa cidadezinha qualquer da costa oeste americana. O que estamos fazendo é loucura! Pura loucura! — Aguardemos! — determinou Rhodan. — Capitão Klein, cuide por favor dos detectores. Peço que os mutantes se dirijam para a cantina D, para uma reunião. Daqui a cinco minutos, digamos. Obrigado. Rhodan se ergueu de seu assento. Os cintos de segurança já tinham sido novamente escamoteados para dentro do encosto. Sob o silêncio mortal dos presentes, encaminhou-se para o elevador. Mesmo após sua saída, o silêncio continuou. Apenas Crest murmurou uma frase: — Algum dia ele presidirá o Grande Império...

Os estereocorretores arcônidas tinham sido acoplados às amplas telas examinadoras. Com isso assegurava-se a perfeita justaposição com as fotografias tiradas. A manobra de emparelhamento acabara consumindo quatro horas inteiras, de acordo com o relógio de bordo. Para a aparelhagem de um cruzador de pesquisa arcônida, ou para uma grande nave de guerra perfeitamente equipada, era brincadeira sondar o setor espacial de um sol desconhecido, com o intuito de localizar eventuais planetas. Caso existisse algum, os rastreadores, mais rápidos do que a luz, determinavam sua posição exata num prazo médio de trinta minutos. Em outros trinta, avaliava-se a massa, densidade, velocidade de rotação e translação do corpo celeste. No presente caso, Rhodan desistira desde o início de tomar por base dados provenientes da experiência normal. Não nutria nenhuma esperança particular, nem deixava nascer idéias extravagantes. Às quatro horas gastas para emparelhar com o planeta desconhecido bastavam para provar que os fatores em jogo eram de natureza totalmente diversa. Os homens da Stardust-III estavam empenhados na mais árdua tarefa que se lhes apresentara até o presente. Há horas vinham fazendo a captação de imagem externa. Incontáveis estrelas, e remotos mundos isolados luziam nas telas, em fiel reprodução ótica. Mas era tudo tão distante que nem um só daqueles inúmeros sóis poderia ser remotamente relacionado com o corpo celeste procurado. Rhodan se encontrava, com os oficiais superiores, no setor de cálculo da central. Após as últimas correções, os propulsores tinham emudecido. Os estereocorretores indicavam que a nave acompanhava com exatidão a linha que constituía parte da órbita elíptica igualmente percorrida pelo planeta desconhecido, em sua trajetória em torno de trinta e um sistemas solares dispostos numa reta. Os dados numéricos conferiam até a décima casa decimal. Mesmo assim, deviam conter uma ou outra aproximação, o que aliás, era de esperar diante das enormes distâncias envolvidas. Crest observava atentamente os diagramas dos resultados finais fornecidos pelo computador positrônico. Tudo parecia indicar que não havia erro algum. Thora mantinha-se hirta e imóvel ao lado dos múltiplos aparelhos. Os mais destacados mutantes tinham comparecido à central há uma hora. Sondavam e

escutavam, com seus extraordinários sentidos, à procura de algo jamais visto, ouvido, nem sequer claramente concebido pelo pensamento. Rhodan dera ao planeta procurado o nome de Peregrino. Parecia ser a designação mais apropriada para um mundo que levaria dois milhões de anos terrestres para aparecer novamente no sistema Vega, caso mantivesse a órbita calculada. Gucky, o ente peludo de Vagabundo, acocorara-se por trás de Rhodan, sobre o piso inteiriço de matéria plástica. Os olhinhos lustrosos miravam com curiosidade e um pouco de cobiça as inúmeras chaves e alavancas. O gesto de advertência da mão de Rhodan provocou em Gucky o melancólico desnudamento do grande dente incisivo. Compreendera que em hipótese nenhuma poderia brincar ali. Com audível suspiro, levantou os pesados quartos traseiros do chão. — Vou ver o cozinheiro-chefe — chilreou o rato-castor. — Mande John Marshall me procurar, caso precise de mim, chefe. Rhodan acompanhou com o olhar o animalzinho que se afastava gingando. Em determinadas circunstâncias, Gucky poderia vir a se tornar o mais valioso membro do Exército de Mutantes. Gucky deteve-se diante do mais jovem membro da tripulação. Betty Toufry era muito jovem ainda, mas quem fitasse seus imensos olhos escuros perceberia logo que mentalmente ela não era nenhuma criança. — Vem comigo? — perguntou Gucky. — Aqui está muito chato. O rostinho miúdo, aureolado por cabelos escuros, exibiu um radiante sorriso. — Posso? — indagou ela. Anne Sloane, que, a bordo, também fazia às vezes de mãe junto a Betty, procurou dar à voz um tom deliberadamente alegre. Rhodan acenara brevemente com a cabeça. Aquilo bastava. — Claro. Mas nada de traquinagens, está bem? Os panelões da cozinha não são para dar banho no cozinheiro. Chamo vocês, se for preciso. Gucky animou-se instantaneamente. Em dedução surpreendentemente nítida, já compreendera há muito tempo que em toda a nave talvez existisse um único ser vivo disposto a brincar com ele. Mas o porquê daquilo escapava à compreensão do inteligente habitante de Vagabundo. Contentava-se em atribuir o estranho fato ao tempo de vida relativo das demais pessoas. — Podemos fazer voar coisas geladas para debaixo da gola do gordão! — exclamou ele, jubilante. — O chefe afirmou que isso não representa grande risco para a nave; não compromete seu bom funcionamento. Sem a menor transição, Betty Toufry virou criança. Possuía capacidade relâmpago para se transformar. Com a maior facilidade, os dois excepcionais telecinetas abriram as complicadas fechaduras eletrônicas das portas blindadas. Descerraram-se de par em par, sem que alguém tocasse nos respectivos botões de comando. — Eu fui mais rápido! — afirmou Gucky. — Você quer voar? Reginald Bell contemplava em silêncio os dois seres vivos tão singulares. O espontâneo entendimento entre uma representante da jovem geração humana e uma inteligência completamente alienígena, oriunda das profundezas da galáxia, poderia representar o primeiro passo na senda da compreensão e da aceitação mútua. Só assim haveria condições para o nascimento de um reino estelar; só assim se poderiam evitar conflitos. — Os pequeninos sempre dão jeito de se entender, não é? — disse Rhodan, dando voz

aos pensamentos de Bell. O homem atarracado estremeceu; seus olhos se apertaram, desconfiados. — Você agora deu para bancar o telepata? Como sabe que eu...? — É apenas o que qualquer pessoa sensata pensaria diante de tal cena. — O cozinheiro-chefe vai acabar biruta — observou o capitão Klein. — Ontem esses dois armaram a maior barafunda na câmara frigorífica. Rhodan não deu mais resposta. O breve interlúdio fora repousante, porém os problemas voltavam a ocupar sua atenção. Por trás da parede transparente da central de localização, viam-se os altamente eficientes radioperadores da nave de guerra. Um curto treinamento hipnopédico capacitaraos a operar os complexos aparelhos de uma raça de superior desenvolvimento. Rhodan levou o pulso esquerdo, equipado com um mini-microfone, aos lábios. Nos receptores da central de localização, sua voz saiu alta e clara: — Deringhouse, como está a situação? Nenhum resultado ainda? Um vulto alto, mal e mal discernível, ergueu a cabeça a uns cinqüenta metros de distância. De onde estava, podia vislumbrar parte da central de comando. — Nada, senhor! — dizia o aparelho de Rhodan. — Este setor espacial parece literalmente varrido; vazio e deserto. — Os rastreadores não acusam nada? — Justamente estes é que não se mexem. E, no entanto, me trariam os ecos de qualquer coisa que flutuasse num raio de alguns meses-luz daqui. Apenas os micro-sensores registram a habitual poeira cósmica. Um átomo isolado a intermináveis intervalos. Que eu saiba, planetas são um pouco mais consistentes. — Grato pelo esclarecimento, major! — replicou Rhodan, gelidamente. — Peço desculpas, senhor. Tornei a esquecer que possuo nervos. A avaliação final do cérebro positrônico chegara. Rhodan inclinou-se avidamente para a frente. A transição dera certo, assim como a manobra de emparelhamento, e as correções de curso. Lentamente voltou à posição anterior; a Stardust-III arrastava-se pelo espaço com a quase ridícula velocidade de 16,8 km/s; e os arredores pareciam estar efetivamente desertos. Nem mesmo um reles meteoro era acusado pelos mais aperfeiçoados aparelhos de detecção de todos os tempos. E não escaparia à atenção, mesmo que medisse só vinte milímetros de diâmetro! Fato assaz deprimente. Olhando para trás deliberadamente, Rhodan constatou, em tom seco: — Caras amarradas, olhares recriminadores e ar de petulante arrogância. É nisso que se resume sua alta cultura. — Já podíamos ter atingido Árcon — interveio Thora, acaloradamente. — Mas você se recusa a nos ouvir, Rhodan! Jamais conseguirá resolver a última charada. Jamais! Levenos para casa de uma vez; a mim e a Crest, conforme prometeu há tanto tempo. Crest desiste do segredo da conservação celular. Portanto, não tem mais motivo para pôr nossas vidas em perigo, Rhodan. — E Vega que está explodindo? Esqueceu dela? Além disso, nossos cálculos estão corretos. O planeta procurado está por perto. Como não contorna sol algum, nem emite luz própria, não podemos vê-lo. Mas encontraremos outros meios. — Palavras heróicas e grandiosas! — zombou a arcônida. — Encontraremos! O mais provável é que não encontre coisa alguma. Seus cálculos baseiam-se em dados precários demais. O tal mundo pode estar a cem anos-luz de nós, se é que existe de fato. Eu duvido!...

Volte, Rhodan! A testa franzida de Bell ocultava evidentemente pensamentos bem diversos dos que expressou, em tom agressivo: — Voltar, coisa nenhuma! Tenho a vaga sensação de que alguém anda nos fazendo de bobos, para ver se enjoamos da brincadeira. Dá valor a uma boa idéia, amigo? Rhodan sentou-se numa poltrona anatômica. — Por que não? Se for aproveitável, pode-se pensar no caso. — O imortal, ou então, os imortais, nos têm feito roer um osso duro. Tanto a lógica quanto o bom senso indicam que as tarefas vêm sendo cada vez mais difíceis. E esta é a mais dura de todas elas. — Até aí, tudo velho. Qual é a boa idéia? — O planeta está sendo protegido contra nossos aparelhos de detecção, só isso. Devíamos verificar, aliás, se eles ainda funcionam direito. Mande um dos pequenos caças para fora; afastando-se de nós, ele poderá verificar como se comportam os detectores. Desta forma, começamos por eliminar uma das principais dúvidas. — Idéia verdadeiramente extraordinária... — murmurou Rhodan, pausadamente. — Major Nyssen! O berro foi ouvido em todas as seções da nave, levado pelos alto-falantes. O rosto enrugado de Nyssen surgiu numa das telas. — Presente, chefe! — disse, com voz rouca. — Costumo estar no hangar dos caças. — Dá para adivinhar — rosnou Rhodan. — Por que acha que quero vê-lo? Meta-se dentro de um caça. Em cinco minutos, pontualmente, virá o impulso de ejeção, quer esteja instalado na banheira ou não. Depressa com isso! Nyssen soltou uma praga. Ainda depois de seu rosto sumir das telas ouviam seus resmungos. Um dos telepatas estremeceu, aterrado. — Se soubesse o que ele está pensando no momento — sussurrou, perturbado. — Pelo deus Netuno, é de arrepiar os cabelos! — Pois não conte a ninguém — aconselhou Rhodan, rindo. — Sabe que existe liberdade de pensamento a bordo, não é? Major Deringhouse! — Às ordens! Um rapaz comprido, com inúmeras sardas, desembrulhou-se do assento em forma de concha, no lado oposto da parede transparente. — Ouviu o que tencionamos fazer. Idéia do senhor Reginald Bell. Inacreditável, mas ele teve uma idéia! Ligue seus detectores só depois que Nyssen tenha disparado por três minutos, com força total, no espaço. Quero ver como é que eles reagem. Nyssen, ainda me ouve? O major respondeu pelo rádio, da carlinga de seu caça. Conseguira executar o malabarismo de se instalar no caça em instantes. — Pista livre. Escolha seu rumo à vontade. Mas, assim que for ejetado, fique de olho no localizador automático. Não prossiga, caso não conseguir manter a Stardust-III em foco; em hipótese alguma. Nunca mais nos encontraria. — Tenho ar, água e alimento para quatro semanas — rosnou Nyssen, sarcasticamente. — Pode deixar, chefe. Vou prestar atenção. Cinco minutos após, uma ligeira sacudida percorreu a nave. Cuspindo fogo, um vulto trovejante chispou pela abertura escancarada da comporta, logo acima do grosso cinturão que envolvia a nave. O super-rápido caça de um só tripulante ganhou o espaço cósmico com alucinante

aceleração. Instantaneamente o pontinho luminoso sumiu do alcance ótico normal, afundando nas trevas. — Nyssen ao comandante — rugiram os alto-falantes. — Rastreador automático em ordem. Tenho a Stardust-III na mira do localizador. Pode deixar que eu acho vocês de novo. Vou pisar no pedal. Fim. Nyssen desligou o microfone do rádio, virando a chave para o hipercom, mais rápido que a luz. O sistema comum de comunicação não lhe valeria de nada agora. Tornara-se um solitário e extraviado vivente nas insondáveis profundezas do Universo. Da nave não se via mais o menor sinal. Tudo que ouvia era o rumor surdo de seus propulsores, que o arrastavam para o nada, a 500 km/s2, sempre para mais longe da nave-mãe. Decorridos três minutos segundo o relógio de bordo, empurrou de volta o comutador de estágios. O sonoro rugido transformou-se num débil murmúrio. Em queda livre, fazendo cerca de 9.000 km/s, o pequeno caça avançava aceleradamente. Nyssen olhou em torno. A sensação de ilimitada solidão já lhe era familiar. E as missões em Vega tinham sido, provavelmente, muito mais perigosas do que aquela. Consolou-se durante algum tempo com esta idéia, até perceber, com dolorosa clareza, a ligeira diferença entre o nada absoluto e um sistema atulhado de planetas. Pelo menos lá tinha a possibilidade de realizar um pouso de emergência a qualquer momento. Ali, porém, existia apenas a Stardust-III nas redondezas. Caso ela desaparecesse de repente, Nyssen estaria irremediavelmente perdido. O suor começou a brotar-lhe na fronte. Angustiado, ficou observando a luminosa superfície esverdeada do localizador automático. A nave de guerra ainda aparecia sob a forma de um minúsculo ponto. Mesmo assim, suas mãos se crisparam sobre o comutador de reversão do pulso-jato energético. Agora só lhe restava esperar. Os detectores da nave já deviam estar trabalhando. Decorrido um breve minuto, cada segundo passou a durar uma torturante eternidade. Com gesto brusco acionou a reversão; a mão esquerda regulou no ponto máximo o comutador de estágios dos propulsores. Diante do nariz pontudo do caça espacial, o fogo violeta relampejava dos jatos de frenagem. Nyssen iniciava o processo de desaceleração. Débeis sons entremearam o rugido das máquinas; o hipercom se manifestava. — Deringhouse a Nyssen. Regresse imediatamente. O mais depressa possível, entendeu? Confirme. Nyssen pressentiu que algo não estava em ordem. Inquieto, mas com todo o volume de voz, berrou sua confirmação aos quatro ventos. Parecia que a bordo da Stardust-III ninguém o escutava. — Confirme, major Nyssen! Nyssen, manifeste-se! Então o piloto espacial compreendeu que sua decolagem desencadeara algo. Lentamente reclinou-se para trás, no alto encosto do assento. Seus olhos procuraram a minúscula faísca luminosa amarela, perdida em algum ponto daquele oceano galático repleto de estrelas. Um dos pontinhos era o sol terrestre. Nyssen não saberia dizer ao certo o que estava pensando. Sabia apenas que, de alguma forma indefinida, considerava sua vida terminada. Os propulsores do caça continuavam funcionando.

— Afinal, a idéia não foi tão boa assim! — queixou-se Bell, ao ser atirado no chão pelo repentino choque. Deitado de bruços, ficou à escuta. Rhodan agarrava-se aos firmes braços do assento, diante do terminal positrônico. Novo choque, ainda mais brutal, seguiu-se ao primeiro. Apesar disso, as telas do visor panorâmico continuavam vazias. Não se via nada parecido com algum eventual feixe energético dirigido contra a nave. Não havia absolutamente nada que pudesse ter abalado a imensa massa da Stardust-III; e muito menos fazê-la sacudir com tamanha intensidade. Ao lado, Deringhouse clamava pelo piloto do caça ejetado. A decolagem de Nyssen provocara algo. O quê, ninguém sabia ainda ao certo. Mais um choque. Rhodan afrouxou as mãos crispadas, e olhou em torno como se nada tivesse acontecido. Não houve pânico a bordo. Desde o encontro com o maior charadista do Universo, o pessoal estava habituado a tudo. Rhodan puxou o microfone para perto de si. Justamente quando o quarto choque atingiu o casco como uma onda de choque. — Comandante à central energética... — soou sua voz pelas diversas seções. — Nada de nervosismo, por favor! Garand, faça funcionar o campo gravitacional. Grau 2, por enquanto! Veja se o próximo choque ainda nos atinge com igual força. Executar. O capitão Klein arrastara-se para seu posto de fogo. A repercussão dos choques fazia o piso vibrar violentamente; era quase impossível andar normalmente. Garand confirmou. Logo em seguida ouviu-se o tumulto dos reatores em funcionamento. As instalações defeituosas tinham sido reparadas bem na hora. A StardustIII recuperava-se dos prejuízos sofridos, nas imediações de Vega, no setor do suprimento de energia. Nas telas começaram a brilhar reflexos azulados. O cerrado campo gravitacional começava a envolver o casco da nave. O violento balanço diminuiu imediatamente. Com a entrada em ação da auto-estabilização, a calma retornou. Reginald Bell ergueu-se cautelosamente. Rhodan assobiava baixinho, escandalosamente desafinado. Seu olhar meditativo parecia atravessar as paredes. — Alô, velho amigo! — disse ele, de repente, levando a mão à altura do peito. E acenou amistosamente. Bell olhou em torno, atônito. Não, ninguém que merecesse o aceno... Lançou um olhar suplicante para o médico de plantão da central. Tratava-se do Dr. Eric Manoli, o médico que

acompanhara Rhodan no primeiro vôo tripulado do homem à Lua. Os ombros magros de Manoli fizeram um leve movimento. Mudamente sacudiu a cabeça. — Está sentindo alguma coisa? — perguntou Bell a Rhodan, com voz adocicada. Com um sorriso forçado, encaminhou-se para o comandante. Tudo foi bem até se sentir levantado no ar com um puxão, e atirado de volta para seu lugar. E de modo nada delicado. — Quem foi que fez isso? — rugiu, vermelho de raiva, encarando o grupo de mutantes encolhido num canto. Tama Yokida, também produto de Hiroxima, ergueu timidamente um dedo. — Eu! É proibido tocar nas pessoas... Rhodan levantou-se sem ser perturbado, fitando com leve reprovação o pequeno japonês. A calma voltara a se estabelecer na Stardust-III. Mas era a calma antes da tempestade. Rhodan ocupou seu posto diante dos controles principais. À vista de todos, apertou o botão de fixação automática do cinto de segurança. Segundos depois, o sistema de alarma começou a ulular. A voz do comandante era extraordinariamente calma. Achava dispensável dar explicações muito detalhadas. — Estabelecer prontidão de combate. Dirigir robôs do plantão-catástrofe para os respectivos postos. Deringhouse, que é feito de Nyssen? — Não responde! — lamuriou a voz no alto-falante. — Continue chamando. Está com o caça nas telas? — Sim, senhor; os ecos estão ótimos. Portanto, os aparelhos funcionam. — Foi com a finalidade de comprovar isso que realizamos o exercício. Atenção, todos: parece que estamos sendo empurrados ou envolvidos por um campo energético cuja natureza não sei explicar. Preparem-se para toda a sorte de surpresas. Os locais mais seguros serão seus postos de combate. Capitão Klein, dispare um raio energético inativado, da peça situada no pólo superior. Use um canhão de impulso. Eu gostaria de poder ver o feixe de raios. — Ainda ocorrem ondas de choque — comunicou a central energética. — São absorvidas pelo campo gravitacional. Fim. Bell recuperara o controle, e indagou curioso a Rhodan: — A quem você denominou velho amigo? — Concedo-lhe três chances de adivinhar. Nosso titio charadista acaba de se manifestar. Aposto meu pescoço como estamos perto do planeta. — Então devíamos vê-lo; ou poder localizar e medi-lo com nossos instrumentos. — Chegaremos lá — afirmou Rhodan, contraindo o cenho. — Só resta saber como. — Nyssen acelera, com valores máximos — informou Deringhouse. — Devo assumir o telecomando do caça? — O mais depressa que puder. Pelo que conheço do charadista, os choques são apenas um aperitivo. Deringhouse ligou o automático. Nyssen viu a lâmpada vermelha brilhar acima de sua cabeça. Ficou sabendo, então, que o pessoal da Stardust-III o tomara sob tutela, independentemente de terem ou não ouvido suas mensagens. Os olhos ansiosos do major perscrutavam o espaço à sua frente. A refrigeração de seu traje espacial regulamentar entrou automaticamente em funcionamento, ao perceber que os índices de umidade dentro da roupa pressurizada alcançavam nível proibitivo. A seguir Nyssen avistou o débil brilho por entre o mar de estrelas. O diminuto fogo-

fátuo ficou visível até ser ofuscado pelas chamas dos propulsores do caça. Estava sendo freado à distância, de bordo da nave espacial. Agora restava abrir o tremendamente letal anteparo, senão o minúsculo caça seria desintegrado num fulgurante raio de luz. Mas aquela preocupação era problema privado de Nyssen. Precipitar-se, com vertiginosa velocidade, ao encontro de uma nave espacial quando se sabia que ela estava protegida por campos de repulsão extremamente intensos sempre constituía tremenda carga nervosa. Alguns dos campos não afetavam objetos materialmente estáveis. Porém a estrutura dos campos gravitacionais não se encontrava entre as conquistas mais simpáticas de técnica arcônida. Não era um fenômeno que se pudesse qualificar de normal, no estrito sentido da palavra; tratava-se de unidades energéticas da quinta dimensão sobrepostas. Pois os arcônidas sabiam exatamente o que era gravitação, enquanto os cientistas terrestres ainda quebravam a cabeça tentando descobrir. O caça de Nyssen ainda era um corpo alucinantemente rápido, lançando flamejantes línguas de fogo no negrume do espaço. Muito à sua frente, a Stardust-III se tornou, enfim, visível. Dentro de instantes, aparecia com o tamanho de uma bola de tênis, claramente delineada entre as estrelas. Com um suspiro vindo do fundo do coração, Nyssen desligou de vez a pilotagem manual do pequeno avião, e constatou que sua velocidade era quase nula. Ao mesmo tempo verificou que todo um hemisfério da nave de guerra se transformava numa fornalha que cuspia raios. Nyssen tinha consciência de que berrava suas observações no microfone. Diante dele, o anteparo energético abriu larga brecha. Forças magnéticas agarraram violentamente o pequeno caça, arrastando-o para a comporta aberta. O processo foi rápido. Rápido demais, e extremamente rude. Manobra bem apropriada para desgaste prematuro do material. Com o pé, Nyssen apertou o pedal do automático de compressão. Mal ele entrou em funcionamento, o caça foi jogado, com impacto completamente anti-regulamentar, sobre os trilhos da catapulta, que o lançaram no campo receptor magnético. O piloto espacial lembrou-se a tempo de sua capacidade de reação, senão sucumbiria inevitavelmente ao choque da frenagem de 320 g de intensidade. A máquina ultrapassou o campo receptor, indo chocar-se estrondosamente com as resistentes paredes de aço arcônida do fundo do hangar. Antes de perder os sentidos, Nyssen escutou ainda o rugido surdo das máquinas da nave. Após o longo período de espera, o pessoal da Stardust-III parecia ter entrado em frenética atividade. *** Não se podia exigir que Nyssen entendesse imediatamente os motivos daquela precipitada manobra de reembarque; seria supervalorizar sua inteligência. Além disso, pouco importava como voltara para bordo. O essencial era ter conseguido. Na central de comando, os dois mutantes Son Okura e Tanaka Seiko tinham se manifestado quase simultaneamente. Okura, o perceptor de freqüências, que andava com certa dificuldade, era capaz de perceber apenas padrões indistintos de ondas. Mas podia determinar com exatidão a proveniência daquela radiação estranha, jamais detectada anteriormente. Vinham do setor vermelho, de um ângulo estimado de 32 graus; o plano vertical era de 4 graus no máximo. Relatara imediatamente suas observações, porém então o localizador Tanaka Seiko

fora vitimado por súbito ataque de fúria. Por outro lado, não lhes adiantaria nada conhecer por intermédio dele os pontos de referência exatos da localização. Pois a Stardust-III tornara-se de repente joguete de forças incomensuráveis. O fruto de cansativas semanas de cálculos e de complicadas manobras foi aniquilado em instantes. Gigantesca pata invisível abateu-se sobre a nave, no momento exato em que Nyssen alcançava a entrada da comporta. Já por ocasião dos choques anteriores, relativamente inofensivos, Rhodan passara para controle automático. Não se sentia em condições de reagir a tempo diante de acontecimentos inesperados. Tudo indicava que aquilo fora a salvação de todos eles. Em poucos instantes, a Stardust-III era uma esfera rangente e estalante; o imenso volume oco pouco contribuía para manutenção da necessária estabilidade. Tinha-se a impressão de que todas as divisões e juntas se retorciam, apesar de grande parte delas ser feita de paredes de aço blindado de um metro de espessura. Em adição, produziu-se tal aceleração que Rhodan concentrou o ouvido na escuta do ruído dos reatores de força, desprezando os fenômenos de deformação. — Alcançamos o valor máximo! — berrou Bell, através da barulheira. No entanto, além dos olhos anormalmente arregalados, ele não evidenciava nenhum outro sinal de pânico. Pertencia à classe dos privilegiados para quem os nervos não existem em momentos de perigo. O sistema de alarma pôs-se a uivar. Em todas as dependências da nave acendiam-se luzes vermelhas. — Não! Isso não! — gemeu Crest, que estava sendo pressionado contra seu assento. Rhodan sentiu igualmente a pressão crescente. A enorme Stardust-III sofria tal aceleração que os neutralizadores de compressão já não conseguiam cumprir a contento sua tarefa. E, no entanto, seriam capazes de absorver, por curtos espaços em situações de emergência, pressões de 600 km/s2. Ocasiões, porém, em que requeriam o emprego da capacidade total do aparelhamento de força. Os olhos de Rhodan turvaram-se. Acabava de se manifestar o que jamais ocorrera numa nave arcônida, pelo menos nos últimos vinte mil anos: o efeito de inércia. Repentinamente, sem transição, as forças compressoras romperam passagem; isto provava, sem sombra de dúvida, que desta vez os imortais levavam a coisa a sério. Rhodan, cujo físico resistente já suportara, sem conseqüências prejudiciais, pressões de 16 g, na academia de pilotos da Força Espacial dos Estados Unidos, mal teve tempo de acionar a chave de emergência dos propulsores, embutida no braço do assento. O automático passou a funcionar, irrepreensivelmente. Só os seres humanos sucumbiram momentaneamente à impiedosa força da inércia. O rosto estranhamente jovem de Crest distorcera-se assustadoramente sob a ação das forças de aceleração. Subitamente era uma face de ancião, murcha e sem vida. O arcônida já nem conseguia respirar. Rhodan, porém, forçava-se a agir. Por entre o rugido predominante dos reatores de força, ouvia-se o som mais agudo dos propulsores, dando o máximo de si. Forneciam um empuxo de cerca de quatro milhões de toneladas, calculado em valores terrestres. Os pulmões de Rhodan expeliram, assobiando, o ar retido na última inalação. A distensão provocou enorme alívio, quase semelhante a um choque. Sentiu vontade de rir, gritar, fazer qualquer coisa a fim de extravasar a excitação. Os olhos voltaram a enxergar com nitidez. Os propulsores funcionavam com a perfeição que era de esperar numa nave arcônida.

As forças mais brutais se confrontavam. De um lado, a inacreditável energia do desconhecido; de outro, a potência das máquinas. Bell ergueu-se a custo. Crest e Thora estavam inconscientes. Os doutores Haggard e Manoli puseram-se imediatamente em ação; não eram homens que precisassem ser lembrados de suas obrigações. Afinal, os dois arcônidas eram os mais débeis seres vivos a bordo. Até Gucky mostrara-se mais resistente do que eles. — Absorvido, graças a Deus! — arquejou Bell. — Eu... ai, está ficando mais forte! Estamos perdendo o pouco de contra velocidade que adquirimos, a despeito dessa radiação que nos empurra para trás. Velho, estão querendo nossa caveira! O sorriso de Bell era distorcido; não conseguia mover um dedo sequer. Nas telas surgiram os rostos dos oficiais. O mutante Tanaka Seiko esbravejava, a despeito da hipnose profunda provocada pelo Dr. Haggard. Seu cérebro adicional devia sentir com dolorosa intensidade a radiação energética desconhecida. Rhodan refletia, absorto. Seus pensamentos se atropelavam. Tentava captar uma noção difusa que lhe ocupava o subconsciente. O indicador de velocidade descia aceleradamente, da anterior contra velocidade de 3 km/s2, para zero. Aquilo parecia ser realmente o fim! Os neutralizadores não dariam conta do recado sozinhos. Completamente abstraído, Rhodan mal percebia o ruído infernal à sua volta. O esclarecimento lhe veio como um clarão de relâmpago. — Que foi que você falou há pouco? — gritou, puxando bruscamente Bell com a mão direita. — O que era mesmo? Que nome deu ao tal campo? Atônito, Bell tartamudeou: — Campo? Não falei de campo nenhum. Está querendo se referir à radiação de repulsão? Rhodan não perdeu tempo nem com um suspiro de alívio. Lançou o corpo para a frente, debruçando-se por cima dos controles essenciais. A chave-mestra para os anteparos energéticos ficava mais ao alto, à direita, quase na margem do painel inclinado. Um punho enérgico se abateu sobre ela. Os fusíveis expeliram faíscas de um metro de comprimento quando a energia foi cortada dos projetores do campo energético. Um coro de vozes se ergueu em apavorado protesto. Será que o comandante enlouquecera? Bell foi o primeiro a compreender. O flamejante anteparo sumiu como que por encanto. A assustadora pressão desapareceu como se jamais tivesse existido. O uivo estridente dos conversores de força moderou-se instantaneamente. Apenas os propulsores continuavam a rugir com força total. A Stardust-III, que atingira velocidade ainda incalculável, passou automaticamente a rumar em sentido contrário; com toda a força das máquinas, retornava ao ponto onde estivera antes. — Que diabo! — murmurou Marshall, impressionado. — Era o campo gravitacional! De alguma forma, eles fizeram dele um pólo, usando-o para repelir-nos. De onde lhe veio a idéia, Rhodan? Rindo alto e roucamente, Rhodan não desgrudava os olhos dos controles. De fato, as forças desconhecidas tinham desaparecido sem deixar sinal. — Alô, velho amigo! — exclamou, pela segunda vez em curto espaço de tempo. Um sorriso de desafio lhe brincava nos lábios. — Ganhamos de novo. Que vem agora? Desta vez, Bell desistiu de indagar do estado de saúde de Rhodan. Exausto, reclinou-se em seu assento. Diante deles, a grande distância, o planeta Peregrino pairava no incomensurável

espaço da Via Láctea. Crest voltava a si, com ar desamparado. Seus olhos suplicavam ajuda. — Está tudo bem — tranqüilizou Rhodan. — Bell falou qualquer coisa sobre campo de repulsão. Foi o que me deu a pista. — Radiação de repulsão — corrigiu Bell novamente. — Mas não foi culpa minha, sinceramente... Saiu sem querer... — Pois então deixe suas idéias saírem com mais freqüência, está bem? Rhodan começou a tossir roucamente. Sentia os pulmões em brasa. — Foi brabo, não? — comentou, com um sorriso melancólico. — Seja como for, os imortais são poderosos. Foi a prova mais árdua até agora. Talvez só queiram confiar seu segredo a seres capazes de guardá-lo. Queira Deus que nossas forças não nos abandonem no último momento. — Ainda pretende prosseguir? — perguntou Thora, estarrecida. Rhodan contemplou-a pensativamente. — Esqueceu que Vega está ardendo? Bell, cuide dos controles. Tenho trabalho a fazer na máquina de calcular. — Você enlouqueceu, sem a menor duvida! — afirmou Thora, desconcertada. Mas quando o homem magro, com os ombros caídos, passou por ela, a arcônida acompanhou-o com um olhar fascinado. Klein piscou o olho, provocando risadinhas maliciosas de Bell, que irrompeu a seguir numa série de assobios muito pouco melodiosos, tremendamente desafinados. Ótimo meio de fazer a arcônida se retirar precipitadamente. — Monstrengo! — disse Thora, serenamente. — Você nunca aprenderá, macacóide. No dia em que chegarmos a Árcon, vou lhe arranjar uma árvore para morar. Temos umas enormes, com suculentos frutos vermelhos de casca espinhenta. Altivamente ereta, ela retornou a seu lugar. Bell seguiu-a com um olhar espantado. Seus cabelos cor de ferrugem, obviamente acompanhando os impulsos de seu cérebro necessitado de expansão, eriçaram-se até ficar de pé perpendicularmente com o crânio. Porém não chegou a expressar seu apreciável vocabulário. O imortal tornava a se manifestar.

— Desligue, homem! — berrou Rhodan, fora de si. — Provoque um curto-circuito, ou corte a corrente dos campos que transportam a energia sem fio. Mas faça alguma coisa! Meus controles-mestres se recusam a funcionar. — Os meus também, chefe — replicou o engenheiro-chefe Garand, em tom tão alegre como se estivesse saudando um bando de crianças carregadas de ramos de flores. Porém, para o crítico senso de humor de Garand, aquilo era sinal de profunda excitação. Engraçado como uma pessoa se portava diferente de outra... Perry Rhodan abafou um palavrão entre os dentes cerrados; olhou em torno alucinado... — Uma idéia! Vamos, quem tem uma? Como inativar os propulsores e seus controles bloqueados? Se não começarmos a frear dentro de cinqüenta e dois minutos, vamos nos chocar contra algo que não vemos. E então? Crest entregou os pontos definitivamente. Conformado, encaminhou-se vacilante para sua poltrona. O capitão Klein remexia nervosamente nos botões de seu armamento. — Eu poderia despachar algumas bombas arcônidas contra aquilo; ou, melhor ainda, bombas gravitacionais pentadimensionais. Seja lá o que temos pela frente seria varrido do plano tempo-espaço. — Genial! — zombou Rhodan. — Vejam só o espertinho! Suas bombas G correm apenas à velocidade da luz, não é? Pois o mesmo acontece com a nave, meu caro. Gostaria de palpites mais inteligentes. Ninguém se candidata? Minha cuca fundiu, sinto muito. Não consigo mais pensar. Raios, será que não existe ninguém aqui capaz de apresentar uma idéia aproveitável? O que é que a gente poderia fazer? Apenas uma ninharia deixara de funcionar a bordo de Stardust-III. Os propulsores em carga máxima tinham agora reduzido a zero a velocidade impressa à nave pelo raio repulsor. Alcançado o ponto nulo, ela recomeçou o curso planejado, percorrendo exatamente o traçado da órbita determinada. Os propulsores tinham estado em funcionamento regular por cerca de dez minutos. Crest descobrira então, através de um cálculo positrônico relâmpago, que teriam que iniciar dentro de pouco a desaceleração, a fim de alcançarem a velocidade orbital no ponto exato onde a nave fora atingida pelo raio repulsor. Com isso, a Stardust-III ficaria na mesma posição anterior. Feita a programação, quando Rhodan ia iniciar a queda livre como transição para o período de desaceleração, os possantes propulsores recusaram a cooperar. O impasse continuava. Algo bloqueara todos os controles. Aliás, não se tratava

propriamente de um bloqueio, e sim de um processo incompreensível. Era o que levava Rhodan ao desespero. Mais uma vez olhou em torno. Os rostos visíveis nas telas também não sabiam o que fazer. Então uma voz de soprano gorjeou por trás do alto encosto do assento do comandante. Subitamente iluminado, Rhodan voltou-se bruscamente, agarrou Gucky, puxou-o para a frente. O ser peludo guinchou estridentemente, porém a raiva desapareceu logo dos olhinhos espertos diante das ansiosas súplicas de Rhodan: — Gucky, meu amiguinho, chegou sua vez de nos ajudar! Vai poder brincar, compreendeu? Brinque com os controles dos propulsores, conforme já fez uma vez. Conhece o vasto recinto abaixo de nós, onde estão aqueles enormes blocos de metal pintados de vermelho-escuro? São os projetores de campo para os protetores de corrente. Cortada a corrente, tanto os termo-transformadores como os conversores de impulsos param. Concentre-se nos blocos metálicos; algo está errado com eles! Faça as máquinas pararem. — Ora, conheço aquilo! — exclamou Gucky, entusiasmado. — Andei brincando com eles lá no meu mundo. Chefe, que belos estrondos deram! — Pois provoque novos estrondos. Com minha permissão... Ande, comece logo, Gucky! Os membros do Exército de Mutantes observavam impressionados o indubitavelmente mais poderoso telecineta de todos os tempos. Nem mesmo a pequena Betty Toufry possuía força igual. Sem uma palavra, ela se pôs de pé e estendeu a mão ao rato-castor. A patinha de Gucky sumiu na mão da menina. — Ajude-me, sim? Mas sem tomar iniciativa própria, apenas apoiando. Terrestre e alienígena, ambos feitos pelo Criador, mergulharam em rígida imobilidade. Rhodan sintonizara a central de força nas telas. Tratava-se de uma medida de emergência, mas poderia resultar em êxito total. O rugido dos propulsores continuava, até que de repente ratearam pela primeira vez. Estrondosos raios se projetavam dos anteparos que protegiam o fluxo de corrente. A nave rangia de ponta a ponta, assustadoramente. Mas de repente tudo acabou. Os propulsores ficaram mudos. Nas telas apagou-se o vivo brilho das pulso-ondas. Betty Toufry caiu desvanecida. Anne Sloane correu em seu socorro, depositando-a sobre o mais próximo leito anatômico. O crânio peludo de Gucky inclinou-se sobre o joelho de Klein. O pequeno habitante de Vagabundo tremia da cabeça aos pés, enquanto a boca emitia débeis lamentos. — Muito bem, menino; grande trabalho! — balbuciou o capitão Klein, alisando desajeitadamente o sedoso pêlo da nuca de Gucky. — Daqui a pouco se sentirá melhor. Rhodan voltou aos controles. Precisava verificar quais as ligações interrompidas pela tremenda força mental dos dois telecinetas. De qualquer forma, as instalações recomeçaram de repente a funcionar normalmente. O automático entrou em funcionamento, alguns segundos tarde demais. — Quero disponibilidade tripla em todas as unidades. Situação de emergência. Garand, providencie energia para 600 km/s2. Executar. Desta vez, as máquinas obedeciam aos comandos. Os fusíveis desligados dos campos de força foram reengatados. Era um triunfo do automatismo. Minutos após, a alta velocidade da nave fora quase anulada. Tanaka Seiko começou a se debater como um possesso. A despeito da hipnose, ergueuse furioso, gritando palavras desconexas, e olhando aterrado para a frente, com os olhos

esgazeados. No entanto, tudo que se via nas telas era o espaço deserto. Também os detectores não acusavam nada. Rhodan acionou o alarma de catástrofe. Comportas se fecharam ruidosamente, os cintos de segurança magnéticos saltaram de dentro dos encostos das poltronas, sujeitando firmemente os homens. Foi então que sentiram o tremendo choque. Mesmo com os absorvedores de compressão ligados em intensidade máxima, foram jogados para diante. As correias dos cinturões cortavam dolorosamente o tórax e os ombros. Instrumentos se estilhaçavam, tinindo. O fenômeno, aparecido com a rapidez do relâmpago, tinha a intensidade aproximada de 50 g, e fazia-se sentir apesar dos fortes absorvedores. Nas telas começou a piscar uma imagem difusa. A imensa Stardust-III fora reduzida à imobilidade total em questão de segundos. Os propulsores ainda em funcionamento iluminavam um objeto meio energético, meio material, que se curvava para os lados, a perder de vista. Rhodan desligou as máquinas. Gorgolejando baixinho, elas foram parando. Alguns dos aparelhos mais delicados tinham sido destroçados pelo impacto. O sistema de comunicação verbal estava parcialmente avariado. A gigantesca massa esférica afundara bastante num corpo aparentemente pouco consistente, contra o qual se precipitara com violento impacto. Passado o primeiro susto, Rhodan disse, com voz afogada: — Engulo o velho general Pounder com uniforme e tudo, se me provarem que alguma vez fiz aterrizagem semelhante a esta! Puxa, onde já se viu isso! E agora, o que virá? A resposta lhe chegou com o nascer de um luminoso sol, muito acima deles. O brilho se intensificava rapidamente, até ofuscar os olhos. Abaixo, muito distante, vislumbrava-se irreal paisagem. Mas não era nela que tinham pousado, absolutamente. A Stardust-III mais parecia um projétil entalado numa cúpula transparente que era ao mesmo tempo macia e firme. Depois ouviu-se a homérica gargalhada. Alguém extravasava tão ruidosamente sua alegria que as cabeças dos homens pareciam querer estourar. No entanto, era apenas no subconsciente que escutavam aquilo. Evidentemente era uma poderosíssima transmissão telepática. — Alô, velho amigo! — disse Rhodan pela terceira vez, entre as gargalhadas que agora se transformavam em gritaria. — Chegamos, não é? O som emudeceu abruptamente. A Stardust-III começou a cair, cada vez mais depressa. Quando se manifestaram os primeiros ruídos de atrito com a atmosfera, o campo antigravitacional foi automaticamente ligado. A dez quilômetros de altura da superfície, um leve empurrão dos propulsores fez a nave parar. Todos fitavam fascinados as telas de imagem. O que viam lá embaixo não tinha a menor semelhança com um planeta normal, com a habitual forma esférica e pólos achatados. Era algo monstruosamente feio, peculiar na construção, e da maior genialidade. Ele, o imortal, tinha construído seu mundo a seu gosto! A cena era ao mesmo tempo irreal, impressionante e tranqüilizante. Caso fosse de fato o mundo da vida eterna, bem merecia o apelido. — Meu Deus! — exclamou Rhodan, abalado. — Com esta eu não contava! A coisa toda não passa de uma placa chata desprovida de horizonte, recheada de mares, florestas, cadeias de montanhas e sertões. Como se fosse uma bandeja redonda recoberta por uma cúpula de energia protetora. Quem se aproxima por baixo, vê apenas um vulto descomunal e

indefinido, sem luz nem vegetação. É mesmo uma bandeja, mas de proporções imensas. Um mundo a cujo fim se pode chegar em qualquer ponto, pois falta-lhe o arredondamento. A gente vai topar de cara com o anteparo energético que o separa do espaço vazio. Uma plataforma redonda coberta, nada mais. Será que enlouqueci, ou já estamos todos mais do que mortos? Rhodan voltou-se. As fisionomias dos homens apresentavam a brancura da cal. Gucky continuava choramingando. Ele, o imortal, não ria mais.

Cerca de dois minutos após o rompimento inesperadamente fácil da mais potente cúpula artificial jamais vista, a parede energética até então transparente começou a se tornar opaca. Primeiro tomou o aspecto de água turva, depois ficou leitosa e, por fim, firme e impenetrável ao olhar. Ainda antes que Rhodan se decidisse a realizar um vôo exploratório, parte do estranho firmamento enegrecera, mostrando inúmeras estrelas. Não se via entre elas nenhuma constelação conhecida. O cenário estelar exibido na face interna da cúpula energética, a uma distância imensa, não fazia parte das constelações da Via-Láctea. Era de uma galáxia inteiramente alheia, que permitia tirar conclusões acerca da origem do misterioso ser. Só sabiam referir-se ao desconhecido como ele ou aquilo. Com aquela fatia de terra, debaixo de uma cúpula energética, flutuando no espaço, criara seu próprio mundo privado artificial, num impressionante paralelo com as limitadas concepções dos antigos cientistas terrestres. Também então se julgava que a Terra fosse uma superfície plana, vogando sobre água, debaixo da abóbada do céu. A primeira reação de Rhodan foi se dedicar à complicada programação do cérebro positrônico. Estava interessado em saber se existiria alguma correlação daquele mundo artificial, e as primitivas teorias astronômicas terrestres. O fato de a Terra ocupar exatamente um dos focos da órbita percorrida pelo planeta artificial Peregrino acentuava ainda mais seu interesse em examinar o problema. Enquanto o cérebro positrônico analisava a problemática aparentemente insolúvel que lhe fora apresentada, os tripulantes da Stardust-III se viam a braços com difícil decisão. Amparada pela ação neutralizadora de seus campos antigravitacionais, a nave flutuava a dez quilômetros da superfície. A paisagem irreal, que logo abaixo da nave apresentava o aspecto de um parque ajardinado, propunha-lhes charadas sem conta. Sua mera existência representava tremenda sobrecarga mental. Rhodan voltara ao assento de controle trazendo os resultados da avaliação automática. A Stardust-III estava pronta para a luta, com cada homem em seu posto. Através do sistema de comunicação audiovisual, Rhodan convocara uma discussão da situação, com a participação de todos, dentro de cinco minutos. Quando se postou diante da objetiva, sua efígie foi levada a todas as dependências. Com voz calma e autoritária, disse: — Fala o comandante! — Bell constatou imediatamente que ele deixara de lado qualquer entonação mais cordial. Naquele momento, era apenas o chefe exigente e inflexível. — Quero deixar bem claro que os cálculos relativos ao salto de Vega até aqui

estão absolutamente corretas. Este mundo é de natureza artificial. Portanto, deve estar equipado com estupenda maquinaria, destinada a suprir praticamente tudo aquilo que ocorre por si mesmo em planetas naturais; desde o calor necessário, até a pilotagem. Tenham isso claramente em vista. Se ocorrerem fatos incomuns por aqui, ninguém deverá encará-los como coisa natural. Consultou brevemente as anotações. — O planeta artificial Peregrino é, a rigor, uma gigantesca estação espacial completamente auto-suficiente. Os rastreadores avaliaram em cerca de seiscentos quilômetros a espessura da faixa de terra que vemos, na parte central. A densidade é elevada, e não existe minério natural. Provavelmente a placa consta de micromatéria colhida no espaço. Apesar disso, originou-se em princípio de forma idêntica à dos planetas naturais. Mas gostaria que ninguém me perguntasse como é que ele fez isso! A placa é imensa; mede bem oito mil quilômetros de diâmetro; portanto, temos aos nossos pés um território de respeitável extensão. Isso explica os mares e montanhas que vêem. O tempo é controlado artificialmente, assim como a atmosfera contida pela cúpula energética. A gravidade, regularmente igual em toda a parte, é de 0,96 g, e parece ser produzida por máquinas; apesar da massa bastante volumosa já gerar determinada gravidade por si mesma. Foi concebido aqui um mundo que deve contar com titânicos propulsores. Foi provado que ele transitava em torno de Vega, há cerca de dez mil anos terrestres. Depois ausentou-se do sistema, assim como nós pudemos sair dele numa pequena nave espacial. Façanha notável, diria eu! Rhodan calou-se por um momento, escutando a respiração ansiosa dos homens. Um leve sorriso acentuou ainda mais as finas linhas em torno de seus olhos. — Façanha notável, sem dúvida! O ar é respirável para nós. Sobrevoando este mundo, poderíamos ser comparados a uma mosca presa debaixo da cúpula hermeticamente vedada que protege um pedaço de queijo. Mas, nem por isso, o ambiente fede, se é isso que sua risada sugere, capitão Klein. Klein estremeceu. Seu pigarro contrafeito ajudou a dissipar a tensão evidente nas fisionomias dos tripulantes atentos. — É óbvio que alguém, possuidor de tremendo potencial tecnológico, construiu aqui um mundo no qual erigiu, plantou ou importou tudo que lhe parecesse particularmente belo, precioso ou valioso... ou mesmo engraçado. Só não quero que se julguem diante de Deus em pessoa, pois isto seria sacrilégio dos grandes. Lidamos com um ser vivo cuja técnica, conhecimentos e cultura devem datar de milhões de anos. Solucionou quase todos os segredos da natureza, mas apenas sob o aspecto científico. Supostos milagres nunca passam de processos infinitamente complexos, controlados por gente. Portanto, não se deixem assombrar. Concluindo, mais um comentário... Rhodan fez uma pausa estratégica, prosseguindo muito sério: — É óbvio que jamais poderíamos ter penetrado na cúpula energética deste mundo artificial sem a aquiescência do imortal. Ele concordou com nossa entrada; logo, resolvemos satisfatoriamente as tarefas apresentadas. Com isso, fomos admitidos praticamente em seu covil privado. Lembrem-se da irracional gargalhada, transmitida com toda a probabilidade por meio de telepatia. Diante de seus imensos conhecimentos, os próprios arcônidas não passam de toscos aprendizes. Diferença mais ou menos semelhante à que existiria entre nós e homens da Idade da Pedra. Pensem nisso, e acreditem incondicionalmente em suas boas intenções. Porém não creiam que nos safamos dos perigos contornados apenas por competência própria. Ele cessava o ataque assim que percebia termos encontrado boas soluções para a defesa. Jamais se deve exigir de um examinando tarefas superiores a sua capacidade. Pode-se levá-lo à beira do desespero, mas aí a gente pára. Foi o que aconteceu

conosco. Portanto, em princípio, a situação é bastante favorável. Este é o mundo cujos habitantes, segundo dizem antiqüíssimas tradições, conhecem o segredo da conservação biológica das células. Quem nutria dúvidas sobre sua existência deveria rememorar os incríveis acontecimentos que vivemos. O ser capaz de tais realizações deve também conhecer a fundo os mistérios da vida orgânica. Portanto, as antigas tradições falam a verdade; só que na realidade há acentuadas diferenças. Estamos diante de alguém disposto a nos aceitar daqui por diante. Major Deringhouse! O homem chamado virou a cabeça, fitando a ampla tela onde o rosto de Rhodan se destacava sob a aba do quepe. Um rosto que se tornara magro e anguloso. — Recusado seu pedido para um vôo exploratório com os caças. Só a bordo da nave estaremos razoavelmente seguros. A tripulação continuará em prontidão de combate. Muito me admiraria se não surgissem novas surpresas. É tudo. Obrigado. Rhodan cortou a comunicação. Instantes após, a nave de guerra acelerava. — Casa de máquinas ao comandante! — gritaram os alto-falantes, enquanto a face de Garand surgiu nas telas. — Todas as estações de força em marcha lenta. Peço que sancione a decisão tomada. Rhodan limitou-se a um curto aceno. Podia-se confiar em Garand. Com a moderada velocidade de 1.500 km/h, a Stardust-III percorria o estranho céu. À sua frente, a grande altura, ardia um sol amarelo-esbranquiçado, de natureza evidentemente artificial. Devia ser mantido no lugar e movimentado por potentes campos de força. Daquela altura de dez quilômetros, até a olho nu se tinha visão quase ilimitada. Como a superfície plana não possuísse horizonte no sentido usual da palavra, devido à ausência de curvatura, o olhar era limitado apenas por eventuais obstáculos interpostos em sua trajetória. Crest atarefava-se com a elaboração de um mapa rudimentar. O aparelhamento fotogramétrico funcionava sem parar. Rastreadores mais rápidos do que a luz captavam os impulsos refletidos que percorriam incessantemente a superfície plana, registrando com incrível rapidez toda e qualquer irregularidade do solo. Só muito além da atual posição da nave os impulsos eram refletidos pela cúpula energética que barrava seu percurso. Dali, ela se erguia quase perpendicularmente para o alto. Desta maneira, era possível avaliar com exatidão distâncias e dimensões. Sentado diante dos controles principais, Rhodan debruçava-se para a frente, observando as assombrosas cenas transmitidas pelas amplas telas panorâmicas. Os mutantes agrupavam-se por trás da poltrona. Desde que a nave atravessara a parede energética, o localizador Tanaka Seiko superara o acesso de fúria. Agora dormia o sono da exaustão. — Percebem algo? — indagou Rhodan, sem se virar. John Marshall, Betty Toufry e Ishi Matsu menearam indecisamente a cabeça, até a menina dizer, intimidada: — Um murmúrio, talvez... Muito leve e suave. Mas não consigo captá-lo com clareza. Quantas pessoas deveriam existir aqui? Elas pensam bem e depressa? Rhodan riu secamente. — Quem me dera poder lhe dizer isso! Pouco importa quem exista aqui. Só sei que aquilo pensa mais do que bem, e mais do que depressa. — Aquilo? — sussurrou Betty, com os profundos olhos escuros velados. — Um aquilo só? Não muitos aquilo? Estou me explicando bem? — Sim, acho que entendi. Você quer dizer que existem diversas pessoas por aqui? — Parece que sim. O murmúrio é tão estranho. Como de muitos milhões de pessoas conversando juntas.

Bell disfarçou sua perturbação tossindo. Com um olhar inseguro percorreu o Exército de Mutantes. — Estou começando a ficar arrepiado — confessou ele, com um mal sucedido arremedo de sorriso. — Que diabo! Nada por aqui parece ser tangível ou real. A paisagem ajardinada lá embaixo bem podia ser um parque na velha Inglaterra. John, não dá para captar onda de pensamento alguma? O rosto alongado de Marshall estremecia sob o esforço mental. Ofegando pesadamente, desistiu. — Não adianta, não consigo impressões nítidas. Se existe mesmo alguém aqui, é imune a influências telepáticas. Eu também só consigo ouvir murmúrios surdos e inarticulados. A frágil japonesa Ishi Matsu concordou, pressurosa: — Certo. Nem eu pude fazer contato. Rhodan não fez qualquer comentário. Um sombrio pressentimento nascia em seu íntimo, aumentando de segundo em segundo. Muito além, imensas montanhas se elevavam para o céu. — Meu Deus, neve! — gemeu Nyssen, que cuidava dos rastreadores de matéria. — Neve, imaginem só! O pico mais alto acusou mais de sete mil metros nos registradores. Como será que ele fez isso? — E não se vê gente em parte alguma. Um mundo fabuloso e deserto... O comentário era de Bell. Rhodan enrugou a testa, surpreso. Seu normalmente equilibrado substituto parecia percorrer de ponta a ponta a escala dos sentimentos. Sobrevoaram os picos nevados da gigantesca cordilheira. Nos profundos vales vislumbravam-se frondosas florestas tropicais. Até vulcões havia. Junto a eles, paredões a pique de rochas nuas se erguiam no ar. Aquele mundo parecia ter sido criado num ligeiro estado de embriaguez. Mesmo assim, sua construção devia ter exigido tremendo potencial técnico. Seres ignorados tinham feito verdadeiros malabarismos com as forças elementares da natureza. A vegetação avistada parecia ter provindo dos mais diversos mundos espalhados pela galáxia. De formas tão variadas, às vezes até absurdas, não podiam ter sido importadas de um só corpo celeste. O Peregrino assemelhava-se, aliás, a um varejo galático dos mais bem sortidos. Quando as telas mostraram os primeiros seres alados, verificou-se que eram tão contraditórios quanto a viçosa flora. Gigantes pré-históricos cambaleavam pelo ar em asas trôpegas, com poderosos bicos entreabertos em atitude agressiva. Só poderiam ter vindo de algum planeta ainda em fase de desenvolvimento. Em Vênus existiam répteis alados daquele tipo. No entanto, os ampliadores óticos traziam a imagem de pássaros de plumagem delicada, de formas totalmente desconhecidas. Freqüentemente eram caçados por criaturas de quatro asas, parecidas com cobras. O pessoal não se cansava de olhar. Era o mais vasto zoológico de todos os tempos, verdadeiramente imenso. Ali, ele colecionara caprichosamente tudo que os outros planetas possuíam de encantador e interessante. Uma exposição galáctica de seres animais inacreditavelmente diversificados. Após ultrapassar a cordilheira, apareceu repentinamente um oceano; nitidamente delineado, como uma linha traçada a régua. Rhodan mal acreditava em seus olhos quando viu a Stardust-III voar de repente sobre espessas camadas de nuvens. Os rastreadores

revelavam que abaixo delas havia um mar revolto, cujas ondas violento furacão transformava em espuma. — Vou desligar os circuitos, senão minha cuca funde! — disse Bell, roucamente. — Para mim chega! Olhe só para aquilo! Uma floresta virgem como nem em Vênus há igual. Homem, que matagal assombroso! Rhodan reprimiu um gemido. Há muito tempo reinava silêncio absoluto dentro da nave. Os homens se agrupavam fascinados diante das telas. O furacão parecia rugir apenas sobre o oceano, cessando bruscamente no limiar da floresta. Em troca, os rastreadores indicavam um calor de estufa. Surgiram extensos pântanos, onde plantas azuis, verdes, alaranjadas e roxas competiam pela luz de um brilhante sol artificial. — Lindo! Lindo de tirar o fôlego! — sussurrou Anne Sloane. — Seja quem for que organizou isto, deve ser ao mesmo tempo botânico, zoólogo, tecnólogo e sei lá o que mais. Quanto tempo terá gasto para trazer para cá todas estas sementes e animais? Isso tudo não pode ter se originado espontaneamente. — Claro que não — confirmou Rhodan, baixinho. Sentia-se profundamente perturbado. — De maneira nenhuma, Anne. Primeiro, construíram a imensa plataforma de terra. A seguir, em astronaves mais rápidas do que a luz, foram visitados inúmeros planetas, de onde foi trazido tudo que vive e cresce aqui. Não pode ter sido de outro modo. Alguém construiu isto sob medida, segundo suas preferências. Não sei expressá-lo de outra maneira, sob pena de incorrer involuntariamente em blasfêmia. Ele é arquiteto e jardineiro-mestre do cosmo. Isto aqui não foi criado, e sim construído. Uma ligeira diferença, segundo me parece. Anne riu com um tom de histeria na voz, ao sentir a nave estremecer. Simultaneamente ouviu-se um berro de pavor através dos alto-falantes. Rhodan girou bruscamente sua poltrona. Ao lado, na vasta central de localização, devassada pela parede transparente, surgira de repente um monstro. Rhodan viu Deringhouse sair correndo em pânico. Os radiolocalizadores de plantão abandonaram precipitadamente seus postos, a fim de esquivarem-se dos tentáculos. O monstro era uma fumegante e viscosa massa esférica de quase dez metros de diâmetro, com olhos esbugalhados e bico escancarado de ave. Seus tentáculos serpenteavam pelo ar, tateando em torno. Qualquer objeto tocado era furiosamente arrancado do lugar e premido contra o corpo gelatinoso, dentro do qual desaparecia. O berreiro dos homens era ensurdecedor. Sem uma palavra, Rhodan precipitou-se para a comporta aberta da central de localização. — O transmissor de objetiva! — gritou alguém atrás dele. — Foi ele que nos jogou este bicho aqui dentro! Deringhouse acabava de sacar a arma do cinto quando o pesado monstro foi erguido do chão. Repelente odor de excrementos e podridão atingiu as narinas de Rhodan, porém o animal prosseguia sua ascensão para o teto abobadado, onde grudou, estatelado. “Gucky!”, pensou Rhodan, antes de apontar a pistola de impulsos para cima. Um ronco surdo sobrepujou os clamores dos homens. O raio térmico aberto em leque varreu o organismo gelatinoso, causando-lhe devastadora destruição. Bell apareceu trazendo um pesado desintegrador, cuja ação transformou o monstro em inofensivos gases. Inevitavelmente, parte do teto desapareceu igualmente. Instantes após, os derradeiros restos da estranha criatura se espalhavam por sobre os instrumentos. Semi-asfixiados por acessos de tosse, os homens abandonaram o recinto. Betty Toufry fechou com um empurrão a porta blindada. O climatizador automático começou a aspirar os

acres vapores e gases. No teto via-se um trecho em brasa viva. O breve tiro energético de Rhodan não atingira apenas o animal. Deringhouse contorcia-se em agonizante crise de tosse. Muito pálido, olhou para a poltrona que ocupava ainda há pouco. — Calma a bordo! — berrou Rhodan no microfone. — Calma, o caso já está resolvido. Eu não avisei que viriam surpresas? Garanto que o bicho foi introduzido aqui por intermédio de um transmissor de objetiva. Klein, cuide da limpeza da central de localização. Os restos do bicho têm que ser eliminados. Convoque um grupo de robôs. Um dos radiolocalizadores desmaiou, gemendo. Sob a manga despedaçada do uniforme aparecia carne esponjosa. Rhodan apressou-se a ampará-lo. O Dr. Haggard empurrou para o lado os homens agrupados, de armas apontadas; com seu físico avantajado, não foi difícil chegar até o ferido. — A fera encostou nele com o bico — explicou um dos homens, pressuroso. — Eu vi. Será que estava envenenado? O Dr. Haggard fez rápido e atento exame. Seu rosto expressava preocupação. Dois companheiros carregaram o homem inconsciente até o elevador principal. A sala dos localizadores foi invadida por diligentes robôs. O cérebro positrônico, que se encarregara da pilotagem da nave, já fora informado. Os vestígios do monstro foram afastados. Em silêncio, Rhodan encaminhou-se para o dispensador automático de bebidas. Preferiu não dar ouvido às acirradas discussões. Num mundo daqueles, os homens estavam sujeitos a rudes provações. — Que brincadeira besta! — resmungava o comandante, consigo mesmo, com o olhar ausente preso ao revestimento de plástico verde-pálido do autômato. — Que foi? — indagou Bell. — Nada... Que é que anda acontecendo na superfície? Antes que Bell pudesse responder, chegou uma mensagem da cúpula situada no pólo superior da nave. No setor verde tinham sido avistados os arranha-céus de uma imensa cidade. Ela ainda se encontrava a três mil quilômetros de distância. Rhodan lançou um olhar à central de localização. Os vapores ácidos já tinham sido substituídos por ar fresco; os homens em serviço foram entrando com ar desconfiado. No lugar em que o monstro desabara havia cacos por todo o lado. Deringhouse praguejava escandalosamente. Por fim rosnou: — Bem que eu gostaria de saber de onde saiu aquele bicho! Crest, viu alguma vez coisa semelhante? Uma verdadeira montanha de pudim. O cientista arcônida sacudiu a cabeça. Andava estranhamente calado desde a penetração do envoltório energético. Apenas seus olhos vermelhos brilhavam mais do que o comum. Aquele era o mundo por cujos segredos se aventurara ao espaço, há anos. Atingira, finalmente, o alvo de seus ardentes desejos. Seu corpo, e com ele seu cérebro, seriam conservados. Para o Grande Império, era de vital importância ter no Conselho Central pelo menos uma mente sã e ativa, entre tanta degeneração e decadência. O arcônida olhava as telas com um ar que traduzia quase veneração. Ele era o representante de uma raça votada ao desaparecimento; uma raça que iniciara há vinte mil anos terrestres a conquista do espaço e a organização de um império interestelar. Ele, Crest, é quem tinha direito ao privilégio da conservação biológica celular!

A cidade ocupava extenso planalto, à margem de um caudaloso rio. Logo além dos edifícios, ele se precipitava da beira do platô rochoso para o mar azul e profundo. Diante daquela queda d’água, as Cataratas do Niágara eram um simples riacho. As rochas alcantiladas, de conformações bizarras, não poderiam ter sido dispostas daquela maneira deliberadamente. A água as desgastara e polira num processo natural. Nada demonstraria com mais clareza a antigüidade do planeta artificial. Devia ser mais antigo do que a Humanidade, talvez mais do que a Terra. A massa líquida caía de altura superior a oitocentos metros. No litoral oposto do mar com cerca de mil quilômetros de largura, havia outra cidade. Os ampliadores óticos traziam imagens de barcos a vela, feitos de madeira. Eram tripulados por entes bípedes, de pele córnea. Ao planar com a Stardust-III sobre a cidade de construção primitiva, Rhodan percebeu que ninguém prestava a menor atenção ao gigante esférico. Os desconhecidos seres vivos lá embaixo prosseguiam imperturbáveis em sua atividade, aparentemente muito normal. Portanto, Rhodan seguiu adiante. Ao sul da cidade suntuosa surgiram vastas pradarias. Os fatos que ocorriam nela provocaram o choque final nos homens. O contorno das montanhas Black Hills, nos Estados Unidos, era inconfundível. Tão pouco podiam se enganar quanto aos peles-vermelhas; no momento em que estavam sendo captados pelas telas, travavam sangrenta luta com caras-pálidas barbudos. A micro-sintonização trazia o espocar surdo de armas de grosso calibre. Aquilo fora demais. Rhodan aterrizou bem no meio do furioso tumulto. Um oficial com a farda azul-marinho da cavalaria precipitou-se contra a Stardust-III, brandindo seu sabre. Montava um esplêndido cavalo negro. Rhodan divisou nitidamente a boca escura de um colt, modelo 1.867, apontado para seu peito. A cena toda se dissolveu em instantes quando Bell atirou no cavalo. Era tudo ilusão; uma miragem tão real que os homens do grupo de desembarque custaram a recuperar a cor natural dos rostos lívidos. Pensaram em decolar novamente, certos de que os desconhecidos tripulantes dos veleiros também não passavam de ilusão dos sentidos. O tenente Everson resolveu examinar o lugar onde o cavaleiro galopara pela pradaria. Instantes após foi preciso aplicar uma injeção tranqüilizante no homem, que berrava alucinadamente. No meio do capim crescido ele achara algo que não era, de forma

nenhuma, ilusão. Rhodan fizera a nave subir como se estivesse em fuga. Agora se encontrava na pequena dependência junto à central. Suas mãos crispadas repousavam sobre uma mesinha basculante; ao lado do copo de café via-se o objeto encontrado por Everson: um revólver colt autêntico, fabricado em 1.867. O tambor em perfeito estado de conservação, sem a menor mancha de ferrugem, continha seis balas calibre 45. As pontas rombudas dos projéteis de chumbo apresentavam entalhes em forma de cruz, o que produziria certamente violenta deformação da bala por ocasião do impacto. O cano media seis polegadas. O exame das ranhuras deste e do material de que era feita a arma demonstrou que fora fabricada na segunda metade do século XIX, com os recursos então disponíveis. Everson ocupava o outro lado da mesa. Muito pálido, não desgrudava os olhos do revólver. — Meu pai tinha um assim — gemeu ele. — Meu Deus, de onde será que veio esta velharia? De onde? Isso tudo é loucura, chefe. Eu acabo biruta... Se toda aquela cena era uma miragem, como é que podia ter um colt de verdade caído no capim? Conheço bem este tipo de pau-de-fogo. Já atirei muito com um modelo igual. Tudo nele é certinho e autêntico. Olhe só o ejetor! Rhodan descontraiu-se. Everson estava prestes a sofrer um colapso nervoso, sem a menor dúvida. O comandante refletiu por alguns momentos. Depois extraiu uma bala do tambor. — Munição Winchester, fogo central — explicou Everson, afobado. — O modelo é legítimo, creia-me, chefe. Conheço muito bem isso; matei meu primeiro coiote com um igual. — Interessante, porém irrelevante — disse Rhodan. Muito sério, fitou o círculo de homens. — Já devem ter percebido que estamos sendo submetidos a uma derradeira prova. Isto aqui — e apontou para o colt — faz parte da guerra de nervos em andamento. Atentem só para Everson: vejam a que ficou reduzida a fleuma personificada, o homem que não se abala com nada. A providência da arma pouco importa. Klein, já verificou entre o pessoal se alguém andava com um canhão de bolso destes por esporte? — Ninguém, chefe — afirmou Klein, depressa. — Muito bem. Portanto, ele usou mais uma vez seus incríveis recursos. Há pouco nos fez presenciar a batalha de Custer em Black Hills, fato que ocorreu realmente. Quem sabe se as facções em luta não foram removidas por alguns instantes para plano temporal inteiramente diverso? Fato que nenhum compêndio de história menciona.... Seja como for, o colt está em nossas mãos. O cano chamuscado prova que atiraram com ele. Não se deixem impressionar mais, e se conservem calmos. O páreo daqui para a frente vai ser duro. — Mas a arma estava jogada na grama! — argumentou Everson, sussurrando. — Claro que estava. Você sabe muito bem que ele domina a viagem no tempo. Testemunhamos isto pessoalmente. De alguma maneira ele arranjou este espirrador de balas no passado terrestre. Não quebrem a cabeça tentando descobrir como. Nem eu sei. Mas percebo agora que ele tem boas informações acerca de nosso mundo natal; senão, como saberia que reagiríamos tão intensamente a uma boa briga em estilo faroeste! Isso foi deliberado! Quer nos desmoralizar. Pescou a idéia, Everson? O corpulento oficial ficou pensativo de repente. — Ao diabo com aquilo — resmungou, irritado. — Quase me põe louco. Rhodan sorriu inexpressivamente. Depois enfiou o colt no largo cinto do uniforme.

— Permite, não é, Everson? Não tem mais de seis balas, mesmo. Mas poderia mandar fundir algumas, caso tenha vontade. Rhodan fez uma rápida continência. Não fez mais comentário algum sobre o assunto ao ver que seus homens se descontraíam; retornavam ao normal. Dez minutos depois, a nave pousava pela segunda vez no chão daquele mundo artificial, num campo circular com mais de dois quilômetros de diâmetro, amplo bastante para acomodar confortavelmente a Stardust-III. Com as longas patas de aterrizagem estendidas, ela se erguia a mais de oitocentos metros de altura. No entanto, a torre fincada à margem do campo ultrapassava-a em bem quinhentos metros! Delgada e aparentemente frágil, ela apontava para a cúpula energética, que ali se apresentava sob o aspecto de um céu azul, enganadoramente autêntico, com ligeiras nuvens. Os propulsores emudeceram após o longo vôo. Lá fora, tudo era silêncio e calma. Não se viam nem animais, nem seres de aparência humana. A paz e tranqüilidade eram totais; mas se tratava de uma calma mecânica. O onipresente zumbido não podia ser chamado de barulho. Parecia tão integrado àquele mundo quanto suas maravilhas técnicas. Rhodan ainda permaneceu sentado por alguns momentos, observando as telas de imagem. A reprodução era nítida, colorida e brilhante. A ampla praça devia representar o centro da cidade mecânica. Nela, o construtor desconhecido parecia ter levantado os edifícios mais importantes. Estruturas de metal, de ousada concepção arquitetônica, brotavam lisas, limpas e inteiriças do chão igualmente refulgindo em tons metálicos. A forma predominante era a cúpula, com extensões em balanço livre. Mas havia também prédios retangulares e cilíndricos. O todo era harmonioso e bem combinado. Com gesto cansado, Rhodan tirou o capacete, substituindo-o pelo quepe, mais leve. Com ligeiro zumbido, a poltrona giratória virou para o lado. Os homens distribuíam-se pela central. Os intercomunicadores calados. Não se escutava palavra na nave. — Chegamos ao ponto final da grande viagem — disse Rhodan, baixinho. — Alguém está à nossa espera; ele ou aquilo. Provavelmente jamais saberemos ao certo de que se trata. Algo ou alguém que vive mais do que o sol. Pois bem, Crest, sinto-me feliz por tê-lo trazido enfim ao alvo de seus sonhos. Desembarquemos. Ou agora ainda se recusa a prosseguir, também? O arcônida envergara o traje de sua pátria. A ampla túnica roxa, com os cintilantes símbolos sobre o peito, caracterizava os membros da dinastia reinante de Árcon. — Claro que não! — replicou ele, comedidamente. — Acompanha-me? Rhodan levantou da poltrona. Alto, magro, pessimamente barbeado e com o uniforme um tanto sujo, defrontou-se com o representante de uma raça a quem a Humanidade muito devia. Pois, se Crest não tivesse sido forçado a aterrizar na Lua durante sua busca a este mundo artificial, a Humanidade talvez ainda tivesse que esperar durante alguns séculos pelas viagens espaciais mais velozes do que a luz. Rhodan não era pessoa de esquecer os benefícios recebidos. Vagarosamente afastou da testa os cabelos empapados de suor. Seus olhos eram irônicos quando reclamou: — Rapazes, vocês até parecem uns marginais. Quando foi mesmo que nos lavamos pela última vez? Nem sei se, desde a rápida decolagem de Ferrol, vi um chuveiro de perto. Suspirando, Bell esfregou as mãos na farda. — Mas minha arma está razoavelmente limpa — resmungou ele. — Que diabo, quando é que esta inferneira nos deu uma folga para tomar banho? — Ora, você é que não chamará a atenção, Bell — interrompeu Thora, sarcasticamente. — Já me habituei a colocar microfiltros odoríferos nas narinas quando me

encontro em sua presença. Processo adotado por arcônidas de alta linhagem quando pisam planetas subdesenvolvidos, com habitantes bárbaros. Bell irrompeu instantaneamente numa série de xingamentos. Rhodan observava disfarçadamente a fascinante mulher. E então Thora teve um procedimento inédito nela: começou a rir sonoramente. Bell parou no meio da frase. Seus olhos pareciam querer saltar das órbitas. — Ainda mais essa! — gemeu, arrasado. — A fera sabe rir! Incrível! Rhodan teve a impressão de que Thora acabava de alijar a arrogância condicionada por sua raça e educação. Pensativamente alisou com o dorso da mão a barba crescida. O quepe amassado, com o emblema da Terceira Potência, equilibrava-se torto sobre a cabeça. — Muito bem, então vamos lá! — decidiu ele. — Bell, organize o grupo de desembarque. Gucky e Marshall, vocês vêm junto. Os demais mutantes seguirão no segundo carro. Nyssen, assuma o comando da Stardust-III durante minha ausência. Mas de modo algum tente decolar caso suceda algo; nunca alcançaria o espaço aberto. A prontidão de combate continua valendo. Mantenha-se alerta, mas não cometa tolices. Certo? Mais alguma pergunta? — Não, nenhuma pergunta mais! Bell desapareceu, com um olhar furioso para Thora. Altivamente ereta, com o branco e imaculado uniforme de comandante de um pesado vaso de guerra, ela aguardava ao lado do cientista-chefe de sua fracassada expedição de pesquisa. O manto violeta indicava que pertencia igualmente à dinastia reinante de Árcon. No ventre da nave, as comportas internas dos compartimentos de carga deslizaram para os lados. Pés palmilhavam extensos corredores. O grupo de desembarque constava de vinte elementos selecionados, sob o comando pessoal de Rhodan. Bell deteve o primeiro veículo de múltiplo uso; os três seguintes pararam igualmente. Os homens não tinham palavras; apenas olhos.... A cobertura abobadada dos veículos fora recolhida. O ar era agradável, ameno e extremamente puro. O sol atômico artificial aquecia bastante. Mas não foi isso que provocou as pragas de Bell. Seria muito esquisito servir tomates podres em pratos de ouro. Ainda mais esquisito era o indivíduo imundo repentinamente surgido do nada; escarrando repetidamente no chão, postara-se em atitude provocante diante do primeiro carro. Rhodan sorria de orelha a orelha. Chegara a um ponto no qual começava a se divertir com tudo aquilo. Claro que a aparição era mais um dos truques do imortal. Nem podia ser outra coisa! Ele devia ter ataques de riso diante das fisionomias atônitas ou apavoradas dos visitantes da Terra. Rhodan desembarcou vagarosamente. O indivíduo tornou a cuspir, exibindo na face balofa dentes gastos e enegrecidos. Enganchara os polegares na cartucheira, da qual pendiam dois pesados colts, de calibre 45. A calça de couro manchada estava enfiada em botas que lhe alcançavam os joelhos, com afiadas esporas e saltos altos. Enfim, a aparição tinha o aspecto típico de um autêntico bandido de faroeste, daqueles que Rhodan costumava ver em filmes quando menino. Ele possuía, evidentemente, senso de humor. E talvez achasse que poderia pregar um bom susto aos tripulantes da espaçonave com aquele mal-encarado representante da história do oeste americano. Conseguiu, efetivamente, seu intento; menos com Rhodan, que reagiu de maneira diametralmente oposta. O comandante da Stardust-III foi ao encontro do vulto de pernas abertas que impedia o caminho. Da gola aberta da camisa escapavam-se cabelos ruivos, cor de fogo. Rhodan só se

espantou ao ver a face inexpressiva da aparição se animar. — Olá, cara! — rosnou o indivíduo, mastigando as palavras ditas com acentuado sotaque sulista. — Tá com fome, tá? Pois posso te enfiar uma boa dúzia de azeitonas na pança. Duvida? Rhodan empalideceu. Calado, examinava o estranho personagem, que tornara a cuspir. Recuou, enojado, ao ver a saliva grudar-se no bico de seu sapato direito. Bell gritou qualquer coisa, e Rhodan se jogou de bruços no chão. O sonoro ronco de um radiador de impulsos se fez ouvir. A aparição foi envolta por um halo de fogo. Quando os relampejos se dissiparam, o indivíduo riu sarcasticamente. — Pensa que tá imaginando, é? Homem, eu sou de verdade! É eu ou você. Quero engolir o mais sarnento dos índios se entendo o que se passa; só sei que me disseram que você só pode acabar comigo em meu tempo. Entende isso? Rhodan ergueu-se, com rosto sem expressão. — Adiante, pessoal! — ordenou, secamente. Depois virou para trás. Duas estrondosas detonações repercutiram quase ao mesmo tempo. Junto aos pés de Rhodan, algo espirrou sobre o chão metálico; a seguir, entre silvos e assobios, disparou para longe, inteiramente achatado. Rhodan deteve o passo. Bell atirou novamente, desta vez com o letal desintegrador. A aparição se limitou a sorrir mordazmente. — Só no meu tempo — afirmou. — Mano, é você ou eu. Foi isso que me disseram. Sou ligeiro e tenho boa pontaria. Tens que ser melhor. Precisas passar por aquele portão encarnado ali adiante. A chave está comigo. Se não conseguires tomá-la dentro de meia hora, vais para o inferno, e eu posso voltar. Os pilantras me garantiram que eu já estive morto uma vez, baleado por um xerife à toa. Pode ser... Estou com dois furos no couro. A camisa imunda foi aberta com um repelão. Rhodan ficou com os joelhos trôpegos ao descobrir no peito dois orifícios de bala, lambuzados de sangue coagulado. Que espécie de coisa estaria ele tramando agora? Dentro dos veículos, os mutantes agiam. — Está vivo! — gritou Marshall, excitado. — Cuidado, ele está mesmo vivo! Gucky endireitou-se no assento. Era evidente que não conseguia mover telecineticamente a aparição, na certa imunizada por poderosa influência. — Acabou-se! — murmurou Crest, abalado. — É a prova final. Este indivíduo está vivo. Vem de plano temporal diverso, e está imunizado. Rhodan examinou os vestígios dos tiros. Não havia dúvida de que dois projéteis de chumbo tinham atingido o metal duro. — Mais vinte minutos, e teu tempo acabou — rosnou o estranho. — Ei, eles disseram que depois eu ia poder viver de novo. Entende isso, cara? Rhodan correu de volta para o carro. Emitiu uma série de ríspidas ordens. Arrancando bruscamente, os veículos dispararam na direção do portão mencionado. Tratava-se de uma vasta arcada, de forma assimétrica, protegida por um campo energético de reflexos avermelhados. Bell travou de repente. Rhodan tornou a saltar do carro. A aparição se encontrava novamente no caminho. — Não adianta! — zombou ele, rindo abusadamente. — Cavalos gozados esses teus, mano. Um por um, os mutantes de Rhodan experimentaram suas forças. Em vão; daquela vez haviam atingido os limites de seu potencial. Abriram fogo com os desintegradores portáteis

instalados nos carros. O portão nem se moveu. O estranho calava agora. Longe dali, ouviu-se intenso zumbido. Em torno da StardustIII, um anel de fogo branco-azulado brotava do solo. — Eu não falei que vocês iam para o diabo? — resmungou o desconhecido vindo do passado da Terra. Agora Rhodan acreditava verdadeiramente na existência dele. — Três minutos ainda. Só no meu tempo você vai poder me pegar, mano. Os homens do grupo de desembarque vigiavam desconfiados o mal-encarado indivíduo com o peito furado a bala. Ele conseguira realizar uma proeza impressionante. Rhodan se dirigiu displicentemente para o primeiro veículo. A aparição seguia-o com olhares suspeitos. Com um suspiro, Rhodan recostou-se na porta aberta, cruzou as mãos nas costas e disse friamente: — Só em seu tempo, não foi o que disse? Algo surgiu às costas de Rhodan. Rápido como o raio, o desconhecido sacou suas armas. O surdo estrondo de um colt calibre 45 rompeu o silêncio, espalhando negra nuvem de pólvora. A aparição rodopiou sobre si mesma antes de desmoronar silenciosamente. Na mão de Rhodan cintilava a arma achada por Everson. O fuzilado em tão estranhas circunstâncias evaporou-se. Débil lamento, parecido a choro reprimido, pairou no ar. Depois tudo acabou. A cortina energética dissipou-se, e o anel de fogo em torno da Stardust-III sumiu. Ofegante, Rhodan recostou-se contra o carro. A velha arma balançava em seu indicador direito, enganchado no gatilho. — O instrumento-chave está aí no chão — disse Rhodan, com voz rouca. — Raios, mexam-se! A aparição era autêntica. Trazida do século XIX por ele, e envolta num impenetrável anteparo protetor. Só em seu tempo ela poderia ser derrubada, foi o que disse. O que me fez pensar neste canhão pré-histórico. Estava jogado no assento do carro, ao meu lado. Everson, se você não tivesse achado esta metralhadora de bolso na relva... Rhodan se calou, exausto. O incidente com o defunto revivido de um passado remoto fora enervante. Segundos após, o portão se abriu silenciosamente, sob a ação de um único impulso do instrumento-chave. — Entrem e sejam bem-vindos! — falou uma voz profunda. Desta vez, ela era transmitida acusticamente, e não por meio do subconsciente. — Alô, velho amigo — disse Rhodan, acenando com a mão. — A história do colt foi legal. O senso de humor de sua excelência é mordaz, não é? Crest estremeceu, aterrado, até tornar a ouvir a estrondosa e incontrolada gargalhada. Todo o planeta artificial parecia re-verberar os estridentes guinchos. Rhodan encostou-se na parede. Sorridente, perscrutava a imensa sala por trás do portão. Tinham chegado ao alvo!

Aquilo não era gente. Nem sequer era ser orgânico. Talvez tivesse possuído um corpo algum dia, até que, no decurso de bilhões de anos, se cansara de carregar consigo o incômodo apêndice. Assim, o que um dia fora alguém se transformou em aquilo. No entanto poderia ser visto, caso aquilo julgasse conveniente. — O que é aquilo? — perguntara Rhodan. John Marshall, o potente telepata, conseguiu entender seu chefe a despeito das inacreditáveis risadas. Durante algum tempo sondou por entre o cascatear de incessantes gargalhadas; por fim, acabou entrando em comunicação com Betty Toufry. Ele, ou então Aquilo, não conseguia se acalmar. Devia achar extraordinariamente divertido algum fato, ou algum dito de Rhodan. Marshall acabara berrando nos ouvidos do comandante: — Ele é um todo intricadamente entrelaçado, um ser de vida psíquica própria, superdimensionado, composto de muitos milhões de psiquismos individuais. Suponha simplesmente que uma raça inteira despojou-se do invólucro material, a fim de continuar existindo apenas em espírito. Uma deliberada desistência da materialidade, após vida inacreditavelmente prolongada, que o organismo corporificado certamente não teria agüentado por mais tempo. Aquilo continua sendo Aquilo! Tanto faz ser formado por bilhões de mentes desincorporadas, ou por uma única. Fica sendo aquilo. Rhodan levara ambas as mãos à cabeça. Marshall riu contrafeito ao captar o conteúdo do pensamento do comandante. “Não, continuo sendo normal!”, protestara ele, consigo mesmo. Neste momento, as gargalhadas cessaram bruscamente. O silêncio dominou o vasto recinto de teto alto, que parecia inteiramente vazio; apenas algumas máquinas não identificadas se distribuíam cá e lá. O grupo de humanos se encontrava a menos de vinte metros da entrada. Diante deles, um vácuo ligeiramente sugestivo, tingido de rosa luminoso. Depois o vazio começou a assumir inesperadamente uma forma. O fenômeno ocorria no ponto exatamente correspondente ao zênite da elevada cúpula. Uma luz ofuscante jorrou do alto. Logo após apareceram vapores flutuantes; girando em espiral concêntrica, eles acabaram tomando a forma de uma bola. — Bem-vindos! — disse a voz já ouvida anteriormente. — Devem achar bastante

estranha a forma que escolhi para me mostrar. Mas já devem ter se habituado à noção de que eu sou estranho. Ouviu-se um riso suave. Sem a menor transição, Rhodan se sentiu de repente só e abandonado. Crest e Thora tinham-se postado na dianteira do grupo de expectantes terrestres. Orgulhosamente ereto, com a face voltada para o alto, Crest olhava na direção de onde vinha a voz. Rhodan continuou a apoiar os dois ombros contra a fria parede metálica. “Posto de lado”, pensou, amargurado. “Acabem logo com essa palhaçada. Tenho mais o que fazer do que ajudar um velhote a prolongar a vida. Vamos, acabem de uma vez!” — Aproxime-se, por favor — convidou a voz. Rhodan empurrou o quepe para a nuca. Seus olhos tresnoitados e injetados viram que Crest avançava com passo lento e solene. — Puxa, dá para morrer de inveja! — sussurrou Bell. — Será que ele lhe concederá a conservação celular? — Claro — murmurou Rhodan. — Por que acha que nos fizeram cumprir tantas tarefas? Aquilo não vai poder faltar com a palavra dada. Quanto a mim, eu só queria duas coisas: primeiro, saber por que é que aquilo quer doar seus segredos; em segundo lugar, quero dormir. Só isso. — Aproxime-se, por favor — repetiu a voz. Crest olhou em torno, indeciso. Já estava bem perto da pulsante e impalpável presença, perpetuamente em movimento, na qual John Marshall acreditava ver os condensados e concentrados impulsos mentais de inúmeros seres desincorporados. Rhodan estava saturado de tudo aquilo. Apontou para a frente com o polegar, displicentemente. — Ande logo! — gritou, irritado. — O caso está resolvido. Ou ainda preciso carregar você para debaixo da aparição luminosa? Crest estremeceu convulsamente. Arriscou mais um passo. Depois pôs-se a gritar apavorado. Um poder invisível empurrou-o tão violentamente que foi lançado ao chão, aos pés de Thora. — Não foi você que chamei, arcônida, sinto muito — disse a voz. — Sua raça recebeu uma oportunidade, há um período que vocês denominam vinte mil anos. Os arcônidas fracassaram. Como representante de uma espécie em degeneração, você não merece o prolongamento biológico da vida. Seu tempo esgotou-se. Crest gritava ainda. Os ombros de Rhodan foram se afastando da parede; lentamente, como se estivesse sentindo cãibras. — Hmmmm! — fez Bell, privado de voz. Deu brusca reviravolta, e Rhodan viu-se diante de dois olhos escancarados. — Alô, velho amigo, por que não se aproxima? — riu alguém. — Eu diria que já nos conhecemos, não concorda? Rhodan sentiu as pernas tremerem. Os pêlos da barba crescida se destacavam negros sobre a pele lívida da face. — Avance, senhor — disse Betty Toufry, em tom quase reverente. — Era ao senhor que ele se referia, e não ao pobre velho. Adiante-se... Os homens do grupo de desembarque recuaram. Profunda incredulidade se refletia nas fisionomias; porém logo ela se transformou em louca euforia. Apenas Rhodan ainda não compreendera. Arriscou alguns passos indecisos. — Um momento — balbuciou, confuso. — Eu... Pensei que... Rhodan sentiu-se suavemente elevado no ar e transportado para debaixo da radiosa

bola. Esta desceu um pouco, até ficar à altura de seu rosto. — Então, é assim que ele é — monologou a voz grave. — Um pequeno e temerário nativo do terceiro mundo de um sistema pertencente a um sol minúsculo. É esta sua aparência! Um enlevado sonhador, rigoroso consigo mesmo e com as demais criaturas. E idealista, além do mais! Sonha com grandes feitos, quer construir... Só que não sabe o que é grande. E, a fim de atingir seu objetivo, vale-se de mim. Alô, velho amigo! Rhodan só recuperou o uso das faculdades mentais quando a tremenda gargalhada abalou pela terceira vez o recinto. De repente julgou entender o que tinha diante de si! Aquele ente devia ser ilimitadamente esclarecido e equilibrado, e sem o menor resquício de egoísmo. O comentário chilreado por Gucky confirmou suas suposições. O serzinho peludo gritava com entusiasmo: — Descobri, chefe! Aquilo gosta de brincar, assim como eu. Porém brinca diferente. Brinca com vocês, com o tempo, com o que os humanos chamam de idades culturais. Compreende isso? Sim, Perry Rhodan tinha compreendido definitivamente. As risadas se intensificaram ainda mais após as observações de Gucky. Rhodan sentiu-se arrasado. Mal ousava pensar no que lhe oferecia aquele poderoso ente feito de matéria desincorporada. Como teria sido a história da oportunidade concedida por aquilo aos arcônidas, há vinte mil anos terrestres? Qual teria sido a oportunidade? Rhodan aguardou. Quando o silêncio voltou a se estabelecer, disse algo que quase levou os homens presentes a um acesso: — Alô, velho amigo. Você me meteu um monstro dentro da nave, lembra? — Lembro-me de tudo que fiz até hoje. — replicou o inconcebível ser, alegremente. — Pois bem — replicou Rhodan, furioso. — então trate de providenciar socorro para meu radiolocalizador ferido, para que não precisemos amputar-lhe o braço. Aquele bicho era venenoso. Não tenho medicamento adequado a bordo. De momento, isto é a coisa mais importante para mim. Fez-se silêncio. Tinha-se a impressão de que todo o planeta artificial respirava. Rhodan olhou um tanto zombeteiramente para a iridescente luminosidade. Crest perdera os sentidos com o choque sofrido. Thora recostara-se de olhos cerrados contra a parede. Sabia que os arcônidas tinham perdido a partida. Fora tudo em vão: sua expedição, a aliança com os humanos, e tantas outras coisas. Aquilo recusava os arcônidas; eram perdedores. Aquilo era invencível e também imune a influências, segundo tudo indicava. — Quais são seus planos, velho amigo? — indagou a voz, serenamente. — Socorro para meu tripulante ferido, em primeiro lugar. — O socorro está a caminho. Os eflúvios venenosos estão sendo drenados do organismo. E quanto a você, velho amigo, o que pretende? Gostaria de assumir o Grande Império arcônida, não é? Pôr em ordem, reconstruir, apaziguar, não é verdade? — Exatamente — confirmou Rhodan. — Quantos já desejaram isso! A maioria deles fracassou já diante de minha primeira tarefa. São sempre as mesmas. Vi nascer e morrer avançadas civilizações galácticas. Orientei algumas, até não me interessarem mais. É possível que eu necessite de variação constante. Houve outra raça antes dos arcônidas; e mais outra antes dela. Andei observando seu mundo, Rhodan. Dou a você e aos seus congêneres oportunidade idêntica à que concedi aos arcônidas. Para mim, será um breve momento; depois terei que esperar de novo por alguém que entenda as pistas por mim espalhadas em toda a parte, e que se aventure a tentar

sua solução. Obrigado pelo entretenimento, velho amigo. Lutou para valer. Comece, agora. Não pretendo nem ajudá-lo, nem continuar a molestá-lo. Entre no fisiotron. As instalações de meu mundo artificialmente criado estão à sua disposição. Mas descobrir o que pode fazer com elas é problema seu. Trato feito? — Feito! — concordou Rhodan, com voz embargada. Aquilo tornou a rir, porém desta vez havia um pouco de mágoa na voz. Baixinho, perdendo-se na distância, ainda falou: — Nutre grandes e belas esperanças sobre a imortalidade, não é? É o que todos os seres orgânicos costumam fazer, até vir a terrível desilusão. O derradeiro refúgio é a desencarnação. Algum dia se sentirá contente por poder libertar o espírito das cadeias do corpo. Porém este dia ainda está distante para você, pelo menos sob o seu ponto de vista. Boa sorte, velho amigo! Proporcionou-me a mais emocionante partida deste jogo desde que despi voluntariamente o invólucro material. Vou continuar observando vocês... Felicidades! A radiosa espiral apagou-se. O imenso recinto estava de novo vazio. Antes que alguém pudesse dizer uma palavra, um homem se materializou do nada. As mãos de Rhodan avançaram instintivamente, num gesto de defesa. — Fui destacado para seu uso — disse o ente, objetivamente. — Dê-me um nome, por favor. — Quem é você? — sussurrou Rhodan, com dificuldade. O estranho com aparência humana sorriu. — Fui especialmente construído para servi-lo, senhor. Por isso me deram aparência humana. — Um robô? — Mais ou menos, sim. Mas não uma simples máquina no sentido que vocês conhecem. Meu cérebro é uma liga semi-orgânica e intotrônica. — Intotrônica? — espantou-se Rhodan. — Da sexta dimensão, senhor. Pronto para entrar no fisiotron agora? — Para quê? Que vem a ser isso? — Uma ducha celular. Talvez tenha imaginado que a conservação celular pudesse ser efetuada por meio de injeções ou radiações. Permita-me esclarecer tal dúvida. Receberá, para cada célula, uma carga conservadora de sessenta e dois anos justos, segundo seu sistema de contar o tempo. Decorrido este prazo, ocorrerá imediatamente degenerescência, a não ser que volte para cá antes do esgotamento do período, a fim de se submeter a nova aplicação. — A cada sessenta e dois anos? — gaguejou Rhodan. Sua mente começava a perturbar-se pouco a pouco. — Exatamente, senhor. Mas preciso avisá-lo de que terá de encontrar este planeta com seus próprios recursos, sempre que desejar ou necessitar. Permanecerei indefinidamente à sua disposição, assim como todas as instalações, mas terá que vir me procurar. Quer vir agora, senhor? Seu tempo está passando. Só muito mais tarde é que Rhodan viria a compreender esta observação. *** A dor fora breve, mas aguda. Em comparação com ela, uma grande transição seria inócua. O organismo de Rhodan transformara-se dentro da maciça coluna metálica numa frágil imagem nebulosa. O processo levou mais de uma hora, segundo afirmara Bell

posteriormente. O estranho robô vigiava imóvel os controles de uma máquina que provavelmente nenhum ser mais ou menos normal entenderia. Em seus campos de força fazia-se joguete do organismo desmaterializado de Rhodan. Daria para imaginar aproximadamente a complexíssima série de comandos requerida pelo processo; porém querer compreendê-lo seria impossível. Bastaria ele querer, e se tornaria sem o menor esforço senhor de toda a galáxia. Porém aquilo não pensava nisso. Talvez tivesse sido possuído outrora por semelhante ambição. Agora, no entanto, ele se conservava em segundo plano, sem maiores exigências. Pedia muito pouco! Quem quer que solucionasse as tarefas propostas, recebia uma chance que se prolongava por vinte mil anos. Era uma boa oportunidade, mas parecia ser importante fazer bom uso dela. Rhodan emergiu do fisiotron cansado e abatido como entrara. Sem uma palavra, tornou a se vestir. Seu olhar fitava pensativo, e um tanto desconfiado, o humanóide. — Isto foi mesmo um rejuvenescimento? — indagou, com acentuado tom de suspeita. — Pareceu-me mais uma hiper-transição. — Não lhe foi concedido rejuvenescimento algum, senhor — foi a resposta. — Fui encarregado de conservá-lo conforme está no presente momento. De agora em diante, não envelhecerá mais um só dia. Estacionará na idade que conta atualmente. — Veremos. Como vai o ferido? — Está curado. Pedimos desculpas. Posso lhe solicitar agora que me siga até o programador? As instalações do planeta precisam ser sintonizadas para sua freqüência pessoal. Seu tempo é curto, senhor. Aliás, está em suas mãos conceder a conservação celular a outras pessoas. Pode usar o aparelhamento existente conforme lhe aprouver. Deseja algo em especial? O olhar de Rhodan percorreu as fisionomias repentinamente ansiosas dos presentes. Com amargura percebeu a avidez evidente em cada um. No entanto, era preciso compreendê-los; era a reação mais natural que se poderia esperar. Afinal, quem recusaria a conservação celular? Rhodan percebeu instantaneamente que nunca mais precisaria duvidar de seus colaboradores. Apenas ele tinha o poder de dar-lhes acesso ao fisiotron. — Bell, adiante! — disse Rhodan, secamente. Depois deixou, com o robô de aparência tão humana, o recinto. *** Quando a Stardust-III iniciou o hiper-salto, foi se apagando por trás dela o brilho de um sol que aquilo construíra nos moldes exatos de uma estrela natural. O planeta Peregrino distanciou-se das flamejantes línguas de fogo lançadas pelos propulsores da espaçonave. O choque da transição atingiu-os rudemente. Quando a nave tornou a reentrar no espaço normal, Vega luzia à sua frente. Rhodan contentou-se com uma rápida consulta às telas de imagem. A estrela acalmarase, realmente. Não se percebia mais sinal de uma nova em desenvolvimento. Rhodan passou o comando ao major Nyssen. Ele mantivera sua palavra. A estrela que entrara em erupção no decurso do solucionamento de uma tarefa retornara ao normal. Não havia sentido em procurar interpretação para aquele fato. Era coisa inconcebível, fora do

alcance da mente. — Nada de pouso intermediário em Ferrol — determinou Rhodan, exausto. — Meu Deus, bem que eu gostaria de saber por que o semi-robô insistia tanto em me apressar! As máquinas de lutar arcônidas prestaram continência diante do comandante. Crest e Thora haviam se retirado para suas cabinas. Sabiam, há algumas horas, que a aceitação de Rhodan significava o início de uma nova era. A Humanidade começava a despertar. Não tardaria muito a estender as mãos para as estrelas. Porém Perry Rhodan não pensava nisso enquanto se dirigia à sua cabina. Tudo que queria era ir para casa.

***

Ele ou Aquilo — o ente incomensuravelmente antigo, composto de bilhões de anteriores indivíduos — tomara sua decisão, com a qual precipitara os dois arcônidas no mais profundo desalento. Apenas Perry Rhodan e Bell haviam sido julgados dignos por ele de serem submetidos à conservação celular, como representantes de uma Humanidade jovem e impetuosa. E o restante da Humanidade? Estaria madura para a conquista das estrelas? Ameaça a Vênus, o próximo volume da série Perry Rhodan, responderá a esta pergunta.

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