P-107 - O Sistema Azul - K. H

  • November 2019
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  • Words: 28,656
  • Pages: 63
(P-107)

O SISTEMA AZUL Everton Autor

K. H. SCHEER

Tradução

RICHARD PAUL NETO

Seus súditos o odeiam — e o povo de seus antepassados também. Mais uma aventura de Atlan.

O vôo do cruzador experimental Fantasy, realizado no início do século XXII, representa uma nova época para a Astronáutica, pois trata-se da primeira espaçonave equipada com o sistema de propulsão linear. Mas esse vôo trouxe uma conseqüência: os misteriosos ancestrais dos arcônidas, ou seja, os acônidas, que até então se julgavam seguros atrás do campo energético que envolvia seu sistema e não se interessavam pela política galáctica, lançaram mão de meios inescrupulosos para investir contra a Terra e Árcon. Por pouco o monstro de plasma, enviado pelos acônidas, não destrói a Humanidade. Também a frota-fantasma esteve prestes a transformar a Terra num inferno atômico, até que a destruição do conversor de tempo voltasse a atirar essa frota para o passado, do qual viera. Esses acontecimentos deixaram Atlan muito preocupado. Sua posição como Imperador de Árcon é bastante difícil, pois as intrigas e os atentados lhe amarguram a vida. Atlan supõe que no Sistema Azul podem pensar em jogar o Império de Árcon contra o Império Solar. Por isso Atlan convidou Perry Rhodan a comparecer à sua presença, afim de conferendarem sobre a situação. Os dois soberanos encontram-se na sede do grande centro de computação, quando os acônidas voltam a golpear...

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Personagens Principais: = = = = = = =

Atlan — Que é odiado por seus súditos. Só os terranos são seus amigos. Perry Rhodan — Administrador do Império Solar. Tama Yokida — Um membro do Exército de Mutantes, um elemento da “velha guarda” de Perry Rhodan. Major Jefe Claudrin — Um homem adaptado ao meio-ambiente do planeta Epsal. Auris de Las-Toor — Uma mulher jovem, bela e perigosa. Lempart de Fere-Khar — Presidente do Conselho Supremo de Ácon.

1 O homem, que se sente só, anseia, mais que qualquer outro, pelo amor e pela simpatia, pela amizade sincera e pelos divertimentos interessantes. Eu me sentia só! Provavelmente chegava a ser o indivíduo mais extraviado do grupo estelar M-13, pertencente à constelação de Hércules, cujos sóis e planetas, segundo se dizia, pertenciam a mim. Sentia-me só em meio a alguns bilhões de arcônidas e quinhentos mil terranos, aos quais permiti, na minha qualidade de Imperador Gonozal VIII e soberano absoluto, que ingressassem nos territórios dos planetas arcônidas. Mas os homens também não conseguiram redimir-me, embora há meses eu me esforçasse para descontrair as numerosas recepções e festividades, que se perdiam em meio a uma série de formalismos rígidos. Ainda não conseguira romper com o velho cerimonial, a fim de estabelecer relações menos convencionais e mais cordiais com os representantes da Humanidade. Eu era o imperador! Portanto, tinha que agir como tal, conforme o mestre do cerimonial, Drautherb, fazia questão de ressaltar a cada momento. Segundo dizia, a manutenção do necessário respeito era uma questão de “discrição representativa”, que em hipótese alguma poderia ser substituída por um aperto de mãos — nada dignificante — quando me encontrasse com outras inteligências. Os funcionários da corte também viviam enfatizando esse ponto. Não saberia dizer o que significava a expressão “discrição representativa”. Na minha opinião, a mesma envolvia uma contradição. Se eu quisesse fazer a apresentação representativa do grande império, isso não poderia ser feito sem pompa e gastos. Acontece que isso não se harmonizava com a palavra “discrição”, que para mim significava aquilo que realmente deve designar, ou seja, um comportamento modesto e uma conduta ilibada. Ao que tudo indicava, no curso dos milênios haviam surgido usos e costumes que eu, como simples soldado e chefe de frota arcônida, não conseguia compreender. Não demorei a perceber que não poderia nadar eternamente contra a corrente. Minha indignação inicial contra a ordem social reinante nos planetas de Árcon fora substituída por uma atitude de resignação. Se dispusesse de um número suficiente de arcônidas que tivessem conservado a agilidade espiritual, a modificação desse estado de coisas teria sido possível. Nesse caso, provavelmente conseguiria varrer os detritos decadentes de atitudes mentais enrijecidas que enchiam os salões. Mas, da forma que as coisas estavam, dependia dos terranos não muito numerosos, que se achavam ocupados com seus próprios problemas. A pompa inacreditável das festas, a atitude ruidosa e vazia dos indivíduos ociosos e bajuladores, a arrogância oca dos conselheiros e oficiais das frotas — todo esse estado de coisas transformara-se num ingrediente do império, que já não poderia ser despertado do sono em que se embalava. Quanto a mim, costumava pensar em termos que poderiam ser válidos antes para a Terra distante que para o Império Arcônida. A essas dificuldades ainda se acrescentava um perigo permanente. Por mais de uma vez haviam tentado eliminar-me, lançando mão de vários recursos. Os atentados contra

minha vida quase chegavam a ser um assunto corriqueiro, até que passei a adotar medidas enérgicas e deixei de comutar algumas sentenças de morte. Muita gente me odiava! Eu, o velho almirante arcônida Atlan, membro da família regente de Gonozal, era temido e impopular. Há muito confessara a mim mesmo que era mais terrano que arcônida. Meus amigos verdadeiros e sinceros viviam no sistema solar, situado a trinta e quatro mil anos-luz de Árcon. Perry Rhodan, o Administrador do Império Solar, era um homem no qual eu podia confiar em todos os sentidos. Perry mostrara-se digno da minha confiança, e por isso não via nenhum motivo sério para criar dificuldades à política comercial e colonial dos homens. Intimamente, sabia que, apesar das tentativas de regeneração por mim levadas a efeito, o tempo áureo dos arcônidas já pertencia ao passado. Mesmo assim era-me doloroso saber que Perry Rhodan conhecia minha situação. Mais uma vez tivera de solicitar seu auxílio, embora o tivesse feito há apenas dois meses. Certos poderes desconhecidos haviam atacado tanto o Império de Árcon como a Terra. O ataque fora realizado com recursos extraordinários, circunstância que provava que a arrogância sem limites dos arcônidas, que conservavam a agilidade mental, não tinha razão de ser. Na verdade, sentia-me contente, pois justamente Perry Rhodan, que para muitos arcônidas continuava a ser um bárbaro, conseguira provar que nós, os arcônidas, não passávamos de descendentes degenerados dos colonos de um grande povo, que há vinte mil anos mandara os antepassados dos arcônidas para as profundezas do espaço, a fim de desempenharem as funções de colonos galácticos. Tomei conhecimento desse fato há apenas dois meses. Com isso crescia a responsabilidade e a importância de meu cargo de Imperador de Árcon. Acontecera algo com que nós, os arcônidas, nunca teríamos sonhado: no centro da Via Láctea existia um povo que nos tratava com a mesma arrogância que nós costumávamos demonstrar perante as demais inteligências. Naturalmente Rhodan não pôde deixar de, num gesto irônico, chamar minha atenção para o fato. A mim não conseguiu ofender. Mas, diante das explicações do “bárbaro”, outros arcônidas empalideceram visivelmente. A idéia de que nossos antepassados talvez não nos levassem a sério, por nos verem como os descendentes degenerados de seus colonos, que adotavam costumes depravados, era simplesmente ignominiosa. Quando o grande couraçado linear terrano Ironduke irrompeu em alta velocidade na atmosfera do planeta e se preparou para pousar no espaçoporto do imperador, era esta a situação reinante no planeta de cristal do Império de Árcon. *** O céu parecia arder. O sol branco de Árcon empalideceu sob os jatos chamejantes do gigante de oitocentos metros, que desceu sobre a pista de aço plastificado, estendendo as colunas de apoio. A Ironduke era um couraçado terrano da classe Stardust. A um ligeiro exame, dificilmente se notaria qualquer diferença de outros veículos do mesmo tipo. Porém eu sabia perfeitamente que a gigantesca esfera abrigava máquinas e propulsores que não tinham igual em Árcon. Rhodan avisara laconicamente pelo hiper-rádio que desta vez apareceria com a primeira espaçonave linear de grande porte — isso dois meses depois de me ter

apresentado os primeiros cruzadores pesados equipados com mecanismos de propulsão linear. Batizara essa espaçonave maravilhosa com o nome Ironduke, que significa “duque de ferro”. Esse nome me fez recordar minha longa peregrinação pela História da Terra. O pequeno ativador celular, que me mantivera jovem e sadio há vários milênios, continuava a pulsar incessantemente sobre meu peito. Quanto tempo ainda duraria essa situação? Quando soaria minha hora? Cheio de sentimentos amargos, observei a precisão da manobra de pouso da Ironduke, cuja massa considerável foi conduzida facilmente em direção ao solo. Os funcionários e oficiais, que se encontravam em minha companhia, esconderamse atrás das paredes blindadas, construídas especialmente para esse fim. Fiquei só no amplo terreno, e fiz com que meu campo defensivo individual absorvesse e detivesse a onda de ar quente e comprimido, causada pela nave que pousava. Ouvi o zumbido agudo do minirreator, que se achava no estojo que trazia às costas, juntamente com mais alguns instrumentos. Depois de termos rechaçado o ataque dos acônidas, também conhecidos como préarcônidas, resolvi que andaria constantemente com um projetor individual. Meus inimigos que, segundo parecia, eram inumeráveis, não costumavam acanhar-se na escolha dos meios. Por isso pertencia aos homens pouco invejáveis da História Galáctica, que temiam dia e noite pela vida e pela saúde. Ainda recentemente haviam tentado fazer com que um robô de guerra reprogramado me matasse a tiro, mas esse ato era apenas uma variante dos atentados anteriores. Não queria nem podia compreender por que se obstinavam tanto em procurar tirarme do caminho. Sempre houvera arcônidas ambiciosos, mas os assassinos raramente tinham surgido na história do grande império. Desde que se ficou sabendo que, segundo todas as probabilidades, descendíamos de um povo que, antes que se desenvolvesse o poder arcônida, já fora muito mais poderoso que nós, pareciam ter surgido grupos de resistência com objetivos confusos. Com isso, provavelmente eu passara a representar um obstáculo muito maior que antes. Nem pensava em submeter-me à vontade de pessoas desconhecidas, numa tentativa de salvar os restos lastimáveis da antiga grandeza. A onda de pressão desfez-se num chiado. Os propulsores da Ironduke cantavam enquanto iam parando. Moku, minha cadela boxer, saltou em minha direção, latindo. Parou perto de meu campo defensivo, cuja periculosidade já conhecia em virtude de algumas experiências nada agradáveis. Pouco depois uivou tristemente e, levantando a pata dianteira direita em minha direção, “pediu” que a deixasse entrar. A cadela era um presente de Rhodan. Enviara-me o animal maravilhoso por meio de uma nave-correio e, na carta que acompanhava o presente, fizera questão de ressaltar que a dedicação de um cão terrano era mais sincera e preciosa que as manifestações de submissão de cem mil arcônidas. Moku continuava a implorar. Parecia saber quem estava chegando na grande nave. Não podia fitar seus olhos castanhos úmidos, sem sentir-me tentado a abrir o campo defensivo. Como de costume, o animal se encostaria tanto a mim que eu poderia voltar a ligar o campo, e a cadela não correria qualquer perigo. Olhei rapidamente em torno. Mais adiante, quinhentos robôs de guerra estavam enfileirados. Evidentemente, o administrador de uma grande potência amiga teria de ser recebido com todas as honras militares.

O regimento de guardas dos naats, que eram seres de três olhos, também entrara em forma. Naquele momento, a voz potente do comandante atravessou o campo de pouso. Logo atrás de mim estavam reunidos alguns funcionários da corte e mais de dez oficiais da frota. Enquanto eu mesmo, por pura teimosia, envergara meu uniforme de serviço com as discretas divisas e o símbolo de minha família, aqueles cavalheiros envergavam trajes de gala. Os cientistas do Grande Conselho usavam roupa branca, vermelha e violeta, enquanto os oficiais exibiam os uniformes de gala da Frota Espacial de Árcon. Conhecia Perry Rhodan e sabia que a única reação que ele esboçaria diante da quantidade enorme de metais nobres, fazendas brilhantes e condecorações cintilantes seria um franzir de testa. De todas as vezes que o vira, envergara o simples uniforme de campanha, mas de talhe extremamente bem feito, que costumava ser usado a bordo das naves de guerra. Moku soltou um uivo de cortar o coração. Nem mesmo um imperador arcônida seria capaz de ficar insensível diante da expressão de súplica de um animal como este, especialmente um imperador do meu tipo. — Venha logo — gritei e, com um simples movimento, desliguei o campo defensivo. Moku soltou um latido e se dispôs a dar o habitual salto de cumprimento, que geralmente principiava com um forte impacto, para terminar com algumas lambidas nas minhas orelhas. Fazia bem, muito bem, sentir estes sinais de simpatia sincera e genuína. Abri os braços e recuei o pé direito, para absorver o peso da cadela. Naquele momento ouvi um ruído atrás de mim. Uma descarga energética quentíssima passou junto ao meu peito, fazendo fumegar as fibras de plástico do meu uniforme. Moku foi atingida durante o salto. O impacto do raio térmico arrancou-a da trajetória e a atirou ao chão com tamanha violência que ouvi nitidamente o impacto. A cachorra permaneceu imóvel. Devia ter morrido imediatamente. Virei-me, rubro de raiva. Toquei o contato e a arma, que trazia no cinto, surgiu na minha mão, pronta para disparar. Ao mesmo tempo bati com a mão esquerda sobre o botão largo do dispositivo automático de defesa. O campo defensivo voltou a funcionar. — Lloyd! — gritei em tom nervoso. A pesada arma de radiações subiu sob a força de minha mão. Fellmer Lloyd, um dos mutantes do exército especializado da Terra, ainda segurava a arma de radiações. Fitou-me com uma expressão indiferente. Fazia apenas trinta dias que Lloyd fora destacado para minha proteção especial, isso depois que o oficial de ligação terrano, estacionado em Árcon, comunicara ao chefe supremo o quanto eu era molestado com atentados. E agora Lloyd disparara contra mim, num momento em que desligara por um instante o meu campo defensivo individual. Teria realmente atirado em mim? O setor lógico de minha mente deu sinal de sua presença, com uma intensidade dolorosa. “Seu idiota! Será que ele poderia ter errado o alvo a essa distância? E contra um homem de seu tamanho?” Os impulsos constringentes de meu cérebro adicional, que acabara de ser ativado, fizeram-me estremecer. Instintivamente baixei a arma. O dedo curvado em torno do gatilho descontraiu-se.

Fellmer Lloyd, um homem musculoso de cabelos escuros, continuava a fitar-me. Finalmente disse com a voz arrastada: — Perdoe-me, sir. Só notei a presença do pequeno ferrão quando Moku iniciou o salto. — Do ferrão? — gaguejei, perplexo. — Isso mesmo, sir. Conhecia perfeitamente os modelos de impulsos cerebrais da cadela. Quando ela saltou do carro-planador de seu robô de serviço, registrei dor, angústia, e mais alguma coisa que não compreendi muito bem. O animal estava desesperado. Alguma coisa tinha acontecido com Moku. Correu imediatamente em sua direção, como se quisesse comunicar-lhe a dor que sentia. Acontece que havia alguém que contava com isso, sir. E esse alguém sabia perfeitamente que o senhor não seria capaz de deixar de abrir o campo defensivo. Quase cheguei a hesitar demais. Peço-lhe que acredite que não havia outro meio de deter Moku. Tive de atirar. Fiquei parado como quem se sente estonteado. Meus olhos vagavam entre o mutante, meus acompanhantes muito pálidos e a cachorra boxer que jazia morta. Alguns oficiais haviam sacado as armas. Sentindo-se seguros, voltaram a guardá-las nos coldres. — Que ferrão é esse? — perguntei, ofegante. — Não compreendo o que quer dizer. — Sua Excelência Administrativa aproxima-se, eminência — cochichou Truk Drautherb, com uma ligeira nota de desespero. — Eminência, a recepção... Fiz um sinal violento para que o tagarela enfeitado se afastasse. Um veículo parou atrás de mim. Ouvi o zumbido do motor, mas não virei a cabeça. Contrariando os impulsos de advertência do meu cérebro adicional, voltei a desligar o campo defensivo individual. Não poderia deixar de examinar o melhor amigo que tinha em Árcon. Ai de Fellmer Lloyd se alguma coisa não estivesse em ordem... — Mahaut Sikhra, o imperador está indefeso. Faça alguma coisa! — disse uma voz fria e controlada — Comando, espalhe-se e destrave as armas — disse outra voz, em tom preocupado. — Se alguém puser a mão na arma, abra fogo sem aviso. — Sem considerar a qualidade da pessoa — acrescentou o homem que falara em primeiro lugar. Ouvi o ruído surdo das solas elásticas. Talvez os cavalheiros que me acompanhavam tivessem ficado ainda mais pálidos, mas não virei a cabeça. Concordei com as instruções do homem que por certo observara o tiro de radiações com todas as suas conseqüências. Ajoelhei-me junto à cachorra. Fellmer Lloyd colocou-se a meu lado. Levantou cautelosamente a cabeça do animal, que não fora ferida, e abriu-lhe as mandíbulas. Com uma cautela ainda maior, afastou a língua da cadela, e então eu mesmo vi. Um ferrão, fino como uma agulha, de cerca de cinco centímetros de comprimento, fora colocado sob a língua, por meio de uma cola bioplástica. Era o mesmo bioplástico utilizado na Medicina, para fazer com que os cortes das operações se fechassem sem deixar cicatrizes. Se Moku me tivesse cumprimentado da maneira como costumava fazer, sem dúvida teria sido ferido pela ponta do ferrão. Perplexo, fitei o artefato assassino mais traiçoeiro que já me fora dado ver. Alguém agira com uma habilidade diabólica. Esse alguém sabia da minha simpatia por Moku, e utilizara o inocente animal como portador de uma terrível arma.

— Procuraremos analisar o veneno colocado na ponta, Atlan — disse o homem com a voz fria. — Levante-se, velho amigo. Lloyd realmente não teve outra alternativa: viu-se obrigado a atirar. Não havia meio de deter o animal. Alguém segurou meus ombros trêmulos e me pôs de pé. Depois de algum tempo, quando me virei, fitei os olhos cinzentos de Rhodan. Havia neles um brilho frio e hostil, até que, ao verem meu rosto, modificaram sua expressão. Perry Rhodan era um dos poucos homens que sabiam sorrir com os olhos. Ao menos tive a impressão de sentir fisicamente o calor que, de súbito, surgiu nos mesmos. A poucos metros do lugar em que me encontrava viam-se cerca de trinta homens de um comando especial terrano. Eram figuras altas e bem treinadas. Eram homens do tipo aos quais eu, o Imperador de Árcon, tinha de renunciar. Em todos os planetas do império não havia um único soldado que possuísse as qualidades daqueles terranos. Os cavalheiros que se encontravam em minha companhia contemplavam, parte assustados e parte enfurecidos, as bocas cintilantes das armas energéticas terranas. Rhodan não tivera a menor dúvida em ameaçar os nobres da corte com as armas. Sem dúvida, compreendia perfeitamente o perigo que me ameaçava. Abaixei-me sobre o corpo inerte da cachorra. Segundo as leis vigentes em Árcon, teria de ser incinerado numa câmara e a seguir dissolvido. Em Árcon nunca houvera cemitérios. No momento em que Fellmer Lloyd tomou os restos mortais do animal nos braços e caminhou em direção ao planador que me esperava, desprendi-me do quadro. Sabia que cuidaria de tudo. — Não há dúvida de que salvou minha vida — disse, e esforcei-me para pensar apenas no presente. Eu precisava esquecer o rosto fiel de Moku, no qual se liam com tamanha facilidade os sentimentos do animal. O amor de Rhodan pelos animais fez com que ele próprio se abstivesse de qualquer observação supérflua. Qualquer outra pessoa seria capaz de dizer que o incidente era lamentável, mas afinal tratava-se apenas de um cachorro. Naquele instante, dificilmente seria capaz de suportar uma expressão desse tipo, sem perder o autocontrole. Alguns sons retumbantes de tambor, seguidos imediatamente de terríveis dissonâncias, fizeram com que estremecesse de susto. Rhodan soltou um suspiro de resignação, que logo foi superado pelas batidas, chiados e fanfarradas cada vez mais rítmicas. Virei-me, esbravejando furiosamente. Algum mestre-de-cerimônias de terceira classe resolvera usar a música militar, a fim de salvar alguma coisa da recepção frustrada a “Sua Excelência Administrativa Perry Rhodan”. A banda musical de robôs, programada para oitocentas peças, marchou em nossa direção, com sons retumbantes e tilintantes. Inúmeros braços metálicos desciam sobre tambores de fibra de plástico, produzindo um barulho de fim de mundo. Outros músicos conduziram os fluxos de ar de seus competentes compressores para dentro das trombetas, fanfarras e outros aparelhos barulhentos. Faziam-no com tamanha força que não se entendia mais uma única palavra. Gritei algumas pragas para o mestre-de-cerimônias, que marchava à frente do destacamento, e sacudi os punhos. Porém o treinado cortesão não permitiu que meus gestos perturbassem suas atividades.

Não tivemos outra alternativa senão esperar até que a horda selvagem passasse por nós. Os membros do comando terrano fitavam o espetáculo com uma expressão que quase chegava a ser de perplexidade. Rhodan, num gesto de resignação, colocou a mão no boné bordado de ouro, enquanto um major terrano, que nunca havia visto, sorria de forma tão franca que logo me senti melhor. Só mesmo um ser humano seria capaz de torcer os lábios dessa forma. Para mim, a visão daquele oficial robusto, de rosto moreno e marcante, tinha algo de refrescante. Levei alguns segundos para perceber que o major trazia no uniforme o distintivo de comandante de couraçado. Além disso, não parecia ser um terrano igual a qualquer outro. A largura de seu corpo quase era igual à altura, e os feixes de músculo que apareciam sob o uniforme quase chegavam a infundir medo. Esse homem devia possuir uma tremenda força física. Rhodan seguiu meu olhar. Percebi que se sentia satisfeito por poder desviar minha atenção discretamente dos acontecimentos que acabavam de desenrolar-se. — O Major Jefe Claudrin, comandante da Ironduke — disse em tom um tanto apressado, a título de apresentação. — Nasceu em Epsal. — Em Epsal...? — Trata-se de um planeta colonial cuja gravitação é de 2,1G. Jefe costuma levar consigo um microgravitador, que lhe confere o peso a que está habituado. Um tanto curioso, aproximei-me do homem e, num gesto impulsivo, ofereci-lhe a mão. Alguém soltou o ar com tamanha violência que até se parecia ouvir um apito. Virei a cabeça e fitei o mestre-de-cerimônias, que parecia encontrar-se na iminência de um colapso nervoso. Na verdade, o fato de eu, que era o Imperador do Reino Estelar, estender a mão a um simples major, tinha algo de catastrófico. Era uns vinte centímetros mais alto que Jefe Claudrin, que media no máximo um metro e sessenta de altura e outro tanto de largura. Mas quando senti seu aperto de mão, tive de esforçar-me para não gemer e dobrar os joelhos. No entanto, tinha certeza de que Claudrin sabia avaliar sua tremenda força e dificilmente estaria apertando minha mão conforme costumava fazer. — Fico muito satisfeito em conhecê-lo, sir — trovejou sua voz profunda. Sem dúvida o timbre da mesma combinava com aquele homem extraordinário. O tratamento de sir me fez soltar uma gostosa gargalhada. Finalmente voltava a ouvir palavras razoáveis, depois de vários anos em que todos me tratavam de Vossa Eminência. E Claudrin ainda era interessante sob outro ponto de vista. Constituía a prova viva do espírito empreendedor dos terranos, que se arriscaram a povoar planetas grandes, com elevado grau de gravitação, por homens iguais a quaisquer outros, a fim de, mediante esse tipo de manipulação cosmo genética, criar um povo novo, adaptado ao ambiente. Provavelmente Claudrin era um dos primeiros homens nascidos num mundo em que a gravitação chegava a 2,1G. Lancei um olhar pensativo para Rhodan, que me fitava com uma visível tensão interior. Sorri ligeiramente para ele. De repente me senti muito cansado. Esses pequenos bárbaros podiam apresentar uma lista de feitos bem-sucedidos que devia deixar certas pessoas bastante contrariadas. Poucos decênios se haviam passado — mais precisamente, uns 59 anos — desde que conseguira, com o apoio de Rhodan, vencer e reprogramar o grande centro de computação. E nesse tempo os terranos conseguiram transformar o Império Solar, que ainda era bastante fraco, numa potência galáctica de primeira categoria.

Ainda me lembrava perfeitamente do dia em que a frota dos druufs, que são criaturas não humanóides, lançou seu ataque contra a Terra. Na oportunidade mandei minhas naves robotizadas em auxílio da Terra. Hoje esse auxílio não seria mais necessário, mesmo que esses monstros, vindos de outra dimensão temporal, voltassem a atacar. Sabia que a lua terrana fora transformada, segundo o modelo arcônida, num astro destinado exclusivamente a abrigar os estaleiros de espaçonaves. Era possível que a capacidade de construção de naves dos terranos já ultrapassara a dos arcônidas. Lancei um olhar para a Ironduke, que certamente pertencia a um novo tipo de supernaves. O gigantesco vulto esférico media oitocentos metros de diâmetro. Gostaria de saber quanto tempo se levava na Terra para construir uma nave desse tipo. Provavelmente não seria mais que alguns meses, enquanto há poucos decênios ainda se tinha de contar com um tempo de construção de ao menos doze anos. Jefe Claudrin fitou-me sem rebuços. Parecia adivinhar meus sentimentos e pensamentos. Apressei-me em pedir desculpas e, com um sorriso embaraçado, acrescentei: — O senhor tem uma bela nave, comandante. Parabéns. Claudrin inclinou o crânio pesado, sobre o qual o boné fazia uma figura um tanto esquisita. — Muito obrigado, sir. A Ironduke tem suas qualidades. Acreditava plenamente no que acabara de ouvir. O sistema de propulsão linear do couraçado espacial por si só já representava um milagre. A curiosidade de técnico despertou em meu interior. A voz aguda de um oficial baixo, de quadris estreitos, com um rosto marcante, despertou-me das reflexões. Rhodan, que se encontrava de pé a meu lado, parecia indiferente a tudo. Sabia, porém, que levara apenas alguns segundos para analisar-me. Afinal, era um psicólogo brilhante. O chefe do comando mandou que os homens se acomodassem. No momento em que entraram no carro-planador, Rhodan disse em seu tom indiferente, que já adquirira uma triste celebridade: — O barulho terminou; escapamos sãos e salvos aos olhares venenosos dos seus cortesãos. Se depender de mim, podemos dispensar a palhaçada da recepção. A Ironduke está pronta para decolar. Gostaria de saber quanto antes o que o computador-regente conseguiu apurar. Então, o que me diz? Olhou em torno, indignado. Ao que parecia, os homens que me acompanhavam não sabiam o que fazer. Dispensei-os com uma ordem lacônica, suspendi as festividades em honra do Administrador Solar e dirigi-me ao planador do comandante da Ironduke. Senti uma alegria tremenda ao ver os rostos apavorados dos cortesãos, até que Rhodan disse com um sorriso matreiro: — Se você trata o pessoal dessa forma, não terá por que admirar-se com os atentados. — Quero que o diabo os carregue — respondi em inglês. — A eles e a todo esse cerimonial que tanto repugna ao meu coração. Tenho coisas mais importantes a fazer do que cumprimentar cinco mil representantes das famílias mais importantes e deleitar-me com suas mesuras. O mestre-de-cerimônias aproximou-se, banhado em suor. Havia um brilho úmido em seus olhos vermelhos de arcônida. Estava prestes a chorar.

Com prolixos pedidos de desculpa, interpôs-se em nosso caminho. Rhodan inclinou a cabeça, num gesto amável, enquanto eu fervia de raiva. Sempre era assim. Nunca se conformavam com as medidas que resolvia adotar. Sempre havia alguém que julgasse necessário chamar minha atenção para este ou aquele detalhe, numa linguagem polida e formalista. — Eminência, os representantes mais importantes da sociedade aguardam com a maior simpatia e humildade a presença de Vossa Eminência e de Sua Excelência Solar. Permita-me que, com todo o respeito que sinto por Vossa Eminência, mencione o fato de que a política interna de Árcon I exige o benévolo comparecimento de Vossa Eminência. Vejo... — O senhor ouviu minha ordem — disse em tom áspero, interrompendo o mestrede-cerimônias com seus gestos efeminados. — Sua Eminência age assim a pedido expresso formulado por mim, sir — disse Perry com um sorriso radiante. — Queira transmitir minhas melhores recomendações aos nobres de Árcon. Certos acontecimentos da maior importância, que se verificaram na política exterior, nos obrigam a renunciar ao prazer da recepção tão bem arranjada pelo senhor. Estou inconsolável, sir. Isso também não deixava de ser uma recusa. Apenas, Rhodan soube enfeitá-la com palavras mais amáveis. O funcionário de minha corte compreendeu. Fazendo um esforço tremendo para resguardar sua dignidade, retirou-se. Saltei para o planador, que partiu com um solavanco assim que Rhodan também entrou. Cumprimentei a guarda de honra que continuava em forma. Os gigantescos naats fitaram-nos com uma expressão estúpida e indiferente. O grande comando de robô subitamente fez meia-volta, para abandonar o campo de pouso. Jefe Claudrin riu, enquanto eu não sentia a menor vontade de fazer o mesmo. O nativo de Epsal parecia não ter a menor idéia da tremenda violação dos sagrados usos e costumes que acabara de ser cometida por mim. Nunca poderia atrever-me a tomar uma atitude como esta, se não tivesse ocorrido o atentado contra a minha vida. Rhodan tirou o boné, estreitou os olhos, piscou para o escaldante sol de Árcon e enxugou a testa, ensopada de suor. — Atlan, posso dizer-lhe uma coisa de amigo para amigo, na linguagem franca do soldado? Não olhei para ele. Sem nada falar, fitei a espaçonave que se aproximava. Os abaulados flancos de aço do artefato obstruíam a visão das instalações do espaçoporto, situadas mais ao norte. — Pois não. — Você não passa de um pobre cachorro. Não me senti ofendido nem melindrado. Esperava que Rhodan dissesse mais ou menos isso. Será que devia dizer-lhe que o que mais desejava era voltar a singrar as amplidões da Galáxia juntamente com os astronautas terranos? Deveria dizer-lhe que, para mim, sua simples presença era algo de maravilhoso, que era maravilhoso ouvir sua voz e fitar os rostos francos e sorridentes de verdadeiros homens? Não; era preferível não dizê-lo. Rhodan já sentia muita pena de mim, e isso me deixava triste. E há tempos, já havia tentado matar esse homem, apenas porque pretendia barrar-me o caminho que levava ao meu mundo natal!...

Hoje sabia que pensara e agira com a maior coerência. Com um sorriso forçado e uma ironia fingida, respondi: — O pobre cachorro nem sequer pode latir à vontade. Como são as coisas no interior de sua nave? — Você pode latir à vontade; apenas peço que não me morda. Nós nos havíamos compreendido. Nunca mordera a ele — vale dizer, à Terra. Árcon já não tinha forças para isso. Mas unidos representávamos um poder invencível. Seríamos mesmo invencíveis? Lembrei-me da interpretação final do regente. Alguém abalara os alicerces dos dois impérios. Já estava na hora de fazer alguma coisa contra isso.

2 A rigor, a nave terrana Ironduke era uma usina energética espacial, em cujo interior parte alguma, por menor que fosse, deixou de ser aproveitada. Durante o curto vôo que nos levou ao terceiro planeta de Árcon, não houvera necessidade de usar o lendário sistema de propulsão linear, que os terranos haviam copiado dos druufs; conseguiram construí-lo depois de um prolongado trabalho de pesquisa. Por isso não pudera observar as novas máquinas, nem realizar o estudo visual das mesmas. Aliás, era bastante duvidoso que Rhodan me fornecesse as respectivas informações. A Ironduke era a nave do futuro. Sua combativa capacidade tática era muito superior à de qualquer outro veículo espacial. E os homens iguais ao Major Jefe Claudrin simbolizavam o tipo de comandante dotado de imensa resistência nervosa e capacidade de reação para capitaneá-la. As naves pertencentes à série da Ironduke representavam instrumentos extremamente perigosos em mãos do comando espacial dos terranos, ainda mais que os novos meios de vencer o tempo e o espaço permitiam usá-las praticamente em qualquer ponto. Era bem verdade que com as naves convencionais isso também se tornava possível, mas essas não podiam ser dirigidas com a mesma rapidez para os pontos estratégicos mais importantes. Além disso, o abalo estrutural provocado no momento do salto permitia sua localização, o que não acontecia com as espaçonaves de propulsão linear. Estas não saltavam pela quinta dimensão; atravessavam a estrutura instável, situada entre o espaço normal e o hiperespaço, num vôo contínuo realizado a uma velocidade milhões de vezes superior à da luz, durante o qual a tripulação podia ver o ponto de chegada. Não havia a dor da desmaterialização e da rematerialização, e, além disso, os tripulantes não ficavam sujeitos à carga psicológica advinda das transições que até então se costumava realizar. As vantagens das novas espaçonaves eram evidentes. Por isso preferi não incomodar Rhodan e os cientistas a bordo com perguntas a esse respeito. Depois de nosso pouso em Árcon III, o mundo dos estaleiros espaciais e das indústrias acessórias dirigidas por robôs, ponderei algumas idéias que não deixavam de ser egoístas. Há alguns dias conhecia perfeitamente o perigo que surgira nas profundezas do centro galáctico. Era a única pessoa que possuía os dados indispensáveis para que Rhodan traçasse seu procedimento futuro. Conforme as circunstâncias, poderia mostrar-se disposto a revelar-me espontaneamente o segredo do sistema de propulsão linear. Comecei a namorar a idéia de reprogramar as gigantescas linhas de montagem do mundo industrial, a fim de equipar as grandes unidades da frota arcônida com a máquina fantástica. No entanto, Rhodan não fez menção de colocar em discussão este ponto. Estava interessado, antes de mais nada, em saber de mim ou do computador-regente de onde vinha o povo dos arcônidas e qual era seu parentesco com os chamados acônidas. Conseguira apoderar-me desses dados.

Para isso recorrera aos armazéns de velhos dados do maior centro de computação da Via Láctea. *** Pela primeira vez um não-arcônida teve permissão para penetrar nos centros subarcônidas. Também neste ponto resolvi deixar de lado todas as idéias convencionais, ainda mais que, além de mim e de Rhodan, dificilmente havia qualquer ser vivo que estivesse tão bem informado sobre essas instalações. Juntos havíamos vencido o famoso centro de computação, que até poucos decênios atrás era completamente autônomo e conhecido como uma entidade impiedosa. Conseguira provocar a reação do dispositivo de segurança instalado por meus antepassados, e depois disso os atos do regente, que escapavam a todo e qualquer controle, chegaram ao fim. Agora as gigantescas instalações passaram a ser empregadas em finalidades úteis. O enorme aparelho administrativo do império, tremendamente ramificado, era dirigido exclusivamente pelo centro de computação. No entanto, ele já não intervinha nos acontecimentos políticos e militares sem ordens especiais de minha parte. Rhodan pediu que lhe fosse permitido levar um dos seus mutantes. Concordei depois de ligeira hesitação, embora não soubesse por que fazia questão dessa companhia. Tama Yokida, um terrano de estatura mediana, um tanto atarracado, vindo do estado federado do Japão, era um homem quieto e modesto, cujo dom especial consistia na capacidade de mover e manipular objetos materialmente estáveis exclusivamente pela força de sua vontade. Também a Tama fora concedida, por ordem de Rhodan, a chamada ducha celular. E foi assim que três criaturas relativamente imortais se aproximaram do campo energético em favor do grande centro de computação. “Por quanto tempo ainda seria possível enganar a natureza com nossos recursos biotécnicos?”, pensei. Quando chegaria o momento da decadência celular irreversível? Rhodan, Yokida, eu e muitos outros mutantes representavam exemplares curiosos na estrutura da natureza onipotente. Nossa existência fundava-se num truque sujo, conforme dissera corretamente um cientista terrano. Essa afirmativa aplicava-se especialmente a mim, pois sempre conseguira cuidar do meu microativador celular, para que a regeneração das células nunca fosse interrompida por um tempo muito longo. Às vezes, a coisa estivera por pouco, e nessas oportunidades comecei a compreender que o misterioso Ser coletivo do planeta Peregrino, ao entregarme o aparelho, se guiara por idéias estatísticas. A julgar pela lei das grandes séries, já deveria estar morto há muito tempo. Durante minha longa peregrinação pela História da Terra houve centenas de possibilidades de perder o ativador. E isso acontecera muitas vezes. Apenas, ao contrário das expectativas estatísticas, sempre conseguira recuperar o aparelho antes do momento crítico. O pigarro de Rhodan sobressaltou-me em meio às reflexões. Virei a cabeça. O campo energético defensivo do centro de computação erguia-se bem à nossa frente. A Ironduke pousara dois quilômetros atrás de nós. O carro, que nos levara até a linha vermelha que delimitava a zona de perigo, aguardava fora da área mortal.

Já havíamos transposto o grande dique, atrás do qual certa vez estivéramos deitados, disparando contra qualquer peça de metal que enxergássemos à nossa frente. Fazia mais de sessenta anos. Naquele momento podíamos caminhar tranqüilamente em direção à guarda de robôs que nos esperava atrás do campo defensivo e pedir em nome do imperador que nos deixasse entrar. Rhodan e Tama Yokida pararam. Sem dizer uma palavra, seguiram-me com os olhos. Sabiam que seus impulsos individuais teriam de ser captados e registrados pelo dispositivo de segurança e retransmitidos, com as respectivas ordens, às estações defensivas. O gigantesco campo abobadado abriu-se à minha frente. Atravessei-o e liguei o aparelho de comando preso ao pulso esquerdo. — Bem-vindo, eminência — disse a voz fria e mecânica do regente, saída do altofalante. Era o cumprimento que costumava ser usado há cerca de sessenta anos. Resolvi ser lacônico. — Permita a entrada do Administrador do Império Solar e de seu companheiro. Prepare o retrato, armazene-o e transmita-o sob a forma de um impulso condensado às unidades de defesa. Se é que um cérebro positrônico é capaz de ficar perplexo, isso deve ter acontecido nesse instante. Um forte zumbido fez-se ouvir em meu aparelho de comando. A resposta do regente demorou alguns segundos, e foi muito diferente do que eu esperava. Depois de um forte estalido no alto-falante, ouviu-se outra voz, fortemente modulada. — Dispositivo de segurança A-l falando, eminência. Minha programação, realizada pelos antepassados, faz-me não permitir a entrada de estranhos, a não ser que circunstâncias extraordinárias obriguem um arcônida a pleitear, no interesse do Império Estelar, a entrada dos mesmos. Um pedido desse tipo terá de ser muito bem fundamentado. Fiquei perplexo por um instante. Aquilo constituía uma novidade. Virei-me apressadamente e fiz um sinal para que Rhodan, que já se aproximava da linha vermelha, recuasse. Notei que a abertura, que se formara no campo defensivo, voltara a fechar-se. Rhodan deu um salto para trás. Sem dúvida compreendera. Procurei aproximar o aparelho de comando dos lábios. — Imperador dirigindo-se ao dispositivo de segurança A-l — disse, acentuando as palavras. — Surgiram as circunstâncias extraordinárias que tornam indispensável a entrada de um estranho, no interesse do Império Estelar. Os dados extraídos das memórias antigas provam que a existência do império está em jogo. O conflito com a raça de que provêm os arcônidas, conhecido pelo nome de Guerra do Centro, entrou num novo estágio crítico. Há dois meses os acônidas atacaram o grande império, fazendo com que o terceiro planeta recuasse quinze mil anos. Nesta época o governante era o Imperador Metzat. Os arcônidas que então viviam, desaparecidos, em sentido relativista, há muitos milênios, despertaram para uma vida nova e incompreensível. Uma velha frota arcônida ia atacar a Terra. Esta, por sua vez, não foi influenciada por nenhum campo temporal. A eliminação do deformador de tempo, introduzido por desconhecidos, trouxenos de volta à situação normal. Esses dados já são do seu conhecimento. — São do meu conhecimento, eminência — confirmou o dispositivo de segurança. — Qual é a relação entre eles e os estranhos a que Vossa Eminência acaba de aludir?

Refleti febrilmente. O único meio de convencer um computador era a lógica pura. Seria inútil dizer que Rhodan apenas pretendia examinar, a título de informação, os velhos relatos em filme. Teria de encontrar um argumento mais convincente. — A degenerescência dos atuais arcônidas também é um fato conhecido. Para defender-nos do ataque da raça-mãe necessitamos do auxílio do Império Solar. Sua Excelência Administrativa, Perry Rhodan, precisa ser informado pessoalmente da situação. Seu companheiro exerce as funções de ajudante e é dotado de faculdades paranormais. — Será possível utilizar essas faculdades no interesse do Império Estelar? — indagou A-l. Já ganhara a partida. Logo após minha resposta afirmativa, o setor A-l voltou a chamar. — O requerimento de Vossa Eminência foi deferido sob reserva, uma vez computados os dados disponíveis. — Sob reserva? — É o que determina minha programação, eminência. Os não-arcônidas podem penetrar na sala de apresentação número sete. Os outros setores do computador-regente não podem ser visitados por estranhos, nem observados por meio de aparelhos de inspeção à distância. O auxílio armado, que Vossa Eminência julga imprescindível, obriga-me, face às ordens introduzidas em mim, a permitir a entrada do não-arcônida. Não é possível fazer outras concessões. Sentia-me satisfeito por ter conseguido ao menos essa permissão. Admirei contra vontade a sábia previdência dos homens que, num trabalho de vários séculos, haviam construído e programado o gigantesco centro de computação. Não se esqueceram de nenhum detalhe. Minha vida não valeria mais nada, se ainda me atrevesse a levar Rhodan a outro lugar que aquele que me fora ordenado. Neste ponto parecia terminar meu poder de dar ordens, que em outros setores era irrestrito. Esperei até que o armazenador de dados móvel parasse ao meu lado. Só depois surgiu a abertura no anteparo energético. Saí e fiz um sinal para Rhodan. Perry continuou parado. Parecia estar preparado para saltar a qualquer momento. Senti seu olhar desconfiado. Voltara a ser o terrano, sempre cauteloso, que ponderava a situação, numa atitude fria e tranqüila, embora admitisse certa dose de risco. Senti a dor na parte traseira do crânio. Os telepatas a bordo da Ironduke procuravam averiguar o conteúdo do meu pensamento consciente, muito embora soubessem há muitos anos que não conseguiriam fazê-lo contra minha vontade. Bloqueei imediatamente minha mente por meio do cérebro adicional. Com isso emudeci parapsicologicamente para os telepatas. Não me aborreci nem um pouco com a tentativa frustrada. Era principalmente Gucky, o rato-castor petulante, que não podia deixar de experimentar-me com constância. O que mais me apavorava era a idéia de que os mutantes deviam ter agido por ordem de alguém. Rhodan possuía uma capacidade telepática bastante limitada e, como não tivesse sido muito dotado pela natureza, cultivara tal capacidade por meio da parapsicologia moderna. Sabia comunicar-se perfeitamente com um bom receptor. Porém suas transmissões não iam muito longe. Naturalmente ele, que era uma criatura desconfiada, irradiara uma ordem para seus homens, para que fizessem o possível para arrancar-me alguns fragmentos de idéias. Nesse instante perdi toda esperança de algum dia saber desse homem como funcionavam os novos hiperpropulsores.

Reprimi a contrariedade que sentia. Esse terrano nunca aprenderia. Passara por uma escola dura e impiedosa. A vida e as situações calamitosas, que se espalhavam pela Galáxia, haviam-lhe ensinado que não se devia confiar em ninguém. Este princípio não podia ser considerado falso, e muito menos deveria ser interpretado como uma manifestação constante de maldade. Apenas, não deveria ter chegado ao ponto de incluir seus amigos sinceros no círculo das pessoas contra as quais dirigia sua desconfiança. Liguei meu rádio portátil e falei em tom irônico para dentro do microfone: — Muito obrigado pela prova de confiança, bárbaro. Caso os senhores mutantes da Ironduke me estejam escutando, quero que saibam que as tentativas de espionagem paramental continuarão a ser infrutíferas. A posição de Rhodan descontraiu-se. Dali a pouco soltou uma risada, e então não consegui ficar mais zangado com ele. Afinal de contas, era um terrano que mais uma vez se identificara com toda a Humanidade. Preferiria que o fizessem em pedaços a permitir que algo de mal acontecesse a essa Humanidade. Tirou do cinto o radiotransmissor e encostou-o à parede. Numa atitude típica, não formulou nenhuma pergunta, mas fez uma constatação em tom terminante: — Você teve problemas. O que houve? — Foi o dispositivo de segurança A-l. — Entendido. Isso foi uma novidade para você, não foi? — Você compreendeu com uma lógica perfeita. — Bendito seja seu senso de humor, arcônida. Será que já posso aproximar-me sem correr nenhum perigo? — Você pode entrar na sala de apresentações número sete; só isto. — Quer dizer que há mais de uma. — É de se supor que haja. Rhodan soltou uma risada que desarmaria qualquer pessoa. Foi caminhando lentamente, juntamente com Tama Yokida. No momento em que ultrapassaram a linha vermelha de perigo, meus olhos ficaram úmidos. Era um sinal de agitação interior. Qual seria dali em diante o comportamento do regente, especialmente do seu setor de segurança? Se Rhodan morresse por ocasião de uma visita amistosa, as conseqüências seriam inimagináveis. Só suspirei aliviado quando os dois homens haviam passado pela coleta dos dados individuais. Aguardei até que os capacetes detectores fossem tirados de suas cabeças e o setor A-l voltasse a chamar para confirmar o registro. Os robôs de guerra, enfileirados sob a distante abóbada de aço, desapareceram. O centro de computação teve bastante confiança em mim para deixar a meu cargo os cuidados com Rhodan e Yokida. Informei-os apressadamente e concluí: — Peço-lhes encarecidamente que não façam tolices. Tama, o senhor deve renunciar às suas brincadeiras telecinéticas. Estamos lidando com uma máquina-mamute, que não entende de brincadeiras nem atitudes petulantes. Rhodan usou sua faculdade telepática para entrar em contato com a Ironduke. Naquele momento não havia nenhuma possibilidade de intercâmbio falado. O campo energético do centro de computação impedia todas as comunicações pelo rádio. — Está bem; vamos andando. Meu pessoal está informado. Se alguma coisa nos acontecer, ao menos não acreditarão que seja por sua culpa.

Lançou-me um olhar penetrante; a exclamação furiosa que pretendia soltar ficou presa na minha garganta. Rhodan falara sério. Virei a cabeça sem dizer uma palavra. Um planador antigravitacional levou-nos até a abóbada achatada, que mal sobressaía do solo, na qual terminava um elevador antigravitacional. Meus antepassados fizeram questão de colocar as instalações de comando bem abaixo do nível do solo. Rhodan e o telecineta seguiram-me de perto. E não se desgrudaram dos meus calcanhares quando nos encontrávamos a dois mil metros de profundidade, e atravessávamos as últimas eclusas blindadas. Naquele instante penetramos no labirinto misterioso de uma tecnologia que os arcônidas daqueles dias já não dominavam. Nem mesmo eu estaria em condições de reparar um setor que por algum motivo deixasse de funcionar. Acontece que meus veneráveis antepassados — que a rigor eram meus descendentes — haviam pensado no caso. O regente reparava-se a si mesmo. Um robô especializado sem armas aguardava-nos na entrada da sala de apresentação número sete. Vimos à nossa frente um recinto quadrado, com o teto abaulado apoiado em colunas. Só se via uma série de telas enormes, uma mesa de programação em ferradura e um envoltório de aço que sobressaía da parede e continha os elementos dos estágios finais de computação. À frente da maior das telas viam-se confortáveis poltronas articuladas, que já haviam abrigado os maiores cientistas e estadistas da História de Árcon. Sem dizer uma palavra, apontei para as poltronas. A apresentação já fora preparada. Não havia necessidade de formular indagações detalhadas, já que os dados armazenados no computador, solicitados há alguns dias, estavam inseridos no setor lógico. Antes que pudesse desencadear o impulso, que seria importante, se não decisivo, para Rhodan e para mim, disse no tom mais indiferente que me foi possível: — Perry, seu avanço inesperado para o Sistema Azul, que provavelmente só se tornou possível graças à nave de propulsão linear, provocou uma verdadeira avalanche de acontecimentos. Os fatos que você apurou são corretos. Os pré-arcônidas, ou melhor, os acônidas, são os antepassados dos arcônidas que você conhece, e aos quais eu pertenço. Para os membros do Grande Conselho de Árcon esse fato é bastante lamentável. — Por quê? Fitei-o com uma expressão pensativa. — Você sabe. Em nossa raça cumpriu-se uma lei natural à qual, segundo parece, ninguém consegue escapar. Quase todos os sociólogos, biólogos e médicos são acordes em afirmar que um povo arrancado de seu habitat original não pode permanecer para sempre num outro mundo em que as condições são totalmente adversas. Isso se aplica tanto à Cultura e à Ética, como também ao patrimônio técnico e científico. A degenerescência inegável dos arcônidas de hoje é uma simples conseqüência dessa lei sombria. Já sabemos por que o Império de Árcon é um colosso sobre pés de barro. O enigma, que há tanto tempo procurávamos solucionar, encontrou sua solução graças ao seu vôo experimental, que o levou ao centro da Galáxia. “Somos descendentes de colonos de um grande povo, e por isso degeneramos. Quase todos os arcônidas, inclusive as cabeças dirigentes do Grande Conselho, encontram-se na situação psíquica de certo grupo de doentes mentais que nenhum psiquiatra consegue convencer de que realmente são doentes. Logicamente a situação nos imporia o dever de convencer os arcônidas de que chegamos ao fim do nosso caminho.

Mas nunca conseguirei fazer isso. À medida que progride a decadência, mais arrogantes se tornam as pessoas. “Evidentemente, essa arrogância não tem o menor fundamento. Face a isso dependeremos exclusivamente da nossa capacidade. Os dados armazenados no cérebro revelam que há cerca de vinte mil anos do calendário terrano irrompeu uma terrível guerra entre os acônidas e meus antepassados. “Tratava-se de direitos documentados, pretensões à autonomia, relações comerciais e outros pontos que constantemente têm surgido como causas de conflitos desastrosos. No chamado Sistema Azul, você deve ter notado que essa guerra ainda não foi esquecida, e os últimos acontecimentos provam que realmente não o foi. Os acônidas procuram remover o perigo representado por sua pessoa. Você se tornou um elemento perigoso, já que possui o sistema de propulsão linear.” Rhodan fitou-me prolongadamente. Ao que parecia, nenhuma das minhas emoções escapava à sua atenção. — Isso mesmo — limitou-se a dizer. — O regente constatou com cem por cento de certeza que a eliminação de sua pessoa representaria o fim da Terra e do Império de Árcon. Por outro lado, você não conseguiria manter-se se eu deixasse de existir, já que controlo a frota espacial arcônida. Dessa forma pouco importa em que ponto os acônidas resolvam lançar seu ataque. Foi por isso que solicitei sua presença. — Será que as informações fornecidas pelo regente realmente são tão inequívocas como o senhor acredita, sir? — perguntou Tama Yokida. — São ainda mais inequívocas. No dia em que eu deixar de ser imperador, minha frota atacará a Terra. Quanto a isso não existe a menor dúvida. Se a Terra for enfraquecida por outro motivo, não mais poderei defender-me dos meus inúmeros inimigos. Será que posso começar? — Um momento — disse Rhodan, em tom indiferente, levantando-se. Senti-me curioso e, depois de algum tempo, fiquei inquieto. Seu rosto parecia tenso. — Pois não. — Recebi sua mensagem de rádio no momento em que me preparava para decolar. Pretendia, e ainda pretendo, dirigir-me mais uma vez ao Sistema Azul, a fim de procurar remover as causas dos conflitos. O silêncio passou a reinar na grande sala. Rhodan observou atentamente minha reação às suas palavras. Não me sentia muito surpreendido. O projeto constituía um sinal do sentido sempre alerta para as necessidades estratégicas. — Compreendo. Você acha que a comunicação que acaba de fazer é tão extraordinária assim? O rosto de Rhodan permaneceu impassível. Apenas ficou um pouco mais pálido. — Para falar com franqueza, acho. Não tive a intenção de informá-lo antecipadamente a este respeito. Levantou-se e ficou à minha frente. Por um instante olhamo-nos fixamente. — Então é isso...! — respondi em tom hesitante. — Conhecemos a situação política interna do sistema de Árcon! — disse Rhodan, em tom apressado. — Achei que seria perigoso revelar minhas intenções agora. — Você pode ter certeza de que eu não as teria revelado aos meus incompetentes ministros — disse em tom amargurado. — Quer dizer que você pretendia decolar sem que eu soubesse, apesar de termos sido atacados ao mesmo tempo. O que pretende fazer agora?

Mais uma vez entreolhamo-nos. Rhodan virou-se lentamente e voltou à sua poltrona. Uma vez acomodado, disse: — Ainda bem que recebi sua notícia em tempo. Não supunha que as previsões mais sombrias dos pesquisadores terranos encontrassem uma confirmação tão crassa. — Quer dizer que você mudou de opinião, administrador? Rhodan limitou-se a sorrir. De repente pensei que compreendia por que não pretendia informar-me. Não passava de uma figura decorativa no trono de Árcon, muito embora fizesse tudo que estava ao meu alcance para corrigir as condições insustentáveis do império. — Não me chame assim, amigo! De qualquer maneira, você seria informado sobre os resultados de nosso vôo. Aquilo ao menos era uma informação positiva. Iniciei a apresentação, sem formular outras perguntas.

3 — ...e então a décima-segunda esquadra de cruzadores espaciais, comandada pelo Almirante Talur, decolou a fim de executar o programa de contragolpe, que visava à destruição da base acônida de abastecimento de Tarkta, o quarto planeta do sistema central de Opogon. A Her-Akal, nave capitania, abrigava veículos auxiliares. Vejam a décima-segunda esquadra no ataque decisivo, que, depois de quatro anos de batalhas de retaguarda, representou uma contribuição decisiva à contenção da ofensiva dos antepassados. A voz mecânica do regente superou o barulho das armas. As grandes telas tridimensionais de visão global mostravam um acontecimento que se desenrolara há 20.418 anos do calendário terrano. O conflito entre os antepassados dos atuais arcônidas e o povo que então era formado por colonos novos, conhecido pelo nome de Guerra do Centro, irrompera apenas 182 anos após o início da colonização do grupo estelar M-13. Os emigrantes, equipados com os recursos mais modernos dos antepassados, logo alcançaram a autonomia. Lançando mão de um contingente enorme de espaçonaves e armas de todos os tipos, conseguiram subjugar em menos de sessenta anos as inteligências de todos os graus de classificação que viviam no grupo estelar M-13. E foi assim que surgiu o Império de Árcon. Cerca de 180 anos depois do dia em que a primeira nave com colonos pousou no planeta, houve uma reviravolta na política interna. Proclamou-se o absolutismo imperialista, e todas as resistências internas foram eliminadas implacavelmente. O primeiro imperador foi Gwalon I que, sete anos depois da subida ao poder, proclamou a independência do novo império e, num ataque-relâmpago, procurou destruir as fortificações avançadas e as bases de suprimentos dos antepassados, situadas no grupo M-13. A ação foi bem-sucedida. Os antepassados retiraram-se, mas não o reconheceram como imperador. Depois disso houve a Guerra do Centro, que durou onze anos. No curso da mesma os colonos que, numa imitação quase perfeita do nome primitivo, passaram a chamar-se de arcônidas, envolveram-se nos conflitos mais violentos da História acônida. Os numerosos filmes sonoros de cinegrafistas já falecidos mostravam cenas das batalhas travadas entre os arcônidas e os acônidas, que naquela época já habitavam o sistema solar central que Perry Rhodan descobrira por ocasião de um vôo experimental, realizado em março de 2.102. Estávamos no dia 16 de dezembro de 2.102 mas, ao fitar a tela, tive a impressão de que a história exibida na mesma só se desenrolara há poucos instantes. As frotas, que provavelmente eram as maiores que já percorreram a Galáxia, entraram em choque. Dezenas de milhares de espaçonaves de todos os tipos, entre as quais se viam os gigantes de oitocentos metros de diâmetro, espalhavam a morte e a destruição. Esses acontecimentos apavorantes não concorriam para firmar meu prestígio diante de Rhodan. Os atos de meus antepassados representavam uma regressão à barbárie.

Ouvimos os comentários originais, que há vários dias eu já julgara muito duros. Mas agora, que os dois terranos se encontravam presentes, enrubesci de vergonha. Evitei olhar para Rhodan. Provavelmente ele sentia o que se passava comigo. A atuação da décima-segunda esquadra de cruzadores chegou ao fim com a primeira aplicação da recém-criada bomba de gravitação. Sistemas inteiros foram arrancados da estrutura espácio-temporal. Segundo rezava a tradição, o Almirante Talur fora o maior chefe da frota dos colonos. No entanto, agia sem a menor contemplação, tal qual o inimigo. Senti-me satisfeito quando a reportagem cinematográfica chegou ao fim. Para concluir, o regente disse: — A interpretação de todas as circunstâncias que prevaleciam durante a Guerra do Centro, com acréscimo dos novos dados, prova com cem por cento de segurança que nossos antepassados são idênticos aos acônidas. O tratamento dispensado a Sua Excelência Administrativa, Perry Rhodan, no mundo acônida, constitui prova evidente de que por lá a guerra ainda não foi esquecida. O perigo representado pelo sistema de propulsão linear dos terranos deve causar preocupações aos acônidas. Outros ataques, desfechados pela maneira já conhecida, deverão ser esperados. “A existência de um campo defensivo azul e brilhante que, segundo os dados fundamentais, envolve um sistema solar inteiro, corresponde a um desenvolvimento científico-tecnológico extremamente avançado. Recomenda-se procurar um entendimento com os acônidas, ou então travar uma guerra de extermínio contra os mesmos. O mecanismo de propulsão linear dos terranos oferece a possibilidade de atravessar o campo energético, impenetrável para as naves saltadoras convencionais. Deve-se procurar enviar a frota robotizada com pelo menos dez mil unidades pesadas. O que se torna necessário são os mecanismos propulsores lineares.” Lancei um olhar ligeiro para Rhodan, que se mantinha em sua poltrona articulada, respirando pesadamente e com os olhos fechados. — Recusado! Estremeci. Raramente ouvira Rhodan falar com tamanha frieza e reserva. O regente registrou o pronunciamento e processou-o. Alguns segundos depois, extraiu a conseqüência lógica do mesmo. — Com isso a possibilidade de um ataque de surpresa torna-se ilusória, a não ser que os terranos consigam romper o Sistema Azul por meio das naves disponíveis, a fim de possibilitar a penetração de uma frota convencional. — Poderemos falar a este respeito, caso as negociações pacíficas por mim pretendidas não sejam aceitas. Não vejo qualquer motivo para um ataque-relâmpago segundo o modelo arcônida, a não ser que os acônidas comecem a atacar a Terra, os mundos comerciais terranos ou o Império de Árcon. Nessa hipótese ver-me-ia obrigado a formular a declaração de guerra. Rhodan falara no mesmo tom monótono de antes. Parecia profundamente comovido. — Vossa Excelência não considerou a necessidade estratégica de um ataque desfechado sem aviso. — A lógica da sua argumentação é sedutora, mas não se pode exigir de seres humanos que ajam em conformidade com suas recomendações. Quanto a mim, não disse uma palavra. Rhodan sabia perfeitamente que nosso computador-regente não poderia usar outra linguagem. Suas comunicações eram o resultado de cálculos matemáticos. E a Matemática não conhece nenhum sentimento humano.

— Por enquanto não vejo nenhuma solução viável que não envolva certo risco para nós — disse a gigantesca máquina. — Recomenda-se a entabulação de negociações de paz, desde que os antepassados também as desejem. Prevejo com noventa e nove por cento de certeza que as tentativas nesse sentido serão inúteis. O comportamento que os acônidas adotaram por ocasião do pouso de Sua Excelência foi negativo. Os atos que se seguiram revelaram uma inimizade capital, e os acontecimentos que se seguirão levarão os dois impérios à beira do abismo. A superioridade técnica dos acônidas está demonstrada. Também possuem mecanismos propulsores lineares e, além disso, têm uma forma imaterial de transporte de matéria a grande distância. Recomendo encarecidamente uma ponderação coerente da minha exposição. Fim. O regente desligou. Por um momento tive a impressão de que se sentia ofendido, o que evidentemente não passava de um absurdo. A luz acendeu-se. Rhodan fitou-me com um sorriso forçado no rosto. Pigarreou fortemente. Senti que minha garganta também estava seca. — Seus antepassados não tinham muita consideração uns pelos outros — disse, esticando as palavras. — Devo confessar que tive um pouco de medo. Não gostaria de têlos como inimigos. — Na época, o planeta Terra era habitado pelo homem-macaco. E para ele não havia o menor perigo. — Isso é uma desculpa um tanto esfarrapada para justificar essa fúria, que atingiu até mesmo certos povos que nada tinham a ver com o conflito. Nunca concordarei em acatar o conselho do computador, para seguir as pegadas de seus antepassados. Decolarei dentro de uma hora. Levantou-se rapidamente e olhou para o relógio. Quanto a mim, desisti de qualquer explicação para os atos dos meus antepassados. As palavras seriam incapazes de reparar o que quer que fosse. Rhodan já sabia como fundáramos o grande império. Procurei raciocinar de forma coerente. Sua reação deixou-me indiferente, já que era da mesma opinião que ele. O procedimento dos velhos arcônidas era indesculpável. E o que havia sido pior fora seu ataque contra o sistema natal, fato que não deixei de mencionar. — Naturalmente! — exclamou Rhodan em tom exaltado. — Naturalmente não havia nenhuma justificativa para isso. Não se deve atacar à traição o antepassado e mestre, logo depois que se julgue ter atingido um grau de maturidade que permita dispensar os seus serviços. Isso é um crime. Olhei para o lado. Que resposta poderia ter dado a essas palavras? Rhodan percebeu os sentimentos conflitantes que me enchiam, e com isso assumiu atitudes mais conciliadoras. — O senhor não é culpado disso, sir — disse Tama Yokida. Estava prestes a confirmar com um aceno, quando Rhodan estremeceu de repente. Atirou a cabeça para trás e fechou os olhos. Minha mão esquerda subiu quase contra minha vontade, até tocar na chave que se encontrava sobre meu peito. Ouvi a advertência de Rhodan no momento em que meu gerador de campo defensivo começou a zumbir. Devia ter percebido alguma coisa que nem Tama nem eu ouvimos. A mão de Rhodan pegou a arma e o corpo esguio entesou-se para dar um salto. Mas, naquele momento, aconteceu alguma coisa que nunca teria esperado ocorrer nos recintos hermeticamente fechados do centro de computação.

Enquanto meu campo defensivo se levantava, percebi uma luminosidade vermelha, que surgira junto às portas blindadas da sala de apresentação. Levei alguns segundos para compreender o que estava acontecendo, pois nunca vira um transmissor especial acônida e ainda mais com esse formato. Rhodan deu um salto para a frente. Yokida seguiu-o. Continuei como que paralisado, quando o fenômeno luminoso passou a assumir contornos nítidos, transformando-se num portão escuro que dava para um recinto negro. Parecia que tudo atrás da linha arqueada vermelha se desfizera. Movimentei-me a fim de abrigar-me atrás de uma das poltronas. Levei uma fração de segundo para notar os feixes de ondas verdes cintilantes que saíam do arco luminoso, enchendo a enorme sala. Rhodan gritou alguma coisa que não entendi. No momento em que suas palavras morreram no ar e seu corpo esticado no chão enrijeceu, compreendi o que estava acontecendo no interior das instalações muito bem protegidas do centro de computação. Meu cérebro adicional fez-me lembrar do relatório de Rhodan, quando este falara a respeito do estranho fenômeno. O fluxo de impulsos de radiações fora por ele designado como a luminosidade verde. Pelo que dizia, no planeta principal do Sistema Azul os acônidas procuraram colocar os tripulantes da primeira nave de propulsão linear fora de combate por meio do fenômeno. O efeito manifestava-se numa paralisação mais ou menos rápida dos reflexos nervosos, embora a capacidade de raciocínio, a visão e a audição não fossem afetadas. Levei apenas um segundo até compreender. O arco energético era um transmissor acônida de matéria, da qual saíam os raios paralisantes. No momento não estava interessado em saber como o estranho aparelho pôde entrar no subterrâneo do regente. Só uma ação muito rápida poderia salvar-nos. Sem dúvida, Rhodan ouviu meu grito, mas não conseguiu responder mais. Ele e Tama Yokida haviam sido surpreendidos, sem a menor proteção, pela luminosidade verde e viram-se colocados fora de ação mais depressa do que eu teria imaginado, face às informações fornecidas por Rhodan. Provavelmente aqui, na grande sala de exibições, estavam trabalhando com uma intensidade muito maior. Também senti uma série de estranhos repuxos e contorções, que começaram junto aos tornozelos, para subir rapidamente pela barriga da perna. O pânico fez com que me levantasse de um salto e saísse de trás da poltrona. No mesmo instante, o regente deu o alarma. Ouvi os uivos estridentes das sereias e o barulho dos apitos, que me infundiram nova coragem. Se os robôs de guerra conseguissem atravessar com a necessária rapidez as pesadas portas de segurança, estaríamos salvos. A luminosidade verde em si não traria o menor perigo, enquanto não aparecesse ninguém que se aproveitasse da paralisia provocada pela mesma. Atirei-me ao chão ao lado de Rhodan, cujo rosto estava desfigurado. Quando encostei a mão a seu corpo, tive a impressão de tocar numa tábua. O braço de Yokida também assumira a dureza da pedra. Rhodan segurava a arma na mão estendida. Não chegara a atirar, pois não havia nada contra que pudesse disparar. O campo gerado pelo transmissor não poderia ter sido eliminado por meio de sua arma, ainda mais que não se via o menor sinal do respectivo aparelho de projeção. A única coisa que se via era o arco vermelho e seu interior negro.

Usei meu aparelho de comando para entrar em contato com o computador. Já desistira de avançar até a porta. Por lá, as radiações deviam ser ainda mais intensas, e estava interessado em manter-me ativo o maior tempo possível. Minhas pernas começaram a endurecer. Apesar disso dei-me conta de que meu potente campo defensivo individual conseguira neutralizar por algum tempo o campo paralisante. Mas agora não conseguia proteger-me mais. Num gesto desesperado levantei a pesada arma de radiações. Tentaria remover o arco vermelho do transmissor. No último instante consegui controlar-me. Provavelmente o raio térmico poderia derreter a porta que ficava bem atrás do fenômeno luminoso, a tal ponto que não mais seria possível abri-la sem o uso de meios especiais. Além do mais eu esperava a chegada dos robôs, motivo por que não deveria disparar. Meu setor de lógica me dizia com toda insistência que a geração do campo e das radiações azuis devia ter alguma finalidade. Se alguém queria pôr outra pessoa fora de combate por esse meio, isso só poderia ser feito no intuito de colocar tal pessoa num estado em que ficasse totalmente incapaz de reagir. Aguardei esse instante, que chegou menos de um segundo depois. Atrás do arco de radiações que se via na sala de exibição, tudo continuava imóvel. Onde estavam os robôs de vigilância do computador? Uma idéia terrível surgiu em minha mente. Será que os desconhecidos utilizaram sua técnica avançadíssima para fazer com que os robôs não pudessem aparecer? Não pude levar o raciocínio ao fim. Dentro do arco, o negrume começou a desmanchar-se. Uma ofuscante luz violeta surgiu. Dois vultos, usando vestes estranhas, se materializaram sob o arco. Então eram estes os misteriosos acônidas, que já travaram uma luta tão encarniçada contra meus antepassados. Não poderia perder mais tempo. Meu corpo já estava praticamente imobilizado. A rigidez atingiu os ombros e começou a afetar a musculatura dos braços. Reunindo as forças que me restavam, levantei a pistola térmica. Um dos acônidas notou. Saltou para a frente e dirigiu contra mim uma arma que eu não conhecia. Apertei o gatilho. Não tive oportunidade de dar um segundo disparo. Alguma coisa bateu com uma força terrível contra meu campo defensivo, que não mais conseguiu compensar a pressão. Ouvi o uivo estridente do reator que trazia nas costas. No mesmo instante meu campo defensivo desmoronou. O outro intruso também disparara contra mim. Privado do campo defensivo, fui atingido diretamente pela luminosidade verde, que me colocou de imediato num estado de rigidez total. Ouvi passos. Alguém aproximou-se. Um rosto estreito e indiferente apareceu no meu campo de visão. O cano cintilante de uma arma estranha surgiu à minha frente, mas o desconhecido preferiu não mais disparar. Parecia saber que eu também fora atingido pela luminosidade verde. Não se interessou mais por minha pessoa. Suas pernas, que mal e mal conseguia enxergar, saíram de meu ângulo de visão. Dali a alguns segundos notei pelos ruídos que um dos terranos estava sendo arrastado. Era Tama Yokida, conforme pude ver dali a pouco. Ainda consegui ver o arco do transmissor. Depois disso foi a vez de Rhodan. O intruso arrastou-o para junto do fenômeno energético, empurrou o corpo imobilizado do administrador para dentro do arco e esperou que o processo de desmaterialização se concluísse.

Depois chegou minha vez. Não senti nada, enquanto estava sendo arrastado pelo chão. Fui empurrado para dentro do espaço existente entre as linhas de força. Não senti o fenômeno da desmaterialização. Apenas os sentidos, que ainda funcionavam, mergulharam numa névoa. Era um fenômeno análogo ao que costumava ocorrer durante as transições das espaçonaves. Bem, não poderia ser mais do que uma transição em sentido mais amplo. Dediquei meu último pensamento ao centro de computação, que falhara lamentavelmente. Tivera tempo de sobra para intervir. Por que não acontecera nada? E como foi que os acônidas conseguiram introduzir um aparelho de transmissão para o interior do centro de computação? Se isso aconteceu por ocasião do último ataque, durante o qual uma outra dimensão temporal se sobrepusera a todas as influências presentes, a montagem do aparelho seria perfeitamente explicável... Mas nem por isso se explicava que este não tivesse sido descoberto depois da normalização dos efeitos temporais. Um aparelho como este não poderia deixar de irradiar impulsos constatáveis por meio dos instrumentos de medição. Por que esses impulsos não foram captados? Não tive oportunidade de achar a explicação. De uma hora para outra meu raciocínio consciente foi apagado pela desmaterialização.

4 Nela tudo era fascinante. Era uma daquelas mulheres que, graças à sua aparência e à sua conduta, sabem combinar o espírito com o charme. Fitei-a com uma atenção persistente. Notei a harmonia de seu rosto estreito e expressivo, e o vermelho-cobre de seu cabelo, que, sob os efeitos da luz, emitia reflexos fluorescentes. Bela e, em seu conjunto, realmente chegava a ser fascinante. Sem dúvida, as arcônidas da época das conquistas eram como essa mulher. Não tive a menor dúvida de que era uma representante da raça dos antepassados. Rhodan e Tama Yokida também haviam acordado. Ao que parecia, o restabelecimento no interior de um grande transmissor, montado numa estação cuja localização não nos era conhecida, fora instantânea. Não sabíamos onde estávamos. Uma viagem pela estrutura superior do hiperespaço não oferece base para quaisquer conclusões sobre o tempo decorrido e as distâncias, que, de qualquer maneira, assumem caráter apenas relativista. Estávamos deitados sobre estreitas camas de dobrar, nas quais havíamos sido colocados, antes que nossos corpos ficassem livres da rigidez provocada pela luminosidade verde. Nesses leitos recuperamos o controle dos nossos músculos, mas isso praticamente não nos servia para nada. O ruído de máquinas desconhecidas e outros sinais levaram-nos a supor que nos encontrávamos a bordo de uma espaçonave não muito grande. Depois da moça, mais dois representantes do Império de Ácon entraram no pequeno camarote. Aqueles homens altos seguravam armas. Poucos segundos depois da recuperação de minhas energias físicas, tive de constatar que me haviam tirado a mochila com o projetor e o conversor de energia. Apenas o ativador celular pendurado ao meu peito continuava no mesmo lugar. Será que conheciam a importância vital que esse aparelho assumia para mim? A moça — ou mulher — usava uniforme justo, do tipo que, segundo parece, costuma ser usado por todos os povos de astronautas. Apenas a pequena capa que lhe cobria o ombro parecia um tanto extraordinária. Esta peça de seu vestuário era feita de um material fluorescente violeta. Fitou-nos um por um. — Olá, Auris de Las-Toor, como vai? — disse de repente uma voz. Era Rhodan. Falava um excelente arcônida antigo, o que também representava um resultado de seu extenso treinamento hipnótico. Evidentemente, eu também dominava a língua dos antepassados com igual perfeição. O fato surpreendeu-me, até que me lembrei de que, durante seu relato, mencionara uma jovem cientista acônida que, segundo se dizia, tivera certa participação no resultado feliz de seu vôo experimental. Seria esta moça? Meu interesse tornou-se ainda mais intenso. Seu rosto moreno aveludado empalideceu. Se tivesse recebido a educação das moças arcônidas de outros tempos, as palavras de Rhodan deviam deixá-la chocada. Um tanto tenso, aguardei sua reação. E esta foi exatamente o que eu esperava.

Os dois companheiros da moça lançaram um olhar contrariado para Perry, que naquele momento se erguia do leito. Um ligeiro movimento de mão da acônida serviu-lhe de advertência. Preferiu não colocar no chão o pé que já levantara. Seu sorriso irônico fez com que mais uma vez a acônida mudasse de cor. Dali em diante não tive mais a menor dúvida de que conhecia Rhodan. O que a teria impressionado nesse terrano? Teria sido o vulto esbelto, a expressão fria dos olhos, ou a aura misteriosa de sua imortalidade? Rhodan não pôde deixar de irritá-la. Achei que na situação em que nos encontrávamos isso era perigoso. — Quer dizer que acabamos por reencontrar-nos — disse com a voz tranqüila. — É bem verdade que esse reencontro se dá em circunstâncias que fazem parecer bastante duvidosa a disposição pacífica de seu povo. A moça enrolou os dedos longos e finos na borda da capa. — Peço-lhe encarecidamente que só fale quando lhe pedirem que o faça — disse em tom áspero. — Não lhe cabe fazer uso da palavra antes do anfitrião. Não me senti nem um pouco surpreso. Já conhecia os usos e costumes de meus antepassados, face aos estudos que tinha realizado. A palavra anfitrião devia causar uma impressão bastante estranha em Rhodan. Provavelmente não sabia que o termo costumava ser empregado mesmo nos casos em que não era adequado. Rhodan logo exibiu seu tristemente célebre sorriso. — Será que ouvi bem? A senhora falou em anfitrião? Não me lembro de ter sido convidado ou ter vindo espontaneamente. Acho que a senhora está fazendo confusão, madame. Continuava a sorrir. Os dois acônidas olharam para além dele, como se não existisse. Por ordem minha, o regente interpretara os relatórios dos membros da expedição terrana. Dessa interpretação se depreendia que tanto os terranos como os arcônidas eram considerados uma espécie de praga. Pela primeira vez na vida, senti na própria carne a arrogância com que os representantes de meu povo haviam tratado as outras inteligências galácticas durante muitos milênios. Provavelmente não viam em mim o imperador de um grande império estelar, mas um cacique de colonos que caíra na barbárie e não fazia uso de boas maneiras. Rhodan não tinha a mesma paciência e compreensão que eu. Um brilho de cólera surgiu em seus olhos. Levantou-se, sem dar a menor atenção às armas que o ameaçavam. Auris de LasToor parecia insegura. Seu olhar dizia tudo. Então era isso que a fascinava em Rhodan. Aquele homem, que não passava de um arrivista vindo de um sistema planetário insignificante, que permanecera desconhecido até poucos anos atrás, atrevia-se a enfrentar abertamente os representantes de um povo superior. Foi assim que tratou, muitos decênios antes, os representantes de uma expedição científica arcônida. Em virtude disso, uma arcônida pertencente a uma das famílias mais nobres tornara-se sua esposa; e um dos principais cientistas arcônidas, seu melhor amigo. Levantei-me num gesto exaltado. Meus olhos doíam. Auris dedicava sua atenção à minha pessoa. Embora achasse que agia erradamente, resolvera adotar a tática de Rhodan.

— Vocês estão falando com o soberano de um império planetário — disse em tom enérgico. — Sou o Imperador Gonozal VIII, que governa o Império de Árcon. Exijo uma explicação de seu comportamento injustificável, que não corresponde às boas maneiras nem aos usos diplomáticos. A moça lançou-me um olhar estranho. Seus acompanhantes mantinham-se num silêncio obstinado. — Sei com quem estou lidando — disse Auris. — É justamente por isso que exijo informações sobre as finalidades das medidas adotadas que, conforme as circunstâncias, poderão levar a um conflito sério entre nossos povos. Auris fitou-me com uma expressão que representava uma mistura de compaixão, interesse e orgulho. — Não recebi instruções para dar atenção aos seus argumentos pouco convincentes. — Quais são suas instruções? — indaguei. — Estas “instruções” representam um seqüestro e um crime — acrescentou Perry. O rosto de Auris mudou de cor. Em seus olhos escuros surgiu um brilho de cólera. Estes olhos apresentavam um pouco de semelhança com os das arcônidas modernas. “Isso é um sinal da degenerescência já verificada”, avisou o setor lógico de minha mente. — As decisões do Conselho Governamental de Ácon não podem ser julgadas por vocês. Sou o órgão executivo. Peço-lhes que sigam sem a menor oposição as ordens que lhes forem transmitidas. Inclinou ligeiramente a cabeça e dispôs-se a sair. Porém as palavras de Rhodan detiveram-na. Mais uma vez, o sorriso estranho surgiu em seus lábios. E o tom de sua fala mudara. Perry já não se preocupava com as diretrizes diplomáticas. Sua fala foi dura e inequívoca. — Madame, tenho a impressão de que já está na hora de pôr um freio à arrogância de seu povo. Posso garantir-lhe que o seqüestro de dois conhecidos estadistas intergalácticos, ordenado pela senhora, terá suas conseqüências. Se o chamado Conselho Governamental de seu povo estiver interessado no hiperpropulsor terrano, posso garantirlhe que esse procedimento de forma alguma levará os políticos e militares do Império Solar a fornecer os respectivos dados. A senhora superestima seu poder, Auris de LasToor. Auris parecia refletir. Mas, depois de algum tempo, retirou-se sem dizer uma palavra. Assim que a escotilha se fechou atrás dela e dos dois acônidas, Rhodan estendeuse sobre o leito sem nada comentar. Cruzou as mãos embaixo da cabeça e fechou os olhos. Estive a ponto de dizer alguma coisa, mas Tama Yokida apressou-se a fazer um gesto para que não o fizesse. Naquele momento compreendi que Perry se esforçava para entrar em contato com os telepatas da Ironduke. Ao que parecia, sua tentativa estava sendo coroada de êxito. Rhodan estava banhado de suor. Depois de algum tempo seu rosto contorceu-se. Pelo que sabia a respeito dos competentes mutantes terranos, os telepatas que faziam parte deste pequeno exército formavam um bloco volitivo parapsicológico, no qual se coordenavam todas as energias. Rhodan era um telepata muito fraco. Provavelmente, apenas um mutante seria incapaz de captar sua mensagem.

Depois de alguns minutos, o terrano descontraiu-se. Dali a cinco minutos estava recuperado, já podendo levantar-se. Eu imaginava o que devia ter acontecido naqueles momentos. Rhodan não era um homem que se conformava, sem mais nem menos, em ser seqüestrado. Era perfeitamente possível que tivéssemos morrido em virtude de alguma circunstância infeliz. Afinal, eu mesmo estivera bem próximo à morte. Haviam atirado contra mim, fato que provava que aqueles seres estavam dispostos a sacrificar-me. Dali se podia extrair certas conclusões... Perplexo com minhas próprias idéias, cheguei à conclusão de que provavelmente se interessavam com exclusividade por Rhodan. Minha pessoa representava apenas um elemento perturbador, que, por certo, só fora levado porque as circunstâncias o exigiram. Rhodan parecia entreter reflexões semelhantes. Naturalmente perguntava a si mesmo por que os acônidas puderam aparecer no momento adequado para fazer uso da arma paralisante. Essa indagação exigia uma solução rápida. — Você fala japonês, não fala? — perguntou Perry. Levei alguns segundos para entender a pergunta formulada nessa língua. Tive de fazer uma adaptação rápida do curso dos meus pensamentos. — Há vários séculos. Estive presente quando a frota de Kublai Khan atacou o império insular japonês, até que os navios foram destruídos pela tempestade dos deuses. Tama Yokida fitou-me com uma expressão de curiosidade. Meu japonês era antiquado e difícil de ser entendido. — Muito bem — disse Rhodan. Lançou um olhar desconfiado pelo pequeno recinto. Olhou para o relógio. Continuou a usar a língua do pequeno estado insular. — Evidentemente alguém nos escuta. No entanto, levarão algum tempo para traduzir os sons jamais ouvidos por meio dos aparelhos mecânicos. Calculo que a demora será de cerca de vinte e quatro horas. Portanto, podemos dizer o que pensamos. Tama estava recuando para junto da porta, quando do lado de fora surgiram fortes ruídos. As sereias e os apitos emitiram seus sons estridentes. Pessoas desconhecidas passavam junto à porta, que não devia ser muito grossa. Dali a poucos segundos, gigantescas máquinas começaram a rugir. Por uma fração de segundo fez-se sentir uma poderosa força de inércia, que logo foi neutralizada por um aparelho de absorção de pressão, entrando em funcionamento naquele instante. Tama caiu ao chão. Quanto a mim, reencontrei-me na minha cama de dobrar. Rhodan foi o único que conseguiu em tempo apoiar-se com os braços e as pernas. Agora já tínhamos certeza de que nos encontrávamos numa espaçonave que, segundo tudo indicava, estava sendo acelerada precipitadamente. — Os ratos estão abandonando o navio que vai afundar — disse Perry, em tom irônico. Não gostei da expressão de seus olhos. Imaginei que alguma coisa estava acontecendo. Fitou-me em cheio, antes de falar em frases lacônicas. — Sinto muito, Atlan, mas interferi em sua área de competência. Consegui estabelecer contato com os telepatas. Gucky, Marshall, Betty Toufry e Fellmer Lloyd formaram um bloco parapsíquico. Compreenderam minhas instruções, e consegui captar as notícias irradiadas por eles. Tudo claro. Bem que eu imaginara! De que forma teria interferido em minha área de competência? Formulei a pergunta.

— O regente agiu imediatamente. Informou o Major Claudrin. O computador observou tudo, inclusive nosso desaparecimento repentino. Os robôs por ele enviados foram detidos à entrada da sala de exibição. Esbarraram numa barreira energética desconhecida. Foi por isso que não recebemos auxílio. Claudrin decolou imediatamente, isso face à ordem nesse sentido que consegui transmitir antes do seqüestro. No momento em que nos rematerializamos neste recinto, a Ironduke já avançava pelo espaço, onde pôs a funcionar seu dispositivo especial de localização. Esta nave... Rhodan bateu com o dedo na borda do leito estreito e prosseguiu: — Esta nave foi localizada há poucos segundos. Claudrin acaba de iniciar a perseguição. Esta poderá tornar-se muito interessante, já que os acônidas também possuem um sistema de propulsão linear. Foi por isso que partiram precipitadamente. O veículo em que nos encontramos está a pouco menos de três meses-luz do sistema de Árcon. Operavam nessa posição. Provavelmente, o transmissor foi colocado nos recintos do computador há dois meses, quando se tentou modificar o fluxo do tempo. Só assim se tornou possível seqüestrar-nos com facilidade. Um aparelho instalado nesta espaçonave desempenhou as funções de estação receptora. Aguardaram pacientemente até que aparecêssemos diante do regente e mataram dois coelhos de uma cajadada, Atlan. — Devagar, devagar — respondi. — Isso apenas são teorias. Talvez as coisas tenham sido diferentes. De que forma poderiam ter identificado o momento exato? — O regente constatou que sua última hipertransmissão, dirigida a mim, foi captada por alguém. Suponho que tenham descoberto seu texto e, com base no mesmo, provavelmente chegaram à conclusão de que eu chegaria a Árcon dentro em breve. — Mas dali não se poderia concluir que eu o levaria para dentro do centro de computação do regente. Há algo de errado em seu raciocínio. Rhodan interrompeu-me com um gesto. — Isso é relativamente secundário. De qualquer maneira estavam informados de que eu chegaria em breve. Se não tivesse ido à sala de exibição, provavelmente eles me teriam localizado em outra parte. Ao que parece, essa gente tem muita prática nessas coisas. Desisti de procurar explicações convincentes. Não valia a pena. — Ainda não sei de que forma você interveio em minha área de atribuições. O rosto de Rhodan tornou-se ainda mais fechado. A seguir proferiu algumas palavras importantes: — Claudrin chamou a Terra e ordenou em meu nome a mobilização geral. Bell decolará com todas as unidades disponíveis da Frota Solar e saltará pelo hiperespaço, em direção ao Sistema Azul. As unidades de propulsão linear, já existentes, também virão. Além disso, mandei que o Major Claudrin ordenasse ao computador-regente, em seu nome, que pusesse a frota arcônida na rota do Sistema Azul. Atlan, ao agir assim fiz algo que ainda há pouco havia recusado energicamente. Se não conseguirmos sair em tempo desta espaçonave, o Major Jefe Claudrin tentará romper o campo energético que envolve o sistema do sol de Ácon, a fim de dar passagem à frota que o seguirá. Isso será a guerra, que queremos evitar de qualquer maneira. Subitamente senti a garganta seca. Rhodan agira rápida e decididamente. Será que seu procedimento foi correto? Não estaria superestimando o poder dos dois impérios reunidos? Teria compreendido perfeitamente o que significava investir contra um inimigo como este? Seria realmente um inimigo, na verdadeira acepção da palavra? Sim, devia ser.

Os dois ataques traiçoeiros desfechados pelos acônidas foram algo mais que uma provocação. Em ambos os casos, a existência do Império Solar e provavelmente também a do grande império estiveram em jogo. E agora ainda surgira o seqüestro a mão armada. Os acônidas foram pouco inteligentes, quando se apoderaram de mim e de Rhodan. Tal fato só poderia trazer complicações políticas, ainda mais que Rhodan pensava e agia mais em termos militares que diplomáticos. Sua reação imediata foi um gesto típico de sua pessoa. Se eu estivesse em seu lugar, talvez ainda teria tentado resolver a situação complicada por meio de negociações. Talvez fosse possível convencer o Grande Conselho do povo dos meus antepassados de que quarenta mil naves esféricas do Império Solar e do grande império representavam um fator que não poderia ser desprezado. Especialmente os terranos pareciam ter sido avaliados erroneamente pelos acônidas. Eu os conhecera, estes homens arrojados, vindos da família planetária de um sol insignificante, que não recuavam diante de qualquer risco. Costumavam ser subestimados, erro que já fora cometido por mim e por outras inteligências. Apesar de tudo deveríamos ter tentado realizar negociações. Exprimi minhas dúvidas a este respeito. — Você deveria agir mais como almirante que como estadista e imperador, meu caro — ponderou Rhodan. — Nem penso em largar mão do único trunfo de que disponho, para contar com a benevolência ilusória daqueles que você considera os antepassados de seu povo. A comunicação telepática pode ser interrompida a qualquer momento. Não tenho capacidade de superar grandes distâncias. Por isso tive que dar as ordens decisivas antes que fosse tarde. O surgimento das nossas frotas junto ao Sistema Azul não trará necessariamente uma guerra cósmica, e espero sinceramente que não traga. Mas sou de opinião que, com essa demonstração de força, conseguirei mais que com mil horas de conversa junto à mesa de conferências. Estava com a razão; eu o sentia. Apesar disso as conseqüências de seu ato me assustavam. Lembrei-me das armas terríveis que já conhecêramos no curso de nossas relações involuntárias com os acônidas. — Nossas naves serão destruídas mais depressa do que você imagina, Perry. Rhodan respondeu com um sorriso: — Pois é justamente aí que falha o seu raciocínio. Sei perfeitamente que há milênios o Sistema Azul desistiu da navegação espacial. Trabalha-se com grandes transmissores, de capacidade imensa, que cuidam do trânsito intergaláctico. Apenas existem uns poucos veículos de pequenas dimensões, iguais a este que no momento nos abriga. Já formamos nossa idéia sobre os poucos acônidas que saem nestes veículos pequenos, a fim de instalar os receptores em mundos estranhos. São os comandos energéticos de Ácon. Tenho certeza de que, no momento, estamos lidando com um grupo desse tipo. Por isso não sei como poderia ser destruída uma frota gigantesca, desde que os respectivos comandantes tenham a cautela de manter-se fora do alcance dos canhões dos fortes cósmicos ou das instalações defensivas de superfície. Quer dizer que a avalanche fora posta a rolar. Procurei imaginar o que estaria acontecendo nesse momento na Terra e nos demais planetas solares. Milhares de espaçonaves, inclusive os supergigantes da classe Império, disparariam para o cosmos segundo um plano previamente traçado. Os novos destróieres, portadores de pequenos veículos espaciais, também se deslocariam, e os pilotos desses veículos pequenos e extremamente velozes receberiam suas instruções.

O gigante militar chamado Império Solar fora despertado; não havia a menor dúvida. E fatos semelhantes deviam desenrolar-se nos mundos pertencentes ao Império de Árcon. Conhecia a incrível precisão das numerosas frotas robotizadas. A única esperança que me restava era a de que, antes da batalha, nos fosse possível sufocar no nascedouro o conflito que se esboçava. Rhodan era um gênio em matéria de estratégia espacial, mas por enquanto suas naves ainda não haviam atravessado o lendário campo defensivo dos acônidas. Minha observação a este respeito provocou um forte pigarro em Rhodan. — Sem dúvida — confirmou. — Mas os acônidas esquecem minhas naves de propulsão linear, bem como os homens do tipo de Jefe Claudrin, que as tripulam, e ainda os mutantes, de cuja existência, ao que parece, não sabem nada. A esta hora a moça já estará perguntando a si mesma, toda perplexa, qual foi o motivo da súbita perseguição por um couraçado terrano, equipado com mecanismo de propulsão linear. Se resolver obedecer aos seus sentimentos, a guerra poderá ser evitada. Do contrário Jefe Claudrin romperá de qualquer maneira o campo defensivo azul e, uma vez no interior do sistema, tentará localizar a unidade energética que deve fornecer a energia para o gigantesco campo de força. Afinal, tal campo não pode ter surgido do nada. Atlan, você aprova a posteriori a ordem que dei ao computador-regente? O que poderia fazer numa situação como esta? Concordei. Aliás, eu mesmo me admirei das minhas dúvidas, que não se harmonizavam com a mentalidade de um velho almirante. Haveria alguma coisa que me impedisse de apropriar-me da lógica rhodaniana? Não encontrei nenhuma solução. No entanto, sabia que provavelmente não haveria outro meio de mostrar aos antepassados de meu povo que a situação poderia tornar-se muito séria. As palavras de Tama Yokida sobressaltaram-me em meio às minhas reflexões. O mutante estava de pé junto à porta trancada, e passava os olhos pela mesma. — Será fácil abrir a fechadura — disse sem qualquer intróito. — A trava é segura por um aparelho de impulsos relativamente simples. Posso movê-lo, ou então faço com que os seis contatos, que acionam o mecanismo, se toquem. Com isso, a porta se abriria automaticamente, mas não tenho meio de saber se apesar da presença de um impulso regular o alarma não soará em algum lugar. Esqueci a carga psicológica da minha idade avançada e minha revolta contra os planos de Rhodan, que, em última análise, poderiam levar à destruição recíproca três povos galácticos de alta categoria. De repente passei a ser exclusivamente Atlan, o almirante arcônida, que, depois de seu degredo de conseqüências tão graves, lutara e sofrerá durante muitos séculos juntamente com os habitantes do planeta Terra. Tama Yokida era um representante típico da Humanidade. Enquanto Rhodan e eu discutíamos, elaborou um plano que nos anunciou. Rhodan compreendeu imediatamente. Fitou-me ligeiramente; confirmei com a cabeça. Perry olhou para o relógio. — OK; ainda poderemos falar à vontade. A língua japonesa deve representar um problema até mesmo para a melhor tradutora automática. Existem objetivas de espionagem neste camarote? Tama encostou-se à porta e lançou um olhar indiferente para a parede oposta. — Há uma no ângulo direito, logo abaixo da grade do sistema de ventilação.

Rhodan não olhou para o lugar que acabara de ser indicado. Quanto a mim, estava em melhores condições de lançar um olhar discreto para lá. — É verdade — confirmei. Minha tensão cresceu. A atitude de Rhodan parecia alarmante. Depois de algum tempo perguntou com um sorriso significativo: — Acho que você teme pela sua vida há vários meses ou anos, não é mesmo, imperador? Não respondi. Nós nos conhecíamos perfeitamente. Sabia o que queria dizer com isso. Naturalmente eu não dispensara o artefato especial destinado a defender-me. No momento, estava sem ele. Apenas o ativador ainda se encontrava junto ao meu corpo, para ser usado em caso de emergência. Quando os acônidas me revistaram, não agiram apressadamente. Mas também não deram muita importância ao aparelho que trazia pendurado no pescoço. Talvez, quando me despojaram da mochila com o projetor e conversor de energia, não puderam calcular que eu usava tais truques, a fim de proteger-me contra os assassinos mercenários ou loucos fanáticos. — O que é que você pode oferecer? Desta vez Perry fitou-me em cheio. O rosto de Yokida parecia tenso. — Tenho um presente do Grande Conselho de Árcon. Trata-se de uma máquina de escrever de impulsos, em três cores, destinada à confecção rápida de escritos artísticos. Ainda se encontra no meu bolso. — Isso é muito interessante. Tem mais alguma coisa no bolso? Fiquei surpreso ao notar que havia um sorriso matreiro no meu rosto. — Ninguém sabe que os micromecânicos mais geniais da Via Láctea, os homenspepino de Swoofon, instalaram um radiador em miniatura. Isso foi feito com a amável licença do Serviço de Segurança Solar... Rhodan franziu a testa. Ao que parecia, Allan D. Mercant não fizera nenhum registro desse fato, o que provava a previdência desse homem. Rhodan voltou a olhar para o relógio. Finalmente deu início ao jogo que preparara. — Estou sentindo um calor danado — constatou em tom contrariado. Descobriu a entrada e a saída de ar. Enxugou o suor da testa e levantou-se. Aproximou-se da grade do sistema de ventilação e fez com que o fluxo de ar atingisse seu rosto. Tama Yokida lançou-me um olhar. Já fizera minhas reflexões. — Não abra à força, a não ser que não consiga levar avante meu intento. Vamos aguardar. Yokida confirmou com um gesto. Comecei a revirar as gavetas dos armários embutidos. Rhodan voltou. Ainda não estava na hora de encobrir permanentemente a objetiva da câmara. A prova fora bem-sucedida. — Está procurando alguma coisa? — Material de escrita, folhas de impulsos e papel comum — respondi em tom contrariado. — Ah, sim! Dali a alguns segundos caminhei em direção à grande tela, que estava embutida na parede de aço, junto à porta. Os propulsores continuavam a rugir. Ao que parecia, a intensidade do empuxo devia ser muito elevada.

No momento em que comecei a procurar os botões que teria de mover, a tela iluminou-se. Auris de Las-Toor surgiu. Ela não estava chamando porque tivesse adivinhado meus desejos. — Façam o favor de recolher-se aos leitos — disse. — Procurem segurar-se bem. Daqui a pouco realizaremos uma manobra que representará um desgaste para o organismo. Sua atitude parecia indiferente, mas isso mudou assim que Rhodan disse: — Será que os propulsores lineares de vocês são tão pouco aperfeiçoados que podem dar causa a incômodos físicos? Conosco não acontece isso. A moça parecia indignada. Rhodan fitou a tela. A expressão de seu rosto seria capaz de levar à ebulição até mesmo um espírito menos sensível. — Sugiro que deixe isso por conta dos cientistas acônidas, excelência. Rhodan fez uma mesura irônica. — Este é o tratamento a que tenho direito, madame. Muito obrigado pela gentileza. Posso formular um pedido? — Apresse-se. A manobra será realizada daqui a três minutos. — O imperador precisa de material de escrita para redigir uma queixa dirigida aos representantes de seu governo. Podem ser folhas de impulsos, se é que nesta nave existe um material como este. Dispomos do instrumento de escrita. — Providenciarei. Cumprimentou-nos com um gesto reservado e desligou. Pigarreando, dirigi-me ao leito e deitei. Mais uma vez admirei a inteligência de Rhodan, que levara apenas alguns segundos para compreender meu plano. Seria preferível que os acônidas abrissem a porta. De qualquer maneira não conseguiríamos passar pelos guardas que deviam ter sido postados nas proximidades, sem recorrer à força. Por isso julguei preferível deixar que entrassem em caráter oficial. Tama e Rhodan também se deitaram e, dali a alguns segundos, ouviu-se um trovejar à nossa esquerda. Imaginei que, naquele momento, fora posto a funcionar o misterioso mecanismo de propulsão linear, destinado à locomoção em linha reta. Seguiu-se um forte abalo, acompanhado de uma leve dor. Por um segundo minha vista turvou-se, mas logo voltou ao normal. Foi só. As campainhas estridentes pareciam representar um sinal de que o perigo passara. Voltei a levantar-me. — Ora... Isso quase chegou a ser uma desmaterialização — disse Rhodan. — Provavelmente foi um choque de transição para o semi-espaço. Por que não evitam isso? Será — prosseguiu, refletindo intensamente — será que este desagradável fenômeno colateral foi aceito conscientemente em virtude de algum detalhe técnico? Também me senti surpreendido. Nas naves terranas, a passagem para a área dimensionalmente instável do semi-espaço era realizada sem a menor complicação. Lembrei-me de uma coisa. — Quando surgiu uma nave acônida semelhante a esta, os instrumentos do regente não registraram a presença de uma frente de choque. Será que estes seres voam sem abalos, tal qual os terranos, a não ser que sejam obrigados a realizar uma manobra especial? Tenho a impressão de que a Ironduke está nos nossos calcanhares. Rhodan franziu os lábios e encostou neles as pontas dos dedos. Ficou sentado por algum tempo. Vi que fazia um esforço tremendo para entrar em contato com os telepatas do couraçado. Depois de alguns minutos desistiu. Estava com o rosto banhado de suor.

— Não adianta. Estamos na zona de libração entre as dimensões estáveis do Universo einsteiniano e o paraespaço. Com esse tipo de locomoção a velocidade superior à da luz, torna-se necessário utilizar um campo esférico, cujo caráter é semelhante aos impulsos telepáticos. Não consigo passar mais. Tama, o senhor está pronto? O mutante levantou-se. Bocejou e dirigiu-se para a tela. Lançou um olhar curioso para os estranhos botões. Rhodan deu algumas instruções lacônicas. Era claro que teríamos de tentar chegar à sala de comando. A tripulação da nave não podia ser muito numerosa. Apesar disso não tínhamos nenhuma chance de pôr os membros do comando energético fora de combate um após o outro, muito embora as energias telecinéticas de Yokida equivalessem a alguns soldados. Nem mesmo ele estava imune às armas mortíferas, e não dispúnhamos de campos protetores individuais. No entanto, provavelmente seria possível dominar os ocupantes da sala de comando, desde que conseguíssemos chegar até lá. Rhodan forneceu mais algumas informações sobre a divisão interna desse tipo de nave. Certa vez Gucky, o rato-castor, conseguira penetrar no interior de uma espaçonave de Ácon. Constatou que havia poucas diferenças em relação aos nossos veículos espaciais. Afinal, nós, os arcônidas, descendíamos dos acônidas, e os terranos construíam suas naves segundo nosso modelo. Para nós, tudo dependia de ocupar a sala de comando por algum tempo, suspender o vôo por meio da propulsão linear e bloquear o espaço por um tempo curto. Caso a Ironduke, que sem dúvida nos seguia, se tivesse aproximado a distância de tiro, chegaria a hora de os acônidas ficarem admirados. Rhodan voltou a levantar-se, a fim de colocar o rosto ensopado de suor no fluxo de ar do sistema de ventilação. Naquele instante, a porta de aço abriu-se lentamente.

V Vieram em três: dois guardas armados e um oficial sem armas, que trazia estranhas divisas sobre o peito. Os guardas portavam pistolas de radiações de feitio estranho. Os canos estavam apontados para baixo. Tama Yokida encontrava-se numa posição que lhe permitia ficar de olho no vão da porta. Rhodan encostara-se à parede. A parte posterior do crânio e a parte superior do pescoço estavam viradas para a grade de ventilação. Dessa forma seus ombros largos teriam de encobrir forçosamente a objetiva de espionagem. A grande tela estava inativa. Provavelmente não voltaria a funcionar, uma vez que Yokida manipulara os botões com uma perícia excessiva. Imaginava mais ou menos o que teria feito nesse meio tempo nos circuitos internos do aparelho, usando sua energia telecinética. Sentado sobre o leito, fitei o oficial. Teríamos de obrigá-lo a entrar no camarote. O acônida, cuja graduação ainda não nos era conhecida, parecia ter recebido ordens para assumir uma atitude amável e discreta. Segurava na mão direita uma caixa transparente com folhas de impulso cinza-claras, semelhante às usadas em Árcon. Aproximou-se, parou à minha frente e inclinou a cabeça. — Eminência, esperamos que este material seja adequado aos impulsos positivos de seu instrumento de escrita. Caso contrário, Vossa Eminência terá de contentar-se com um instrumento de escrita em caracteres visíveis. — Dispõe de um quadro de escrita impresso? — Não, eminência. O raio diretor terá de ser conduzido manualmente. Compreendi que meu “lápis especial” fora examinado. Além disso, minhas queixas e as de Rhodan, relativas às eventuais conseqüências políticas do seqüestro, pareciam ter trazido seus frutos. De repente, os acônidas mostravam-se muito amáveis. Será que já haviam percebido as complicações resultantes desse “erro diplomático”? A perseguição iniciada pela Ironduke não poderia deixar de ser notada. Era possível que até tivessem captado as mensagens de rádio expedidas por seu comandante. O oficial tirou uma folha da caixa e colocou-a sobre o apoio que trouxera. Numa atitude indiferente, pus a mão no bolso, tirei meu instrumento de escrita de impulsos, que tinha pouco mais de um centímetro de diâmetro e cerca de quatorze de comprimento, e afastei uma trava microscópica. Era inacreditável quanta coisa os swoons conseguiram abrigar no pequeno espaço oco! O raio térmico era dez vezes menos espesso que o mais fino cabelo de mulher. Não provinha de uma energia de fusão catalítica, irradiada de maneira uniforme. Funcionava com base no reforço ultra-elevado da luz, do que resultavam, em princípio, as mesmas conseqüências. O olhar de Yokida assumiu uma expressão rígida. Fitou atentamente os guardas, cujas armas haviam descido ainda mais no curso da discussão breve e totalmente inofensiva. Apontavam diretamente para o chão. Levantei a cabeça e, num gesto professoral, dirigi o minúsculo radiador para o oficial, que recuara dois passos.

Por enquanto Rhodan não podia intervir. Devia encobrir a câmara com as costas. Fiz pontaria com a arma camuflada. O acônida achou que o gesto era dirigido diretamente a ele e inclinou a cabeça. — A ciência médica de seu povo é bastante avançada? — perguntei. O oficial parecia apavorado. — Vossa Eminência foi ferido? — Não, mas infelizmente terei de ferir o senhor. O ferimento não será grave. Apertei o gatilho. Um luminoso feixe silencioso, que passava até mesmo pelas pálpebras fechadas, penetrou no ombro direito do acônida. Este estremeceu e começou a cambalear, para cair ao chão. Com uma focalização tão precisa, um ultra-radiador nunca produz um ferimento mortal, a não ser que o raio atinja um órgão vital. Em compensação, a dor provocada por sua energia térmica é tão intensa que, quase sempre, a pessoa atingida perde a consciência. Aquilo aconteceu numa fração de segundo. A ação de Tama Yokida foi menos suave. Suas forças incompreensíveis atingiram os dois guardas e atiraram-nos ao chão. Saltei para cima deles e deixei-os inconscientes, interrompendo por um espaço de tempo bem curto o fluxo sangüíneo para o cérebro. Esse meio de deixar uma pessoa inconsciente me fora ensinado em certa oportunidade por um doutor grego, que em virtude de seus grandes conhecimentos fora designado médico pessoal do monarca militar romano Setimio Severo. Estas recordações passaram ligeiramente pelo meu cérebro, quando o último dos guardas perdeu a consciência. Ergui-me apressadamente. Yokida começou a destruir a objetiva escondida. Agiu com tamanha cautela que por alguns minutos se poderia ter a impressão de que se tratava de uma avaria normal. Rhodan saltou para a frente sem dizer uma palavra, pegou as armas dos guardas e passou uma delas ao mutante. Não dizíamos quase nada. Estava tudo muito fácil. O corredor estreito, que se estendia à frente do camarote, estava vazio. O rugido dos propulsores superava as batidas de nossas botas. Uma vez chegados à curva do corredor, procuramos orientar-nos. A julgar pelos ruídos, devíamos estar no convés equatorial, a partir do qual se podiam alcançar as escotilhas da sala de comando. Se a Astronáutica acônida funcionava segundo nossos princípios, não poderia haver qualquer dificuldade nestas regiões. Ninguém tinha necessidade de andar pelo convés equatorial, pois este não abrigava postos de combate ou de manobra. Continuamos correndo. Os homens inconscientes acordariam dentro de uns cinco minutos e dariam o alarma. Além disso, talvez a falha do dispositivo de imagem já chamara a atenção de alguém. Nessa hora teríamos de assumir qualquer risco. O corredor passou a assumir formas arredondadas, o que era uma das características da nave esférica. A alguns metros do lugar em que nos encontrávamos, surgiu uma ramificação que levava a várias direções. Talvez até à sala de comando! Aqui, a possibilidade de nos encontrarmos com alguém era bem maior, já que nesse lugar geralmente ficavam os poços dos elevadores. — Tama, se alguém oferecer resistência, o senhor tem permissão para disparar — disse Rhodan, em voz baixa. Lançou um olhar cauteloso para o corredor transversal. Não viu ninguém. Dali a pouco vimo-nos diante das escotilhas circulares externas de uma eclusa de ar. Evidentemente pertencia à sala de comando. Com um gesto tranqüilo comprimiu o botão que abria a escotilha. A lâmina de aço recuou diante de nós.

Sabíamos que, a essa hora, as luzes de controle se acenderiam no interior da sala de comando. Era o que acontecia em toda e qualquer espaçonave, fosse qual fosse o povo a que pertencia a mesma. Entramos, fechamos a primeira escotilha e acionamos a chave da escotilha interna. Imaginava que seríamos recebidos por homens que apontariam suas armas para nós. Tive a impressão de que vários dias já se haviam passado, desde o momento em que dominamos os acônidas. Lancei um olhar para o relógio e fiquei sabendo que se haviam passado menos de quatro minutos e meio. A escotilha interna da eclusa abriu-se lentamente. Uma luz mortiça inundou o recinto, quase totalmente escuro. Vi a cabeça de dois acônidas. As costas e os ombros estavam encobertos por poltronas altas. Em virtude do reduzido ângulo de visão, não conseguimos ver, naquele momento, nada além desses dois homens. Tama Yokida foi o primeiro a saltar. Segui-o, e atrás de mim veio Rhodan. Bateu a mão esquerda, que não segurava nenhuma arma, sobre a chave interna que fechava a escotilha. Ouvi um grito. O mutante estava de pé, com as pernas abertas e o corpo ligeiramente inclinado para a frente, no meio da sala de comando relativamente pequena. Não tirava os olhos dos presentes. Eram cinco homens e uma mulher: Auris de Las-Toor. Ela descansava num leito que ficava em posição um tanto afastada, fato que levava à conclusão de que não tinha nada a ver com a pilotagem da nave. Lembrei-me das informações de Rhodan, segundo as quais era uma socióloga. Provavelmente não entendia muita coisa dos controles de uma nave de velocidade superior à da luz. Virei-me apressadamente e dirigi meu microrradiador para a fenda existente entre a escotilha blindada e a parede. Apertei o gatilho. Uma luminosidade dolorosa ofuscou-me. Produzi algumas soldas grossas, que me deram certeza de que a escotilha não poderia ser aberta sem o uso de meios especiais. No mesmo instante, Rhodan disse: — Declaro a existência do estado de guerra entre o Império Solar e o Império Acônida. Face aos meus poderes administrativos e à lei de emergência terrana, estou autorizado a emitir esta declaração sem o consentimento escrito do governo federal solar. Aviso-os de que são prisioneiros de guerra e deverão obedecer às minhas instruções. A partir deste momento, estão sujeitos às leis de guerra. Peço-lhes que não confundam esta situação com um assalto de bandidos. Era o que eu imaginara. Rhodan realmente obtivera poderes extraordinários. Os acontecimentos dos últimos meses e o seqüestro habilitavam-no a pronunciar a declaração oficial de guerra. Com isso, nosso procedimento transformara-se numa ação militar legitima. Um acônida alto encolheu-se na poltrona e pôs a mão na pistola. Tama Yokida disparou antes dele. O acônida teve morte instantânea. Auris soltou um grito. Fitou-nos, perplexa. Rhodan virou-se e voltou a disparar a arma estranha contra a escotilha da comporta, que logo se deformou no local de impacto. Os radiadores acônidas funcionavam com menos ruído e não produziam nenhum calor. Concluía-se que só se podia tratar de uma variante dos desintegradores arcônidas, que atacavam as estruturas cristalinas das moléculas. As sereias de alarma começaram a uivar. Não lhes demos atenção. Os outros quatro soldados da equipe de pilotagem mantinham-se imóveis. Fitavam-nos em silêncio. Apenas o rosto de Auris parecia trabalhar.

Rhodan não lhe deu tempo para refletir. — Mande que o hipervôo seja suspenso imediatamente e que a nave retorne ao Universo normal. Não estou brincando, madame. Vi-a lançar um olhar ligeiro para uma tela muito grande. Um traço muito fino apontava para um sol azul, ainda pequeno. Supus que se tratasse da estrela central do Sistema Azul. Durante um vôo desse tipo, o astro de destino sempre devia permanecer visível. Auris hesitou. Esteve a ponto de dizer alguma coisa, mas preferiu ficar quieta. Um outro acônida pigarreou, quando Auris ordenou: — Obedeçam à ordem de Sua Excelência. Com a declaração de guerra, a situação se modifica. Rhodan lançou-lhe um olhar desconfiado. Também eu desconfiei imediatamente. Sua concordância fora rápida demais. No momento em que a mão do oficial se moveu rapidamente para a frente, tocando uma chave luminosa verde, gritei: — Deitar! A onda de choque. Deixei-me cair ao chão. Rhodan e Tama seguiram meu exemplo. Pretendiam surpreender-nos enquanto estivéssemos em pé, tornando-nos indefesos por alguns segundos em virtude da semidesmaterialização e aproveitando a oportunidade para dominar-nos. Ouvi o estranho rumorejar que acompanhava qualquer transição. No entanto, nesta nave era menos forte. A dor angustiante chegou e perdi a capacidade de visão. Dali a pouco voltei a enxergar nitidamente. Deixara-me cair com a arma em punho. As telas de visão global acenderam-se e provavam que nos encontrávamos novamente no Universo estrelado do espaço einsteiniano. O vôo linear realmente fora interrompido. Mas, o que era mais espantoso, ninguém fez aquilo que logicamente era de se esperar. Nenhum acônida pôs a mão na arma ou fez qualquer coisa que pudesse ser interpretada como um ato perigoso. Auris sorriu. Fitei-a, bastante preocupado. — Por que estão nessa posição desconfortável? — perguntou em tom malicioso. Seu comportamento era misterioso. Senti que havíamos cometido um erro. Qual seria? — Cuidado — disse Rhodan, em tom violento. Seu rosto estava tenso. Com dois saltos colocou-se junto aos controles. Ficando de costas para os mesmos, podia ver de frente os quatro tripulantes masculinos. Apontou a arma ameaçadoramente para eles. — Não façam tolices — disse em inglês, para logo a seguir repetir estas palavras no velho arcônida. Os quatro homens mantiveram-se impassíveis. Pareciam olhar para além de nós. Apenas a moça esforçou-se para ser mais acessível. Rhodan dirigiu-se a mim. Parecia nervoso. — Venha cá e tome cuidado — disse apressadamente em japonês. — Tentarei entrar em contato com a Ironduke. Auris de Las-Toor acompanhou nossos gestos com a maior atenção. Mais uma vez eu a vi fitar a grande tela de localização do semi-espaço, que neste meio tempo escurecera. Será que esquecemos alguma coisa? Rhodan fez um esforço desesperado para estabelecer contato telepático com os mutantes que se encontravam a bordo do

couraçado. Se a Ironduke ainda se encontrasse no semi-espaço, sua tentativa não poderia ser bem-sucedida. Mas era de se supor que a perfeita visão para a frente, que se verificava durante o vôo linear, tivesse levado o Major Claudrin a acompanhar imediatamente a surpreendente manobra de retorno, realizada pela nave acônida. Havia todos os recursos técnicos para que uma nave linear, que também se deslocasse pela zona de libração, fizesse a localização instrumental de uma outra. Claudrin não poderia deixar de ter percebido que, subitamente, havíamos modificado nossa posição dimensional. Agarrei-me à expressão “não poderia deixar de ter percebido”. Mas o que aconteceria se o dispositivo de localização não tivesse funcionado com a necessária precisão, ou se a decisão de interromper o vôo, a uma velocidade milhões de vezes superior à da luz, não tivesse sido tomada em tempo? Se Claudrin não houvesse seguido imediatamente o nosso exemplo, a esta hora já se encontraria a muitos anos-luz afastado. Mesmo que nesse lugar penetrasse no espaço normal, não seria fácil reencontrar o pequeno veículo acônida. Se o tivesse descoberto, haveria necessidade de uma manobra de adaptação extremamente complexa e demorada. Sabia perfeitamente como era difícil aproximar-se de uma nave que se desloca quase à velocidade da luz, com as máquinas normais, e tentar coordenar as rotas. Isso exigia não apenas uma série enorme de cálculos, mas também pressupunha conhecimentos astronáuticos que aqui, nesta área de condensação estelar com suas numerosas influências energéticas, representaria um encargo pesado para os tripulantes da Ironduke. Por isso fazia votos de que Jefe Claudrin tivesse conseguido adaptar em tempo a sua velocidade à nossa. Auris de Las-Toor lançou-me um olhar misterioso. Minha tensão cresceu ao infinito. O que pretendia comunicar-me por meio dessa linguagem muda? Seria compaixão ou benevolência? Esforcei-me para sorrir-lhe. Mas, provavelmente, apenas consegui fazer uma careta. O que mais nos deprimia era o silêncio daquelas pessoas tão frias. Tive a impressão de que se haviam entregue sem mais nem menos a um destino, talvez porque não precisassem lutar. Afinal, fora dali havia pelo menos cinqüenta cientistas e técnicos altamente qualificados, que deviam conhecer um meio de penetrar na sala de comando. Se estivesse no lugar deles, tentaria ao menos utilizar o sistema de bombeamento de ar, para introduzir um gás anestesiante no recinto. Era de se supor que a bordo de uma nave expedicionária houvesse esse tipo de produto químico. Além disso, outras possibilidades se mostraram em meu cérebro, que trabalhava febrilmente. Por que não faziam nada? Era de enlouquecer. Rhodan também não conseguiu nada. Provavelmente seus dons eram tão fracos e pouco evoluídos que, nestas condições, não lhe permitiam um contato puramente mental. Era possível que a nave de Claudrin estivesse vários dias-luz atrás de nós ou à nossa frente. Perry desistiu dos seus esforços. Caminhou cambaleante em direção a uma poltrona vazia e deixou-se cair. Uma ruga acentuada surgiu entre as sobrancelhas de Auris. Teria percebido o que o terrano acabara de tentar? Lá fora tudo continuava imóvel.. Nem sequer houve qualquer chamado pelo sistema de intercomunicação.

— Desligar os propulsores; passar à queda livre — disse Rhodan em voz rouca, que denotava um grande cansaço. Confirmei com um gesto. Era a única possibilidade de facilitar a manobra de adaptação de Claudrin. No mesmo instante, iniciou-se um rumorejar no interior da nave acônida. Levantei a cabeça para escutar melhor. Auris voltou a sorrir. Num gesto elegante passou a mão pelo longo cabelo cor de cobre, que refletia em milhares de tonalidades as débeis luzes de controle. Rhodan levantou-se. Afastou-se lentamente da poltrona. Ao que parecia, desconfiava de alguma coisa. — Não faça nenhuma tolice, Auris! — disse com a voz nervosa. — Vocês estão em meu poder. Chamem os outros oficiais da nave e... Auris sacudiu a cabeça. Estava muito calma. Mais uma vez notei a expressão de compaixão em seus olhos. — É tarde, excelência — afirmou. — Nenhuma das pessoas a bordo poderá ser responsabilizada pelos acontecimentos que se seguirão. Vossa Excelência se esqueceu de que se encontra num veículo do comando energético acônida. Há de compreender que o nosso transmissor é muito potente. Assim que penetraram na sala de comando, deveriam ter destruído uma das telas que se encontram na mesma. Dessa forma a central não os teria visto, nem poderia ter determinado a posição galáctica da nave. Não; deixem para lá. Agora não adianta mais. Rhodan baixou a arma. Lançou um olhar furioso para a tela abaulada que, durante o vôo linear, permitia uma visão nítida na direção de deslocamento da nave. Era uma situação estranha! Sabíamos que, dentro de poucos segundos, aconteceria algo de incompreensível, mas não podíamos fazer nada para impedi-lo. Num gesto de resignação, baixei a arma. Mesmo agora os oficiais acônidas permaneceram frios. O rumorejar transformou-se num trovejar surdo. Se pudéssemos sair da sala de comando para destruir o transmissor da nave, que por certo começava a funcionar lentamente, tudo estaria bem. Mas, do lado de fora, havia pessoas armadas. Não podíamos fazer mais nada. Tama Yokida foi o primeiro a guardar a arma no cinto. Compreendera. Sem dizer uma palavra, acomodou-se numa poltrona, mas não tirou os olhos dos acônidas. O trovejar começou a abalar toda a nave. Neste momento, o corpo de Rhodan tornou-se rígido. Uma esperança absurda surgiu em mim. Teria estabelecido contato? Esforcei-me para não dar mostras de meu nervosismo, até que a expressão do rosto de Perry voltasse ao normal. Pelo seu sorriso concluí que os telepatas a bordo da Ironduke haviam respondido ao seu chamado. A nave terrana também retornara ao espaço normal. Rhodan não deu qualquer informação, mas tive certeza de que os mutantes haviam sido informados sobre os acontecimentos que se seguiriam. Isso significava que a Ironduke voltaria imediatamente ao semi-espaço, onde tentaria reiniciar a viagem em direção ao Sistema Azul. Apesar de tudo, não estávamos sós. Antes que me fosse possível pesar os prós e os contras, a nave acônida foi atingida por uma força tremenda. Os contornos dos presentes começaram a desmanchar-se à frente dos meus olhos. Rodas vermelhas desenharam-se, e, subitamente, não vi mais nada. Apenas compreendi que era a desmaterialização mais violenta pela qual já havia passado.

A central transmissora acônida devia ter funcionado com um enorme dispêndio de energia, a fim de desmaterializar a massa nada desprezível da espaçonave e transmiti-la sob a forma de um impulso superdimensional.

6 Parecia que estava despertando de um pesadelo. Uma dor lancinante martirizava meu corpo. Tama Yokida dava mostras de estar ainda inconsciente. Rhodan levantava-se com um gemido. Achava-me deitado perto dele. Não se haviam dado ao trabalho de nos colocar sobre um leito macio ou numa confortável poltrona. De repente passaram a adotar atitudes desagradáveis. Assim que consegui enxergar melhor, percebi que já não nos encontrávamos a bordo da espaçonave. Apesar disso estávamos deitados sobre placas metálicas não aquecidas. Um frio torturante atravessou meu uniforme fino e parecia introduzir-se nas articulações já um tanto endurecidas. Rhodan praguejou em termos terranos, com o que acordei de vez. Olhei em torno, e com isso comecei a espantar-me. Estávamos no chão metálico de um corredor coberto por material transparente, que mais adiante terminava numa eclusa de ar, que também era transparente. Pouco além da eclusa via-se uma espaçonave esférica de pouco menos de cinqüenta metros de diâmetro. Seus pólos eram achatados e, na linha equatorial, observava-se uma protuberância muito larga, que terminava em duas arestas agudas. Tive certeza de que fora este veículo que nos seqüestrara. Mas, naquele momento, a nave espacial não assumia a menor importância. O que mais me perturbava, chegando até a fascinar-me, era a luminosidade em forma de arco, de mais de duzentos metros de altura, cuja luz forte ofuscava meus olhos. Praticamente era formada apenas por duas colunas energéticas da grossura de uma torre, que na parte superior se uniam num arco pontudo. Nesse lugar, o vermelho passava a um violeta muito claro. Entre as colunas energéticas do gigantesco transmissor reinava a noite escura. Tive a impressão de que, por lá, ficava a entrada para o lendário submundo. A nave esférica achava-se junto a essa abertura. Imaginei que fôramos atirados por essa entrada, pois a pequena nave jazia no campo de pouso e, ao que parecia, sofrerá graves avarias. O lado esquerdo da protuberância equatorial estava amassado e certas peças das máquinas haviam sido atiradas para fora da nave. Face a isso tive certeza de que o enorme salto pelo universo de cinco dimensões, realizado por nós, não era nada comum. Haviam recorrido a uma solução de emergência, que provavelmente envolvia graves riscos. Os robôs carregavam vultos imóveis. Reconheci um deles. Era um dos oficiais que se encontravam na sala de comando. Não se via o menor sinal de Auris. — Resistimos a isso melhor que os acônidas — disse Rhodan, em voz baixa. Virei a cabeça, sem fazer o menor esforço de pôr-me de pé. Não olhei para os acônidas presentes, que momentos antes nos haviam tocado. Não vira seus rostos. Mas, uma vez que os tripulantes da nave estavam sendo transportados, só podiam ser estranhos. Segui o olhar de Rhodan. Pela expressão de seu rosto concluí que também se sentia espantado. Quase não deu a menor atenção ao gigantesco arco do transmissor. Já conhecia essa figura. Na verdade, tal aparelho representara o motivo de seu primeiro pouso na maior das luas do planeta Esfinge.

Tinha-se a impressão de que fôramos parar também em alguma lua, mas isso não passava de ilusão dos sentidos. Estávamos deitados no pólo superior achatado de uma estação espacial de dimensões gigantescas. No primeiro instante pensei que se tratasse de uma espaçonave, mas não podia ser assim. Nunca vira ninguém pousar sobre o envoltório externo de uma espaçonave de qualquer tipo. Estávamos mesmo na superfície de alguma estação espacial. Bem adiante, a cerca de quinhentos metros, via-se o começo do abaulamento de uma parede esférica. Só consegui ver um pequeno trecho desta, que tinha a forma de anel. A parte interior da parede ficava fora do meu campo de visão. Enquanto ainda refletia sobre a finalidade dessa figura gigantesca, o arco luminoso do transmissor apagou de repente. A luz ofuscante desapareceu, e só então reconheci a luminosidade de inúmeras estrelas, concentradas num espaço extremamente limitado, que tinham o aspecto de um tapete brilhando em todas as cores. — É o centro galáctico; a área periférica — cochichou Rhodan. — Estamos no Sistema Azul. Você vê o brilho? Meus olhos já se haviam recuperado. Em todos os lugares para os quais olhava, via a mesma luminosidade azul. Atrás de nós, chamejava a bola de fogo de um sol que também era azul. Compreendi por que os tripulantes da primeira nave linear, que ainda continuavam vivos, falavam com tamanho pavor do sistema em que nos encontrávamos. Apoiei-me sobre os cotovelos, me virei e fiquei deitado por mais algum tempo. Logo depois agachei-me, a fim de espantar o resto da sonolência. Ninguém me ajudou. Levantei-me. Três acônidas lançaram-me olhares hostis. Não lhes dei a menor atenção. Esperei que Rhodan se colocasse ao meu lado. Cuidamos de Tama Yokida, cujo cérebro sensível parecia ainda não ter vencido o pesado choque. Nunca se sabia como um mutante reagia face a determinado fenômeno. Rhodan tomou seu pulso e fez um gesto para mim. — OK. Logo estará recuperado. Notou que nos encontramos sobre a cúpula polar de uma gigantesca estação espacial? Respondi que sim. — Muito bem. Será que você sabe explicar por que construíram um monstro destes na extremidade exterior do sistema? Não; não sabia explicar. Não tinha a menor idéia. — Será uma fortaleza das linhas de defesa? — indaguei em tom hesitante. Riu e os três acônidas pareciam não gostar disso. Um deles, o mais velho, aproximou-se em atitude indignada. — Vá para o inferno — disse Rhodan em tom frio. Logo acrescentou em arcônida antigo: — Não quero que me dirija a palavra. O acônida mudou de cor. Prendi a respiração. Esse terrano tinha nervos de aço. Rhodan deu-lhe as costas e dirigiu-se a mim como se nada tivesse acontecido. Voltou a falar em japonês. — Provavelmente esta estação abriga uma das numerosas usinas energéticas. Estas tiveram de ser estacionadas nos limites do sistema para fornecerem a necessária energia ao campo defensivo azul. Aquelas protuberâncias — Rhodan apontou para a direita — são projetores. Não gostaria de chegar perto deles. Ora; parece que ele não quer desistir.

Desta vez sorriu para o acônida, que parecia perplexo, pensando no que poderia dizer. — Sua Eminência, Gonozal VIII, Imperador de Árcon — disse Rhodan, apresentando-me. Acho que o senhor já sabe quem sou. Peço-lhe encarecidamente que nos dê o tratamento a que temos direito. Qual é seu nome? De repente, a expressão do acônida tornou-se sombria. Se possuísse senso de humor, saberia o que fazer diante das palavras de Rhodan. Mal consegui reprimir um sorriso. O tratamento que o pequeno bárbaro dispensava àquele homem, que devia ser um alto representante do povo dos meus antepassados, não passava de um atrevimento. De qualquer maneira, as palavras de Perry pareciam ter produzido seu efeito, o que me deixou espantado. Será que conseguira compreender de forma puramente intuitiva a mentalidade estranha dessas inteligências? Rhodan queria provocar seu interlocutor. Desta vez foi ele quem lançou olhares frios de desprezo para os dois acônidas, que se mantinham em ponto mais afastado. — Diga seu nome! — repetiu com a voz mais alta e em tom autoritário. — Estou falando com um oficial comandante ou com um representante do governo investido dos necessários poderes? Em caso negativo, peço-lhe que me chame uma pessoa devidamente habilitada. Aos poucos comecei a compreender. Rhodan, que até então nunca chegara sequer a insinuar sua alta posição militar e política, estava agindo conscientemente. Por certo tinha todo motivo para recusar um cumprimento, e mais ainda um interrogatório realizado por uma pessoa insignificante. No entanto, senti-me surpreso ao notar que o velho acônida atendia à exigência de Rhodan, como se aquilo fosse a coisa mais natural deste mundo. Adaptei meu comportamento a essa circunstância. — Meu nome é Lempart de Fere-Khar. Sou chefe do Conselho Governamental de Ácon e diretor da estação experimental de energia Eretres, excelência — disse o acônida, a título de apresentação. Falava em tom reservado, mas respeitosa Então era assim que se devia falar com essa gente! Era interessante saber disso, ainda mais que supuséramos que, apesar de nossa elevada posição, seríamos considerados simples caciques bárbaros. Será que nossa malograda tentativa de libertação, juntamente com a declaração de guerra formulada por Rhodan, provocara uma modificação sensível no comportamento dos acônidas? Até parecia que era assim. — Exijo uma explicação sobre o crime cometido por ordem sua — dirigi-me a ele em tom penetrante. No momento em que Lempart começou a falar, senti o fiasco mais decepcionante de toda minha carreira de almirante e imperador arcônida. O acônida gritou em tom arrogante: — O senhor não tem que exigir coisa alguma, degenerado. Os colonos de seu mundo ainda estão submetidos às ordens do Conselho Governante, muito embora tenham conseguido escapar por algum tempo das nossas leis. Para nós, o título usurpado pelo senhor é de todo irrelevante. Ouvi Rhodan engolir em seco. Isso fora um remédio amargo para meu orgulho de arcônida. Rhodan merecia certo respeito face à sua qualidade de chefe de estado estrangeiro, enquanto eu não passava de um descendente de colonos degenerados. Tive de fazer um grande esforço para controlar-me. — Queiram acompanhar-me — disse o membro do Conselho.

Provavelmente fora incumbido de negociar conosco. “Com Perry Rhodan”, transmitiu meu cérebro adicional num aviso lacônico. Tama Yokida, que já despertara, compreendera a discussão. Seu rosto indiferente deixou-me ainda mais irritado. Tive a impressão de que seus olhos escuros riam. Rhodan piscou para mim. Acompanhou o velho acônida; ao passar por outros representantes de seu povo, fez de conta que os mesmos nem existiam. Para mim seria inútil imitar sua atitude. Naquele momento compreendi que Perry agira acertadamente ao dar a ordem preventiva de alarma. Atravessamos a passagem transparente, que nos protegia contra o vácuo do espaço. Apesar de tudo fazia muito frio. Senti-me feliz quando vi à nossa frente a escotilha aberta de uma eclusa de ar. Perplexo, notei que não havia ninguém, além dos três acônidas e dos robôs que os acompanhavam. Será que a gigantesca usina energética não era tripulada? Talvez fosse isso mesmo. Voltei a refletir. Quem sabe se os três acônidas não haviam sido enviados ao local unicamente em virtude de nossa chegada repentina? Com isso também se explicava por que o homem, que devia ser a autoridade mais importante do Império de Ácon, viera em pessoa. A essa hora tive certeza de que a declaração de guerra de Rhodan produzira um efeito bombástico. Provavelmente estavam convencidos de que o Administrador Solar jamais poderia arriscar-se a dar um passo como este. Uma vez completada a compensação da pressão, atravessamos a eclusa. Atrás dela existia um elevador antigravitacional, do tipo usado em meus mundos natais. A tecnologia acônida não poderia ter experimentado uma modificação muito acentuada. Afinal, havia vinte mil anos que meus antepassados levaram tudo que seus ancestrais já haviam descoberto ou criado. E, uma vez amadurecidos, tais inventos não poderiam sofrer grandes inovações. Ouvi imediatamente o zumbido grave de inúmeras máquinas. Concluí que realmente se tratava de uma usina energética. Uma vez chegados às profundidades do corpo oco da esfera, o ruído das máquinas cresceu, transformando-se num rugido monótono. Lancei um olhar apressado para o relógio e perguntei ao mutante: — Quanto tempo durará o vôo da Ironduke? — Cerca de onze horas — cochichou Tama apressadamente, compreendendo o sentido de minha pergunta. Dali em diante compreendi que teríamos de ganhar tempo. Em hipótese alguma deveríamos sair da unidade energética estacionada nas profundezas do espaço, antes que chegasse a nave linear terrana. Se é que havia uma possibilidade de sermos salvos, isso só poderia acontecer se os mutantes de Rhodan nos encontrassem num lugar em que havia pouca gente. O setor lógico de minha mente transmitiu-me a única sugestão correta. Devia tornarme incapaz de ser transportado. Mesmo que me considerassem um degenerado e um instigador de rebeliões, que usurpara o título de soberano, não poderiam deixar de respeitar minha pessoa. Afinal, dispunha de um poderio enorme. Além disso, Rhodan compreenderia a situação e exigiria que me dispensassem a necessária atenção. Cambaleei, segurei o crânio com ambas as mãos, soltei um gemido e caí ao chão. Tama soltou um grito e Rhodan virou-se apressadamente. Ainda consegui lançar-lhe um olhar, mas Rhodan não o compreendeu logo. Quando se inclinou sobre mim, seu

rosto exprimia uma preocupação genuína. As armas dos robôs, que instantaneamente foram colocadas em posição de tiro, ameaçaram-nos. — Ficar aqui até que a nave chegue — cochichei apressado. Rhodan compreendeu a situação. Começou a representar imediatamente; fiquei inconsciente. — O imperador precisa de assistência médica — disse Perry. — Há uma clínica por aqui? Prestei atenção à breve discussão que se seguiu. O chefe do Conselho não fez o menor esforço para dissimular os fatos. Devia estar muito nervoso, ou então acreditava que não tinha a menor importância falar sobre coisas, que por mim teriam sido consideradas como segredos militares. A usina energética volante não era tripulada. Era dirigida por robôs, e por isso não possuía nenhuma clínica. Cinco técnicos, que eram revezados constantemente, cuidavam da necessária inspeção das peças mais importantes das máquinas. A informação deixou-nos muito satisfeitos. Em hipótese alguma deveríamos sair desse lugar. Rhodan continuou a formular perguntas. Sua linguagem tornou-se cada vez mais penetrante, e Lempart de Fere-Khar continuava a não fazer o menor esforço em ocultar a situação. Apavorado, sugeriu levar-me imediatamente ao quinto planeta do sistema. Seria questão de poucos segundos. Com muita habilidade, Rhodan contornou este ponto. Exigiu uma espaçonave rápida, dotada de todos os requisitos de conforto. O chefe do Conselho lamentou. Disse que a técnica avançada dos acônidas não mais utilizava esse meio primitivo de locomoção. Já sabíamos disso, mas Rhodan teve oportunidade de formular outra ponderação. Falou em tom nervoso: — Mesmo que os tripulantes acônidas da espaçonave avariada tenham sido levados ao quinto mundo por meio de transmissores, não podemos concordar em que o imperador seja submetido ao mesmo procedimento. — Excelência, os homens do comando energético foram atingidos muito mais intensamente pela onda de choque que... Rhodan interrompeu o velho. Sabia-se o que pretendia dizer, e a afirmativa tinha sua lógica. — Peço licença para contestá-lo. O imperador não possui o vigor juvenil de seus homens. Além disso, o senhor deve saber que o organismo dos arcônidas, adaptado a outro ambiente, não está em condição de resistir a esse choque. Peço-lhe encarecidamente que faça comparecer uma equipe médica com todos os recursos modernos. Por enquanto o imperador não está em condições de ser transportado. Em hipótese alguma pode ser submetido a outra desmaterialização. Para quando poderemos esperar a chegada dos médicos? Ganhamos a partida! O chefe do Conselho conferenciou em voz baixa com os outros acônidas. Estes pareciam desempenhar funções subalternas. Dali a alguns minutos fui levantado por robôs e levado a um aposento que provavelmente se destinava aos engenheiros supervisores, destacados para a usina energética. Mantive os olhos cerrados e esforcei-me para respirar o mais debilmente que me era possível. Ouvi vozes do lado de fora. O timbre da voz de Rhodan era inconfundível. Naquele momento, Yokida cochichou ao meu ouvido: — Um dos técnicos já está saltando por um dos transmissores instalados aqui. O chefe do Conselho disse que não dispõe de nenhuma nave transportadora que

corresponda às exigências de Rhodan. Todos os veículos têm sua finalidade específica e estão em ação. Sir, essa gente realmente não tem nenhuma frota espacial. Já imaginou o que acontecerá se nossos supercouraçados conseguirem romper o anteparo azul? Após estas palavras minha respiração realmente se tornou ainda mais débil. Será que os acônidas sabiam o que significava a declaração oficial de guerra de uma grande potência galáctica como o Império Solar? Teriam alguma idéia do que significava ficarem expostos às salvas de uma frota de guerra? Seus ancestrais haviam visto a guerra contra os antigos colonos. Mas... e os acônidas que viviam hoje? Estes possuíam uma admirável supertecnologia. Haviam desenvolvido o vôo espacial não-material e, ao que parecia, sempre foram favorecidos pela sorte nos seus contatos com outras inteligências. Além disso, davam mostras de terem suficiente habilidade para evitar os conflitos abertos. Havíamos experimentado na própria carne como sabiam ser perigosos quando agiam às escondidas, e como sabiam alcançar resultados fantásticos com os meios mais simples. Não havia, também, a menor dúvida de que eram orgulhosos e arrojados. Os vôos arriscados de seus comandos energéticos constituíam a melhor prova disso. O que fariam, porém, se de repente se vissem colocados numa situação puramente defensiva? Afinal, já acontecera alguma coisa que jamais teriam julgado possível: criaturas estranhas conseguiram romper, com o novo propulsor linear, o campo energético azul, até então considerado impenetrável. O seqüestro de Rhodan representava uma vitória de Pirro, embora os acônidas talvez continuassem a acreditar que possuíam uma superioridade infinita. Nesse ponto, provavelmente estavam enganados. A Terra estava prestes a mandar seus filhos para o espaço. Alguns deles já se encontravam nos limites do Império de Ácon. E, o que era mais temerário, vinham numa nave linear, cuja tripulação, por certo, seria capaz de destruir o sistema. Arrisquei-me a abrir os olhos por um instante. Rhodan estava fechando a porta atrás de si. Havia um sorriso indefinível em seu rosto. — Realmente pretende atacá-los? — cochichei, indagando. — Apenas receberão uma pequena lição — disse Rhodan, esquivando-se. — Os médicos levarão algumas horas para chegar; talvez menos. Prepare-se. O homem que se encontra por aqui é o chefe do Conselho Governamental. Já começaram a ficar nervosos. — Já, sir? — perguntou Tama Yokida, em tom hesitante. — Eles nos têm nas mãos — observei apressadamente. — Assim que um canhão de radiações terrano disparar o primeiro tiro, estaremos liquidados. — Não tenha tanta certeza disso — contestou Rhodan. — Desempenhe corretamente o seu papel. Quando for disparado o primeiro tiro, já estaremos a bordo da Ironduke. Se eles querem seqüestrar estadistas pela força das armas, devem agir mais discretamente. O Serviço de Defesa Solar teria feito um trabalho melhor. De repente soltou uma risada. Compreendi que, para ele, a situação não era tão trágica. Sendo assim, a essa hora não gostaria de estar no couro dos acônidas, isso naturalmente caso os terranos conseguissem romper o campo energético. Se tal não fosse possível, Rhodan perderia a vontade de rir. Mais uma vez, esse bárbaro incorrigível julgava seus homens capazes de muita coisa. Se o Major Jefe Claudrin cometesse qualquer erro, por menor que fosse, os acônidas seriam donos da situação. Tudo dependia desse homem nascido em Epsal. Continuei a fingir-me de doente, o que era um papel nada dignificante para o soberano de um gigantesco império estelar.

Rhodan acariciou meu rosto. Eu notei que, nesse momento, um sorriso desavergonhado brincava no seu. — Afinal você não passa mesmo de um pobre cachorro, imperador. Os acônidas gostariam de atirá-lo à prisão mais próxima, por usurpação de funções, rebelião ou sei lá o quê. De qualquer maneira seria por atos praticados, na área colonial do grupo estelar M-13, contra a segurança do Estado.

7 Voltara para salvar o que ainda pudesse ser salvo. Era esta, talvez, a intenção de Auris de Las-Toor. Mas ela poderia ser a única a ter tal intenção? Bela e inteligente — qualidades que eu mais prezava em sua pessoa. Quem sabe se sua ciência a tinha inspirado para observar a situação também sob o nosso ângulo? Juntou-se aos dois médicos, incumbidos de pôr-me de pé. Por enquanto nem pensava em renunciar ao meu papel. Rhodan apoiou-me na execução da tática de retardamento. A todo instante queixava-se do equipamento dos médicos. Opôs-se energicamente ao uso da terapia hipnomecânica. Disse que meu cérebro degenerado de colono não a suportaria. Dessa forma já havíamos conseguido doze horas, mas a Ironduke, ansiosamente esperada, ainda não chegara. Ao menos, os telepatas a bordo ainda não haviam chamado, por mais atentamente que Rhodan procurasse ouvir com seus fracos sentidos parapsicológicos. A situação tornara-se perigosa. Um dos médicos já nos ameaçara, muito indignado, de partir imediatamente, caso continuassem a impedi-lo de usar as medidas que julgasse acertadas. Naturalmente não poderia arriscar-me a um exame detalhado. Rhodan fez o papel do estadista muito ocupado. No espaço de apenas doze horas, participou de sete encontros. Devido a estes, ficamos sabendo qual era a finalidade do seqüestro. Os acônidas exigiam todos os dados relativos ao mecanismo de propulsão linear terrano e um aparelho em condições de ser usado, que seria por eles examinado. Não queriam mais que isso. Porém Rhodan mostrou-se muito indignado, ainda mais que seu parceiro de negociações se obstinava em afirmar que a violação das fronteiras estatais, ocorrida durante o vôo experimental de Rhodan, habilitava Fere-Khar a exigir uma compensação a ser fixada através de negociações. Os ataques à Terra e ao Império Arcônida foram negados, embora estivéssemos em condições de provar que tanto o monstro de plasma como o deslocamento do tempo ocorrido em Árcon III provinham inegavelmente de comandos acônidas. Em seu conjunto, as explicações dadas pelo representante do Conselho Governamental tinham fundamentos muito fracos. Não havia desculpa para nosso seqüestro. A explicação para essa medida sumamente antidiplomática apenas provocou um sorriso de compaixão em Rhodan. Lempart alegou que o Conselho não tivera outra alternativa, já que, apesar de numerosas mensagens de rádio, o Administrador do Império Solar não se dignara a comparecer a uma conferência dos chefes de Estado. Essas notas, que alegou terem sido transmitidas pelo hiper-rádio, jamais foram registradas em Terrânia. Os acônidas nunca haviam estabelecido tal tipo de contato, muito embora neste meio tempo já deveriam ter reconhecido que sua atuação era fundamentalmente errada. A exigência acônida — o fornecimento de dados técnicos — era tão absurda como as alegações formuladas pelo representante do Conselho Governamental, quando tentara explicar o porquê do seqüestro.

Sabíamos o que essa gente realmente pretendia conseguir por meio de seus atos. O vôo de Rhodan os havia arrancado da segurança milenar. De repente, um estranho conseguira romper seu potente campo energético. Numa conclusão absolutamente lógica, resolvera-se eliminar o visitante indesejável, tanto no terreno militar como no político, ou então se tentaria aperfeiçoar a estrutura energética do campo defensivo. Mas, antes disso, seria necessário saber como funcionava o mecanismo do propulsor linear da Terra e quais as leis hiperfísicas que o regiam. Era esta a finalidade da ação. Desejavam voltar à segurança a que o Sistema Azul estava acostumado, sem correr o risco de serem surpreendidos por algum terrano. A tentativa de destruir a Terra não fora bem-sucedida. Agíramos com excessiva rapidez e precisão. E os acônidas, que há muito não dispunham de uma frota poderosa, não poderiam arriscar um ataque frontal. Por isso providenciaram para que numerosos comandos energéticos escutassem e decifrassem minhas mensagens dirigidas a Rhodan. Finalmente realizaram o seqüestro, que a essa hora já lhes parecia causar certo mal-estar. Na verdade, a declaração de guerra formulada por Rhodan produzira de fato um efeito bombástico, mas nem por isso o Conselho de Governo se sentiu impedido de continuar a exigir a entrega do sistema de propulsão linear. Nas últimas horas, o tom da fala dos acônidas tornara-se mais áspero, conforme Tama Yokida me comunicara com certa preocupação. Naquela oportunidade, Auris entrara em contato conosco pela primeira vez, depois de nossa chegada ao local. Salvo nas horas de conferência, Rhodan e Tama permaneciam ininterruptamente a meu lado. Diziam que não podiam deixar a sós um aliado tão importante como eu. Auris voltara a aparecer há três minutos, desta vez como enviada, devidamente autorizada, do Conselho de Ácon. *** Imediatamente me fingi de inconsciente. Há trinta minutos um médico me aplicara duas injeções de efeitos estimulantes. Meu coração batia aceleradamente. Sentia-me bem e disposto como raramente me sentia durante a vida. Até mesmo para um ator profissional seria difícil fazer o papel da pessoa fraca e desamparada, que, no momento, eu representava. Auris veio só. Arrisquei-me a lançar um olhar ligeiro para ela. Não gostei nem um pouco do sorriso com que cumprimentou Rhodan. Voltei a observá-la. De pé, ao lado de Rhodan, fitava os olhos cinzentos deste, que de repente deixaram de emitir o brilho frio e reservado que estava acostumado a ver neles, desde o momento do seqüestro. Gemendo terrivelmente, virei-me para o outro lado. Por que Auris nunca me olhava desse jeito? Tama Yokida pigarreou a título de advertência, e voltei a ficar quieto. — Se estivesse no seu lugar, não me esforçaria tanto — disse Auris. Fiquei gelado de susto. Estaria falando comigo? Será que essa moça inteligente notara aquilo que os médicos não haviam percebido? Rhodan deu a resposta. Era inteligente demais para querer continuar a enganar Auris. — Pode abrir os olhos, meu caro; estamos a sós. “Já sabem que estou fingindo!”, transmitiu meu cérebro adicional.

Para chegar a essa conclusão, não precisaria de qualquer impulso do setor lógico de minha mente. Virei-me devagar. Abri as pálpebras e fitei o rosto pálido e cansado da moça. Os dedos crispados seguravam a aba da capa que cobria seus ombros. Rhodan estava parado a seu lado; parecia tranqüilo. — Os médicos foram embora — disse a moça. — Descobriram que o senhor não está doente. Por que procurou enganá-los? O que esperam conseguir com isso? Fui incumbida para informá-los de que... — Informar-nos de quê? — interrompeu Rhodan. Auris fez como se não tivesse ouvido a interrupção. — ...de que dentro de uma hora, aproximadamente, serão transportados para Drorah pelo transmissor de matéria. Yokida fitou-a atentamente. Por certo procurava descobrir alguma arma que trouxesse sob a capa. Não possuía nenhuma. Esqueci-me da minha súbita simpatia por Auris. Estava muito mais interessado no seu relógio. “Isso não é sinal de verdadeiro amor”, transmitiu o setor lógico de minha mente. Contrariado, balancei a cabeça. Auris recuou, assustada. Onde estaria a Ironduke, cuja chegada já nos fora anunciada? Será que alguma coisa saíra errado? Talvez Jefe Claudrin não tivesse conseguido romper o campo energético. Seria impossível repetir aquilo que, por ocasião da primeira experiência com a nave linear Fantasy, fora realizado com certa facilidade? Em que ponto Rhodan teria errado nos seus cálculos? Mais uma vez, Rhodan exibiu seu sorriso indiferente, mas seu cérebro estava trabalhando. Naturalmente estava ocupado em reflexões idênticas às minhas. Desconfiei de que a expressão do meu rosto revelava meus sentimentos numa extensão que não me era agradável. Sentia-me como se fosse um pobre cachorro! Estávamos todos numa difícil situação. Encontrávamo-nos num navio que de repente começara a fazer água. Face à tecnologia avançada dos acônidas, tornava-se praticamente impossível que os mutantes nos libertassem, depois de nossa chegada ao planeta central. Nesse caso, qualquer ataque da frota seria sufocado no nascedouro, pois os terranos com certeza não estariam dispostos a atirar contra seu venerado administrador. “Nem em você!”, revelou o setor lógico de minha mente. — Por que procuraram enganá-los? — voltou a indagar Auris. Logo depois acrescentou em tom um tanto queixoso: — De qualquer maneira eu sabia, assim que recebi o aviso, que os senhores não poderiam estar doentes nem cansados. — E apesar disso ficou calada? — perguntou Rhodan. Auris fez um gesto de desprezo. — Ponderei perante os membros do Conselho de Governo que o seqüestro foi um erro. Não me quiseram dar crédito. Lembrei a grande guerra entre os arcônidas e os acônidas. Acham que o assunto está liquidado, mas ainda não se esqueceram de todo... A situação de Atlan será bastante difícil. — Reservo-me o direito de adotar medidas militares — respondi. Pensativa, Auris confirmou com um gesto.

— Sem dúvida. Dentro em breve, o senhor também formulará a declaração de guerra, usando os poderes que lhe cabem como soberano absoluto. Meu povo terá de vencer ou desaparecer. Auris desconfiava de alguma coisa. E parecia saber que não se podia brincar com os impérios aliados. Abatida, deu-nos as costas e fez com que a porta se abrisse. Atrás desta havia três robôs de guerra de quatro braços, de tipo muito semelhante aos usados pelo regente positrônico de Árcon. — Os robôs foram regulados para suas vibrações individuais — disse em tom de advertência. — Peço-lhes que não façam tolices. Eu ficaria muito triste. — Por quê? Um sorriso indiferente continuava a brincar no rosto de Rhodan. Auris fitou-o atentamente. — Não sei. Acontece que eu sabia. Resignado, constatei que seu coração pertencia ao grande terrano de olhos cinzentos. — Venham — pediu em voz baixa. Rhodan continuou parado no lugar em que se encontrava. Tama Yokida contemplou os três robôs. Ao que tudo indicava, não haviam julgado necessário destacar um número maior de máquinas. Será que, por ocasião de nossa frustrada tentativa de libertação, não haviam percebido que foram usadas forças invisíveis? De qualquer maneira, ninguém parecia desconfiar de que nosso competente telecineta não teria a menor dificuldade em livrar-nos das máquinas de guerra. Bastava atirá-los violentamente contra a parede de aço mais próxima, e as funções precisas de seus cérebros mecânicos deixariam de existir. Auris demonstrou uma indiferença altamente suspeita face ao mutante. Uma desconfiança começou a germinar em minha mente. Estaria Auris já sabendo das perigosas faculdades de Yokida? Teria ficado calada de propósito, a fim de dar-nos uma chance? Não; isso era uma conclusão forçada. Apesar de toda a tolerância, ela nunca seria capaz de trair seu povo. Provavelmente não sabia ao certo o que pensar do mutante. — A senhora acaba de aludir a um planeta, Auris — disse Rhodan. — Falou em Drorah, se não me engano. Trata-se do mesmo mundo que por nós foi batizado com o nome de Esfinge, ou seja, do quinto planeta do sistema? Auris fez que sim. Finalmente saímos. Os funcionários do governo acônida haviam desaparecido. Apenas se achavam presentes os cinco engenheiros supervisores, que costumavam guarnecer a usina energética, e mais dois oficiais pertencentes a um comando energético, que, segundo tudo indicava, estavam submetidos a Auris. Os técnicos não estavam armados. Já os oficiais traziam armas que, segundo me pareceu, eram radiadores de impulsos térmicos. Além deles havia os três robôs. Era uma força considerável. Se não fosse o mutante, não haveria como dominá-la. Restava saber se valeria a pena tentar um ataque de surpresa. Se o couraçado terrano não se encontrasse nas proximidades, tornar-se-ia inútil alcançar a liberdade. Esta seria provisória. Parei. À nossa frente abria-se o corredor, que descrevia uma curva ligeira e levava ao elevador antigravitacional. Encontrávamo-nos cerca de trezentos metros abaixo da cúpula polar da usina energética espacial, que, segundo soube de Rhodan, teria nada menos de onze quilômetros de diâmetro.

Considerando esse diâmetro, podia-se imaginar as dimensões gigantescas das máquinas ali instaladas. Então se podia tirar conclusões sobre o consumo de energia do campo defensivo, que envolvia o gigantesco sistema solar. “A amplitude é de, aproximadamente, cinqüenta bilhões de quilômetros”, disse o setor lógico de minha mente. Uma vez que o sistema tinha dezoito planetas, aquela amplitude era provavelmente bem maior. Quais seriam as leis que regiam os movimentos de translação dos planetas do sol central? Prestei atenção ao rugido surdo e monótono que parecia sair de todos os cantos. Quantas usinas energéticas, estacionadas, em órbitas estáveis, seriam necessárias para suprir o campo azul ininterruptamente com a energia de que precisava? Quantos bilhões de megawatts consumiria? Será que realmente eram apenas bilhões? Ao fazer essas reflexões, dei-me conta do que os acônidas haviam realizado ao criar o gigantesco campo esférico. Geravam um volume de energia equivalente ao de um pequeno sol, apenas para isolar-se hermeticamente. Balançando a cabeça, segui Rhodan e a moça. Tama caminhava às minhas costas. Atrás dele vinham os robôs. Os dois oficiais iam ao nosso lado. Com a maior facilidade, eu poderia dominar um deles. Mas para que faria uma coisa dessas? O que poderíamos fazer com a liberdade puramente ilusória que conquistássemos por essa forma? Além disso, Auris acabara de dizer que seríamos transportados dentro de uma hora, aproximadamente. Por que não permitia que ficássemos no pequeno aposento que ocupávamos? As perguntas iam-se amontoando em minha mente. Dali a dez minutos soubemos por que nos haviam levado. Pretendiam aplicar-nos injeções estabilizadoras da circulação. As seringas automáticas estavam preparadas. Um dos técnicos da usina energética disse que era médico nas horas vagas. Que volume de saber não devia dominar esse homem! Numa era tecnológica em que os diversos setores haviam sido subdivididos milhares de vezes, para que uma pessoa pudesse conhecer bem cada subdivisão, esse homem “era médico nas horas vagas”! Desnudei a parte superior do corpo. A injeção seria aplicada nos músculos do tórax, pouco acima do coração. Subitamente o rosto do acônida assumiu uma expressão tensa. Parecia ter um interesse tremendo por meu ativador celular. Auris também se aproximou. — É um viking supermusculoso, não é? — disse Rhodan. Indignado, virei a cabeça. O rosto de Rhodan permanecia impassível. — Um viking? — perguntou Auris, em tom de espanto. — A senhora, que é socióloga, deve estar interessada em saber que este arcônida teve uma influência decisiva no desenvolvimento de certos povos do planeta Terra. — É mesmo? — Olhe as cicatrizes que apresenta no abdômen. Estas feridas foram produzidas pela extração, realizada pelos meios mais primitivos, do ativador celular que fora engolido por Atlan. A respiração do médico tornou-se ainda mais rápida. Esteve a ponto de formular uma pergunta, mas Auris lançou-lhe um olhar de advertência, motivo por que preferiu ficar calado. Por que Rhodan resolvera entoar esses cânticos de louvor? De início supusera que pretendia divertir-se à minha custa. Mas os esclarecimentos não demoraram.

— Auris de Las-Toor, dê uma olhada neste descendente de colonos, que seu povo considera degenerado. Acha que foi acertado seqüestrar o homem que governa alguns bilhões de outros desse tipo? Auris ia responder. Provavelmente iria aludir à lei natural da degenerescência e acrescentaria em tom irônico que restavam poucos arcônidas desse tipo. Mas não teve tempo de formular essas considerações. Mesmo que tivesse falado, as sereias de alarma da usina energética teriam superado sua voz. O barulho infernal fez com que eu me encolhesse. O bocal de alta pressão escorregou de meu peito e a fina névoa do medicamento espalhou-se pelo recinto, sem produzir o menor efeito. De repente, as fúrias do inferno pareciam estar soltas. Os dois oficiais levantaram as armas, correram á porta e assumiram posição de combate. O fato de não soltarem pragas nem formularem ameaças dava mostras do excelente treinamento que esses homens haviam recebido. Num movimento reflexo assumiram a posição de tiro; e foi só. E, para nós, era quanto bastava, pois os três robôs assumiram atitudes semelhantes. O técnico, que nas horas vagas era médico, saiu correndo. Lá fora, provavelmente se reuniria aos quatro colegas. Sem dúvida ocupariam os postos de manobras para os quais haviam sido designados, e que, conforme as circunstâncias, também poderiam ser postos de combate. Fazia votos de que Jefe Claudrin contasse com isso. Não havia dúvida de que a Ironduke acabara de romper o campo energético e penetrara no Sistema Azul. A situação começava a ficar séria. O significado do alarma só poderia ser este, pois, do contrário, os guardas não teriam tomado as atitudes que tomaram. O rosto de Rhodan descontraiu-se. Tinha-se a impressão de que precisava refletir muito, antes de dar as respostas. Sabia que entrara em contato com os telepatas que se encontravam a bordo do couraçado. — Infelizmente, os senhores terão de dispensar as injeções — disse Auris em tom nervoso, assim que o barulho das sereias cessou. — Peço-lhes que se dirijam imediatamente ao grande transmissor. A essa hora passara a ser exclusivamente uma moça acônida, decidida a agir exclusivamente no interesse de seu povo. Dei as respostas adequadas, e senti-me satisfeito porque, face às circunstâncias, a ausência mental de Rhodan não foi notada. Perry tinha de manter contato com os mutantes, a fim de que estes pudessem dirigir-se à estação espacial em que nos encontrávamos. Eu calculava haver muitas estações desse tipo. Fomos andando. Desta vez, as armas de nossos acompanhantes orgânicos e inorgânicos encontravam-se em posição de tiro. Cochichei algumas instruções em francês ao ouvido de Tama Yokida. Era possível que, neste meio tempo, tivessem aprendido a traduzir o japonês. Preferia não assumir nenhum risco. Yokida compreendeu. Aguardava meu sinal. Mas ainda não estava na hora.

8 Gastamos doze minutos e vinte e três segundos para chegar à ampla sala abobadada. Era ali que estavam instalados os transmissores que, segundo tudo indicava, se destinavam ao transporte de pessoas e mercadorias. Não havia aparelhos de dimensões gigantescas, como o que vira na face externa da estação espacial. Ainda assim tratava-se de aparelhos gigantescos, que permitiam a desmaterialização de objetos do tamanho de uma casa e sua irradiação para o aparelho receptor, sob a forma de impulsos concentrados de categoria superior. Era uma tecnologia admirável, mas naquele momento não poderíamos interessarnos por este ponto. No que dizia respeito ao aspecto prático da situação, os acônidas estavam fugindo da Ironduke, que se aproximava a alta velocidade, e que evidentemente já fora localizada e identificada. Era muito duvidoso conseguir encontrar uma nave que de alguma forma estivesse em condições de enfrentar o gigante terrano de oitocentos metros de diâmetro. Quando chegamos à sala dos transmissores, estávamos ofegantes. Não se via o menor sinal dos cinco técnicos da estação espacial. Apenas um deles aparecia numa grande tela. Por certo era responsável pelos controles que se tornavam necessários. Um arco de transmissão de dez metros de altura ergueu-se à nossa frente. O zumbido de reatores invisíveis de alta potência atingiu meu ouvido. O trovejar tornou-se cada vez mais forte e profundo, até que se estabilizou. No mesmo momento, o arco completou-se. Entre suas colunas vermelho-reluzentes de apoio começava a escuridão vazia, que representava a porta de entrada para o “aparelho” de transporte. Já não podíamos contar com Rhodan. Auris já notara sua distração, mas ao que parecia nem imaginava o que o terrano fazia naqueles segundos. Tama e eu teríamos que agir sozinhos. Perry não poderia ser perturbado nas suas transmissões telepáticas. Não esperamos mais. Dei o sinal para Tama. Este parou. Seus olhos assumiram uma expressão rígida. As armas foram arrancadas das mãos dos oficiais acônidas com tamanha força que os dois soltaram um grito de dor. O momento de susto, que talvez durou um décimo de segundo, bastou para que o capaz telecineta erguesse do chão os três robôs e os fizesse subir rapidamente para o teto, onde passaram a descrever movimentos de rotação. Desta forma podia controlar melhor suas energias mentais. Quando os robôs, que giravam cada vez mais rapidamente, apareciam como círculos reluzentes, Tama libertou-os de sua influência. A força centrífuga fez os três corpos voarem em direções diferentes. O terrível impacto foi quase simultâneo. Viraram destroços. Mas não dei muita atenção à cena. Assim que Tama iniciou sua ação, saltei sobre o primeiro acônida e derrubei-o com um golpe. Passei a lutar com o segundo acônida, que fez um esforço desesperado para pegar a arma que se encontrava no soalho. Não teve sorte, pois fui mais rápido que ele. Não precisava preocupar-me com o homem que fora derrubado no início da luta. Tama estava cuidando dele, e ao mesmo tempo controlava Auris, para que ela não pudesse chegar até as armas jogadas ao chão.

Saltei para onde estavam os radiadores de impulsos, peguei-os e atirei um deles para o mutante. Tama não perdeu tempo. Levantou os corpos dos acônidas inconscientes e atirou-os para dentro do transmissor preparado para o transporte. Os homens desapareceram no interior do fenômeno luminoso e cintilante, para no mesmo instante se rematerializarem no quinto planeta do sistema. Tudo isso acontecera sem o menor ruído. Ninguém dissera uma única palavra. Tama arrastou Auris pelos pulsos. Levei Rhodan para a porta e para a eclusa de ar, que ficava à frente da mesma, e abriguei-me no respectivo batente de aço. Naquele momento ouviram-se os primeiros ruídos. O acônida, que aparecia na tela, disse algumas palavras incompreensíveis. — O transmissor, sir — disse Yokida, muito calmo. — Se resolverem enviar reforços... Sabia onde ficava a fonte do perigo. Levantei lentamente a arma estranha, procurei o gatilho e estive a ponto de apertá-lo, quando Auris começou a gritar: — Não atire! O senhor fará explodir a estação. Pare! Imediatamente retirei o dedo do gatilho e virei a cabeça. — Auris, será que isso não é um truque? — É verdade — exclamou, tremendo que nem vara verde. — O raio disparado pela arma daria causa a um carregamento incontrolável dos campos de força, transmitidos sem fio. Não atire! Finalmente, Rhodan começou a mexer-se. Seu rosto contraído voltou ao normal. No mesmo instante ouvi um trovejar surdo, que sacudiu todas as juntas da enorme construção. Forcei o ouvido. Ninguém apareceu no transmissor que continuava ligado, nem mesmo um robô. — São canhões energéticos, sir. A Ironduke está atacando. Fiz um sinal para Tama, que há alguns minutos vigiava atentamente o corredor que começava junto à eclusa. Não se via o menor sinal dos técnicos. Seria realmente tão simples assim fugir da estranha prisão em que nos encontrávamos? Mais dez minutos se passaram num silêncio tenso e enervante. Auris voltara a acalmar-se e, ao que parecia, Rhodan estabelecera contato de novo. Quando pretendia verificar a situação, saindo alguns metros pelo corredor, Rhodan disse com uma estranha indiferença: — Daqui a pouco os teleportadores saltarão. Cuidado! Ainda não acabara de falar quando três seres materializaram-se simultaneamente do nada. Eram Gucky, o rato-castor, e os teleportadores Tako Kakuta e Ras Tschubai. Estes seres, que provavelmente eram os membros mais competentes do Exército de Mutantes terrano, não perderam tempo. Não disseram uma única palavra inútil: — Claudrin voltará dentro de trinta segundos. É a quarta aproximação — disse a voz estridente do rato-castor. — Pegarei você e Perry, Tako pegará a moça e Ras se encarregará de Tama. Estão preparados? Coloquem os braços em torno de meu pescoço. Terei que dar um salto muito grande. Rhodan despertara do transe. Puxou-me violentamente, segurou minhas mãos e, no mesmo instante, aconteceu aquilo que minha inteligência nunca conseguiria compreender. As imensas energias teleportadoras de Gucky representavam o equivalente daquilo que os acônidas faziam com o auxílio de gigantescos transmissores. No entanto, o pequeno ser tinha a vantagem de poder dispensar um aparelho receptor.

Alguma coisa parecia explodir no interior do meu crânio. Senti uma dor aguda, mas antes que compreendesse do que se tratava, os contornos voltaram a iluminar-se à minha frente. A figura maciça de Jefe Claudrin surgiu no meu campo de visão. O major cumprimentou-me com um gesto ligeiro, como se apenas tivesse voltado à sala de comando, depois de ter ido buscar um copo de água. Logo atrás de nós, apareceram os outros teleportadores com Auris, que estava totalmente perplexa, e Tama Yokida, que se dirigiu imediatamente ao seu posto de combate. Rhodan saiu correndo e logo começou a dar suas ordens. Gucky saiu arrastando-se sobre suas pernas curtas. Brindou-me apenas com um sorriso amável. — Isto foi uma atuação de primeira, não foi? Cem mil quilômetros! Que joguinho, meu velho! Esta expressão fez com que eu me lembrasse da tendência lúdica do rato-castor, que constituía uma de suas características. Quase chegava a esquecer que constantemente assistira às ações arrojadas dessa inteligência delicada. Fiquei sentado no chão, exausto. Auris pôs-se lentamente de joelhos. Estava pálida como um cadáver. Lançou-me um olhar de súplica, e eu me esforcei para sorrir. Pretendi dizer-lhe algumas palavras amáveis, falando-lhe que o fato de nossa fuga ter sido bem-sucedida e que o súbito aparecimento da Ironduke não eram tão apavorantes como poderia supor, mas naquele momento as campainhas de alarma começaram a soar. — O chefe está assumindo — disse a voz metálica, saída de todos os alto-falantes de bordo. Rhodan estava sentado na poltrona de comando. Jefe Claudrin encontrava-se a seu lado. As informações da sala de máquinas e da central de comando de armamentos começaram a chegar. Um rastreador estrutural passou a trovejar. A curva achatada indicava um abalo insignificante da estrutura espacial. — Localização para comandante. A estação espacial ativou um transmissor. É de se supor que os tripulantes se tenham colocado em segurança. Fim da mensagem. Sabia que era isso mesmo. Os cinco técnicos só haviam esperado até que fôssemos embora. Agora não havia mais nada que segurasse Rhodan. Auris sentou-se no chão, chorando. Ninguém nos deu atenção. Todos aqueles soldados do planeta Terra estavam muito ocupados. Quase não tinham dado a menor atenção ao chefe que acabara de voltar. Vez por outra, eu notava um olhar ligeiro, uma olhadela de soslaio ou escutava uma risada alegre. Mas era apenas isso. O que lhes importava era que ele estivesse novamente a bordo. As máquinas da Ironduke trovejaram. Dali a alguns segundos, as primeiras salvas da estação espacial atingiram os potentes campos defensivos do couraçado mais moderno da Terra. A Ironduke enfrentou facilmente os tiros. A superposição tripla só foi solicitada no setor externo até oitenta por cento de sua capacidade de absorção. Uma máquina de guerra, que funcionava com uma precisão tremenda, entrara em atividade. Ninguém gritou uma ordem, ninguém falava mais alto do que era necessário. Tudo foi feito na maior calma e disciplina. Para os terranos, era perfeitamente natural aproximar-se de uma estação espacial não tripulada. Agiam como se estivessem realizando uma manobra.

— Costado vermelho. Fogo! — disse Rhodan para dentro dos microfones. A Ironduke transformou-se num monstro que cuspia fogo. O recuo dos canhões do lado vermelho atirou-me ao solo; as placas blindadas vibravam como se fossem uma peneira. O trovejar e o rumorejar das salvas rápidas dos canhões do costado pareciam esfacelar a nave. Tive a impressão de que teria de suportar o barulho por uma eternidade, mas os disparos não demoraram mais de três segundos. Depois disso, a Ironduke, que desenvolvia metade da velocidade da luz, já havia passado pela estação espacial. Esta deixara de ser uma maravilha técnica. As telas de popa iluminaram-se depois de quarenta e oito segundos. Fora o tempo que a luz levara para alcançar-nos. Já assistira à explosão de muitas espaçonaves, mas o que se formou à nossa retaguarda foi um pequeno sol. Uma bola incandescente ultraforte afastou a cintilância do anteparo energético que envolvia o sistema. De repente uma enorme abertura surgiu por lá. Desta vez gritaram de entusiasmo, pois, de repente, a luminosidade azul foi substituída pelo negrume do espaço propriamente dito, salpicado de inúmeras estrelas. Auris soluçou e cobriu o rosto com as mãos. Fiquei sem saber o que fazer. Rhodan olhou para o grande relógio de bordo: zero hora e trinta e dois, tempo de Terrânia! — Onde fica a próxima estação, Major Claudrin? — perguntou Rhodan, em tom frio. — Espero que tenha localizado outras unidades. E onde está estacionada a frota? O nativo de Epsal respondeu em palavras rápidas. Cinco mil unidades terranas, que por sua vez abrigavam quatro mil caças e destróieres rápidos, encontravam-se em posição de salto junto ao anteparo azul. Só esperavam que surgisse uma fenda. E esta acabara de surgir. Dali a dezoito minutos a próxima usina energética volante foi derrubada. A abertura no envoltório do sistema tornou-se cada vez mais larga. Dali a pouco foi captado o chamado de Reginald Bell, representante de Rhodan e, no momento, comandante supremo da esquadra normal de salto. Estava penetrando no Sistema Azul com quatorze supercouraçados terranos da classe Império. Bell também não perdeu tempo. Foi objetivo e disfarçou o alívio e a alegria causados pela salvação de Rhodan. — Em hipótese alguma deverão ser atacados planetas ou outros astros do sistema — ordenou Rhodan pelo hiper-rádio. — No entanto, todas as estações espaciais que forem localizadas, e que sejam usinas energéticas destinadas a alimentar o campo energético azul, deverão ser destruídas. As usinas não são tripuladas. Os poucos ocupantes poderão colocar-se em segurança a qualquer momento por meio dos transmissores. As naves inimigas, que nos atacarem, deverão ser rechaçadas. Repitam. Dali a oito minutos, os primeiros gigantes esféricos terranos penetraram no sistema solar de Ácon, que subitamente ficara desprotegido. Atrás deles vieram as esquadrilhas de cruzadores, seguidas pelas pequenas naves da classe Estado. Não consegui apurar quantas naves ligeiras participaram da obra de destruição. Apenas me lembro de que fui cambaleando, quase inconsciente, em direção ao hipercomunicador, a fim de chamar o almirante que comandava a esquadra robotizada de Árcon.

Não acreditei no que ouvia, mas o fato é que o regente deslocara trinta mil unidades pesadas e superpesadas, a fim de livrar o Imperador Gonozal VIII da situação difícil em que se encontrava. Trinta mil naves! Era inacreditável. Mandei que a frota arcônida também penetrasse no sistema e coloquei-a no setor espacial de onde o inimigo fora expulso. Por lá, ela ficaria em posição de espera. Era só o que eu podia fazer para que a situação se acalmasse. As naves terranas sofreram um total de dezoito ataques desfechados por unidades acônidas. Só podia tratar-se das poucas espaçonaves dos comandos energéticos, que o Conselho lançara numa luta sem esperança. Em Ácon V, no planeta Esfinge ou Drorah, todos pareciam desesperados. De outra forma não haveria explicação para a atuação tresloucada das naves acônidas. Ao se aproximarem das usinas energéticas que iam sendo localizadas, realizando manobras cada vez mais complicadas e derrubando-as, os comandantes de Rhodan fizeram como se estivessem praticando um esporte. Dali a seis horas, três mil quatrocentas e sete usinas gigantescas haviam desaparecido num inferno atômico. O antigo Sistema Azul passara a ser um sistema normal como qualquer outro, com a única diferença de que possuía uns três mil sóis artificiais situados pouco além da órbita do último planeta. Tais sóis não se extinguiam em virtude de um avançadíssimo processo de catalise do carbono. Dali a dez horas mandei que a frota arcônida avançasse. As naves penetraram no sistema, desenvolvendo a velocidade da luz e, cumprindo as ordens que lhes haviam sido dadas, bloquearam os planetas habitados. Com isso a espada de Dâmocles, que assumia a forma das frotas unidas, ficou bem acima dos centros vitais do sistema. Bastaria uma ordem mal interpretada... um pequeno engano... Saí da sala de rádio e fui à procura de Rhodan. A Ironduke descrevia uma órbita estreita em torno do quinto planeta. Rhodan estava sentado em sua poltrona de encosto alto e fitava atentamente a gigantesca tela panorâmica. Os membros femininos do Exército de Mutantes cuidaram de Auris de Las-Toor. Os oficiais terranos fizeram continência. Senti-me exausto e vazio por dentro. As últimas horas haviam sido extenuantes. Sem dizer uma palavra, fitei as telas. Nada aconteceu. Ao que tudo indicava, as fortalezas de superfície que deviam existir no sistema não receberam ordem para abrir fogo. Por enquanto nenhum acônida fora sacrificado, com exceção dos poucos homens que realizaram vôos suicidas por ordem do governo acônida. As estações espaciais estavam vazias, conforme demonstravam os ecos estruturais provocados pela ativação dos transmissores, que captáramos constantemente. No entanto, se houvesse novas hostilidades, assistiríamos à explosão não só de grandes quantidades de materiais, mas também de gigantescos planetas e luas. Procurei o olhar de Rhodan. Entreolhamo-nos prolongadamente, até que Rhodan sorriu de repente. Auris aparecera atrás de nós. Seu rosto estava banhado de lágrimas. — Poderíamos tê-los matado — gaguejou, numa tentativa de fazer-nos mudar de idéia. Tive de explicar-lhe que não havia motivo para fazer-nos mudar de idéia, pois não pretendíamos atacar os mundos propriamente ditos. Na Galáxia devia haver muitos seres inteligentes que, numa situação como naquela em que nos encontrávamos, não se teriam abstido desse ataque, a fim de eliminar de vez um inimigo que não devia ser subestimado.

Rhodan falou calmamente, acentuando as palavras. Só disse o absolutamente necessário. — Auris de Las-Toor, agradeça ao Criador porque seu chefe não se deixou levar a matar Atlan e a mim. Se o tivesse feito, o Império de Ácon já teria deixado de existir. Um oficial levá-la-á ao quinto planeta numa nave auxiliar. Exijo a capitulação. Diga aos membros do Conselho de Governo que me dou por satisfeito por ter destruído a fonte de sua arrogância sem limites, que são as usinas energéticas volantes. Exijo garantias de que vocês nunca mais nos atacarão à traição. Além disso, exijo uma liberdade de comércio total entre os sistemas e a entrega dos dados sobre o sistema acônida de propulsão linear. É só. A senhora partirá dentro de dez minutos. Auris pôs-se de pé e olhou para o terrano que estava sentado. Perry invertera a situação. Agora era ele quem exigia os dados do superaparelho, cuja construção era muito mais simples que a versão terrana. Auris chegou mesmo a sorrir. Provavelmente sentia o lado tragicômico da situação. — É só, excelência? Rhodan limitou-se a fazer um gesto afirmativo e saiu. O acompanhante de Auris era o Major Hunt Krefenbac, imediato da Ironduke. Ele levou a moça ao quinto planeta. Voaram num jato espacial. *** Aguardamos durante sete horas, que aproveitei para tirar um bom sono. O governo acônida pedira um armistício. Neste meio tempo formulara minhas exigências, na qualidade de Imperador de Árcon. Exigi o reconhecimento do império, a confirmação oficial de meu título e a renúncia definitiva às pretensões de domínio de Ácon, que, mais do que nunca, se haviam tornado ilusórias. Além disso também exigi os dados do propulsor linear acônida. Rhodan fitou-me com a testa enrugada, mas acabou não dizendo nada. Apenas o Major Claudrin soltou uma gostosa risada. Compreendera. Por que só os terranos iriam possuir esses maravilhosos aparelhos? Estava convencido de que conseguiria adaptar rapidamente as linhas de montagem de Árcon III, para reproduzi-los em série. Dali a pouco Krefenbac chamou pelo sistema de comunicação audiovisual. Anunciou o pronunciamento do Conselho de Governo. Concordava com todas as condições, menos com a entrega dos dados sobre o propulsor linear. Recusamos friamente e formulamos um ultimato de três horas, tempo terrano. Pouco antes do fim do prazo, recebemos a concordância. Nossas condições foram aceitas. Pouco depois quatro membros plenipotenciários do Conselho vieram no jato espacial terrano. Rhodan e eu os recebemos com uma cortesia fria. Nunca vira enviados tão perplexos e abatidos. Os tratados foram redigidos e assinados. Auris presenciou tudo. Assim que liquidamos o assunto, as primeiras espaçonaves terranas e arcônidas pousaram no mundo dos meus verdadeiros antepassados. Encontrava-me no lugar em que os antigos emigrantes haviam iniciado a grande viagem. Rhodan examinou pessoalmente o terreno destinado ao entreposto comercial por ele exigido, entreposto este que evidentemente se transformaria dentro de pouco tempo numa base da frota, situada no centro da Via Láctea.

De qualquer maneira, não seria nada mau ficar de olho nos acônidas. Dali a poucas horas retirei-me. Não estava interessado na recepção oferecida pelo Conselho de Governo. Quando Rhodan saiu de bordo, voltara a usar o uniforme simples. Chamei uma nave auxiliar da nave capitania acônida e mandei que me levasse para o espaço. O Sistema Azul de Ácon inclinava-se para a linha do horizonte. O planeta V era um belo mundo, semelhante à Terra. Uma vez na eclusa, apertei a mão de Rhodan. O administrador disse em tom pensativo: — Quer saber uma coisa, amigo? É uma bela sensação sabermos que conseguimos a vitória sem derramamento de sangue. Será que essa gente já compreendeu que não somos quem eles pensam? Retirou-se, rindo. Segui-o com os olhos injetados. Afinal, eu não passava de um imperador arcônida para o qual já estavam preparadas as amarras do cerimonial. Fui entrando no meu barco. Senti que realmente não passava de um pobre cachorro.

*** ** *

O Sistema Azul capitulou, pois com a destruição das estações espaciais que forneciam energia para o grande campo energético, este se desfez e o sistema ficou desprotegido. No futuro os acônidas saberão respeitar a paz, por simples instinto de auto-conservação, não há a menor dúvida. Mas também não existe a menor dúvida de que na turbulência dos acontecimentos dos últimos tempos os antis não receberam a atenção que lhes deveria ter sido dispensada. No momento em que os agentes da Divisão III partem para O Deserto da Morte — é este o título do próximo volume — o plano dos antis já estava prestes a ser executado!

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