(P-075)
O UNIVERSO VERMELHO Everton Autor
K. H. SCHEER
Tradução
RICHARD PAUL NETO
Sua arma é a velocidade — A cavalgada do cruzador rápido Califórnia...
Na Terra registra-se o ano 2.043 e, com isso, aproxima-se o momento em que, segundo os matemáticos, deve ter início a estabilização dos dois planos temporais, representados pelo Universo dos druufs e pelo Universo einsteiniano... O estado de alarma é dado na base solar de Fera Cinzenta! A Frota Espacial Terrana assume suas posições de combate. A ordem: penetrar naquele Universo... Vermelho!
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Personagens Principais: = = = = = = =
Atlan — O imortal que fica apavorado com a leviandade dos terranos. Perry Rhodan — Administrador do Império Solar. Primeiro-Tenente Baldur Sikermann — O homem que domina os controles da nave Califórnia. Dr. Sköldson — O médico-chefe que não encontra entre os tripulantes da Califórnia nenhuma vítima para sua injeção. Fellmer Lloyd — O mutante que deixa de procurar o médico por causa de uma placa.
1 Eram ativos como as abelhas e obstinados como um lobo faminto, que se encontra na pista de um alce. Trabalhavam assiduamente, sem demonstrar um fervor excessivo. Os movimentos eram precisos, os cálculos exatos, e cada um sabia de cor onde devia pôr a mão. Faziam seu trabalho numa excelente disposição de ânimo que, por si só, removia as dificuldades e levava as relações entre os cientistas, oficiais e tripulantes a um nível excelente de descontração. O observador estranho poderia até ser levado a acreditar que se tratava de uma grande família. Era um amontoado, uma atividade febril, um retumbar, martelar e chiar que só se via e ouvia num dos grandes estaleiros espaciais. Fiquei profundamente impressionado. Há uma hora o engenheiro-chefe do estaleiro XIV me pedira encarecidamente que abandonasse a cúpula polar superior do novo supercouraçado espacial, a nave Kublai Khan, uma vez que perturbava o serviço de seus colaboradores. Um tanto irritado, saí do recinto. Afinal, havia sido eu quem refletira por dias a fio sobre a melhor maneira de retirar o transmissor fictício do velho couraçado Ganymed e instalá-lo no posto de armamentos da Kublai Khan. Mas quando cheguei à pequena comporta de passageiros, situada mil e duzentos metros abaixo da cúpula, meus ressentimentos já se haviam dissipado. Uma coisa não se poderia negar a esses bárbaros: eram honestos! Era acostumado a submeter meus atos e sentimentos a uma rigorosa autocrítica e, por isso, constatei depois de alguma reflexão que realmente perturbara o trabalho dos homens no estaleiro. O cientista foi feito para indicar determinada rota ao especialista. Um vez concluídos meus estudos, minha presença se tornara dispensável. Os engenheiros da equipe de Michels não precisavam de conselhos para prender o transmissor em suas bases e montar as instalações de força. E foi assim que ainda estava sentado na mesma caixa de plástico, que trinta minutos antes escolhera para descansar. Dali via perfeitamente os flancos abaulados do gigante esférico de mil e quinhentos metros de diâmetro, ao qual fora dado o nome Kublai Khan. Ao que parecia, Perry Rhodan fazia uma ótima idéia do grande chefe mongol, que chegara a criar um império mundial. Com um sorriso no rosto, deixei que meus pensamentos vagassem pelo passado. Conhecera muito bem o tal do Khan, mas Rhodan não sabia disso. Naquela época nem sonhara com a possibilidade de que um dia ajudaria a equipar uma gigantesca nave que traria seu nome. Por certo, os terranos estavam muito ligados à sua história. Se dependesse dos homens que trabalhavam no estaleiro, teria de reuni-los ao menos quatro vezes por semana para contar histórias de minha longa vida. Mas nem pensava em aceder a esse desejo, pois não me esquecera dos sofrimentos que nessas oportunidades me eram impostos por meu segundo cérebro. Assim que o setor de memória funcionasse a plena potência, o fluxo normal dos meus processos normais estaria interrompido.
O ativador celular demonstrou sua presença por uma pulsação quase imperceptível. Um tanto surpreso, franzi a testa. Esse aparelho misterioso, do tamanho de um ovo, começava a funcionar quando meus tecidos celulares precisavam de certos estímulos. Estava apenas esgotado? Ou será que, mais uma vez, meu organismo passava por um processo que os biólogos terranos identificariam pela expressão “regeneração tempestiva de células que já deviam estar mortas?” Era provável que jamais conseguiria decifrar o mistério do micro-ativador, que há uns dez mil anos me conservava a juventude e o vigor. O único ser, que poderia esclarecer-me a esse respeito, estava “desaparecido” desde o momento em que ocorrera o desastre com o planeta artificial Peregrino. Aquilo acreditara poder descansar por um instante de sua dimensão temporal. Eu tinha uma idéia bem nítida daquilo que uma inteligência imaterial deveria entender por um instante. Talvez esse instante demorasse mais de cinqüenta anos!... A coluna de apoio mais próxima da Kublai Khan ficava a uns cem metros de distância. Aquela construção gigantesca, com o diâmetro de uma torre, obstruía a visão para o abismo tenebroso que se abria embaixo da calota polar. Homens e materiais desapareciam em quantidades inacreditáveis por lá. Provavelmente haviam passado pela mesma experiência que eu. Deveriam ter levado semanas ou até meses para vencer a claustrofobia. Afinal, não era nenhuma brincadeira ter alguns milhões de toneladas de aço de Árcon bem em cima da cabeça da gente. Bastaria que uma das colunas de apoio vergasse, ou afundasse no solo de concreto, para que houvesse um acidente de conseqüências gravíssimas. Assustei-me ao ver subitamente uma sombra. Alguém se aproximara por trás. No último instante, o setor lógico de minha mente me avisou de que por aqui não havia inimigos ou atacantes. Meu corpo retesado descontraiu-se. — Olá! — disse com uma lentidão proposital. — Será que viu um fantasma? A gente não deve aproximar-se que nem um felino de uma pessoa nervosa. Virei a cabeça. O engenheiro Michels, chefe do estaleiro XIV, soltou uma estrondosa gargalhada. Seu cabelo louro-claro saía sob o boné, e o macacão dava a impressão de ter sido posto de molho num recipiente com óleo queimado. Fungou ao levantar o pé e colocá-lo sobre a caixa de plástico alongada. Enxugou o suor que lhe corria pela testa. — Que vida de cachorro, não é? — observou. — Querem que a gente faça tanta coisa. — É verdade — respondi ao acaso. Estava tramando alguma coisa; eu sentia. Às vezes, esses terranos desenvolviam um senso de humor capaz de levar um arcônida à beira da loucura. E essa característica sempre me surpreendia, embora já vivesse há tanto tempo entre os homens. Mais cinco aproximaram-se. Atrás deles, uma plataforma antigravitacional de carga planou silenciosamente. Um deles dirigia o veículo com gestos descuidados. Mantinha o pequeno aparelho de teledireção na mão como se fosse um brinquedo. Assim que me viram, os recém-chegados começaram a rir, como que a um comando. Com um leve mal-estar perguntei-me qual poderia ser o motivo de tamanha alegria. Mais uma vez, lamentei não ser um telepata. Michels estava de pé a meu lado e me proporcionava uma sombra agradável. Faltava pouco para o meio-dia. O céu azul e límpido do antigo deserto de Gobi estendiase acima de minha cabeça.
Do lugar em que me encontrava, não via os arranha-céus da cidade de Terrânia. A silhueta da Kublai Khan era imensa e enchia todo o campo de visão. — Que coisa! — disse um tenente muito jovem do Serviço de Segurança. Era um dos cinco membros do comando de transporte. Fitei-o prolongadamente e comecei a bater nervosamente com as solas grossas das botas contra a caixa de plástico. Depois de algum tempo, Michels disse em voz baixa: — Almirante, o senhor permite que o informe de que está sentado bem em cima do detonador de uma bomba catalítica de quinhentos megatons? Se Sua Excelência quisesse ter a bondade de abandonar esse local tão perigoso para o descanso... Quando dei conta de mim, já estava correndo. Ouvi as gargalhadas estrondosas dos homens atrás de mim. Essa gente nem parecia ter nervos! Agora já compreendia por que aqueles oficiais armados me olharam de forma tão estranha, quando pouco antes sentei naquela maldita caixa. E esses rapazes nem pensaram em avisar-me de que estava cometendo um engano apavorante. Ainda cabia outra consideração. Como é que se coloca um recipiente de plástico com um conteúdo tão perigoso em um ponto qualquer do estaleiro? “É a fase final do aprovisionamento, seu idiota!”, foi a mensagem lacônica transmitida por meu segundo cérebro. De qualquer maneira só parei de correr quando aquela gente maluca não me via mais. Ofegante, encostei-me contra o quadro de comando de um aparelho robotizado de controle de material, que fazia mais uma verificação de todas as mercadorias entregues, a fim de detectar eventuais erros de fabricação. Dali a poucos instantes, fui expulso mais uma vez. Cheguei à conclusão de que o estaleiro realmente não era meu lugar. Só vira uma aglomeração como esta durante a grande guerra, há dez mil anos. Naquela época, meu povo lutava pela sobrevivência das raças humanóides. O inimigo encarniçado foram os respiradores de metano do setor das nebulosas da Via Láctea. Isso já fazia muito tempo. Hoje, os problemas eram outros. Mais uma vez, a Galáxia estava tumultuada, mas desta vez não se tratava de nenhum ataque de seres que respiravam gases venenosos. Os seres vindos de outra dimensão temporal foram designados por algum tempo como os uuns. Além de Rhodan, pouca gente conhecia a origem desse nome. Certos animais encontrados assim que se penetrou pela primeira vez na outra dimensão temporal emitiram sons abafados que soavam como “uum”. No mesmo momento, um tenente leviano da Frota Solar teve a denominação na ponta da língua. Neste ponto os humanos costumavam ser muito rápidos. Mais tarde, por intermédio de um robô aprisionado, ficamos informados que os verdadeiros donos da outra dimensão eram os druufs. Estava sacudindo os últimos resquícios de contrariedade e pretendia chamar meu carro voador, quando o pequeno videofone de pulso emitiu o sinal de chamada. O General Deringhouse — um dos colaboradores mais antigos de Rhodan, que se conservara jovem em virtude da ducha celular aplicada no planeta Peregrino — surgiu na minúscula tela. Em seu rosto notava-se uma estranha indiferença. — Mensagem do chefe, Sir — disse em tom lacônico. — Poderia comparecer imediatamente ao quartel-general do Serviço de Defesa? Pode? O.K. Muito obrigado. Perplexo, fitei a tela que se apagava. Deringhouse desligara imediatamente. Fora um convite muito estranho.
Sabia que Rhodan se encontrava no sistema de Mirta, com grandes contingentes da frota solar. Nos últimos dez meses, uma base da frota solar fora instalada no planeta Fera Cinzenta, que era o sétimo mundo do sistema que girava em torno do sol distante. Sabíamos perfeitamente que, dentro em breve, ocorreria uma invasão temporal dos druufs nas proximidades dessa estrela, mas desta vez não pretendíamos aguardar de braços cruzados até que o desastre chegasse. Já sabia muito bem qual era o aspecto dos mundos despovoados da Via Láctea... Neles acontecera aquilo que já vira dez mil anos antes, quando exercia as funções de comandante de uma esquadrilha arcônida. Dali a dez minutos, meu veículo pousou na cobertura do grande edifício. Um robusto oficial com cabelos louros cortados à escovinha e olhos azuis e francos me foi apresentado após a conferência. Durante esta, os dirigentes do Império Solar me informaram em palavras lacônicas que, nas proximidades do sistema de Marte, foram avistadas gigantescas zonas de superposição. O homem, que acabara de conhecer, era um coronel chamado Marcus Everson. Um olhar para os distintivos deixou-me ciente de que tinha diante de mim experimentado oficial das forças espaciais, consagrado em inúmeras missões. — Muito prazer, almirante — disse Everson. — Neste momento, o Coronel Everson é investido no comando da Kublai Khan — disse Deringhouse em tom apressado. — Peça que Marcus lhe conte o que aconteceu durante o vôo de regresso do planeta Epan. E olhe que sua tarefa consistia unicamente em trazer o agente cósmico Goldstein. Everson sorriu. — Por pouco um homem que usava o nome de Mataal e alegava ser um nativo do planeta Epan não se apodera de minha nave. Conhece alguma raça galáctica cujos membros se pareçam com grandes morcegos? São dotados da capacidade de realizar o reagrupamento das moléculas. Esse nosso “amigo” conseguiu pôr fora de ação um por um dos meus tripulantes. Mas acabou cometendo um erro fatal. Acho que é só isto... Everson fez um suspense, mas manteve-se calado. Parecia pensativo. Imaginei perfeitamente o que deveria ter acontecido a bordo da pequena nave. — Michels comunica que a instalação do transmissor fictício já foi concluída — disse Deringhouse. — Pedimos-lhe que decole imediatamente com a Kublai Khan. Neste momento, a nave está sendo levada para fora do estaleiro. Acho que ficará satisfeito com Everson no comando, Atlan. Conhece nossos supergigantes. Bastou lançar-lhe um olhar para convencer-me em definitivo de que ficaria satisfeito. Everson acompanhara a ascenção da antiga Terceira Potência, dirigida por Perry Rhodan. Naquele tempo, eu ainda era de opinião que deveria fazer alguma coisa para dar uma lição à Humanidade. Os tempos estavam mudados. Os três mundos de Árcon, onde ficava minha distante terra natal, estavam sendo governados por um supercomputador, cuja programação evidentemente não era adequada ao exercício de uma política galáctica racional e humana. Dali a alguns minutos, quando conversava com o coronel sobre as possibilidades de utilização da Kublai Khan, recebemos uma mensagem de rádio vinda das profundezas da Via Láctea. O impulso condensado e codificado vinha do setor de Mirta, situado a 6.562 anos-luz da Terra. Assim que a mensagem foi decifrada, vi Deringhouse empalidecer. Estendeu-me a fita de plástico sem dizer uma palavra e com uma expressão de insegurança no rosto.
Ocorreu caso Potomaque. Estado de emergência a partir de 1o de agosto de 2.043, 24 horas. Leis de exceção em vigor a partir de hoje. Impedir decolagem frota mercante, segundo instrução A-3, até segunda ordem. Atlan voltará à base. Ass. Rhodan, chefe da Frota Espacial e Administrador do Império Solar. Levei alguns segundos para digerir a informação. Então chegara a hora! Nossos cálculos estatísticos sobre o grau de probabilidade de superposição total no sistema de Mirta revelaram-se corretos. Coloquei a fita de plástico sobre a mesa e fitei um por um os oficiais presentes. As leis de exceção trariam certas conseqüências desagradáveis para os habitantes do planeta Terra. Ainda haveria numerosas indagações, que, por questões de sigilo oficial, não poderiam obter respostas verídicas. Em meio a tais reflexões, disse lentamente: — Então é o caso Potomaque? Isso significa que as frentes se estabilizam. Senhores, torna-se necessário que tomem certas providências destinadas a evitar que, em amplos círculos da população, passem a ser considerados como instrumentos dóceis de um grande ditador. Divirta-se, Deringhouse! Deringhouse olhou-me com certa insegurança, mas logo voltou a controlar-se. — Conseguiremos — disse com a voz tranqüila. — Isso já era esperado. Faça o favor de decolar imediatamente, almirante. No sistema de Mirta, precisarão mais do senhor do que em Terrânia. Por aqui saberemos manejar as coisas. Dali a vinte minutos, desci do meu planador aéreo. As paredes gigantescas do supercouraçado ergueram-se à minha frente. A Kublai Khan estava pronta para decolar. O imediato do gigante espacial apresentou-se na comporta inferior. Fui recebido com o cerimonial pomposo, introduzido a pedido de Rhodan. Talvez isso não fosse tão errado, pois ajudava a disciplina. Na antiga frota arcônida, vigoravam disposições semelhantes. Observei atentamente as unidades completamente equipadas da esquadrilha de defesa interplanetária, que se encontravam sob o comando do próprio Deringhouse. Entre as naves que permaneceriam por ali, para defender o sistema solar, encontravam-se as mais velhas das supergigantes, a Titan e a General Pounder. Além disso, havia numerosos cruzadores da classe Sol e várias unidades leves e pesadas das novas séries. O que a Terra conseguira criar no espaço relativamente curto de setenta anos não podia ser desprezado. Ouvi o ruído surdo de alguns cruzadores da classe Estado que decolavam. Antes que fôssemos atingidos pelas ondas cálidas de compressão, já me encontrava no elevador antigravitacional da comporta inferior. Acima de minha cabeça, abriu-se o ventre da Kublai Khan, um veículo espacial dotado das conquistas mais recentes da tecnologia. Marcus Everson, o comandante, fez continência, encostando a mão ao boné de serviço. Na grande sala de comando da supernave reinava a atmosfera excitante, formada por uma atividade aparentemente inútil, que me fascinava toda vez que penetrava ali. As informações vindas da sala de máquinas sucederam-se em rápida seqüência. Bem abaixo de nós, os reatores monstruosos das numerosas unidades energéticas começaram a rumorejar. Era um ruído capaz de agitar todos os nervos de um homem da minha estatura mental. Fascinado, fitei as grandes telas da galeria panorâmica. Por enquanto as instalações do maior espaçoporto terrano brilhavam nas superfícies tridimensionais, mas, instantes depois, o quadro modificou-se por completo. O único sinal da decolagem da Kublai Khan era o trovejar potente das unidades propulsoras, que funcionavam a dois por cento de sua potência máxima. O empuxo foi
suficiente para fazer a esfera de mil e quinhentos metros de diâmetro penetrar no céu azul do meio-dia. Sabia que no espaçoporto todos se haviam abrigado. As ondas de compressão produzidas pelas grandes naves tinham uma triste fama, muito embora todo comandante fosse bastante cauteloso para levantar vôo com o mínimo possível de potência. E com uma nave do tamanho da Kublai Khan, tal cautela teria de ser redobrada. Por isso mesmo, os supercouraçados costumavam decolar sempre das pistas mais afastadas. Os gigantescos mecanismos de absorção de pressão neutralizaram as tremendas energias geradas pela força da inércia. Nem sequer senti os efeitos da lei natural que quase causara a morte de Perry Rhodan, por ocasião do primeiro vôo tripulado à Lua. Apoiada sobre colunas de impulso, a gigantesca bola de aço corria, leve e facilmente, em direção a seu elemento: o espaço livre. Suspirei aliviado e recostei-me na poltrona articulada. Então chegara a hora! Os seres que destruíram minha esquadrilha, dez mil anos atrás, receberiam uma amarga lição. Minha luta não fora em vão. Durante a ligeira seqüência de idéias, meu setor de memória começou a funcionar imediatamente. Até parecia que meu segundo cérebro apenas esperava um impulso da parte consciente de minha mente, para dar início a mais uma dolorosa narração. Com um tremendo esforço, procurei vencer a crise que se iniciava. No momento seria um absurdo relatar coisas que se haviam passado há tanto tempo. O velho Império Arcônida deixara de existir na sua forma originária. Minhas energias pertenciam aos habitantes da Terra, daquela mesma Terra que ainda chegara a conhecer sob outra conformação geológica. O rugido dos dezoito conjuntos propulsores cresceu. Depois de cruzar a órbita da Lua, a Kublai Khan aumentou a velocidade. Mais uma vez, não senti a pressão provocada pela aceleração. Os novos aparelhos de absorção eram excelentes. Vi um sorriso nos lábios de Marcus Everson. Aquele homem inspirava confiança. Chegava a apresentar certa semelhança com meu antigo mestre, o Capitão Tarts, comandante da Tosoma.
2 Everson era mesmo um sujeito maluco. Não havia nenhuma necessidade de vencer toda essa distância numa única transição. Vencemos num único salto a distância apreciável de 6.562 anos-luz, fato que provocou uma dor de rematerialização bastante intensa. Uma viagem pelo hiperespaço da quinta dimensão, que pode ser compreendida em termos subjetivos, mas nunca chegou a ser inteiramente explicada em termos práticos, muitas vezes deixava as pessoas fortes totalmente arrasadas, enquanto conferia uma sensação de força a indivíduos aparentemente fracos. Ninguém sabia prever a reação de cada indivíduo durante o processo de desmaterialização. Senti-me totalmente abalado, física e mentalmente esgotado. Um engenheiro nervoso procurava controlar o funcionamento do novo neutralizador de vibrações. Tratava-se de um aparelho criado para absorver as vibrações e impedir a localização goniométrica da nave. Lancei um olhar para a tela diagramática dos controles automáticos. A linha verde e recortada era perfeita e uniforme, o que provava que Everson fora bem sucedido. — Isso poderia ter acabado mal, não poderia? — perguntou. A resposta do engenheiro foi proferida em voz tão baixa que ninguém conseguiu entendê-la. Mas, ao que parecia, não dissera nenhuma gentileza. Everson riu numa atitude de indiferença. Mais uma vez, tive oportunidade de constatar que o intercâmbio entre superiores e subordinados era franco e descontraído. Com um gemido, ergui-me da poltrona. Naquele instante viam-se cinco planetas nas telas da galeria panorâmica. Bem à nossa frente, estava a bola incandescente de um estranho sol que, segundo os dados apurados, só poderia ser a estrela Mirta. Cambaleei em direção aos painéis de controle e acomodei-me na poltrona do substituto do comandante. Antes que desse conta de mim, a Kublai Khan estava pousando. Conhecia o planeta Fera Cinzenta por causa de uma tarefa destinada a capturar traidores fugidos. Por pouco, na ocasião, o computador-regente de Árcon não teve conhecimento da posição galáctica da Terra. Graças à intervenção de um homem arrojado, conseguimos impedir a provável destruição dos mundos solares. Assim que penetramos nas camadas mais densas da atmosfera e ouvimos o uivar produzido pelo deslocamento das massas de ar, recebemos também as primeiras mensagens de rádio emitidas, ao que parece, por uma potente estação instalada na superfície do planeta. A mensagem foi transmitida em ondas ultracurtas comuns, que se deslocavam à velocidade da luz, o que era sinal de que já se tornava possível dispensar o hiper-rádio, que facilitava a localização goniométrica. O rosto de Rhodan surgiu numa das telas. Levantou a mão a título de cumprimento. Não gostei de seu sorriso. Parecia uma contração rotineira e indiferente dos lábios, onde não havia a menor cordialidade. Seu rosto estreito tornara-se ainda mais magro. Fazia meses que não o via, já que a tarefa de instalar o precioso transmissor fictício no interior da Kublai Khan me mantivera totalmente ocupado.
— Sejam bem-vindos — disse Rhodan. Tive a impressão de que seus pensamentos estavam num lugar muito diferente. — Pouse na pista três. A linha de aproximação lhe será indicada. Peço evitar qualquer demonstração desnecessária de “fogos de artifício”. As ondas de impulsos também emitem certa dose de radiações de choque, que, conforme as circunstâncias, podem ser detectadas pelos instrumentos de medição da quinta dimensão. A observação deixou-me abalado. Desde quando existia esse risco de localização goniométrica? — Mas isso só acontece quando o goniômetro se encontra a uma distância inferior a quatro horas-luz — respondi com a voz tensa. O sorriso que Rhodan passou a exibir parecia triste. — É o que você diz, arcônida. É provável que algumas naves inimigas se encontrem na periferia deste sistema estelar. Por isso peço que, na medida do possível, durante o pouso, sejam utilizados apenas os campos antigravitacionais. É só. Daqui a pouco nos veremos. Desligo. A tela apagou-se. Ouvi Marcus Everson soltar um assobio estridente. Seu rosto largo perdera a expressão de auto-satisfação. — O senhor compreende isto? — perguntou em tom indiferente. A mão direita comprimia a chave de sistema de intercomunicação. A troca de mensagens com a central energética não me permitiu responder. — Todas as unidades ativarão os campos antigravitacionais — disse o comandante com a voz calma. — O chefe não que saber de ondas de impulsos. Peço confirmação. Marcus repetiu a pergunta. Contemplei as telas que exibiam as paisagens já conhecidas do antigo planeta colonial. Rhodan mandara transformá-lo numa base avançada da Frota Espacial. O custo chegou a aproximadamente setenta bilhões de solares, que era a unidade monetária do pequeno reino estelar. No momento em que as instalações surpreendentemente extensas do espaçoporto surgiram embaixo de nós, e a Kublai Khan foi reduzindo seu movimento pendular sob a ação dos campos antigravitacionais, compreendi a ordem de Perry. — O senhor acha possível que o computador-regente não tenha percebido nada do surgimento das frentes de superposição? — perguntei em tom apreensivo. — Não? Pois bem; aí está a solução. Pelo que conheço da máquina, a mesma, graças à sua programação unilateral e à “falta de idéias”, mais uma vez recorreu ao velho meio já consagrado. Enviou uma frota gigantesca que deverá atacar e procurar forçar o novo inimigo a submeter-se ao domínio de Árcon. “O cérebro positrônico nunca compreenderá que os tempos mudaram. Por sua própria natureza mecânica é totalmente incapaz de compreender a existência de outra dimensão temporal. Face a isso, temos de contar com o aparecimento de algumas naves de reconhecimento. É claro que Rhodan não está interessado em que a base de Fera Cinzenta seja descoberta logo após sua instalação. O senhor pode imaginar perfeitamente o que isso significa.” Everson não disse mais nada. Dali a alguns minutos, os mecanismos de propulsão situados na protuberância equatorial da Kublai Khan começaram a trovejar. O ruído doeu em nossos ouvidos. Os homens da sala de comando lançaram-nos um olhar apavorado. — Desliguem! Que diabo! — gritou Everson.
Já estava tudo terminado. As placas de apoio das colunas hidráulicas tocaram o pavimento de plástico blindado do novo espaçoporto. O rumorejar cessou. Aguardamos com a respiração contida os últimos ruídos. — Isso ainda pode ficar divertido — disse alguém em tom apreensivo. Olhei para trás. As palavras haviam sido ditas por um jovem oficial que ostentava as insígnias da recém-criada Academia Lunar. Caminhei lentamente em direção à escotilha da sala de comando. Sabia que Rhodan já nos esperava. O procedimento de um cérebro eletrônico-positrônico, dotado de controle individual semi-orgânico, só pode ser previsto por alguém que tenha informações razoavelmente exatas sobre a respectiva programação. Não sabia o que meus antepassados colocaram há cerca de cinco mil anos nos setores de armazenamento de dados do gigantesco computador. Mas uma coisa era certa: o computador-regente achava-se num estado de enorme confusão. Ao que parecia, seu mecanismo se encontrava em desordem, motivo por que ordenava medidas que poderiam ser consideradas normais numa guerra colonial comum, travada entre diversas inteligências da Via Láctea. Mas parecia totalmente errado aplicar os mesmos princípios numa luta contra inteligências que nem sequer provinham do Universo einsteiniano. *** Encontrávamo-nos a bordo do novo cruzador Califórnia, a menos de dez anos-luz do planeta Fera Cinzenta. Tratava-se do sétimo mundo do sol Mirta, e dessa forma nem sequer havíamos atingido os limites do gigantesco sistema. Ainda tínhamos pela frente as órbitas dos planetas exteriores. Eram gigantescos mundos gasosos, frios e desabitados, que não pareciam preencher a menor finalidade. Um total de quarenta e nove corpos celestes gravitavam em torno de Mirta, mas apenas dois deles eram habitados. Às dez horas-luz foram vencidas em queda livre, independentemente da utilização dos propulsores. Pouco depois da decolagem, alguém me mostrara qual era a capacidade de aceleração dos novos cruzadores da classe Estado. Em pleno espaço interplanetário do sol Mirta, realizamos uma emocionante manobra de frenagem. A desaceleração chegara a mil quilômetros por segundo ao quadrado. A Califórnia era uma nave de reconhecimento ultra-rápida, cuja blindagem e armamento haviam sido grandemente sacrificados em virtude dos propulsores superdimensionados. Ao que parecia, na Califórnia fora aplicado o velho princípio dos construtores de unidades navais: mais rápida que as naves mais potentes, e mais potente que as unidades mais velozes. Já examinara as salas de máquinas do veículo espacial. A rigor, a nave poderia ser considerada uma bomba voadora, ou um gigantesco mecanismo de propulsão fracamente protegido, que bastaria perfeitamente para tanger um gigantesco couraçado pelo espaço. No entanto, a Califórnia representava mais alguma coisa... Suas finalidades eram perfeitamente definidas e, por isso mesmo, limitadas. Poderia surgir com uma rapidez espantosa, atacar e voltar a desaparecer. Só o futuro mostraria se deixara atrás de si danos de monta. Senti-me bastante impressionado pela nave esférica de cem metros de diâmetro. Ela transmitia uma sensação de segurança, desde que na ponte de comando se encontrasse um comandante que não fizesse questão de dar provas
de seu arrojado heroísmo. Nesse caso, os campos defensivos bastante débeis do cruzador não resistiriam por muito tempo. Estávamos na espaçosa sala de comando, cujos instrumentos de localização eram outro sinal de poderio do cruzador. Jamais vira tipos mais eficientes. As telas da galeria panorâmica, cujas dimensões pareciam excessivas para um cruzador, mostravam uma série de ocorrências que quase me deixou sem fôlego. Nelas fervilhava e brilhava o poderio da Via Láctea. Meu segundo cérebro emitiu pulsações fortes e dolorosas, pois manifestava a tendência de levar-me a contar histórias. Começava a ser tomado por uma lembrança muito viva dos acontecimentos desenrolados durante a chamada guerra do metano, travada há dez mil anos da contagem de tempo terrana. Tive de esforçar-me ao máximo para resistir à tendência. Não queria contar, mas realizar uma experiência consciente. Reginald Bell, o representante de Rhodan, encostara o corpo na poltrona do comandante. Pitava as telas com os olhos semicerrados. Essas telas funcionavam segundo o princípio dos impulsos de velocidade superior à da luz e da interpretação dos ecos. Não podíamos ver as naves que se encontravam a vinte anos-luz de distância como se estivessem à nossa frente. No entanto, o tamanho e o formato das manchas verdes e luminosas permitiam uma conclusão sobre o número de naves espaciais de todos os tipos, reunidas na área. Não havia ninguém a bordo que não fosse capaz de conceber um quadro nítido com base nos ecos. — São pelo menos mil unidades da classe Stardust — disse Bell. — É inconcebível! O computador deve ter lançado mão de tudo que se encontrava nos hangares subterrâneos de Árcon III, não é? Olhei o homem gordo e baixo com um sorriso irônico no rosto. Bell tinha uma idéia errônea do poderio do Grande Império. — O senhor está enganado! — observei sem o menor triunfo na voz. Rhodan virou seu rosto expressivo. — Está enganado? Confirmei com um gesto triste. — Não se deve subestimar a capacidade de um império estelar que possui mais de cem mil planetas industriais. Em todos eles há estaleiros espaciais, e em todos os estaleiros estão sendo construídas naves. É verdade que se constrói segundo um esquema preestabelecido, mas sempre se constrói. Se visse cem mil naves à minha frente, não me espantaria nem um pouco. Rhodan lançou-me um olhar de incredulidade, enquanto Bell deu uma risada angustiosa. — Que loucura! — afirmou. Sabia mais que isso, mas preferi ficar calado. Seria inútil tentar explicar aos terranos até onde ia a potencialidade do Império. A central de localização deu o sinal de chamada. John Marshall, chefe do poderoso Exército de Mutantes, estava no aparelho. — São cerca de trinta mil unidades de diversos tamanhos — anunciou. — E o que está havendo não são simples combates, mas verdadeiras batalhas que estão sendo travadas com uma fúria inacreditável. Nunca vi ondas de choque como estas. Os dedos de Rhodan começaram a brincar nervosamente com as teclas do controle de fogo. A Califórnia era uma nave relativamente pequena, e por isso não possuía uma sala especial para o controle de armamentos. — Trinta mil, não é? — repetiu em tom automático. — O que acha disso?
Levei alguns segundos para compreender que essas palavras haviam sido dirigidas a mim. Olhava fixamente para os rastreadores estruturais. Nas telas diagramáticas, via-se um chamejar constante, mas este não provinha exclusivamente das inúmeras transições realizadas pelas estranhas naves. Mantendo-se constantemente visível, a suave linha ondulante indicava algo que se parecia com um abalo estrutural. No entanto, não se tratava das ondas de choque produzidas pelos abalos energéticos de plano superior, mas da superposição ameaçadora de dois planos espaço-temporais quase incompreensíveis. Já dispúnhamos da interpretação dos dados. Não havia a menor dúvida de que desta vez não se tratava de uma frente relativista, mas de uma chamada zona de descarga, que se mantinha estável há 36 horas, tempo-padrão. — Quero saber sua opinião — disse Rhodan em tom obstinado. Só se viam vagamente os contornos dos rostos dos homens que nos cercavam. Havíamos desligado todas as luzes, para facilitar a observação das hiperimagens. — Minha opinião? — disse com a voz embargada. — Bem, minha opinião é a seguinte: vocês já conhecem minhas experiências passadas. Acontece que os últimos cálculos demonstram que a dimensão temporal dos druufs, que mantém uma relação de um para setenta e dois mil com a nossa, não admite a idéia de passado, no sentido em que acabei de empregar o termo. Desde o momento em que travamos a batalha em defesa do sistema solar terrano, para essa gente não se passaram mais de dois meses. Formulo estas observações preliminares para deixar clara nossa situação. Rhodan parecia tranqüilo. Voltara a colocar uma máscara: a máscara do autodomínio absoluto. — Como vão continuar as coisas? — O tempo das frentes relativistas com a característica típica do rapto temporal já passou. Naquele tempo, numa situação semelhante, vi formações energéticas com o aspecto de funil, em pleno espaço aparentemente vazio. Tratava-se de zonas de descarga, por meio das quais se realizava a compensação da diferença do conteúdo energético dos dois Universos. Os funis correspondiam a condutores de primeira qualidade, que estabeleciam o equilíbrio das forças. Tratava-se de um fenômeno natural, que não era dirigido por seres pensantes. Acontece que, no caso presente, as coisas parecem bem piores. Fiquei calado por um instante, a fim de observar mais detidamente o fenômeno da curva representativa das ondas de choque, que quase estava tomando a configuração de uma reta. — Se considerarmos a diferença de um para setenta e dois mil nas dimensões temporais e o deslocamento de massa que se verifica nos pontos de concentração materialmente estáveis, situados no plano dos druufs, chegaremos à conclusão de que os fenômenos já verificados foram apenas um precursor daquilo que vemos agora. Infelizmente ainda não podemos realizar a observação ótica do fenômeno, uma vez que a luz comum ainda não teve tempo de percorrer a distância de vinte anos-luz. Se isso já tivesse acontecido, vocês veriam as aberturas de funis luminosos vermelhos, que se confundem umas com as outras até assumirem progressivamente a forma de uma fenda longa e relativamente estreita no negrume do Universo einsteiniano. “É esta a nova zona de descarga, que se mantém estável, e que, segundo nosso cálculo de tempo inteiramente arbitrário, teve início há cerca de dez mil anos. A esta altura, já devemos ter compreendido que essa contagem de tempo não tem validade para outros mundos. Ao que parece, bárbaro, você poderá dispensar daqui em diante a
complicada aparelhagem destinada à criação de um campo de refração. Daqui em diante você poderá atravessar livremente essa zona, desde que eles o deixem passar.” Não pude deixar de proferir a observação sarcástica contida na frase final, embora não tivesse a menor intenção de ofender meus amigos. E Rhodan não se sentiu ofendido. Sua resposta foi proferida em tom irônico. — Muito obrigado pela informação, almirante. Já havíamos descoberto isso. Quando pousarmos, encontraremos as primeiras sondas robotizadas, que foram enviadas a estas áreas antes de sua chegada. Elas nos permitirão a obtenção de imagens óticas normais. A finalidade deste vôo consistiu exclusivamente em verificar quais as medidas tomadas pelo computador-regente face ao perigo repentino. É claro que enviou uma frota gigantesca. Não conhece outras alternativas. Engoli minha raiva e lancei um olhar furioso para o mutante Wuriu Sengu, que acabara de soltar uma risada de deboche. — Quais são as chances que você vê, bárbaro? — perguntei em tom irônico. Rhodan bocejou, cobrindo a boca com a mão. — Eu? Levantou devagar e chamou a sala de máquinas. Dali a alguns instantes, os propulsores da Califórnia rugiram e a nave aumentou a velocidade. Essa máquina voadora de alta potência era uma construção tão ousada que mesmo um engenheiro arrojado a consideraria maluca. — Olharemos cautelosamente por aí, seremos amigos de todo mundo e apertaremos as mãos de todos, desde que os seres que encontrarmos pela frente tenham mãos. Quanto a você, meu caro, será um dos tripulantes da nave comandada por mim. Passaremos pela fenda do espaço einsteiniano e penetraremos no plano dos druufs. O quê? Você disse alguma coisa? Não; não dissera nada. Rhodan sorriu para mim, endireitou a fivela do cinto com as armas e desapareceu na sala de computação. Mais uma vez, perguntei-me por que esse homem se tornara tão importante. Naquele momento, tinha o aspecto de um aventureiro arrojado e dotado dos reduzidos dotes mentais de um cavaleiro da corte do Rei Artur. Mas logo refleti melhor. Perry Rhodan, um antigo major e piloto espacial da legendária Força Espacial dos Estados Unidos, no fundo, era um jogador genial, que sabia lançar seus trunfos com verdadeira mestria. E, se por acaso não os possuísse, começava a blefar. Naquele instante, não tinha nenhum ás, mas assim mesmo teve a audácia de pôr na mesa a carta denominada “domínio da Via Láctea”. Também me levantei da minha poltrona, lancei mais um olhar para as superfícies luminosas das telas de observação ótica dos setores adjacentes à nave e, dirigindo-me a Bell, disse: — O senhor realmente acreditará que, com alguns supercouraçados e cruzadores, conseguirá subjugar grandes reinos estelares? Antes de proferir sua resposta franca, passou as mãos pelos cabelos ruivos e curtos: — Não me leve a mal, meu velho, mas o senhor está esclerosado. Foi a resposta que deu a uma pergunta séria. Gucky, o rato gigante com cauda de castor, soltou alguns pios fortes. Com uma expressão de perplexidade, fitei o dente roedor colocado à mostra e senti um calafrio pela espinha. Não foi por causa do dente. Não foi mesmo! Se pensava nos intentos de Rhodan e na resposta que acabara de receber de seu substituto, não me sentia muito à vontade. O que estariam pensando estes selvagens?
Estive a ponto de lembrar-lhes que, sem o auxílio de meu venerável povo, a esse tempo teriam criado, quando muito, um ridículo reator termal para propulsionar suas naves. Talvez tivessem mesmo seguido a pista da propulsão com base em fótons. Mas era absolutamente certo que não teriam a menor idéia de um conjunto propulsor capaz de imprimir à nave velocidade superior à da luz. Preferi não dizer nada e dirigi-me à comporta. Quer dizer que eu era para Bell um indivíduo esclerosado. Eu lhes mostraria que um almirante da frota arcônida sabe lidar com as situações mais difíceis.
3 A nova base espacial de Mirta VII parecia um formigueiro! Os terranos, que num assomo de megalomania haviam dado a seu minúsculo sistema planetário o nome de Império Solar, estavam prestes a, num atrevimento por vezes proposital, fazer frente à maior potência da Via Láctea. Chegavam ao ponto de instalar uma base praticamente ao alcance dos canhões de uma grande frota espacial. Esperavam que não fosse descoberta. As intenções de Rhodan eram evidentes. Queria ser amigo de todo mundo, estender a mão a todos, a fim de transformar-se no poder que agiria atrás dos bastidores. Guiar-seia pelo velho princípio de que, quando dois brigam, um terceiro fica feliz. Ninguém poderia levar a mal que, ao avaliar todos esses fatores, me sentisse martirizado pelas dúvidas. Se desta vez Rhodan não estava arriscando demais, não queria chamar-me Atlan. Mesmo ele, que costumava raciocinar com tamanha precisão, ultimamente dera para subestimar o computador-regente de Árcon. E, o que me deixava mais nervoso, era o fato de que os outros seres da Galáxia eram considerados, por assim dizer, como fatores desprezíveis. A autoconfiança entre aqueles seres era um mal que tinha sua origem única e exclusivamente na existência dos mutantes. Confiavam demais nessa gente. Esqueciamse de que outras inteligências também são capazes de aprender com a experiência. Face a todos esses dados, deduzi que os homens, que haviam se elevado tecnologicamente, ainda não tinham atingido a verdadeira maturidade. Os primeiros êxitos registrados por Rhodan foram o resultado de um efeito-surpresa quase infinito. Sentia que um golpe doloroso estava iminente. Sem dúvida era uma loucura rematada pretender, com alguns poucos couraçados e cruzadores, fazer frente a um Império, cuja indústria funcionava há milênios em função das guerras galácticas. Houve outros homens que fizeram algumas advertências. Rhodan reconhecia a validade dos meus argumentos, mas acreditava que saberia enfrentar os perigos que sem dúvida haviam de surgir. Quem dera que ao menos não tivesse instalado sua base justamente no planeta Fera Cinzenta! Face a tudo isso, surgiram algumas divergências sérias entre mim e Rhodan, mas nossas relações não adquiriram um matiz inamistoso. De resto, não era de meu feitio bancar constantemente a Cassandra. Afinal, o problema era deles. *** Os terranos já haviam conseguido construir os misteriosos transmissores fictícios de matéria, com base nos planos de que dispunham. Até então, a fabricação sempre se tornara impossível em virtude da falta das necessárias micro-usinas energéticas, uma vez que esses transmissores não podiam funcionar sem suprimento energético próprio. Só em casos raríssimos podia-se recorrer a fontes de energia estacionárias, ou seja, imóveis, que face às exigências técnicas não podiam possuir condutores mais longos. Até aquele momento, não se conseguira desvendar o motivo lógico do problema. Para que um transmissor funcionasse perfeitamente, tornava-se necessário que o suprimento de energia proviesse da base do aparelho. Provavelmente isso decorria de
fenômenos de desmaterialização da quinta dimensão, cuja criação só se tornava possível mediante o campo de força ligado a uma fonte de energia. As grandes naves do Império Solar possuíam ao menos um desses aparelhos transportadores. Assim tornava-se possível trasladar pessoas e objetos a grandes distâncias de uma nave para outra, sem que houvesse necessidade de realizar as complicadas manobras de abordagem. O grande bárbaro de olhos cinzentos não poderia atender pelo nome de Perry Rhodan se o novo equipamento não tivesse sido enquadrado imediatamente num planejamento global. E, o modo pelo qual ele o fez, levava-me cada vez para mais perto de uma psicose de angústia. Estava namorando a idéia de desistir do auxílio voluntário, que vinha prestando à Terra, e seguir meu próprio caminho, quando recebi um chamado do quartel-general planetário, instalado num abrigo de grande profundidade. Naquele momento, encontravame a bordo da Drusus, a nave capitania da frota solar, onde tivera uma palestra prolongada com o Tenente Sikermann. Ao receber o chamado, encontrava-me na pequena cantina, situada ao lado da sala de observação. O rosto de Rhodan apareceu na tela. — “Vossa Alteza” já conseguiu acalmar-se? — disse a título de cumprimento. — Vá para o inferno, homem primitivo — respondi em tom furioso. — A menos de vinte anos-luz daqui, estão mais de trinta mil naves espaciais. Já está provado que os druufs, que penetram em nossa dimensão temporal, sofreram uma terrível derrota. Nenhuma de suas naves conseguiu sair mais de dois minutos-luz da fenda de descarga. Talvez isso sirva para provar-lhe o poderio enorme do Grande Império, muito embora, no momento, Árcon seja dirigido por uma máquina. Será que você realmente acredita que com os mutantes conseguirá tirar do seu caminho tamanha quantidade de unidades de grande poder de fogo? Eles têm uma grande área de influência. Ninguém é invencível, nem eles nem você. Acho que já está na hora de alguém lhe dizer isso claramente. O que deseja? Permaneceu calado por um instante. Depois exibiu seu rosto de jogador de pôquer. — Suas objeções foram aceitas, almirante. Não estou disposto a arriscar as poucas naves de que disponho. Mas, assim mesmo, pretendo participar do jogo, com sua licença. — Deixe de ironia. Recomendo-lhe que guarde cuidadosamente os poucos trunfos de que dispõe. É bem possível que ainda vá precisar deles para salvar a pele. Eram palavras duras para alguém que estava habituado a registrar êxitos fulminantes. Mas Rhodan não se abalou. — Também aceito essa ponderação, arcônida. Os resultados das medições realizadas pelas sondas teleguiadas acabam de ser interpretados. Não há dúvida de que a zona de descarga pode ser atravessada sem que se torne necessário criar um campo de refração. Isso significa alguma coisa para você? — Pretende penetrar na outra dimensão temporal? — perguntei. — Exatamente — confirmou Rhodan. — A Califórnia está pronta para decolar e plenamente equipada. Resolvemos que, por enquanto, em hipótese alguma, participaremos ativamente dos atos de beligerância entre o computador-regente e os druufs. Ficaremos em segundo plano, na posição de observadores, até que saibamos com quem estamos lidando. — É a coisa mais razoável que você disse nestes últimos dias. Rhodan riu. Logo fiquei mais tranqüilo. Não era louco a ponto de aparecer de repente na frente de combate!
— Decolaremos dentro de meia hora. Se quiser pode subir a bordo. — Seu hipócrita! — exclamei. — Você quer que eu suba a bordo. — Eu disse isso? Rhodan desligou. Virei-me para o comandante da Drusus. Baldur Sikermann tossia embaraçado. — Quem dera que vocês tivessem sido tragados por uma frente relativista oito mil anos antes da viragem dos tempos — observei em tom frio. — Nesse caso, teriam evitado muito aborrecimento. Desculpe, tenente, mas você me está deixando nervoso. Será que também faz parte do “clube”? O rosto largo de Sikermann surgiu atrás da mão. Sabia que era um oficial muito competente e um homem extremamente arrojado. Pertencia à classe de homens que sabem usar a inteligência no momento apropriado. — Queira desculpar, almirante. Acontece que cheguei mesmo a ser designado para comandar a Califórnia. Respirei profundamente. De repente, compreendi que Rhodan tinha a intenção de lançar seus melhores elementos naquela missão. Se Sikermann tinha de deixar a Drusus, a fim de comandar um cruzador de importância um tanto secundária, as coisas não estavam nada boas. Provavelmente a elite da raça humana iria reunir-se a bordo da pequena nave. Seria inútil formular outras perguntas. Já tinha certeza de que Rhodan pretendia atravessar a zona de descarga, a fim de verificar na dimensão temporal dos druufs o que realmente estava em jogo. Não havia nada a objetar contra isso. Dali a dez minutos, passei pela comporta inferior e saí da nave-capitânia. Uma noite escura e tempestuosa pesava sobre o planeta Fera Cinzenta. Vez ou outra, uma estrela olhava pelas nuvens. No grande espaçoporto reinava o silêncio. Há algumas horas fora emitida uma proibição de decolagem, uma vez que nas imediações do sistema haviam sido localizadas estranhas naves espaciais. Caminhei a pé em direção à nave Califórnia, quase irreconhecível em meio à escuridão. As máquinas do pequeno cruzador já estavam funcionando. Diante da escotilha da comporta inferior, que estava aberta, dois guardas armados me detiveram. Totalmente perplexo, fitei os canos fluorescentes das armas energéticas. Depois de algum tempo, consegui dizer: — Será que alguém ficou louco por aqui? Pediram a senha. Naturalmente eu a conhecia. Levei alguns segundos para divertirme com a designação antiquada. O termo palavra-código não soaria muito melhor, embora fosse mais moderno. Um sargento do comando de patrulhas espaciais fitou-me com um ar sombrio. Levou algum tempo para baixar a arma mortífera. — O senhor é imprudente, almirante — disse em tom de advertência. — Recebemos ordem para atirar. — Não diga! — Isso mesmo. Ninguém pode aproximar-se a menos de cinqüenta metros do cruzador sem uma autorização especial. — Será que a bordo da nave existem superbombons ou petiscos galácticos? — perguntei em tom irônico. O sargento não pôde deixar de rir. — Não é bem isso, almirante. Apenas temos um transmissor de matéria!
Um transmissor? Quando finalmente pude entrar na nave, encontrava-me numa atitude pensativa. O que havia de extraordinário nisso? Qualquer nave de grandes dimensões possuía esse aparelho. Mergulhado nos meus pensamentos, dirigi-me ao camarote. Evidentemente haviam reservado meu aposento, do que concluí que Rhodan calculara com minha presença. — Que patife! — balbuciei. Dali a quinze minutos, Rhodan apareceu. Estava acompanhado de Reginald Bell e de John Marshall, um mutante simpático e retraído. Num gesto quase inconsciente reforcei meu bloqueio individual, a fim de resguardar-me da espionagem cerebral desse homem. Marshall logo esboçou um sorriso. Percebera meu gesto de defesa. — Ninguém está interessado em ler seus pensamentos — disse Rhodan em tom irônico. — Para que tanta desconfiança? Limitei-me a fazer um gesto. Afinal, estava acostumado a controlar meus impulsos cerebrais. Examinei a figura de Rhodan. Ao vê-lo diante de mim, percebi claramente que, apesar da nossa amizade, mundos inteiros nos separavam. — Pretendo romper a frente de combate — principiou sem o menor intróito. — Mas desejo não ser localizado. Os resultados da interpretação das medições realizadas pelas sondas são espantosos. Segundo estes, a dimensão temporal do plano dos druufs modificou-se, passando de um para setenta e dois mil para um para dois. Isso significa que nossos movimentos serão apenas duas vezes mais rápidos que os dos desconhecidos. Fiquei muito surpreso. Isso representava uma modificação profunda da situação preexistente. — Acho que com isso podemos considerar superada sua teoria segundo a qual, para os druufs, apenas se passaram dois meses desde os acontecimentos que se desenrolaram há dez mil anos. A não ser que o processo de adaptação das duas dimensões temporais seja muito recente. Mas sempre deveremos contar com um deslocamento. Além do esclarecimento desses aspectos, naturalmente estou interessado em conhecer o fenômeno propriamente dito. Seria inútil formularmos uma série de indagações antes de termos examinado a situação. Essas palavras pareciam razoáveis e não demonstravam o atrevimento de poucos dias atrás. Não gastamos muitas palavras no assunto. Também eu estava interessado em verificar a situação. — Estou curioso para ver como são esses indivíduos. É altamente provável que desta vez tenhamos de nos defrontar com os verdadeiros donos do Universo estranho. Segundo os cálculos realizados com base na lei das massas, o sistema natal dos druufs deve ficar nas imediações da zona de transição. Mais alguma dúvida? Não; não tinha mais nenhuma dúvida. Apenas perguntei pela carga de transmissores de que me falara o guarda. Os olhos de Rhodan começaram a brilhar. Era sinal de que tramava mais alguma coisa. — Se tivermos oportunidade, instalaremos uma base do outro lado. Seria formidável se o transmissor nos permitisse passar despercebidamente de uma zona temporal para outra. Confirmei com um gesto distraído. Ao que tudo indicava, essa idéia arrojada ocupava sua imaginação vivaz.
Também refleti sobre a idéia, que de repente nem me parecia tão absurda. O transmissor de matéria funcionava com base no espaço de cinco dimensões. O objeto a ser transportado sofria uma desmaterialização no aparelho transmissor e, reduzido a um feixe de impulsos, era irradiado pelo mesmo. Num receptor perfeitamente ajustado ocorreria o fenômeno inverso. Dessa forma seria praticamente impossível localizar uma transferência realizada pelo transmissor, quanto mais interferir na mesma. — Isso não seria nada mau, não é? — disse Bell em voz baixa, antes de sair do camarote atrás de Rhodan. Nem chegaram a perguntar se nessas condições estava disposto a participar da missão. Rhodan parecia conhecer-me muito bem. Dali a alguns minutos, cheguei à sala de comando. Sikermann ocupava a poltrona do piloto. Ao que parecia Rhodan e Bell não pretendiam interferir nos assuntos diretamente ligados à pilotagem da nave. No momento em que a nave se desprendia do solo, com os propulsores ligados quase na posição zero, lá fora rugia uma violenta tempestade. Era como se o planeta Fera Cinzenta nos desse um feroz adeus. A Califórnia só aumentou a velocidade quando as camadas mais densas da atmosfera de Mirta VII já haviam sido deixadas para trás. Os dados registrados pelo equipamento de localização pareciam satisfatórios. As naves desconhecidas, observadas há pouco tempo, haviam desaparecido. Ao que tudo indicava, os tripulantes consideraram o sistema de Mirta pouco interessante sob o ponto de vista tático. Rhodan ofereceu-me um caneco com café. Olhou-me com uma expressão tão irônica que o sangue me subiu à cabeça. Não precisávamos de palavras para entendernos. — Aguarde, homem das cavernas — falei em tom zangado. — Um dia eles o descobrirão... E já lhe posso dizer o que acontecerá depois disso. Sabe lá de quantos supercouraçados do tipo da Drusus dispõe o regente? Os dois transmissores fictícios lhe adiantarão muito pouco. Se vinte unidades equivalentes abrirem seu fogo cruzado contra você, haverá possibilidade de utilizar sua superarma umas seis ou sete vezes. Com isso sobrariam pelo menos treze naves. Você não terá possibilidade de disparar o oitavo tiro, pois antes disso será destruído. Deixe que um velho almirante arcônida lhe ensine alguma coisa. Já enfrentei mais combates do que você e... — Você derramou seu café — disse Rhodan, esquivando-se ao assunto. Fitei-o com uma expressão pensativa. Parecia que ultimamente descobrira as fronteiras de seu poder. Lembrei-me do que dizia a Enciclopédia Terrana, que registrava a ascensão de Rhodan. Desde aqueles tempos remotos, entre os anos de 1.971 e 1.985, ele já sabia até onde poderia chegar. Procurara e encontrara um caminho que lhe permitisse remover as resistências políticas à instalação de um governo mundial. Agora encontrava-se em situação semelhante. Apenas, desta vez, tinha de contar com fatores totalmente diversos. Teria de enfrentar impérios galácticos. Não havia a menor dúvida de que os desconhecidos, vindos da outra dimensão temporal, representavam um poder equivalente ao do Grande Império. Isto eu poderia até afirmar. A Califórnia voltou a acelerar loucamente à razão de 106 km/seg. Prestei atenção ao tremendo rugido dos conjuntos propulsores que, uma vez atingida a velocidade crítica, cresceu ainda mais. Quatro dos cinco grandes depósitos da nave continham exclusivamente tanques com reservas de matéria físsil. Consumíamos cerca de quarenta e
cinco toneladas de bismuto por hora, matéria que, uma vez injetada nos conversores de impulsos, produzia um meio de apoio bastante condensado. Assim que alcançamos a velocidade aproximada da luz, passamos à transição. Observei os engenheiros da equipe de controle, que realizaram mais uma verificação do neutralizador de freqüência. Se houvesse qualquer falha no funcionamento desse aparelho, a Califórnia seria inevitavelmente localizada pela frota de bloqueio arcônida. Um homem levantou a mão. Rhodan respondeu com um ligeiro aceno de cabeça. A hora chegara. A transição teve início com uma dor violenta, seguida pelo murmúrio do hiperespaço de cinco dimensões!
4 Éramos apenas um vírus no sangue de um gigante. Antes de lutar contra esses microorganismos, o biólogo precisa identificá-los. Só depois disso poderá produzir o respectivo antídoto. No nosso caso, a Califórnia era um vírus, e o gigante correspondia à maior concentração de unidades espaciais que vira nos últimos dez mil anos. Saímos do hiperespaço à velocidade da luz e seguimos imediatamente a rota que nos levaria ao destino. Na área altamente relativista da velocidade próxima à muralha da luz, não se tornava possível a queda livre, independente do empuxo fornecida pelos propulsores. Para mantermos 98,8 por cento da velocidade da luz, nossos propulsores teriam de trabalhar ininterruptamente a plena potência. O corpo esférico do cruzador ligeiro vibrava e retumbava que nem um sino. Até então, nem mesmo os construtores terranos haviam conseguido construir uma nave silenciosa, livre das perturbações produzidas pelas ressonâncias. Os corpúsculos emitidos em compactas ondas pelos propulsores de impulsos prestavam-se perfeitamente a uma rápida localização goniométrica. Isso ainda era acrescido do fluxo de plasma da massa de apoio, que tinha de ser expelida para possibilitar a manutenção de uma velocidade tão elevada. No setor vermelho do cruzador que se deslocava vertiginosamente, as fúrias do inferno pareciam estar às soltas. Mais ou menos em 10 graus vermelho vertical e 22 graus vermelho horizontal, sóis pareciam explodir e mundos submergiam. Uma catástrofe da natureza parecia estar em pleno andamento. Não podíamos observar diretamente a luminosidade ofuscante dos inúmeros canhões de impulsos. Mas cada disparo era registrado na tela de localização energética, sob a forma de um ressalto na curva de eco. A pouco menos de uma hora-luz, rugia a maior batalha realizada num “espaço” tão reduzido. Os estalos e rugidos dos rastreadores estruturais indicavam que ali as transições das grandes naves espaciais eram constantes. E outras indicações dos instrumentos deixavam patente que seres estranhos, não-galácticos, usavam uma tecnologia de vôo à velocidade superior à da luz. Velocidade que era desconhecida de qualquer inteligência do Universo einsteiniano. Mais uma vez, surgiram os misteriosos ecos de ondas de choque, que se revelavam em curvas sinuosas e jamais poderiam provir de uma transição. Esses fenômenos só poderiam surgir se alguém voasse pelo hiperespaço! Nosso localizador de massas da quinta dimensão registrou a presença de um número incrível de naves. Ao que parecia, naquele instante, a frota de bloqueio do computadorregente estava rechaçando outro ataque dos druufs. Imaginava perfeitamente que os desconhecidos deveriam estar ansiosos para, depois da estabilização das zonas de superposição, verificar o que havia em nosso Universo. Mas não deveriam ter contado com tamanha resistência. Provavelmente acreditavam que poderiam atravesssar à vontade a zona de superposição, e sem que ninguém os observasse.
Bem perto de nós, a menos de dez minutos-luz, o negrume do espaço foi interrompido por uma espécie de fogo-fátuo. Parecia que um pintor maluco acabara de manipular ao acaso um enorme pincel, iluminando em vários pontos a escuridão com manchas e traços vermelho-escuros. Vez por outra, ainda se viam os conhecidos funis. Recordava-me deles em virtude de uma triste experiência. Mas a maior parte das aberturas já se haviam unido, formando uma fenda entrecortada. Era dali que provinha a luminosidade deprimente. As indicações fornecidas pelas sondas teleguiadas haviam demonstrado que a zona de descarga era inconstante. Via de regra, suas dimensões oscilavam entre 0,6 e 1,1 anos-luz. A largura variava entre 20 e 100 bilhões de quilômetros. Face a isso, e considerados os padrões cósmicos, tratava-se de uma minúscula fenda, que apenas permitiria a livre penetração no plano dos druufs. Já colocáramos os trajes especiais arcônidas, uma vez que, numa situação como essa, os trajes espaciais comuns não nos pareciam suficientes. Colocamos os capacetes pressurizados sobre a cabeça e mantivemos os dedos nos botões de contato dos projetores de campos defensivos. Os micro-reatores instalados nas mochilas estavam funcionando. Dessa forma, havíamos feito o que estava ao nosso alcance para enfrentar adequadamente uma eventual ruptura do débil envoltório do cruzador. O oficial de localização já desistira de anunciar as indicações recebidas. Um silêncio completo reinava a bordo da ultra-rápida nave Califórnia. No alto-falante de meu capacete só se ouvia a respiração de homens nervosos. O rosto de Rhodan apresentava uma expressão séria e fechada. Ao que parecia, só agora se dera conta dos recursos imensos de que o computador-regente de Árcon podia dispor. Vez por outra alguém praguejava em voz alta. Esses sons surgiam nos alto-falantes de capacete toda vez que havia uma catástrofe nas proximidades. Não conseguíamos realizar a observação ótica das inúmeras naves. Só a hiperlocalização revelava que na escuridão do espaço estavam escondidos numerosos corpos de aço, de cujos flancos se desprendia o hálito atômico dos pesados canhões de impulsos e de desintegração. Só víamos nitidamente as unidades destruídas. Se a luz chegasse a nós com suficiente rapidez, uma luminosidade ofuscante surgia nas telas óticas. Nos poucos segundos decorridos, desde o momento em que voltamos a mergulhar no espaço comum, contáramos mais de duzentos sóis atômicos artificiais. Devia haver muito mais, pois nem todos poderiam ser observados diretamente. Fugíamos dos raios de luz. A voz de Rhodan rompeu o silêncio, que já se tornava opressor: — Atenção todos! Atingiremos a zona dentro de três minutos aproximadamente. Atem os cintos e só os soltem depois que a tivermos rompido. Devemos atravessá-la em poucos segundos. Não precisamos contar com nenhum ataque. Nossa nave é rápida demais para ficar exposta ao fogo de outro veículo espacial. Só se pode atirar com precisão quando o objeto não desenvolve mais da metade da velocidade da luz. Escaparemos a qualquer disparo de radiações. Quanto ao mais, peço-lhes que cuidem dos nervos. Se nossas sondas conseguiram atravessar a zona intermediária, nós também conseguiremos. Fim.
Passei os olhos pela sala de comando fracamente iluminada. Os homens mantinhamse imóveis atrás dos instrumentos, mas em todos eles ardia a excitação. Sabiam os efeitos que podem resultar da travessia de uma zona de descarga. De repente nossos débeis campos defensivos tornaram-se visíveis nas telas óticas. Descargas azuladas ofuscaram nossos olhos. Naquele momento compreendemos que a afirmativa de Rhodan, segundo a qual não poderíamos ser atingidos, era ao menos leviana. Ouviu-se uma série de terríveis estalos. O corpo da Califórnia, que já estava sendo solicitado ao máximo, começou a tinir. — Foi um impacto ocasional involuntário. Voamos diretamente para dentro do raio — disse a voz forte de Rhodan, que foi interrompida por uma risada estridente. Concluí que a mesma devia provir de Bell. — Silêncio a bordo! — gritou Perry. Ao que parecia, mesmo ele se sentia um pouco nervoso. A fenda de descarga, que de longe parecera insignificante e inofensiva, transformara-se num abismo devorador. A vista já não conseguia abranger toda sua largura. Antes que os homens ouvissem o grito de advertência de Sikermann, penetramos na luminosidade vermelha. Os inúmeros impulsos de localização apagaram-se tão depressa que até parecia que nunca houvera uma frota arcônida logo atrás de nós. A última unidade energética, que ainda funcionava em ponto morto, começou a participar do rugido geral. Dali em diante, mal se entendiam as palavras transmitidas pelo sistema de rádio. As ordens de Sikermann, emitidas em voz muito alta, submergiram em meio ao barulho infernal. Lá fora, nossos campos defensivos pareciam colidir com uma muralha energética invisível. Cerca de seis segundos depois do momento em que mergulhamos, as luzes de advertência da unidade energética número três acenderam-se. Tratava-se da estação que acabara de ser ligada. O rumorejar surdo tornou-se ainda mais forte, mas os campos defensivos chamejantes ficaram privados de seu suprimento de energia. A pequena tela mostrou um letreiro luminoso: Aviso automático. Usina III transferida para neutralizadores de pressão. As mãos de Sikermann passaram a desenvolver uma atividade febril. Era evidente que a Califórnia estava submetida a uma desaceleração involuntária, cuja intensidade devia ser tamanha... A energia necessária ao funcionamento dos neutralizadores já não podia ser fornecida exclusivamente pelo seu próprio gerador. Vi que o rosto de Rhodan estava ligeiramente desfigurado. Da sala de máquinas veio a informação de que já fora atingida a capacidade máxima dos reatores. Sikermann mandou que os mesmos passassem a funcionar em regime de emergência. Dentro de vinte segundos, a redução de velocidade tornou-se bem perceptível. Logo depois, a velocidade reduziu-se para 79 por cento luz. Terríveis descargas bramiam junto ao envoltório esférico do cruzador. Penetráramos em alguma coisa que ultrapassava nossa compreensão e as possibilidades de nossa
tecnologia. Parecia que a goela de um submundo se abrira, para deglutir a nave e os homens. O mutante Ralf Marten foi atirado violentamente para fora do assento, pois num movimento instintivo colocou o braço na abertura de emergência dos cintos. Vi-o escorregar pela sala de comando, até que se detivesse junto a uma calculadora cosmonáutica. Ninguém entendia as ordens e os comunicados. Quando liguei meu campo defensivo individual, uma fluorescência fantasmagórica rompeu a escuridão da sala de comando. Ao que parecia, o ar fora de nossos trajes de combate estava carregado, pois do contrário o campo individual não se tomaria visível. “Estamos no fim”, pensei. “Arriscamos demais.” Naquele instante, a tremenda retumbância cessou subitamente. Apenas os reatores da nave, que funcionavam a plena potência, continuavam a emitir seu ruído característico. Mais uma vez, o letreiro luminoso surgiu à minha frente. Dispositivo automático de advertência — Gerador III religado para os campos defensivos. Só agora tive tempo de passar os olhos pela sala de comando. Os tremendos abalos haviam colocado fora de ação cerca de trinta por cento das telas de comunicações. Meu rádio, ligado ao volume máximo, parecia estourar-me o ouvido. A voz de Rhodan soou com uma potência apavorante. Soltei um gemido e girei o regulador de volume para a esquerda. Com os outros devia ter acontecido a mesma coisa, pois durante o vôo todos haviam tentado captar alguma comunicação. — ...passamos. Cuidem de Marten. Parece ter-se machucado na queda. De resto, tudo O.K.! Bati com a mão espalmada sobre o fecho dos cintos e levantei-me com um gemido. Naquele instante, ouviu-se o comunicado vindo da central energética. — A desaceleração foi de mil e oito quilômetros por segundo ao quadrado. Os neutralizadores trabalharam em regime de sobrecarga. — Como poderia ter acontecido isso? — perguntou Rhodan, respirando com dificuldade. — Os dados captados pelas sondas diziam outra coisa. Não tive necessidade de refletir para encontrar uma explicação plausível. — São diferenças nas influências gravitacionais. A zona de compensação ainda é tão jovem que não se poderia ter estabilizado. Deveríamos ter esperado mais algumas semanas. A equipe técnica da nave começou a reparar as avarias. Na altura da comporta inferior, havia uma rachadura no envoltório da nave. Fora disso, o casco da Califórnia parecia intacto. — Olhem só! — disse Sikermann em tom de surpresa. Virei a cabeça. E o que vi nas telas teria levado qualquer outra pessoa a praguejar fortemente. No entanto, apenas senti meu coração pulsar mais lentamente. — Preparar a nave para o combate! — ordenou Rhodan pelo sistema de intercomunicação do pequeno cruzador.
Enquanto as sereias começavam a uivar e os instrumentos indicavam que desenvolvíamos apenas metade da velocidade da luz, fitei as telas. — Bem que poderíamos ter imaginado que os druufs também tivessem postado uma frota em seu universo — disse Reginald Bell. — Será que essa gente sabe “aceitar uma boa brincadeira?” Não souberam. Provavelmente o senso de humor de Bell ficaria afetado pelos acontecimentos que começavam se desenrolar... As longas naves em forma de bastão encontravam-se tão próximas que as distinguíamos nas telas do hiperlocalizador sob a forma de imagens em alto-relevo. Se não estivessem tão perto, a imagem consistiria, quando muito, num pontinho verde. Sikermann trabalhava como um autômato. Suas mãos deslizaram rapidamente sobre as chaves de controle manual. Naquele momento, compreendi perfeitamente por que motivo Rhodan o investira temporariamente como comandante da nave Califórnia. Uma nave, que media pelo menos trezentos metros de comprimento, atingiu-nos em cheio. Um vulcão energético irrompeu nos campos defensivos de nossa nave. Os canhões e radiações do inimigo pegou-nos de surpresa... Numa fração de milésimo de segundo, a Califórnia, uma nave tão bela por fora e tão fraca por dentro, se parecia com uma bola de aço que cuspia fogo. Seu débil armamento defensivo entregou os pontos ao primeiro ataque. É bem verdade que tivéramos azar ao colocar-nos diante dos canhões de uma nave aparentemente muito forte. No momento em que ouvi o ruído infernal e a incandescência irradiada pela telas ameaçava cegar-me, perdi o apoio dos pés. Uma tormenta varreu-me pelo soalho de plástico da sala de comando. Levei algum tempo para conseguir segurar-me no pé da poltrona do localizador. Gritaria, berros, um estrondo real, foram estas as impressões registradas pelos meus sentidos. Sabia que recebêramos ao menos quatro impactos térmicos ao mesmo tempo; era demais para o pequeno cruzador, cuja força consistia exclusivamente em suas máquinas. Dali a alguns segundos, a nave começou a girar em torno de seu eixo transversal. O espaço sombrio do Universo desconhecido com suas inúmeras estrelas transformou-se numa roda de fogo. Já desistira de ter esperanças, quando finalmente as unidades energéticas da Califórnia voltaram a entrar em funcionamento. Só agora tornava-se possível recorrer a toda a força titânica dos propulsores, pois já não havia o perigo de que a força da inércia nos reduzisse a pó. Uma dor aguda atravessou meu corpo. Os neutralizadores de pressão entraram em funcionamento com um atraso de cerca de um milésimo de segundo. A forte luminosidade dos nossos campos defensivos estava cessando. Se os druufs acelerassem com a mesma rapidez que nós, não haveria salvação. Acontece que nem de longe conseguiram acompanhar-nos. Afastamo-nos em velocidade tresloucada, antes que outras naves pudessem enquadrar-nos em sua mira. Os mecanismos automáticos de estabilização fizeram cessar o giro do corpo da nave. Quando o processo foi concluído e a imagem se ajustou, consegui ver novamente o estranho espaço. Enquanto nosso Universo era negro, aqui predominava o tom vermelho-escuro. A luminosidade das estrelas era idêntica à do nosso Universo, mas sua luz natural sofria uma distorção...
— Transição ligeira! — ordenei com um gemido. — Vamos logo! Temos que dar o fora daqui. Estamos entrando diretamente nas falanges do inimigo. Será que isto lhe servirá de lição, homem das cavernas? Nem sempre a audácia sai vencedora, e seus mutantes serão mortos pelo fogo dos canhões como qualquer outra criatura. Entre logo em transição! Rhodan ouvira minhas palavras, que provavelmente eram desnecessárias. Sikermann já estava comprimindo o botão do chamado autômato de saltos de emergência. Então teve início uma transição matematicamente incontrolável, que nos levaria a algum lugar. Podia-se realizar uma avaliação aproximada da distância que seria percorrida, mas não da direção. A dor da desmaterialização surpreendeu-me enquanto estava deitado. Segundo as leis válidas em nosso Universo, a posição em que a pessoa se encontrava durante o salto era totalmente indiferente. No entanto, até neste ponto, o Universo dos druufs parecia oferecer algumas surpresas. Antes que pudesse formular algo sobre a percepção desse fato, dei-me conta de que acabáramos de cometer mais um erro. Qualquer homem inteligente deveria abster-se de transferir as leis do espaço einsteiniano para qualquer outra estrutura espaço-temporal. Foi um verdadeiro milagre termos desaparecido no hiperespaço. Notei a falta do murmúrio e do farfalhar que surgia em toda transição, logo após a desmaterialização. Mas a dor continuou. Parecia que o sistema nervoso escapara ao processo de desmaterialização. Quando iniciamos o mergulho no espaço druufiniano, ainda estávamos gritando. O que se seguiu depois excedeu minha capacidade de sofrimento. O desmaio provavelmente foi uma bênção. Éramos uns idiotas! De que servia a nave mais rápida, se o homem não conseguia acompanhar seu desempenho? Era o velho problema que, segundo ensinava a experiência, costumava ser negligenciado, pois a tecnologia amortecia o sentimento natural de medo do indivíduo.
5 Fui o primeiro a despertar a bordo da Califórnia. Meu organismo arcônida parecia recuperar-se depressa dos efeitos do choque. Fiquei surpreso com isso. Em outras oportunidades notara-se que as reservas de energia do organismo de um terrano são bem maiores. Ergui-me com um gemido. Diante dos meus olhos, um céu estrelado parecia girar loucamente. Meu subconsciente registrou as fortes batidas do ativador. Ao que parecia, o aparelho funcionava a plena força, a fim de transmitir os necessários estímulos às minhas células. Depois de alguns segundos, comecei a sentir-me melhor. A visão clareou. Rhodan estava estendido no chão, com o corpo contorcido. Sikermann, que desencadeara o impulso para o salto de emergência, estava pendurado nos cintos de segurança. A sorte dos outros homens não foi melhor. Arrastei-me até a poltrona mais próxima e procurei refletir sobre o que poderia fazer. Não havia necessidade de cuidar dos homens inconscientes, já que nossos robôs médicos já saiam dos poços estreitos, situados ao longo do teto da sala de comando. Perguntei-me se os estimulantes de circulação, aplicados aos doentes, os favoreceriam naquela situação em que nos encontrávamos. Se ignorávamos quase tudo sobre as leis físicas reinantes no espaço dos druufs, nossos conhecimentos fisiológicos e biológicos também poderiam revelar-se inúteis ou até nocivos num ambiente como este. Procurei controlar-me e aproximei-me de Sikermann. Bati com a mão sobre o fecho de seus cintos de segurança. Sikermann caiu para a frente. Retirei-o da poltrona de comando e tomei assento diante dos importantes elementos manuais. A Califórnia deslocava-se em queda livre, desenvolvendo apenas metade da velocidade da luz. Uma vez realizada a transição de emergência, todas as máquinas se haviam desligado automaticamente. Nas telas de visão global, brilhava uma gigantesca estrela vermelha, que tinha uma companheira verde. Essa estrela dupla não podia ficar a mais de dois anos-luz da zona de descarga, pois a transição ligeira não nos faria percorrer uma distância maior que essa. Concluí que, ao menos, o mecanismo regulador de distância funcionara perfeitamente, embora tivesse havido alguns efeitos estranhos. Prestei atenção às sinetas claras da aparelhagem astronáutica de localização de massas. Comprimi a chave e a grande tela de imagem especial iluminou-se. Transmitiu um modelo bastante nítido, produzido pelos ecos dos impulsos de rastreamento hiperrápidos que haviam detectado e medido o astro. Vi primeiramente oito planetas. As escalas que funcionavam simultaneamente registravam os dados apurados pelos medidores automáticos. Raras vezes vira órbitas tão malucas e excêntricas! Parte dos numerosos planetas desse sistema que, ao que tudo indicava, era de proporções gigantescas, passavam por vezes entre os dois sóis. Esse fato deveria produzir uma influência catastrófica sobre as condições meteorológicas.
Havia outros planetas que gravitavam em torno das duas estrelas, e suas órbitas me pareciam mais “favoráveis”. Dentro de dez minutos, o rastreador automático de massas constatou a presença de 58 planetas. Um fenômeno despertou minha atenção. As medições gravosféricas levavam à conclusão de que muitos dos planetas possuíam numerosas luas. As telas diagramáticas de observação localizada apresentavam, constantemente, linhas em ângulo, que interrompiam a imagem nítida projetada pelos ecos. Sem dúvida, as luas maiores tinham seus próprios satélites, que descreviam órbitas em sentido contrário. O pior era que já penetráramos profundamente no sistema desconhecido. Ao que parecia, o salto nos havia levado para seu interior. O gigantesco sol vermelho já preenchia todo o setor verde das telas dianteiras. Meu cérebro, ainda afetado pelo choque, começou a funcionar melhor sob a proteção de todo o potencial de força de vontade. Compreendi que provavelmente havíamos saltado por cima da zona de perigo. Se minha avaliação dos rastreamentos de massas era correta, já havíamos deixado para trás as órbitas de mais de quarenta planetas. O companheiro verde da estrela central saiu lentamente de trás da grande curvatura de seu irmão maior. A luz refletida nas telas era uma verdadeira curiosidade espectroanalítica. Só agora me dava conta plenamente de que não estávamos em casa. Depois de algum tempo, o dispositivo automático de localização de energia também emitiu um zumbido insistente. Segundo a máquina, o planeta que começava a surgir na tela de informação era o de número 16 do sistema em que nos encontrávamos. Nas imediações do corpo esférico, começou um relampejar ininterrupto. Se o autômato não tivesse perdido seu “bom senso” mecânico, o planeta número 16 devia ser o mundo principal da família. Ao menos, minha experiência indicava que um astro com aquela intensidade de energia sempre corresponde a um mundo habitado e altamente tecnificado. “É o ambiente dos druufs!”, anunciou meu segundo cérebro num laconismo excitante. Não tinha o menor motivo de duvidar da conclusão a que chegara o setor lógico de minha mente. O relampejar e a luminosidade, que surgiam em torno da semi-esfera, só poderiam ser produzidos por naves que pousavam e decolavam. Os impulsos provinham de corpúsculos, que indicavam sem a menor dúvida a presença de propulsores em funcionamento. As coisas ainda poderiam ficar bem divertidas... Atrás de mim, os robôs médicos continuavam a trabalhar. Suas injeções de alta pressão chiavam continuamente. Porém nem Rhodan nem os outros homens despertaram da estranha rigidez. Chamei os outros setores pelo videofone. Mas a única resposta que recebi foi a das fitas automáticas, que me informaram em termos lacônicos de que a tripulação humana fora colocada fora de ação. Dali em diante, meu raciocínio voltou a funcionar com a precisão de sempre. Não me arriscaria a realizar outro hipersalto para abandonar esse setor que, segundo tudo indicava, era bastante perigoso. Por enquanto tornava-se provável que a presença da Califórnia não tivesse sido detectada. Do contrário alguém já teria cuidado de nós. Surgiu-me outra indagação. Por que fomos sair justamente no interior do sistema dos druufs? Teria sido simples coincidência?
Enquanto refletia, o setor lógico de minha mente deu sinal de si: “Lei das massas do sistema dos druufs. Num salto descontrolado realizado sem programação, ocorre um desvio em direção à matéria estável rodeada de campos hipergravitacionais.” Dali a alguns segundos, cheguei à conclusão de que não havia melhor lugar para a Califórnia esconder-se que a própria cova do leão. Já estava quase convencido de que, ao localizar o décimo sexto planeta, descobrira o mundo dos druufs. O número dos pousos e decolagens era tão grande que passava dos limites do tráfego normal de um espaçoporto. E, ao que tudo indicava, muita coisa estava acontecendo nas luas do número 16. Pensei em colocar em funcionamento os conjuntos propulsores, que estavam parados, mas preferi não fazê-lo, pois lembrei-me dos dados fornecidos pelas sondas teleguiadas. De acordo com esses dados, o velho fator tempo-velocidade se reduzira de um para dois. Se havíamos trazido nossa própria dimensão temporal, estaríamos viajando à velocidade máxima que as naves dos druufs conseguiam desenvolver, muito embora nossa nave se deslocasse a apenas metade da velocidade da luz. Dessa forma os desconhecidos ficariam privados de um excelente objeto para seus instrumentos de localização. Provavelmente nossas ondas de impulsos provocariam no décimo sexto planeta os efeitos de uma bomba. Havia outro motivo para deixar que as máquinas permanecessem em silêncio. Bem à nossa frente, a apenas trinta milhões de quilômetros, um planeta do tamanho aproximado de Marte interpôs-se em nossa trajetória. Esperei que o dispositivo automático me fornecesse os dados solicitados. Tratava-se de um dos planetas em que a velocidade de rotação e translação são idênticas; em outras palavras, a cada movimento completo de translação corresponde uma rotação completa. Dessa forma a face voltada aos dois sóis era sempre a mesma. Naturalmente as condições climáticas desse planeta seriam extremamente desfavoráveis. Sem dúvida um mundo desse tipo permaneceria desabitado para sempre. Era o número 13 do sistema dos druufs. Guardadas as proporções em relação às dimensões gigantescas da estrela vermelha, na face diurna, o calor devia ser insuportável. Este e outros motivos fizeram-me corrigir a rota da Califórnia por meio de cautelosos impulsos dos propulsores auxiliares de plasma. Dali em diante, o aparelho automático de aproximação passou a executar o trabalho do primeiro-piloto. A única coisa a ser feita era ajustar as duas linhas verdes de tal maneira que seu ponto de interseção correspondia ao planeta perfeitamente reconhecível. Com a mente preocupada, ouvi o rumorejar vindo das salas de máquinas da protuberância equatorial da nave. O conteúdo energético das partículas de plasma não era muito elevado. Talvez não fossem detectadas pelos goniômetros. Recorri à ótica eletrônica e trouxe o número 13 para mais perto. No momento em que o planeta ocupou toda a tela, comecei a tremer. Ao que parecia, não possuía atmosfera. A temperatura média na face diurna era de cerca de 168 graus centígrados. Na face noturna, a temperatura deveria ficar próxima do zero absoluto. No entanto, havia uma zona de penumbra cujas dimensões, face à intensa vibração do planeta, naturalmente estavam sujeitas a variações acentuadas. Pousaria ali, para esperar com calma e relativa segurança os efeitos da preocupante rigidez dos membros da tripulação. Seria insensato e irresponsável continuar a passear na área controlada pelas inteligências desconhecidas.
Minhas juntas doíam quando me levantei da poltrona do piloto. Os pequenos robôs médicos já haviam cessado suas atividades. Isso constituía sinal evidente de que nos encontrávamos diante de um fenômeno desconhecido. Com um gemido inclinei-me sobre Rhodan. Fitei seus olhos arregalados. Tinha o rosto terrivelmente desfigurado. Meus conhecimentos médicos eram insuficientes para formular um diagnóstico preciso. Mas cheguei à conclusão de que talvez a rigidez não decorresse de um estado de inconsciência total. Já vira homens que, numa situação destas, conservavam a mobilidade espiritual, embora não pudessem mover um dedo. A musculatura de Rhodan estava dura como uma tábua. Tinha o aspecto de alguém atingido pelo choque de uma arma fisiológica. Inclinei-me ainda mais e disse em voz alta: — Talvez você consiga ouvir-me e compreender minhas palavras. Devemos aguardar que a paralisia cesse por si? Pousarei no décimo terceiro planeta do sistema em que acabamos de penetrar. Trata-se de um corpo celeste desconhecido que gira em sintonia com o movimento de translação. O sistema de localização energética não acusa nada. Levarei a nave à zona de penumbra e procurarei escondê-la da melhor forma possível. Será que pode dar-me um sinal de ter entendido? Fitei atentamente os olhos abertos, mas não notei qualquer reação. Desesperado por dentro, embora por fora me mostrasse calmo e risonho, voltei a erguer-me. O piloto automático emitiu um sinal sonoro. Estava na hora de entrar na elipse de frenagem. Desta vez não tive outra alternativa senão recorrer aos potentes mecanismos propulsores centrais da Califórnia. Os conjuntos, que funcionavam com base de plasma, não seriam capazes de eliminar, num tempo relativamente curto, a velocidade que correspondia à metade da da luz. Assumi o risco porque não poderia deixar de fazê-lo. Os conversores de impulsos emitiram um rugido. A luz verde dos neutralizadores de pressão acendeu-se. Desacelerei ao máximo, embora soubesse que devia provocar um fogo de artifício no sistema de localização energética de ao menos um observador atento. Era possível que, com o movimento reinante no número 16, isso não despertasse a atenção de ninguém. Havia inúmeras possibilidades, mas não estava em condições de realizar a interpretação matemática das mesmas, uma vez que não dispunha dos respectivos valores-base. O cruzador ligeiro parecia um monstro que chispava fogo ao precipitar-se em direção ao planeta escaldante, que batizei com o nome de Hades. Deu-me a impressão de um submundo das lendas gregas. Se havia alguma coisa de que não gostava, eram as zonas de penumbra desses corpos celestes. Pouco antes de chegar à superfície, a Califórnia alcançou a velocidade de aterrissagem. Descrevi uma única elipse, e durante a mesma, tive de constatar que Hades tinha vestígios de um envoltório atmosférico. Ao que tudo indicava, os gases se haviam depositado na face noturna, enquanto se evaporavam junto aos pontos de aquecimento, em virtude das modificações da área de penumbra. Dessa forma, a faixa sombreada devia ser fustigada por tormentas violentíssimas. Era exatamente a pior das hipóteses que eu imaginara. Tive de dedicar toda minha atenção à pilotagem da nave, pois tornava-se necessário equilibrar seu movimento pendular sob a influência do campo antigravitacional. Depois de algum tempo, consegui pousar por meio de um dos conjuntos auxiliares. Fomos parar numa ampla planície rochosa, que no momento ficava no centro da zona de penumbra.
No horizonte via-se a coroa chamejante da gigantesca estrela vermelha. Seu companheiro verde não assumia qualquer importância na área meteorológica. Sua energia não seria capaz de aumentar ainda mais a temperatura. Além disso Hades contornava ambos os sóis ao mesmo tempo. Dessa forma, também a estrela verde iluminava apenas a face diurna do planeta. Quando, no curso de sua órbita, a mesma sobressaía no horizonte, surgia a luminosidade verde que me chamara a atenção por ocasião do pouso. Acabara de pousar num planeta infernal. Depois que as placas de apoio dos suportes telescópicos penetraram no solo, comecei a recuperar o autocontrole. Do lado de fora, o silêncio era total. A tempestade que observara antes já amainara. Tiritei de frio ao levantar-me da poltrona. As travessas e longarinas da Califórnia estalavam e crepitavam, conforme costuma acontecer numa nave forçada ao máximo. Ao que tudo indicava, o esfriamento era extremamente rápido. — Perry, você me ouve? Seu rosto permaneceu rígido como uma máscara de pedra. Se estivesse em condições de sentir e pensar, devia sofrer terrivelmente.
6 Tive de esperar mais algumas horas Até que os primeiros terranos acordassem. Rhodan foi o quinto a recuperar os sentidos. Os que mais sofreram foram os mutantes, cujos cérebros ligeiramente alterados, provavelmente, eram ainda mais sensíveis que os dos outros homens. Toda a tripulação se encontrava a postos. Não houve nenhum caso fatal, mas o Dr. Sköldson, médico da Drusus, levado neste vôo, recomendou repouso total. Depois de falar com ele, compreendi por que recuperara os sentidos tão depressa, tinha estrutura cerebral era diferente. O médico garantiu que, durante a paralisia, os homens atacados pelo choque não sentiram nada. Mas ninguém se atreveu a perguntar o que aconteceria em futuras transições. Não havia dúvida de que nos encontrávamos a cerca de dois anos-luz da zona de descarga. Antes do pouso, ainda a vira nitidamente sob a forma de uma linha reluzente. Se quiséssemos renunciar à transição, teríamos de viajar pouco mais de dois anos para atingir a abertura. Face à dilatação verificada, apenas uns poucos dias se haviam passado para nós. Mas, num outro plano de referência, o tempo se teria mantido estável. Nem podíamos pensar no que aconteceria na base espacial Fera Cinzenta. Sem dúvida acreditariam que estávamos mortos. Por isso nossa tarefa mais urgente consistia em encontrar uma proteção eficaz contra os perigos resultantes de outro hipersalto. Bell, que permanecera durante horas a fio no centro de computação, juntamente com o matemático Kenius, afirmou que as condições do Universo dos druufs se estabilizavam a cada dia que passava. A paralisia geral só teria surgido em virtude da perturbação do equilíbrio das forças naturais. Não nos parecia que conseguiríamos encontrar um antídoto de caráter bioquímico. Por isso resolvemos permanecer o maior tempo possível em Hades. Cada hora que se passava faria avançar o processo de estabilização gradativa das diversas formas de energia. Se necessário, teríamos de realizar a transição nas condições existentes. Caso as coisas não dessem certo, o salto seria efetuado por mim e, assim que acordasse, caberme-ia a tarefa de tomar todas as providências para evitar que a Califórnia fosse destruída. Mas, se eu pensara que esses sujeitos malucos do planeta Terra se deixariam abater pela situação nada brilhante, estava muito enganado! O que fizeram assim que conseguiram colocar os pés no chão? Em vez de se manterem em resguardo, não pensaram em outra coisa senão iniciar a construção da chamada base de transmissores. O Dr. Sköldson praguejou e correu por toda a nave, mas a tripulação conseguiu esquivar-se com tamanha habilidade, que não conseguiu agarrar nem um único dos homens. A arma de Sköldson, que não era outra coisa senão uma seringa com pelo menos quinhentos milímetros de calmante, não produziu nenhum efeito, porque não conseguiu encontrar uma única vítima. Eu mesmo só consegui livrar-me da injeção por trazer na ponta da língua a ponderação de que meu organismo de arcônida era de constituição diferente.
Quando uma porta blindada que se fechava quase o cortou em dois, Sköldson resolveu desistir. Dali em diante, via-se sobre a porta da clínica de bordo uma enorme placa com os seguintes dizeres: Entrada permitida somente de quatro. Era a vingança do médico. Apenas, este teve o azar de que ninguém entrou de quatro em sua clínica. Tinha certeza de que essa gente preferiria fazer uma operação em si mesmo a ceder à exigência de Sköldson. Normalmente se poderia rir a valer sobre esse incidente, que constituía uma amostra típica do comportamento dos astronautas terranos. Mas na situação desesperadora em que nos encontrávamos, não achei graça. Era esta a situação há oito dias, tempo-padrão, depois do pouso no planeta Hades que, conforme já tivéramos oportunidade de perceber, tornava-se martirizante. *** Só faltava instalar no espaço oco o grande transmissor, cujo alcance era pouco superior a dois anos-luz. Não se podia negar que esses terranos tinham senso prático. Colocaram a Califórnia ao pé da grande cadeia de montanhas, com a qual procurara não entrar em contato durante o pouso. Cordilheira da Esperança, foi esse o nome que Rhodan deu ao maciço que atravessava a zona de penumbra com seus oitenta quilômetros de largura. A leste do lugar em que nos encontrávamos, os picos se erguiam para dentro da luz implacável do sol, enquanto a oeste os cumes desapareciam na escuridão eterna da face gelada. De qualquer maneira, a rocha natural não pôde resistir quando Rhodan em pessoa manipulou um canhão de impulsos de tamanho médio e fundiu uma abertura em forma de túnel nos flancos do complexo montanhoso. Os gases produzidos pela evaporação da rocha foram ionizados. Depois os captamos por meio de campos magnéticos. Muito além da faixa de vibração, os vapores voltaram a solidificar-se e choveram ao solo sob o efeito da gravidade. As paredes da abertura foram revestidas pelo processo de pistola de plástico blindado e providas de uma comporta de ar de dimensões relativamente reduzidas. É claro que, antes disso, o grande transmissor foi colocado na abertura, que media vinte metros de altura e quase cinqüenta metros de profundidade. Naquele momento, os homens estavam camuflando a parede externa artificial. Mais uma vez a rocha natural foi gaseificada. Um raio de tração a captou em estado ionizado e a comprimiu contra o abaulamento de plástico blindado. Como a aderência fosse perfeita, surgiu um reboco tão irregular e de aspecto tão natural que só pude fazer um gesto de admiração. Esses pequenos bárbaros sabiam como defender-se. Era pena que sua leviandade não conhecia limites. Pelos meus planos, já devíamos ter decolado no dia anterior para tentar o salto. É que o cuidadoso controle que levei a efeito parecia revelar que os cálculos de Bell tinham uma base aceitável. Mas não. Não quiseram partir enquanto esse maldito transmissor não tivesse sido instalado. A vibração do planeta era bem mais intensa do que supúnhamos. Há três dias notáramos que a extremidade superior do sol gigante sobressaía cada vez mais sobre a linha do horizonte.
Em conseqüência disso, a face diurna passou a estender-se na direção do lugar em que estávamos. Era um fenômeno inconveniente. Ficava cada vez mais claro. Já se distinguiam perfeitamente os contornos das montanhas e ao ar livre liam-se trechos impressos em caracteres pequenos. E ainda pressentíamos o hálito escaldante que nos envolveria dentro de alguns dias. Não nos demos ao trabalho de realizar as observações minuciosas que se tornariam necessário para calcular a seqüência exata das oscilações. O planeta Hades não nos parecia suficientemente interessante para isso. Bastava saber que seu diâmetro era de 6.385 quilômetros, e que a gravitação chegava a 0,35G. As condições seriam muito semelhantes às de Marte, se não fosse a lentidão de seu movimento de rotação em torno do próprio eixo. Protegera-me atrás da Califórnia. Pouco acima do solo sempre havia vestígios tênues de gases, resultantes da evaporação das precipitações atmosféricas. Até chegamos a constatar a presença de oxigênio, mas sua percentagem era tão reduzida que não havia como aproveitá-lo. Envergávamos os pesados trajes espaciais equipados com um gerador automático de campo defensivo. Dessa forma, a eliminação da gravidade nos permitia fazer vôos restritos. Além disso, estávamos protegidos contra o ambiente hostil. O medidor de pulso indicou que a temperatura estava sujeita a fortes variações. O calor aumentava à medida que a extremidade superior do sol vermelho se erguia acima do horizonte. Por ali, a poucos quilômetros do lugar em que nos encontrávamos, reinava um calor mortífero. Todas as substâncias, cujo ponto de fusão fosse baixo, entravam em ebulição, e o solo deserto era tão quente que só se podia pisá-lo com botas especiais e blindadas. Até então fizera uma única tentativa de submeter a um exame detido o deserto iluminado pelo olho mortífero do sol vermelho. Mas como as investigações praticamente não se revestissem de qualquer interesse, logo desisti das mesmas. Quando o pequeno canhão de impulsos da Califórnia voltou a trovejar, recuei apressadamente. Ao que tudo indicava, Rhodan ainda não julgava suficiente o reboco de rocha, cuja grossura chegava a quase três metrôs. Há poucos minutos avisara-me pelo rádio de capacete que ainda havia um pequeno risco de que as substâncias estranhas fossem localizadas. Esperei que o raio energético ofuscante se apagasse. Só depois fui à parede de rocha, muito bem camuflada, para passar pela minúscula comporta e penetrar no interior do túnel. A instalação do transmissor já fora concluída. Um pequeno gerador de emergência forneceria luz e, se necessário, calor, mas o problema do suprimento de ar respirável ainda não fora solucionado. No dia seguinte seria montado o equipamento de oxigênio e de climatização, e também o equipamento de regeneração de ar. Por isso as duas escotilhas de aço da comporta de ar ainda estavam abertas quando finalmente cheguei à parede de rocha. Face à reduzida gravitação do planeta, o peso do traje espacial ficou reduzido a tal ponto que quase não sentia a carga. Fiquei espantado ao encontrar Rhodan e o mutante Fellmer Lloyd no interior da grande galeria. Eles estavam controlando os contatos do transmissor, cuja unidade energética autônoma e os elementos de regulagem nos deixavam bastante preocupados. Pretendia-se utilizar essa base para o recebimento de peças de novos transmissores, que poderiam ser montados ali mesmo. Se tudo corresse segundo os planos, seria
perfeitamente possível que, um belo dia, os terranos possuíssem uma fortaleza oculta em pleno coração do sistema dos druufs. — Será que vocês estão loucos? — gritei para dentro do microfone de meu capacete. — Talvez vocês se tenham esquecido, mas acontece que há cerca de dez minutos Reginald Bell atirou contra este morro com o canhão de radiações, a fim de obter material de camuflagem. Rhodan virou o corpo para ver-me melhor. Lloyd, no qual a mutação só produzira a capacidade de percepção das vibrações cerebrais de outros seres, até que um treinamento adicional lhe conferisse o dom da telepatia, soltou uma gargalhada. Era um tipo moreno e apático, de olhos inteligentes e estatura baixa e robusta. Gostava dele porque nunca tentara romper meu bloqueio mental para sondar o conteúdo de minha mente. — É verdade! — disse Rhodan em tom indiferente. — Acontece que aqui dentro não percebemos nada. Onde estão esses dorminhocos? Respirei profundamente. Esse bárbaro talvez pensasse que outras pessoas também sabiam passar quarenta e oito horas sem dormir. — Mandei-os para os camarotes, se é que você me dá licença a posterior!. Sabe lá como vai a saúde de seus homens? Afinal, eles não são robôs. Seus olhos cansados e injetados de vermelho brilharam alegremente atrás do visor do capacete. — Está bem — respondeu. — Amanhã o equipamento de aeração será instalado na caverna. Depois verificaremos a exatidão de sua teoria da compensação. Não quero passar mais uma vez por aquela paralisia! Você compreende? Sim, compreendia muito bem. Levarei muito tempo para esquecer a terrível visão. Vindos de fora, ouviram-se ruídos fracos. Os vestígios de ar conduziam o som permitindo que se pudesse detectar a presença de fontes de ruídos. Pelo rádio de capacete fomos advertidos de que não devíamos abandonar nossa posição. Os especialistas da nave estavam aplicando mais uma camada de rocha. Dali a quinze minutos, estava tudo terminado. À frente da comporta aberta, surgira um dique formado pelos pingos de rocha, que quase chegava a impedir a entrada. — É um trabalho caprichado e preciso — constatou Lloyd em tom satisfeito. Fiquei encantado ao notar que os tripulantes da Califórnia nos haviam deixado uma pequena saída. Rhodan cometera uma leviandade imperdoável ao manter-se no interior da galeria durante a ação de camuflagem. No momento em que Rhodan colocava no chão uma ferramenta especial, o inferno irrompeu do lado de fora. Uma onda de compressão atravessou a pequena abertura com tamanha violência que nos atirou para trás. Antes que as dores vindas das costas me deixassem quase inconsciente, ainda ouvi o grito estridente de Lloyd. Apenas Cheguei a compreender que o ataque, que já não esperávamos mais, acabara de ocorrer. Apenas, viera de forma totalmente diversa da que esperávamos. Ouvi a voz exaltada de Rhodan pelo rádio de capacete. O conteúdo da ordem enervou-me tanto quanto o volume excessivo da voz. Apenas sentia a dor. — Decolem! Decolem imediatamente! Bell, Sikermann, subam com a nave e entrem imediatamente em transição. Esperaremos aqui até que a estação do transmissor da Drusus dê o sinal verde. Vamos logo! Decolem! Isto é uma ordem. Não podemos perder tempo. Estou dando ordem para decolar. Voltou a gritar as mesmas palavras, até que de repente se ouviu o rugido profundo das potentes máquinas da nave. Ao que parecia, o cruzador não fora danificado, ou
apenas sofrera avarias leves. Sikermann desenvolveu toda a potência dos propulsores ao decolar, o que quase fez desabar nosso pequeno túnel. O tremor de terra me fez gemer. Naquele momento, pouco me importava que a Califórnia decolasse sem nós ou não. Pensava apenas no ferimento que sofrerá com o forte impacto, e que talvez pudesse ser grave. No ambiente em que nos encontrávamos, não havia a menor possibilidade de abrir o traje espacial hermeticamente fechado para tratar de ferimentos ou fraturas. Minhas reflexões ditadas pelo pânico foram interrompidas pela voz nervosa de Lloyd: — Foram embora! Meu Deus, foram embora! Rhodan ergueu-se lentamente. Lá fora, junto à comporta, via-se uma incandescência ofuscante. Ao que tudo indicava, haviam disparado contra o cruzador com um pequeno canhão de impulsos. Apesar das dores que sentia, não pude abster-me de uma observação. — Então, bárbaro, o que me diz? Tivemos uma bela surpresa, não é? Será que você poderia fazer o favor de verificar se por acaso fraturei a coluna?
7 — Quando eu o vejo assim, chega a estranhar que a mãe de meu filho também seja uma arcônida — disse Rhodan em voz alta. A onda de choque provocada pelo tiro de radiação enchera o túnel com uma massa de gases comprimidos. Lá fora soprava uma brisa ligeira. Provavelmente o raio térmico escaldante acelerara o fenômeno já iniciado da evaporação dos gases, De qualquer maneira, consegui entender Rhodan, do que se concluía que havia um meio propagador de som. Eu estava deitado de bruços. Fellmer Lloyd estava agachado junto à entrada da caverna e olhou para a planície rochosa ondulada, na qual há quinze minutos estivera a Califórnia. Poucos segundos depois da decolagem de emergência, havíamos recebido uma mensagem pelas ondas normais de rádio. O cruzador devia ter disparado para o espaço com a aceleração louca que lhe era peculiar e, por isso, mal conseguimos ouvir a transmissão. Afinal, as ondas ultracurtas sofrem uma grave interferência das partículas expelidas pelos mecanismos de propulsão, e não possuíamos nenhum hiper-rádio. Sikermann e Bell comunicaram que haviam conseguido romper o bloqueio. Arriscariam a transição. Passariam pela fresta e penetrariam no Universo einsteiniano, de onde voltariam de qualquer maneira com a Drusus. Assim que ouvimos o último fragmento da mensagem, as comunicações de rádio foram interrompidas em definitivo. Sem dúvida, a Califórnia já saltara, pois não levava mais de cinco minutos para atingir a velocidade da luz. Restava saber se Sikermann conseguiria fugir do plano temporal dos druufs. Provavelmente as tempestades gravitacionais no interior da zona de descarga já teriam amainado. Se tivéssemos muita sorte, a Drusus poderia chegar ao espaço dos druufs, dali a algumas horas. E, uma vez que trazia a bordo excelentes transmissores de elevada potência, provavelmente conseguiríamos escapar daquele inferno... Os dedos de Rhodan voltaram a comprimir minhas costas. Não pude deixar de gemer baixinho. Fellmer Lloyd virou a cabeça para nós. A luz, que penetrava pela abertura da caverna, permitiu-me ver seu rosto coberto de suor. Procurei sorrir, para fortalecer o moral do homem que provavelmente estaria sofrendo muito mais que eu. Rhodan cochichara ao meu ouvido que, há algumas horas, o mutante sofria um princípio de disenteria. Não avisara imediatamente da doença, porque o Dr. Sköldson continuava a insistir na norma de “andar de quatro”. Evidentemente fora uma loucura rematada não avisar imediatamente o médico sobre um assunto desagradável como este. Depois da partida da Califórnia, Lloyd passou a contorcer-se em violentas cólicas intestinais. Senti-me deprimido e envergonhado ao mesmo tempo, ao ver que soubera dominar seu sofrimento com tamanha hombridade. Ao que parecia, já estava passando melhor. Ao menos esforçou-se para retribuir meu sorriso. Mas, a essa hora, ainda não sabíamos que as instalações sanitárias do traje espacial de Fellmer não estavam funcionando. Provavelmente durante a queda esse equipamento vital sofrera avarias tão graves que já não podia executar suas importantes funções.
Nós não podíamos fazer nada pelo mutante. Ele dependia exclusivamente do estoque reduzido de medicamentos que se encontravam na cápsula de suprimento automático de seu capacete. Mas provavelmente entre esses remédios não havia nenhum medicamento para os intestinos. Dali em diante, não movi nenhum músculo da face, até que Rhodan concluísse o exame. Tateou minhas costas através do material grosso de meu traje espacial, método que era bastante deficiente. — O que é isso? Você conhece minha estrutura óssea? — Mais ou menos. Uma vez que seu tórax não é normal, a sua placa óssea deve ir até, mais ou menos, a altura da costela inferior direita de um ser humano... Será que está fraturada aqui? Bateu com o dedo no lugar a que se referira. Levantei-me com um grito. Se apenas a placa dorsal estivesse rompida, as coisas não seriam tão ruins assim. A regeneração daquele tecido forte, mas altamente elástico, era extremamente rápida. Provavelmente algumas horas de repouso seriam suficientes. — Você seria um excelente médico — disse com um gemido, assim que consegui colocar-me de pé. Caminhei cautelosamente em direção à comporta de ar, que, do lado de fora, estava encoberta por uma elevada parede. Só podíamos olhar para o exterior através de uma fenda estreita. O soterramento, que antes era considerado uma desvantagem, agora representava uma vantagem considerável. Se os druufs tivessem um pouquinho de inteligência, gostariam de saber o que viera fazer neste mundo a tripulação daquele cruzador desconhecido, que fugira tão depressa. Se além do mais não tivessem apreendido ou destruído a Califórnia, sem dúvida estariam interessados em obter outras indicações. E essas indicações só poderiam ser encontradas no lugar em que antes estivera a nave, ou seja, a menos de seiscentos metros da abertura da caverna, da qual 75 por cento haviam sido fechados pela rocha derretida. Não nos entregamos a qualquer ilusão sobre o que poderia acontecer, caso resolvessem realizar uma investigação minuciosa. Em virtude da excelente camuflagem, em hipótese alguma, a grande parede de plástico poderia ser vista. E a localização da matéria estranha também me parecia impossível, a não ser que resolvessem colocar o respectivo aparelho junto à entrada do túnel. Mas isso seria um simples acaso. Os lugares mais perigosos eram aqueles em que o material fora retirado para servir no revestimento da parede de plástico. Era bem verdade que esses lugares ficavam a uma distância regular. Neles existiam amplas superfícies vitrificadas, que permitiriam certas conclusões. Se nos defrontássemos com seres humanos, a estes talvez ocorresse a idéia certa. Mas não tínhamos nenhuma certeza sobre a reação dos druufs. Talvez os mesmos não soubessem o que pensar diante do fenômeno das rochas fundidas expostas. Era nossa única esperança, pois a realização da investigação tornava-se tão certa quanto a própria existência dos druufs. Deitamos na comporta e subimos a forte rampa. A fenda não tinha mais de quarenta centímetros de largura. Com alguma dificuldade, se conseguiria ultrapassá-la. Mas nem por isso se poderia dizer que a mesma era visível do lado de fora. Provavelmente a fenda se encaixava com tamanha perfeição na parede rochosa entrecortada, que só uma pessoa que passasse por perto poderia notar alguma coisa. Nessas condições não tínhamos o menor interesse em entrar em contato com os druufs.
Comprimi meu capacete contra o de Fellmer Lloyd, a fim de usar o respectivo material como condutor de som e obter uma comunicação mais perfeita. Ouvi-o gemer baixinho. Seu corpo executava movimentos convulsivos. Provavelmente estava sofrendo mais um ataque de cólicas. — Fique calmo, meu filho — gritei. — Daqui a algumas horas, a Drusus penetrará no espaço dos druufs. As instalações de nosso transmissor são perfeitas. Funcionará perfeitamente. — Tomara, almirante — respondeu em tom hesitante. Ouvi que respirava com dificuldade. — Peço desculpas por ter falado num tom pouco otimista. Mas afinal sou apenas um ser humano e meu corpo... — É claro; não há nada para desculpar — interrompi-o em tom constrangido. Meu constrangimento não era provocado pela doença, que era tão natural como qualquer outra. Tinha sua origem no fato de aquele homem ter julgado necessário formular um pedido de desculpas. — O senhor terá de agüentar, Lloyd. No momento estamos condenados à inatividade. No interior da caverna reina um vácuo quase perfeito. O que dizem os controles das suas instalações sanitárias? Faremos uma limpeza das mesmas. Fique deitado e acalme-se. Entendeu? — Entendi, sim senhor. Farei o que o senhor acaba de dizer. Apenas receio que não haja mais nada para limpar, almirante. Rhodan encostou seu capacete ao meu. Ainda não compreendera, mas ele já parecia desconfiar do que estava acontecendo... Dali a alguns segundos, Lloyd confessou em tom hesitante que o aparelho se quebrara ou sofrera outro tipo de avaria durante a queda provocada pela onda de choque. E foi assim que ouvimos a notícia catastrófica. A sintomatologia de sua doença poderia causar dentro de pouco tempo o envenenamento do ar respirável. Para produzir a necessária pressão externa, os aparelhos estavam cheios de gases intestinais, que trasmitiam ao corpo uma pressão de cerca de quinhentos milibares. — Agüente, Lloyd, a Drusus não demorará a chegar — disse Rhodan a título de consolação. Naquele momento não encontrei nenhuma palavra que pudesse trazer alívio. O mutante virou a cabeça e esforçou-se para sorrir. Eu já sofrera uma disenteria bacilar, e por isso sabia perfeitamente o que esse homem devia estar sofrendo no seu envoltório hermeticamente fechado. Comigo o desastre acontecera num acampamento de Wallenstein. Naquela oportunidade tratava-se de uma epidemia, e não dispúnhamos de qualquer meio para debelar o mal. — Onde o senhor contraiu a infecção? — perguntou Rhodan. — Isso deve ter alguma causa. — Talvez tenha sido a água de Fera Cinzenta, Sir — disse Lloyd com a voz débil. A suposição podia perfeitamente ser correta. Caso Lloyd se tivesse deixado seduzir pela água límpida das fontes, havia uma boa probabilidade de ter contraído a infecção por lá. Caso ainda tivesse oportunidade, sugeriria aos membros da equipe médica da frota que incluíssem nas provisões dos trajes espaciais certos antibióticos de amplo espectro de ação.
A disenteria de Lloyd só podia ser infecciosa. A limpeza impecável reinante nas naves e o estado excelente das instalações sanitárias colocavam para trás até mesmo aquilo que vira nas unidades de meu povo. Estive a ponto de perguntar a Lloyd por que não se apresentara ao médico assim que surgiram os primeiros sintomas da doença. Mas preferi não fazê-lo. Não adiantaria falar sobre coisas que não podiam ser remediadas. Naquela hora já deveria estar sendo torturado pelas auto-recriminações. Sem dizer uma palavra, Rhodan começou a quebrar algumas pedras pontudas que se encontravam na cumeeira do “dique”. Observei-o. Durante a breve palestra que mantivera com Lloyd, esquecera totalmente minhas dores. E, a essa hora, já não eram tão fortes, pois não me impediam de executar qualquer movimento. — Darei uma olhada lá fora, para ver como está nossa camuflagem — disse. — Você ficará aqui. O.K.? Fez um ligeiro sinal para Lloyd, que se mantinha deitado a nosso lado. Rhodan atravessou a estreita fenda. O material de seu traje espacial era resistente. Dificilmente se rasgaria. Observei-o tranqüilamente enquanto caminhava por entre as rochas. Minha mão segurava a pesada arma térmica automática, que os terranos costumam chamar de radiador de impulsos. Na situação em que nos encontrávamos, qualquer resistência seria inútil. Apesar disso, estava firmemente decidido a dar-lhe cobertura, se houvesse algum ataque. Lá fora, o sol escaldante já alcançara o lugar em que se encontrava nossa base. As poucas sombras restantes desapareceram, e, dali a alguns minutos, senti-me ofuscado ao contemplar a ampla paisagem do deserto. Rhodan desapareceu ao longe. Vista daqui, aquela área parecia um profundo abismo onde era impossível enxergar nitidamente. — Tudo bem, almirante — comunicou o telepata. Comprimiu seu capacete ainda mais fortemente contra o meu. Fiz um sinal para Lloyd. Talvez um pouco de atividade mental até lhe fizesse bem, pois lhe faria esquecer os sofrimentos. Dali a uns três minutos ouvi o sinal de meu receptor. Rhodan estava chamando pelo rádio. — Você está louco? — interrompi-o assim que proferiu as primeiras palavras. — Poderão fazer a localização goniométrica. — Que nada! Estou transmitindo com 0,2 watts. Além disso não vejo nada que pudesse captar a transmissão. Estou a cerca de um quilômetro, dentro da área de sombra. Como são as coisas vistas do outro lado? — Do meu lado? — É claro que sim! — Que linguagem grosseira — observei. — Fique tranqüilo; não o vemos e nem a qualquer outra coisa que esteja no lugar onde você se encontra. O sol ofusca tremendamente. Para mim, por aí só existe a noite. — Excelente. Em compensação, visto daqui, o paredão de rocha é um quadro confuso e apagado. Da parede da caverna não se vê nada; só consigo identificar o local de entrada por determinados sinais. Aposto que não nos encontrarão. — Se você continuar transmitindo, eles logo nos encontrarão.
— O.K. Já vou parar, seu pessimista. Não, não fique nervoso. Realmente poderíamos ter decolado um dia antes. Assim teríamos evitado tudo isto. Lloyd, como vai? Quer sair um pouco? Isso talvez possa distraí-lo. — Prefiro não sair, Sir — disse Fellmer em voz baixa. — Sinto-me muito mal. Será que poderia ajudar-me a conseguir um pouco de oxigênio? Senti que empalidecera. Oxigênio? Por que estaria pedindo oxigênio? Havia uma norma estrita segundo a qual o sistema de regeneração de alta pressão devia ser carregado e verificado todos os dias. Será que negligenciara essa norma primária? Não, não era possível. A reação de Rhodan também foi de espanto. — Oxigênio? Não, Lloyd, isso não é possível. O regenerador fica sob o revestimento do traje. Não conseguiremos alcançá-lo. O que houve? Está com falta de ar? Virei a cabeça para ver o doente. No momento em que sentiu meu olhar, ficou muito embaraçado. Desconfiei de alguma coisa. — Não senhor — gaguejou Lloyd. — Meu aparelho está em ordem. Será que posso arriscar-me a soltar o enchimento pressurizado de meu traje pela válvula de regulagem? Depois faria a recarga com o suprimento das garrafas. — Está certo; mas por quê? — Não se faça de criança — intervim em tom grosseiro. — Seu ar está gasto; procure compreender. Quando surge uma disenteria e simultaneamente ocorre a falha das instalações sanitárias, isso pode acontecer. Está bem, Lloyd, solte o gás. O suprimento de oxigênio de seu traje normalmente daria para oito dias, tempo terrano. Prepare-se para ter oxigênio apenas para quatro dias. Comece logo! Ponha para fora esse ar envenenado. Ajudei-o a abrir a válvula de regulagem na parte traseira do capacete. A pressão baixou rapidamente. Assim que a zona de perigo foi atingida, injetei o oxigênio das supergarrafas no circuito regenerador. Os recipientes de aço de Árcon estavam aferidos para uma pressão de dez mil atus. Rhodan praguejava baixinho e em tom amargurado. Suas palavras não se dirigiam contra Lloyd, mas contra a situação em que nos encontrávamos. Interrompi-o em tom mordaz: — É interessante que alguém ainda ache que tem de praguejar. Parece que, durante suas alegres expedições de conquista espacial, vocês nunca passaram por uma como esta, não é? Depois dos êxitos iniciais, vocês ainda conhecerão muitos reveses. Tenho plena certeza do que estou afirmando. — Cale-se, arcônida. — Não pude deixar de dizer isto. Procure voltar à galeria. Na minha opinião, a qualquer momento poderá aparecer uma nave dos druufs. Rhodan não disse mais nada, pois não havia mesmo o que dizer. Em compensação vi-o de repente, quando saía da sombra. Uma luminosidade ofuscante surgira no firmamento sombrio. — Não está com medo, mas sabe correr — falei em tom irônico. Lloyd soltou uma risadinha. Achei-o muito simpático. Rhodan apareceu fungando e com as pernas cambaleantes. Arrastei-o rudemente pela abertura. Seu rosto estava coberto de suor. Comprimi um botão e desliguei seu transmissor. Dali a alguns minutos, um monstro negro, banhado pela luz forte do sol, desceu sobre as colunas chamejantes feitas das partículas de impulsos. Ouvia-se perfeitamente o rugido profundo do mecanismo propulsor. O impacto dos raios de empuxo fez a
montanha estremecer. Lancei um olhar preocupado para o revestimento das paredes. Mas estas nem sequer apresentavam as fendas características de solicitação excessiva. No momento em que a nave dos druufs mergulhou na sombra da Cordilheira da Esperança, apenas percebi-lhe vagamente os contornos. Pousaram na área de penumbra, tal qual esperávamos. Nenhuma criatura dotada de mediano bom senso desceria justamente sob os raios escaldantes do sol. — Ainda bem! — disse Rhodan em voz baixa. — Agora vão dar uma olhada. Também dei uma olhada; apenas, minha atenção foi dedicada ao aparelho de múltiplas finalidades que trazia no pulso. Estávamos sendo atingidos em cheio pelos raios do sol. Dentro de alguns minutos, a temperatura subira para 68 graus centígrados. Lá fora o calor devia ser ainda maior. Nossos trajes protetores estavam equipados para proteger-nos de temperaturas até quinhentos graus por meio da simples reflexão e do funcionamento do sistema de condicionamento. Se as coisas ficassem piores que isso, não haveria outra alternativa senão ativar o campo energético defensivo, mas este, sem dúvida, possibilitaria nossa localização. Fazia votos de que não fôssemos obrigados a recorrer a esse equipamento. Bastava que o microrreator destinado ao suprimento de energia estivesse em funcionamento. O corpo de Fellmer Lloyd contorceu-se sob os efeitos de mais um ataque de cólicas intestinais. Assim praticamente se tornara inútil como telepata. Segui o olhar de Rhodan, mas tive de notar que a luz verde do transmissor de matéria continuava apagada. Trocamos um olhar indagador. O que teria acontecido com a Califórnia? Será que não conseguira atravessar a barreira? Se conseguiu, por que a Drusus ainda não chegara? Num movimento muito lento, Rhodan tirou o radiador de impulsos do cinto. No momento em que a luz vermelha de carregamento da arma se acendeu, compreendi que não estava disposto a tornar-se prisioneiro dos druufs sem lutar. Aliás, nem tínhamos certeza de que esses seres conhecessem o aprisionamento de inimigos. Durante a grande guerra do metano, travada há dez mil anos, poucos prisioneiros foram capturados. Nenhuma das partes dispunha de meios que permitissem criar condições adequadas de vida para os inimigos subjugados. Se o inimigo respirasse oxigênio, ou se nós respirássemos metano, as coisas teriam sido melhores. Ficamos à espera. Da grande nave, que se erguia uns trezentos metros em direção ao céu da área de penumbra, só se via a ponta em semi-esfera. A nave dos druufs repousava sobre as largas aletas de popa que, segundo tudo indicava, só haviam sido escamoteadas pouco antes do pouso. — Gostaria de conhecer o hiperpropulsor dessa gente! — disse Rhodan em tom tranqüilo. O bárbaro mantinha uma calma admirável. Naquele momento eu não me interessava nem um pouco por esse aparelho. Estava refletindo — atividade que, segundo as palavras de um homem inteligente, é a própria arte da inteligência. Na planície branca tudo continuava imóvel. À medida que fixávamos o olhar, os contornos da nave estranha se destacavam na sombra da zona intermediária. Aos poucos, a vista se acostumava à estranha iluminação. Fellmer Lloyd estava quase inconsciente. O último ataque pusera-o fora de ação. Os dotes telepáticos de Rhodan eram tão reduzidos que não permitiam qualquer conclusão precisa. Esforçava-se para captar os pensamentos dos druufs, mas não conseguiu identificar os impulsos cerebrais que chegaram à sua mente.
— De qualquer maneira são totalmente inumanos — constatou depois de algum tempo. — Não sei o que fazer? Quando será que essa gente vai aparecer? Vieram dali a quinze minutos. Provavelmente, antes disso, haviam dado uma busca rigorosa com seus instrumentos de localização. Foram bastante inteligentes para desistirem desde logo de andar a pé sob aquele sol escaldante. Apenas vimos vários veículos achatados, de forma elíptica que, segundo tudo indicava, se locomoviam sobre campos magnéticos. Não dispunham de rodas ou esteiras. Mais uma vez, me convenci de que esses seres deviam ter desenvolvido uma tecnologia bastante avançada. Era claro que sabiam perfeitamente o que os esperava em seu próprio sistema solar. Por isso usavam o tipo de aparelhamento que melhor se prestava às tarefas que teriam de executar. Prendemos a respiração quando três dos veículos deslizantes passaram lentamente pela abertura de nossa caverna. Vi as antenas giratórias e as lentes vermelhas das objetivas, que provavelmente faziam parte de um sistema de imagens óticas. Muito tensos, ficamos com as armas engatilhadas até que tivessem passado. Dali a três horas, a nave estranha decolou com um ruído trovejante. Assim que o silêncio voltou a reinar, suspirei aliviado. Rhodan voltou a colocar a arma no cinto. — O.K., então foi isso — disse. — Não voltarão. Provavelmente eu também não teria tido a idéia de que bem embaixo de meu nariz houvesse uma pequena base de uma raça desconhecida. É um atrevimento, não é? Não pude deixar de concordar. Passamos a cuidar do mutante. Seu ar respirável já estava poluído de novo. Se as coisas continuassem assim, o suprimento de oxigênio de Lloyd não duraria muito. Lançamos um olhar ansioso para o transmissor. Mas a luz verde não se acendera, o que demonstrava que ninguém havia ajustado um aparelho receptor. Dirigi-me ao local de pouso da nave dos druufs. Tinha a esperança de encontrar alguns objetos esquecidos. Mas não descobri nada além da superfície vitrificada, que ainda se mantinha incandescente.
8 Durante 72 horas passamos acordados ou em cochilos, esperando sempre que a luz verde do transmissor se acendesse. Não havia nada que tanto preenchesse a escala dos nossos desejos ardentes como o surgimento daquela luz de controle. Ainda havia a doença de Lloyd. Esta não só representava uma ameaça indireta à sua vida, mas constituía uma carga adicional. Seu ar pressurizado teve de ser renovado muitas vezes. Não encontramos nenhuma possibilidade de limpar os gases impregnados de toxinas. O regenerador de ar não previa uma hipótese como esta. Sem dúvida tratavase de um erro de nosso traje. O ar de Fellmer Lloyd não daria para mais de doze horas. Se até lá não pudesse tirar seu traje, estaria irremediavelmente perdido. Há dois segundos a lâmpada finalmente começara a tremeluzir. E agora brilhava tão fortemente como se nunca tivesse ficado apagada. Não perdemos tempo. Se a Drusus finalmente conseguira romper a barreira, até os segundos deveriam ser contados. Rhodan e eu erguemo-nos de sopetão do leito improvisado, montado por meio do material abandonado. Lloyd repousava apaticamente a nosso lado. Seu rosto estava pálido e flácido. Parecia ter perdido todas as energias. — Levante-se, Lloyd! — gritou Rhodan. — Lloyd, a luz de controle está acesa. A Drusus ligou para a recepção. Venha! O exemplo de Lloyd demonstrou que, conforme o caso, a criatura humana sabe mobilizar reservas imensas de energia. Até parecia que, no interior do mutante, estivesse sendo ligado um motor de enorme desempenho energético, que até então ficara parado. Subitamente seus olhos clarearam. Olhei pelo visor de seu capacete e vi um rosto de traços duros, com rugas profundas entre a boca e o nariz. — O.K. — limitou-se a dizer. Naquele instante era a concentração em pessoa. Percebi que guardara para esse momento todas as energias orgânicas restantes. Sem precisar de auxílio, correu para os fundos da galeria, onde o transmissor de elevada potência quase chegava até o teto. Rhodan havia colocado em funcionamento o sistema de suprimento de energia. Já estava tudo preparado. Bastava mover algumas chaves para que o aparelho entrasse em funcionamento. As coordenadas de transporte foram fixadas com uma precisão de três casas decimais. Nos últimos três dias verificáramos e corrigíramos constantemente as tolerâncias no dispositivo de entrada. Rhodan foi o primeiro a subir à grande plataforma metálica que ficava numa grade circular. As traves da grade chegavam bem acima de nossas cabeças, e nela se apoiava a cúpula polar que emitia um brilho semelhante ao do cobre. Era ali que o campo de desmaterialização desceria sobre nós. Com as mãos trêmulas enfiei os pés de Lloyd nos contatos das presilhas do solo. Bastou comprimir um botão para fechar a entrada.
Pela primeira vez compreendi por que esse tipo de transmissor foi construído de modo a depender de um suprimento de energia autônomo. Na situação em que nos encontrávamos, não poderíamos contar com outra fonte de energia. Rhodan fez as ligações preliminares. Demorou apenas alguns segundos até que o leve zumbido que saía da base do aparelho se transformasse num ruído trovejante. Uma parede energética vermelho-pálida desceu pela grade e entrou em contato com o campo luminoso que se formara junto aos pólos do piso. Nossos sentidos ainda funcionavam. Mas no momento que antecede um salto de transmissor, o raciocínio é encoberto por angústias dificilmente controláveis, que irrompem das profundezas do subconsciente. O sentimento natural do indivíduo rebelava-se contra a desmaterialização. Quanto mais desenvolvido o instinto de autoconservação, mais difícil se tornava controlar a angústia da desmaterialização. Colocáramos Lloyd entre nós. O campo energético luminoso parecia incendiar a caverna. Rhodan aparentou uma calma tocante. Esforcei-me para também parecer calmo. Nunca realizara um salto de transmissor por uma distância de dois anos-luz, muito menos com um instrumento montado na superfície. Lembrei-me da instabilidade física do Universo dos druufs. Se enfrentáramos tamanhas dificuldades com uma simples transição, o que não poderia acontecer num processo de transporte físico-mecânico? Rhodan talvez pensasse nos mesmos problemas. Sempre que seu rosto assumia um ar tão indiferente como nessa hora, refletia intensamente sobre assuntos importantes. A campainha soou dentro de três segundos, que me pareceram uma verdadeira eternidade. Lloyd fitou-me. Seus olhos escuros pareciam chispar. Fazia um esforço total para controlar-se. Meu sorriso deve ter sido um pouco desanimado. Comprimi o acionador do mecanismo de salto, que ficava do meu lado. Os últimos pensamentos fugazes, que me acudiram à mente, foram dedicados ao desempenho energético do transmissor. Não seria possível localizá-lo com um rastreador estrutural comum, porque seu funcionamento não causava ondas de choque estruturais. Mas se haviam inventado um aparelho adequado... A dor da desmaterialização foi tão intensa que ouvi meu próprio grito. Parecia que um cirurgião iniciara uma operação antes que a anestesia estivesse completa. A última impressão transmitida por meus sentidos foi a figura contorcida de Rhodan. No momento em que teve início o processo de desmaterialização, seu corpo tornou-se quadrado e alargou-se. Depois senti apenas a dor lancinante. Ao que parecia, o Universo dos druufs ainda não se estabilizara inteiramente. Finalmente não houve mais nada. Era possível que a tessitura dos nervos muito sensíveis fosse a última a dissolver-se. Na verdade, um organismo dissociado nos átomos que o compõem não deve sentir mais nada... Porém, tem-se a impressão de cair no interior de uma espiral de fogo. *** A dor ardente de todos os nervos parecia ter acompanhado o processo de transporte fictício. Assim que este teve início no aparelho receptor, ao choque costumeiro de rematerialização juntou-se o remanescente do processo de dissolução.
Não via nada, embora já tivesse voltado a existir fisicamente! Devíamos estar na plataforma há algum tempo, em estado de semi-inconsciência, ou então alguma coisa não estava em ordem com o aparelho. Fiquei aliviado ao perceber que conseguia mover as mãos e os braços. Alguém tateou em minha direção. Era Fellmer Lloyd, que me apertava fortemente. Compreendi que estava mais ou menos bem. Névoas vermelhas passavam diante dos meus olhos. Por aqui tudo parecia ser vermelho. Aos poucos, comecei a odiar essa cor. Tive a impressão de ouvir alguém chamar ou gritar. Levei algum tempo para ouvir meu nome. Dali a pouco consegui enxergar. O rosto de Lloyd foi surgindo em meio à névoa. Depois vi Rhodan sentado no chão do transmissor. Com movimentos inseguros, Perry procurava desprender os contatos dos pés. Não; aquilo nem eram contatos. E também não nos encontrávamos numa plataforma redonda como a de qualquer transmissor terrano. O que tocávamos com as grossas solas de aço plastificado parecia ser feito de pedra polida. Em meu cérebro surgiu uma dor surda e opressiva, que recrudesceu fortemente assim que o setor lógico de minha mente despertou, para logo a seguir desaparecer de súbito. “Erro de salto. Ambiente estranho, que não se identifica com o da nave terrana”, anunciou meu segundo cérebro. Finalmente despertei da estranha rigidez. Os ruídos que acreditara serem sons trovejantes eram causados por minha unidade energética individual. O gravômetro de capacete indicava uma compensação de 0.95G. Isso significava que nos encontrávamos num mundo ou numa nave onde a gravidade chegava a 1.95G. Esse fato indiscutível me fez acordar de vez. Afinal, não é uma característica exclusivamente humana de, numa situação imprevista, pegar antes de tudo e quase inconscientemente a arma. Antes que Fellmer Lloyd compreendesse o que estava acontecendo, segurava meu radiador de impulsos. — O que houve? — perguntou em tom apressado. A voz que saía do capacete pressurizado soava abafada. Rhodan seguiu meu exemplo. Também parecia ter-se recuperado da estranha debilidade. Só depois olhei em torno. Encontrávamo-nos num recinto muito grande, escassamente iluminado, com teto abaulado e sem emenda. À nossa frente, uma abertura em arco levava para o ar livre. Mas lá a escuridão era ainda mais forte que no interior do recinto. A instalação existente na sala consistia unicamente em alguns conjuntos de gigantescas máquinas, dispostas ao longo das paredes, e no aparelho em que nos encontrávamos naquele momento. Tratava-se de uma “prisão” sem teto visível. Nossos pés tocavam a pedra nua, que não nos transmitia a sensação de conforto nem de segurança. Bem acima de nossas cabeças, junto ao teto abaulado, uma esfera metálica vermelha e incandescente pairava no ar. Era dali que saía a luz repugnante. A “prisão” era cercada por uma área circular de cerca de dez metros de diâmetro, mas as respectivas barras ficavam tão longe umas das outras que poderíamos passar sem qualquer esforço. Uma das características de Perry Rhodan consistia em, numa situação complexa como aquela, fazer observações que nada tinham a ver com as primeiras impressões que investiam sobre a mente.
— Temos ar respirável! — disse em voz tão alta que consegui entendê-lo perfeitamente. — Lloyd, abra o capacete. Isso é uma chance para você. Lancei um olhar rápido para o analisador automático. Até então as reações do mesmo sempre haviam sido precisas. Realmente, por aqui havia oxigênio, nitrogênio e uma quantidade surpreendente de gases raros. O teor de hélio e argônio quase chegava a ser excessivo. Era bem verdade que o barômetro indicava 830 milibares. Lloyd poderia arriscar-se a poupar seu ar engarrafado, que começava a ficar escasso. Mantinha-se de pé a meu lado, em atitude apática. Bati com a mão no fecho magnético de seu capacete. Este abriu-se silenciosamente. Um fluxo de ar poluído e venenoso foi expelido do traje. O mutante aproveitou o momento para reunir as últimas reservas de energia, a fim de transmitir uma notícia alarmante. — Viemos parar entre os druufs. Alguém se aproxima, vindo de fora. Sinto perfeitamente impulsos mentais estranhos. Não percebo com nitidez o que o desconhecido está pensando. Seus pensamentos são muito estranhos, totalmente inumanos. Até parece um animal semi-inteligente que esteja sendo controlado por meio de campos corporais superpostos. É só, Sir! Também abri meu capacete. Fiquei surpreendido com a boa qualidade do ar, mas tive de acostumar-me à elevada pressão externa. Senti um zumbido nos ouvidos. Cutuquei-os com os dedos, abri fortemente a boca e finalmente limpei os olhos incrustados. Para um arcônida, era muito agradável manter-se por um tempo prolongado no interior de um traje espacial, pois o estado de excitação aumenta o teor de umidade de nossos olhos. Rhodan foi o primeiro a passar pela grade. Com alguns saltos, colocou-se junto à entrada, abrigando-se atrás da base do caixilho da porta. Gritei apressadamente atrás dele que cuidasse do seu gravômetro. Só então percebeu que nos encontrávamos submetidos à gravitação de 1.95G. Lloyd arrastou-se atrás de mim. Sua capacidade de resistência quase chegara ao fim. Depois que percebi o cheiro exalado por seu traje, compreendi o que ele já sofrera. Estacou atrás de Rhodan e encostou-se à parede. Quanto a mim, procurei abrigar-me do outro lado da entrada. — Onde será que viemos parar? — cochichou Rhodan. Ergui levemente os olhos. — Não estou tão interessado em saber onde viemos parar; o que gostaria de saber é por que viemos parar aqui? — retruquei, também aos cochichos. — A regulagem do transmissor estava em perfeitas condições; não há a menor dúvida. E a luz verde estava acesa. Logo, a outra estação devia estar em recepção, e isso exatamente em nossa hiperfreqüência. — Pois a outra estação foi esta — disse Rhodan, lançando um olhar contrariado para o aparelho disforme. — Como pode afirmar isso? Existem milhões de possibilidades — respondi em tom exaltado. — Alguma coisa não está certa. — Foi de certa forma o que aconteceu com nossa transição realizada em pleno sistema dos druufs. Por aqui devem existir energias superpostas das quais não temos a menor idéia. E possível que esta máquina tenha sido ligada para um fim totalmente diverso. Ligamos o contato do salto e fomos captados por ela. Tenho certeza absoluta de que as freqüências não foram idênticas. Apesar disso, fomos atingidos por elas e
capturados no local errado. Uma coisa é certa: a Drusus ainda não apareceu. É uma coincidência diabólica. Meu fígado revoltou-se, se é que no meu caso essa expressão tipicamente terrana poderia ter aplicação. Segundo os resultados de nossas investigações não poderia haver nenhuma coincidência. — Aproxima-se — anunciou Lloyd, que mais uma vez parecia olhar rigidamente através da parede. — Não posso interpretar-lhe o conteúdo mental. Trata-se antes de um grupo de impulsos, que, no presente caso, exprime expectativa. O que estará esperando? Rhodan refletiu por um instante. — Espera aquilo que este transmissor deveria trazer. O aparelho foi ligado por algum motivo. Houve uma estranha superposição de campos energéticos, e por isso recebemos o sinal verde. Quer dizer que esta gente também domina a técnica da irradiação na quinta dimensão. É interessante! — Não acredito que este aparelho seja capaz de muita coisa. Antes, parece um conjunto experimental... Rhodan manteve-se cético. Nenhum de nós sabia exatamente do que se tratava. Por outro lado, não podíamos realizar um exame detido, pois para tanto nos faltava o tempo e os instrumentos. — Cuidado! — cochichou Lloyd. Subitamente também vi uma arma de radiações em sua mão, mas esta estava equipada com um dispositivo de choque. — Experimente o choque — disse Rhodan apressadamente. — Se não resolver a situação, ainda poderemos recorrer às armas de impulsos. Lá fora, no corredor quase completamente escuro, soou o ruído de passos pesados que se arrastavam. Parecia que alguém desenvolvia uma força desnecessária ao colocar os pés no chão. “A gravitação é de 1,95G; isso é apenas um efeito natural”, informou meu segundo cérebro. Será que, tal qual eu, Rhodan também imaginava que provavelmente encontraríamos pela frente criaturas enormes e musculosas? Segundo as experiências já colhidas, nos planetas habitados em que a gravitação é elevada sempre surgiram inteligências de constituição muito estável. Afinal, aqueles seres teriam de deslocar-se com certa facilidade e respirar sem esforço. Dali a alguns segundos, vimos o druuf! Olhamos cautelosamente para o outro lado da porta. Nos fundos do corredor vimos uma sombra escura e apagada de formato quadrático. Fiquei muitíssimo espantado. Lentamente, lentamente demais para as nossas concepções, aquele ser de pelo menos três metros de altura caminhava em direção ao lugar em que estávamos. Minha surpresa só durou até que me lembrasse da diferença entre as dimensões temporais reinantes em nosso Universo e no plano temporal dos druufs. Cochichei apressadamente para meus companheiros: — Não se esqueçam de que é duas vezes mais lento que nós. Para seus padrões, ele provavelmente se desloca com uma rapidez apreciável. Pelo que diz Lloyd, se encontra numa disposição de expectativa. Geralmente a pessoa que está nessas condições apressa o passo. Quer dizer que, quanto à velocidade de locomoção, possuímos certa vantagem sobre essa gente. Finalmente o druuf foi atingido pela luz que saía do recinto em que estávamos. Só então pudemos vê-lo perfeitamente.
Apesar da estranha configuração de seu corpo, examinei-o com calma. Lloyd soltou um gemido de pavor, enquanto Rhodan se manteve em silêncio. Numa situação como esta, o treinamento arcônida em psicologia de raças estranhas a que eu fora submetido representava uma grande vantagem. Já não me espantava com as criaturas que a natureza, aparentemente pródiga, criava numa imensa variedade. — Santo Deus! — foram as únicas palavras que o mutante conseguiu proferir. Depois calou-se sob os efeitos de meu olhar recriminador. A altura do druuf chegava a uns três metros, e sua largura era equivalente à altura. Foi-se aproximando sobre as pernas disformes que antes pareciam um par de colunas. As pernas eram apenas duas, o que já representava um fator tranqüilizador. Havia dois braços muito robustos, que terminavam em estranhos órgãos preênseis finos e articulados, que pelo aspecto exterior correspondiam aproximadamente à forma humanóide. Mas era este o único elemento de semelhança com as criaturas humanas... O que infundia pavor era a cabeça redonda de cerca de cinqüenta centímetros de diâmetro, na qual havia quatro olhos enormes que agora refletiam a luz. Dois deles estavam no lugar “costumeiro”, enquanto os outros dois se encontravam no lugar onde ficam as têmporas humanas. Não havia nariz ou orelhas. Além disso, não existia nenhum cabelo. A boca triangular e estreita incutiu-me uma certa idéia. Sem dúvida, esses seres descendiam de insetos. Dali resultava a incapacidade de Lloyd apreender-lhes os pensamentos por meio de sua capacidade telepática. Ainda bem que o druuf nos dera oportunidade de examinar seu corpo grosseiro e monstruoso. Se não fosse a horrível cabeça, seu aspecto nem seria tão amedrontador, apesar do tamanho descomunal. Acontece que eu conhecia os homens, e também sabia definir meus sentimentos. Muito embora a inteligência nos dissesse constantemente que não devemos julgar um ser pelo aspecto exterior, mas sim pelo espírito, nosso instinto sempre se rebela diante de uma visão como esta. E, o que maior desconfiança nos causava era um ser estranho que apresentava sinais evidentes de descender de insetos ou lagartos. Num caso desses, o sentimento humano não acompanhava a inteligência. A repugnância, desconfiança e ódio, que surgiam numa oportunidade como esta, só podiam ser reprimidos pela força da inteligência, desde que o intelecto dispusesse de força suficiente para isso. Olhei discretamente para Rhodan. Conforme esperara, parecia lutar com seus sentimentos. Evidentemente estaria dizendo a si mesmo que o druuf não poderia ser responsabilizado pelo seu aspecto exterior. Provavelmente, na opinião daquele ser estranho, éramos também figuras monstruosas. Rhodan conseguiu controlar-se muito depressa, mas o rosto de Lloyd ainda continuava a retratar a repugnância. Talvez isso ocorresse devido a suas faculdades especiais. Afinal, captava muito melhor que nós a essência propriamente dita do druuf. Voltamos a abrigar-nos, pois o sentido visual do desconhecido devia ser excelente. Deslocava-se na escuridão com a mesma segurança com que nós nos movemos à luz do sol. — Faça boa pontaria, Lloyd — disse apressadamente. — Não sabe falar como nós. Provavelmente sua base de comunicação é outra. Não deve ter tempo para emitir um pedido de socorro.
Lloyd confirmou com o rosto enojado. Os passos retumbantes cessaram por um instante. O druuf entrou tateando pela porta. Só agora compreendi por que era tão larga e alta. Comprimi meu corpo contra a parede lisa. Rhodan também se abrigou. Quando as pernas-coluna entraram em meu campo de visão, percebi que essa raça tem pele marromescura semelhante ao couro, que parece uma blindagem elástica. A roupa apertada do druuf era quase totalmente transparente. Não compreendi por que achavam necessário recorrer a um envoltório artificial para cobrir o corpo. Lloyd hesitou em disparar seu tiro de radiações. Estive a ponto de intervir com minha arma de impulsos. Mas percebi que o mutante tentava captar os impulsos do “monstro” numa posição mais próxima. Naquele instante, o druuf parou de repente. Vi que os olhos laterais também se viraram para a frente. Com o corpo rígido fitava a grade feita de barras metálicas brilhantes. Percebi que notava a falta daquilo que esperara encontrar ali. Estava na hora de Lloyd intervir. No momento em que pretendia passar ao ataque ouvi o estando forte da arma de choque. Minha intervenção tornou-se desnecessária, pois o gigantesco corpo tombou que nem uma árvore derrubada. O druuf caiu pesadamente. Segurei o crânio esférico, a fim de impedir que sofresse qualquer lesão. Rhodan saiu de trás de seu abrigo. Os grandes olhos do desconhecido estavam muito arregalados. Lloyd aproximou-se lentamente e a passos cambaleantes. Seu rosto estava desfigurado. Ao que tudo indicava, outro ataque de disenteria estava iminente. — Resolvi esperar mais um pouco — disse em voz hesitante. — Pensou em alguma coisa que não entendi. Parece que se tratava de alguma carga. Sua mente estava ocupada com uma caixa ou coisa que o valha. Eu... Subitamente Lloyd ficou calado. Gemeu e dobrou os joelhos. Arrastei-o rapidamente e deitei-o junto à entrada. Os sofrimentos experimentados pelo mutante eram horríveis. A idéia de uma possível infecção passou pela minha cabeça, pois, com a abertura do traje espacial, seria perfeitamente possível. Mas, no momento, isso não importava. Dirigi-me a Rhodan. O mutante disse num gemido: — Cuidado, Sir. Este sujeito deve ter transmitido algum impulso de advertência. Não foi uma mensagem puramente telepática. Sem dizer uma palavra, Rhodan apontou para as minúsculas saliências que havia na parte superior dianteira do crânio. Naquele instante, pendiam frouxamente para baixo. — São tentáculos ou antenas, conforme se queira — disse. — Será que os druufs se comunicam por meio de freqüências ultra-curtas? — Comunicação pelo ultra-som? — respondi em tom nervoso. — É possível. Conheço seres que usam esse tipo de comunicação em vez dos órgãos de fala. Ou melhor, para eles, os respectivos órgãos são usados para a fala assim como as cordas vocais o são para nós. Já que Lloyd não captou qualquer impulso telepático, deve ser isso mesmo. Dessa forma a voz do druuf só será compreensível por meio de algum aparelho auxiliar. O que acontecerá agora? Quando mudei de assunto de modo abrupto, Rhodan estremeceu levemente. Apontou para a grade. — Você poderia pôr isso a funcionar? Prefiro minha residência de Hades.
Sem uma série de experiências minuciosas, não saberia manipular o estranho aparelho. Nem sequer fazia a menor idéia sobre a respectiva fonte de energia. — Seria inútil tentar. Rhodan levantou-se lentamente. Fitou o corpo do gigante escuro, que se tornara rígido como ferro. — Ele poderia matar-nos, apertando os braços — constatou em tom objetivo. — Está bem. Vamos colocá-lo em lugar seguro. Uma vez que tombou com facilidade, seu sistema nervoso deve ser muito sensível. Pelo que calculo, a paralisia durará pelo menos duas horas. Até lá nossa situação deve estar decidida. Em outras palavras, não há necessidade de amarrá-lo. — Isso nunca aconteceria a um herói de romance — respondi, embora não estivesse disposto a ironizar. — Vamos olhar por aí, até que eles nos peguem. Lloyd, fique deitado aqui na entrada. Defenda-se com a arma de choques conforme e até quando puder. Como se sente? — Miseravelmente mal, almirante. Nunca imaginei que uma coisa destas pudesse existir. Desejo-lhes tudo de bom. Sinto outra série de impulsos cerebrais estranhos. Desta vez vêm em grande quantidade. Essa gente não tem pressa de aparecer. Verificamos nossas potentes armas de impulsos. O mutante era o único que possuía arma de choque. — Sir, tire este monstro daqui! — gritou Lloyd em tom histérico. Arrastamos o corpo gigantesco do druuf para o interior da sala. A “figura” era por demais anormal. Mas Rhodan resmungou: — Não fique fazendo fita, homem! Ele apenas é um pouco diferente. — Seja como for, Sir, sempre que o vejo não posso deixar de pensar no inferno. Ninguém vai entrar aqui! Preferi não informá-lo de que as coisas seriam muito fáceis para os druufs. O que poderia fazer com sua arma de choque? Era bem verdade que, apesar das armas de impulsos, nossas chances não eram muito melhores. Fez-nos mais um sinal. Depois fomos saindo. Seria inútil andar abaixado no longo corredor para escapar aos olhos dos desconhecidos. Por isso caminhamos eretos. Rhodan sabia que o jogo estava definitivamente perdido. Até então, ninguém nos molestara ou atacara. Mas era certo que, se não acontecesse um milagre, nunca mais sairíamos dali. Rhodan disse em tom indiferente: — Acho que estamos bem abaixo da superfície do planeta. A gravitação é tremenda. Talvez tenhamos “pousado” no número dezesseis do sistema dos druufs, ou seja, no planeta principal, onde você constatou tantas fontes de energia. Lá na frente há máquinas. Também já ouvira o ruído surdo. Caminhamos mais uns cem metros e vimos diante de nós uma gigantesca sala, que possuía numerosas saídas. Ao que parecia, por aqui as portas eram desconhecidas. A finalidade dos mecanismos à nossa frente era evidente. Os druufs construíam seus reatores atômicos de forma mais ou menos semelhante à dos nossos. No entanto, não vimos qualquer conversor acoplado aos mesmos. As máquinas instaladas nessa sala eram gigantescas. Utilizavam-se condutores sem fio, cuja luz ultra-azul representava a primeira iluminação razoável que víamos. O vermelho sombrio havia desaparecido.
Examinamos a grande unidade energética sem dizer uma palavra. Dali a alguns segundos, até mesmo Rhodan com suas reduzidas capacidades telepáticas sentiu a aproximação dos druufs. — São impulsos temíveis — afirmou. — Não é de admirar que Lloyd tenha enlouquecido. Se fôssemos sensatos, jogaríamos fora as armas e ficaríamos de braços erguidos na porta, esperando essa gente. Pisquei o olho e vi uma expressão matreira em seu rosto. — Somos; sensatos? Rhodan lançou-me um olhar sombrio e sacudiu a cabeça. — O senhor poderá abrigar-se ali. Ficarei atrás da base do reator que está à minha direita. Rhodan foi ao local indicado sem dizer uma única palavra. Procurei um lugar apropriado e tentei avaliar a situação. Pouco atrás de mim começava o corredor pelo qual havíamos vindo. Quando o atravessamos, não notamos qualquer abertura. Portanto, poderíamos resistir por algum tempo. Posteriormente voltaríamos à sala onde se encontrava a grade energética. Lá provavelmente nos esperaria o fim inevitável. Se conseguíssemos encontrar algum conhecido, ou ao menos alguém que nos desse alguns esclarecimentos sobre a tecnologia totalmente diversa dos druufs, provavelmente poderíamos arriscar uma escapada. Mas, na situação em que nos encontrávamos, não nos restava outra alternativa senão ficar na ratoeira e esperar pelo que estava por vir. Se tivesse certeza de conseguir manobrar uma das naves espaciais dessa raça, teríamos uma pequena chance de fuga. Preferi não brincar mais com essa idéia! Estávamos indefesos diante do que nos esperava e não teríamos outra alternativa senão pôr as mãos para o alto. Mas não queríamos fazer isto. Se os druufs fossem humanóides, talvez valesse a pena assumir o risco. Caso eles fizessem questão de apoderarem-se de nossos corpos sadios para realizar suas experiências, que viessem buscá-los, e isso no lugar por nós escolhido. Lancei um olhar para Rhodan, que também encontrara um bom local de refúgio. Era claro que nossa resistência era insensata. Fatalmente haveria de chegar a hora em que conseguiriam pôr as mãos em nós. A rigor, não se deve fazer uma coisa da qual se sabe de antemão que está condenada ao fracasso. Mas, quanta coisa não se faz sem uma finalidade específica!? Para nós, poderia valer muito respirar por mais uma hora, em liberdade, esse ar surpreendentemente bom. Isso não era de desprezar!
9 —Tínhamos de vigiar ao todo quatro entradas. A quinta dava para o corredor que começava atrás de mim. Há poucos instantes fundira a entrada à minha direita com os raios de minha arma térmica, transformando-a num bolo escaldante de pedras, sob o qual foram atirados os corpos metálicos de dois robôs de formato estranho. Os druufs não haviam penetrado na linha de fogo. De outro lado, também não realizaram qualquer tentativa séria de expulsar-nos de nossa posição. Ao que tudo indicava, os robôs por eles enviados nem sequer eram máquinas destinadas especificamente ao combate. Tive a impressão de que, de propósito, haviam utilizado algumas máquinas de reparos, a fim de sondar nossas reações. Bem, nossa opinião foi expressa de forma bastante enfática: abrir fogo sem cessar. Com isso minha consciência, que queria que enviasse aos druufs uma declaração oficial de guerra, ficou tranqüilizada. Afinal Rhodan e eu representávamos uma grande entidade estatal, cujas leis estabeleciam distinção nítida entre homicídio e ato de guerra. Quer dizer que os druufs já sabiam como estava a situação. Dependia deles tomar as providências que julgassem adequadas. A coronha isolada de meu radiador de impulsos já estava morna. Na câmara de fusão em miniatura, uma pequenina carga catalítica aguardava a fagulha elétrica que produziria a ignição. Uma fração da energia liberada seria absorvida pelo microconversor, que geraria a eletricidade necessária para que os campos energéticos fossem dirigidos para a câmara de reação e o cano direcional. Se não fosse assim, uma pequena bomba atômica explodiria na minha mão direita, pois, no processo de fusão a frio, a carga catalítica começava a reagir a uma temperatura pouco inferior a quatro mil graus. Meu alvo, que era a entrada situada mais à direita, ficava a cerca de cem metros do lugar em que me encontrava. Apesar disso, o calor liberado pelo disparo já começava a atingir-nos. Nuvens de fumaça malcheirosa espalharam-se pela sala. As máquinas foram desligadas pouco depois do momento em que abri fogo. Dessa forma, ouvimos perfeitamente o borbulhar e o chiar da lava incandescente. Ao que tudo indicava, o cheiro penetrante vinha dos robôs que fervilhavam. Rhodan foi o primeiro a começar a tossir. Fitei-o com os olhos lacrimejantes e, num acesso de humor fúnebre, gritei: — Que heróis não somos! Chegamos a empestear o ar que para nós é tão precioso! Rhodan interrompeu-me com um gesto e resistiu a outro acesso de tosse. Depois gritou: — Você já compreendeu que não querem danificar a unidade energética? Se a usina em que nos encontramos for muito importante, estaremos muito bem guardados em seu interior. Soltei uma risada de escárnio pelo seu otimismo. Mas, afinal estes bárbaros eram assim mesmo. Só desistiriam depois que o mundo desabasse à sua frente. Pouco antes do primeiro disparo, arrisquei-me a chamar Fellmer Lloyd pelo rádio de capacete. A resposta foi imediata. Comunicou que conseguira limpar seu traje espacial.
Mas as instalações sanitárias estavam danificadas, motivo por que os reparos só poderiam ser realizados com ferramentas especiais. De resto estaca passando mais ou menos bem. Tinha certeza de que sé sentia muito mal. Era, claro que, na situação que nos encontrávamos, preferia não nos dizer isso. O druuf, que sofrera o choque, continuava duro. Esse fato me convenceu de que realmente o sistema nervoso desses gigantes era muito sensível. Olhei para o teto, onde devia haver as aberturas dos dutos do equipamento de climatização. Descobri algumas aberturas, mas a fumaça, que começava a tornar-se insuportável, não estava sendo aspirada pelas mesmas. Face a isso, tive certeza de que os druufs haviam desligado o sistema de renovação de ar. Ficara escuro. A iluminação do pavilhão consistia unicamente nas esferas brilhantes vermelhas, que também aqui pairavam logo abaixo do teto. Acreditei tratar-se de antenas. O grito de advertência de Rhodan soou em meio às minhas reflexões. Baixei a cabeça com tamanha violência que meu queixo bateu na saliência da base do reator atrás da qual me abrigara. Furioso, ajoelhei-me e levantei a arma. Desta vez, os robôs estavam aparecendo ao mesmo tempo nas três entradas ainda não derretidas. Ouvi o trovejar surdo da arma de Rhodan. O raio incandescente ofuscou-me. Quase não consegui enxergar. Só apertei o gatilho quando a cruz da minha mira cobria um robô esférico, que se aproximava velozmente pelo corredor largo, existente entre os grandes reatores. No momento em que foi atingido pelo raio energético, encontrava-se a uns cinqüenta metros de distância. O disparo produziu uma ressonância dolorosa no meu ouvido. Vi o corpo esférico explodir. Um relâmpago fulgurante subiu ao teto. Antes que fosse atingido pela onda de compressão, atirei-me ao solo e segurei a base do reator. Seguiu-se uma série de estouros tão fortes que até parecia que todo esse mundo desconhecido estava prestes a explodir. Rhodan voltou a disparar. Percebi os raios energéticos luminosos cobrindo metodicamente as duas entradas que ficavam de seu lado. Voltei a ocupar meu posto e vi que, da entrada situada de meu lado, saíam novas levas de máquinas esféricas. Disparei duas vezes. Do outro lado surgiu o caos. Mas antes que outra máquina detonasse, os robôs recuaram tão depressa que não consegui visar mais nenhum alvo. Cobri os contornos da entrada com um tiro prolongado; a mesma também se desfez numa massa borbulhante. Estava na hora de fechar o capacete. O calor já se tornava insuportável e as nuvens de fumaça eram tão densas que mal conseguíamos respirar. A cobertura de minha cabeça emitiu um clique e se ajustou ao fecho magnético. O suprimento de oxigênio começou a funcionar automaticamente. — Então é isso — disse a voz de Rhodan, vinda pelo alto-falante. — Tem certeza de que não há nenhum robô escondido por aqui? — perguntei. — Tenho certeza quase absoluta. Pelo que consegui notar durante a confusão, não há nenhum. Acho que vamos recuar para a sala com a grade energética. — Que idéia maluca! Vamos resistir na usina de energia enquanto for possível. Se para os druufs as máquinas são tão importantes que preferem não destruí-las, então... A palestra foi interrompida pela voz de Lloyd. — O ar por aqui está ficando muito poluído, Sir — disse com a voz tranqüila. — Tentei fechar os “portos,” mas não consegui.
Compreendi aquilo que ele disse em sentido figurado. Se fosse obrigado a fechar seu capacete, teria de recorrer mais uma vez ao suprimento de oxigênio das suas garrafas. Conforme constatamos logo após a rematerialização, seu suprimento de ar daria para umas seis horas. Apenas via a sombra de Rhodan. Mais adiante, o robô que explodira estava ardendo. — Está bem; vamos andando — respondi em tom de desânimo. Mas teremos de derreter a entrada que ficará atrás de nós, para evitar que a fumaça penetre lá dentro. O.K., bárbaro, cuide dessa parte. Irei para onde está Lloyd. — Acho surpreendente que os druufs não chamem pelo rádio para pedir que capitulemos — respondeu, esquivando-se às minhas palavras. — Estou transmitindo com cinco watts. Devem ser capazes de captar minha transmissão. — Não tenha a menor dúvida. Mas dificilmente saberão fazer qualquer coisa com a língua inglesa. Talvez conheçam o arcônida. — Não diga! — Será que você acredita realmente que é o centro do Universo? Por que não iriam conhecer o arcônida? Bilhões dos nossos foram levados para o plano temporal dos druufs. Estou perfeitamente lembrado das frentes de superposição. Face a isso, os quadráticos talvez tenham criado algo parecido com uma máquina tradutora. Pelo que me consta, até hoje nenhuma população de língua inglesa foi atingida pela zona de superposição. Passou a falar em arcônida, mas isso também não adiantou nada. — O ar está ficando cada vez mais poluído! — disse Lloyd. Rhodan caminhou lentamente em direção à porta que ficava à nossa retaguarda. Depois de lançar mais um olhar para as máquinas fracamente iluminadas, segui-o. Por um instante brinquei com a idéia de inutilizá-las, mas logo compreendi que a destruição não me serviria para nada. Quando nos encontrávamos a um metro da passagem, o mutante começou a berrar. — Sir, alguém está passando pelo teto do corredor. Atlan, chefe, não estão ouvindo? Já estão entrando. Estão atrás de vocês. Estou captando perfeitamente impulsos cerebrais. Conheço as intenções deles! Já estávamos disparando pelo corredor que devia ter uns cinqüenta metros em linha reta. Ligamos os potentes holofotes de nossos capacetes, cujo feixe de luz mergulhava o trecho de caminho que tínhamos pela frente numa forte luminosidade. Mais ou menos no centro do túnel, havia uma abertura no teto. Mas antes que pudessem abrir fogo contra nós, já havíamos passado. Gritamos para Lloyd, a fim de evitar que ele nos confundisse com os inimigos. A seguir, entramos cambaleantes na sala com a grade energética. O mutante ainda não fechara o capacete, embora, mesmo no lugar em que se encontrava, o ar já estivesse cheio de finas nuvens de fumaça. Também virei meu capacete pára trás. Rhodan atirou-se ao chão a meu lado, ao abrigo das robustas colunas que ladeavam a entrada. Respirava pesadamente. — Foi duro, não foi? — perguntou Fellmer. Virei-me e examinei atentamente seu rosto. Estava pálido, mas naquele momento parecia ter um instante de descanso. — Como vai? Fellmer não gostava de dar mostras de fraqueza. — Não é nada agradável, almirante. Quanto tempo ainda falta?
Queria saber quanto tempo faltava até que nossa situação se tornasse insustentável. Mas eu não estava em condições de esclarecê-lo a este respeito. — Aos poucos, acabarão perdendo a paciência — constatou Rhodan. — Se estivesse no lugar deles, não permitiria que isso acontecesse em minha casa. Atlan, nós nos entregaremos no último instante. Entendido? Aquilo soara como uma ordem. Acontece que eu não estava disposto nem era obrigado a aceitar ordens, a não ser que me encontrasse a bordo de uma nave da frota solar que estivesse em batalha, quando então, evidentemente, haveria uma graduação hierárquica. Lancei-lhe um olhar perscrutador. — Ainda pensarei sobre isso, meu caro. Não estou interessado em sofrer a vivissecção que esses descendentes de insetos talvez pretendam realizar. O rosto de Lloyd mudou de cor. Rhodan cerrou os dentes, fazendo-os ranger fortemente. — Mesmo assim devemos assumir este risco! — disse, insistindo em seu ponto de vista. — Dessa forma, ainda teremos uma chance de escapar. — Tolice! Se nos encontrássemos no Universo einsteiniano e encurralados por uma raça conhecida, ainda diria que sim. Mas aqui... Sacudi a cabeça e voltei a olhar para a entrada. Lá fora estava tudo em silêncio. Estive a ponto de levar mais um comprimido de alimento concentrado do depósito do capacete à boca, quando os druufs fizeram nova tentativa. Da abertura do teto saiu uma forte luminosidade. Ouviu-se um rumorejar surdo. Prendemos a respiração e ficamos escutando. — Até parece um tanque que está andando — cochichou Lloyd. — Ou então como robôs pesados dotados de campos defensivos — acrescentei. — Se utilizarem esse tipo de máquina, podemos jogar fora nossas armas portáteis. O.K.? Pensem bem se querem entregar-se ou não. Quanto a mim, só decidirei no último instante. Mais uma vez, o rosto de Fellmer mudou de cor. Engolindo em seco e lutando com as náuseas, virou o rosto para outro lado. Dali a pouco, contorcia o corpo junto à parede. A pedra ia caindo do teto do corredor. Tratava-se de rocha natural entremeada pelo material de revestimento. Estavam ampliando a abertura. Na minha opinião isso era um absurdo. Por que não mandavam suas tropas, ou fosse lá o que fosse, pelo pavilhão dos reatores? Preferi não refletir mais sobre isso. Pouco importava a direção de que vinham. Fiquei com a arma engatilhada, regulada mais uma vez na potência máxima. O polegar da mão esquerda repousava sobre o botão que acionava o mecanismo automático de fechamento do capacete. Subitamente Rhodan tocou-me com o pé. Seu rosto revelava uma tensão extraordinária. Olhei-o. — Você não ouve? Alguém me chama pelo nome. — Hein? — É o que acabo de dizer. Alguém me chama pelo nome. Trata-se de uma mensagem telepática. Com um sorriso inseguro voltou-se para o mutante. — Lloyd, ouviu?
— Ouvi, sim senhor, mas a mensagem é muito fraca — disse Fellmer. — Alguém o está chamando pelo nome de Perry Rhodan. Diz que o perigo se aproxima e que sente muito ter-nos capturado involuntariamente com seu transmissor. Mas, apesar de tudo, foi bom, pois só assim conseguiu vencer suas resistências internas. Ele não sabe quem é o senhor... Poucas vezes vi um rosto tão espantado. Rhodan parecia fora de si. Para mim aquilo não passava de uma brincadeira de mau gosto. — Santo Deus! Quem pode conhecer meu nome por aqui? E que formulações místicas são estas? O sujeito deve saber quem sou! — Isso mesmo! — reforcei sem o menor senso de humor. — Trata-se de um truque dos druufs; apenas isso. — Acabo de receber outra mensagem! — exclamou Lloyd. — Ele quer que nos coloquemos novamente atrás das grades. Diz que faria a ligação inversa. É isto mesmo, usou a expressão ligação inversa. Mas ainda não sabe dizer de onde conhece seu nome ou por que quer ajudar-nos. Desta vez, fiquei aborrecido de verdade. — Preste atenção! — gritei para Rhodan. — Alguma coisa está passando pelo buraco. Reconheci as pernas grosseiras de um gigantesco robô. Era feito à semelhança e imagem dos druufs. Isso provava se tratar de uma máquina de guerra. Qualquer inteligência que constrói robôs vale-se das suas características anatômicas para construir esses artefatos armados. Não perdi tempo. A arma de radiações emitiu um rugido. O raio energético atingiu as pernas balouçantes, e foi refletido pelas mesmas. O segundo disparo de minha arma fundiu o teto, mas naquele momento a máquina já descia lentamente. Ondas de pressão superaquecidas passavam ruidosamente pela abertura do recinto. Não tivemos necessidade de acionar as chaves, porque o dispositivo térmico fechou automaticamente nossos capacetes. Arrisquei o terceiro ataque, mas o robô apenas cambaleou ligeiramente para trás. Sem que tivesse havido qualquer comunicação entre nós, saltamos para dentro do grande pavilhão. No momento em que a máquina estava a ponto de entrar, o portão desmoronou sob a ação de nosso fogo atômico. O ar, que até então ainda era respirável, começou a ferver. Os projetores de campos defensivos de nossos trajes entraram em funcionamento. Era uma rematada loucura recorrer a armas térmicas num ambiente como este. — Outra mensagem — disse Lloyd pelo rádio de capacete. — Diz que não devemos perder mais tempo. Quer que entremos, pois ligar-nos-á imediatamente de volta. Outros robôs se aproximam. Santo Deus, o senhor ao menos poderia experimentar! Não sabia se estas palavras foram dirigidas a mim ou a Rhodan. Lancei um olhar para a “jaula” energética. Não confiava mais nela. Nesse instante, as grossas barras de metal começaram a brilhar. Devia ser o calor, ou então realmente alguém acabara de ligar o aparelho parecido com um transmissor. — Acabo enlouquecendo! — disse Rhodan fora de si. — Será que há alguma coisa atrás...? — Isso será uma aventura — ironizei, apesar da situação desesperadora em que nos encontrávamos. — Quem sabe o que acontecerá depois que entrarmos ali?
Lloyd passou por nós, cambaleando. Aproximou-se lentamente das barras de metal e ultrapassou-as. Por um momento contemplamos estupefatos o quadro. Não, não aconteceu nada. Um trovejar soou na abertura soterrada. Alguém estava removendo as rochas incandescentes com algum aparelho. — Falta um minuto, arcônida! Os olhos de Rhodan chisparam fogo. Finalmente levantou-se devagar e também caminhou em direção à grade. Segui-o de perto. Lloyd prestou atenção ao que se passava em sua mente. — Ele nos deseja muitas felicidades — disse o mutante. — Repete que tudo foi fruto de um equívoco. Quer acrescentar que... Não consegui ouvir as palavras que se seguiram. Uma força tremenda apoderou-se de meu corpo.
10 Nosso subterrâneo no planeta Hades continuava escuro e sem ar. Reencontramo-nos no transmissor, mas não sabíamos que estiváramos inconscientes por tanto tempo. Lloyd ainda não recuperara os sentidos. Rhodan gemeu de dor. Levamos muito tempo sem dizer uma palavra, pois não encontrávamos explicações para o fenômeno. Minha lógica recusava-se a absorver acontecimentos tão inacreditáveis. A salvação na hora mais difícil parecia uma nota dissonante. De qualquer maneira, naquele mundo desconhecido devia haver alguém que conhecia Rhodan. Quem seria? Tratava-se de uma pessoa seqüestrada pelo campo relativista do plano dos druufs? A tentativa de prosseguir no raciocínio me dava tonturas. Subitamente Rhodan chamou pelo rádio de capacete. — O ar de Lloyd dá para menos de cinco minutos — ouvi-o dizer com a voz embargada. — Isso significa que ficamos inconscientes por mais de cinco horas. A notícia deixou-me profundamente abalado. Então era por isso que o mutante ainda não tinha recuperado os sentidos. Gritamos e o sacudimos fortemente para acordá-lo. Não deixamos de notar a luz verde do transmissor, que continuava acesa. Apenas não era mais uma luz constante, mas acendia-se a intervalos irregulares. Levei alguns segundos para compreender o sentido da mensagem. Alguém estava transmitindo sinais morse pelo aparelho, ligando-o e desligando-o num ritmo determinado. Rhodan começou a soletrar. — D-R-U-S-... Ora essa, isso quer dizer Drusus! — berrou com tamanha força que senti os ouvidos doerem. — É a Drusus; chegaram. Gritando sempre, saltou para a frente e bateu sobre a chave que acionava o mecanismo do transmissor. Fizemos força juntos para empurrar os pés de Lloyd para dentro dos contatos. Assim que conseguimos, o levantamos pelos braços e o apoiamos com nossos corpos. Depois apertei rapidamente o botão de contato... Desta vez a dor da desmaterialização representou uma bênção para mim. Pouco me importava o que aconteceria depois. Antes de nos desfazermos, colhi uma última impressão do rosto de Rhodan. Estava radiante no sentido literal da palavra. *** Acordamos entre as cobertas brancas, que sem dúvida deviam pertencer à excelente clínica de bordo da Drusus. Não vimos Lloyd. Ergui-me sobre os cotovelos e olhei em torno, perplexo. Um homem corpulento, de cabelo louro-claro e jaleco muito grande fitou-me. — Olá, doutor. Está por aqui de novo? — perguntei. O médico encheu as bochechas e, em vez de responder a meu cumprimento, disse:
— Por todos os santos do firmamento, onde foi que Lloyd arranjou essa disenteria bacilar? Estava quase sufocado quando o retiramos do transmissor. Tive certeza de que estávamos em segurança. Falar primeiro sobre a pessoa mais doente, era uma atitude típica do Dr. Sköldson. — Não faço a menor idéia, doutor; realmente não faço. Pelo que diz Lloyd, talvez seja da água de uma nascente de Fera Cinzenta? — O quê? A água daqui? A observação deixou-me sobressaltado. — A água daqui? Será que estamos no planeta Fera Cinzenta? — Onde o senhor pensa que está? Afinal, dormiu quatorze horas. A Drusus pousou há bastante tempo, isso depois que ficamos cruzando durante uma eternidade no espaço dos druufs, unicamente por causa dos senhores. Bem, então ele acha que foi a água da nascente... Pôs a mão no queixo sem barba e fitou-me prolongadamente. — Se é assim, não compreendo por que não veio falar comigo antes da decolagem de emergência. Naquela oportunidade, a infecção já devia ter revelado seus sintomas. — É verdade, doutor. Talvez tivesse sido preferível o senhor não ter pendurado na porta da clínica de bordo da Califórnia aquela placa que dizia: “Entrada somente permitida de quatro.” Os terranos possuem um orgulho muito estranho. Desta vez ficou realmente perplexo, mas não teve tempo de esboçar uma resposta. Uma matilha ruidosa de homens entrou na sala. Na frente, vinha Reginald Bell, seguido de perto por Sikermann, o gigante louro. Não pude constatar quem mais apareceu. Uma torrente de perguntas foi despejada sobre nós. Rhodan respondia num estado de semi-sonolência. Perguntei por que a Drusus demorara tanto. Uma expressão séria surgiu no rosto de Bell. — O salto com a Califórnia foi bem sucedido, e conseguimos romper as linhas inimigas sem maiores problemas. Não ficamos inconscientes, do que se conclui que a teoria da compensação progressiva é correta. Acontece que, depois disso, não conseguimos atravessar as linhas de bloqueio da frota robotizada. Até pouco tempo atrás, mais de cinqüenta mil naves encontravam-se diante da fenda da zona de descarga. Para romper essas linhas, a Drusus teria de arriscar uma batalha. Preferimos não tentar a batalha, pois conhecíamos as reservas de ar de que vocês dispunham. É claro que, se tivéssemos sabido algo da doença de Lloyd e das conseqüências da mesma, teríamos aparecido imediatamente. Mas, da forma pela qual vimos as coisas, o risco parecia excessivo face ao resultado. Ficamos informados de que a solução do enigma era muito simples. Contávamos com a possibilidade da ocorrência de problemas insolúveis por ocasião do hipersalto. — Como vai Lloyd? — perguntou Rhodan com a voz cansada. Também se sentia muito mal. — Muito bem — respondeu Sköldson. — A disenteria já foi debelada. Dentro de alguns dias estará totalmente recuperado. Aplicamos algumas vacinas nos senhores. Estava mesmo na hora. — E a frota arcônida? — Foi retirada juntamente com boa parte das naves dos saltadores. No momento os druufs não estão atacando — respondeu Bell em tom impaciente. — O que aconteceu
com vocês? Levei quase seis horas telegrafando o nome da nave pelo receptor do transmissor fictício. Afinal, havíamos combinado isso. — Combinado? — perguntei em tom de espanto. — Como? Não sabíamos disso. — Logo depois da decolagem da Califórnia eu os avisei pelo rádio. — Seu engraçadinho! — disse Rhodan em tom indignado. — Mal e mal conseguimos ouvir que vocês galgaram romper as linhas dos atacantes. Depois não entendemos mais nada. Bell deixou cair o queixo. Mas atrás, o rato-castor Gucky soltou gritos estridentes. Parecia divertir-se a valer com a gafe que seu grande amigo acabara de cometer. Não lhe demos atenção. As palavras de Fellmer, que nos transmitia a mensagem telepática de um desconhecido, ainda soavam em nossos ouvidos. — Perdemos algum dos homens da Califórnia? — perguntou Rhodan. Em torno de nós, os homens fitaram-se com uma expressão de perplexidade. Não, a tripulação estava completa. — Desista, Perry — pedi em voz baixa. — Provavelmente nunca saberemos. — O que houve mesmo? — gritou Bell. — Mais tarde contarei — respondeu Rhodan em tom sonolento. — Mais tarde. Mas ainda hei de descobrir. Eu lhe dou minha palavra. O Dr. Sköldson expulsou os curiosos, usando palavras ásperas e fazendo valer sua autoridade incontestável de médico-chefe da Drusus. Quanto a mim, fiquei refletindo por mais algum tempo no sentido de nossa missão. Bem, pelo menos já sabíamos com quem estávamos lidando. Foram estas as inteligências que há um tempo imenso destruíram minha frota. Obrigaram-me a passar alguns milênios em estado de hibernação bioquímica. Foram os culpados de eu ter vagado pelo planeta Terra, então ainda bárbaro e inculto, desde os tempos do apogeu do Império Romano. Sempre estive empenhado em transmitir ensinamentos aos terranos, a fim de reunir os meios que me possibilitassem ao menos a construção de um hiper-transmissor. Foi inútil. Ninguém pôde fazer nada por mim, e não me era possível fabricar de uma hora para outra um transformador de campo de quinta dimensão. Agora já sabia onde procurar os culpados. Uma coisa era certa: tinha uma boa conta a ajustar com eles. Adormeci com estes pensamentos. Estava na hora de reunir as forças para as tarefas que estavam por vir. A base espacial instalada por Rhodan no planeta Fera Cinzenta, do sistema de Mirta, continuava a ser uma idéia maluca. Talvez conseguisse avisá-lo de que, por ocasião da descoberta, que sem dúvida era iminente, já não estávamos neste mundo. Talvez!
*** ** *
Pela primeira vez Perry Rhodan viu-se no verdadeiro e perigoso Universo Druufiniano, mas conseguiu salvar-se graças a um amigo desconhecido. Quem seria este amigo? Em Sob as Estrelas de Druufon, título do próximo livro, surpresas e mais surpresas acontecem...