O roteiro e a imagem poética do filme O Espelho de Andrei Tarkovsky Yaska Antunes (Fátima Antunes) Universidade Federal de Uberlândia
[email protected] A versão final do roteiro do filme O Espelho (TARKOVSKY, 1974) foi resultado de um processo de elaboração em três etapas em que o autor conseguiu harmonizar de forma orgânica em sua estrutura a combinação entre o cinejornal e a ficção baseada na representação da memória. O presente artigo é apenas um relato desse processo de transformação do roteiro associado a uma reflexão sobre a imagem poética a partir do registro feito pelo próprio autor em seu livro Esculpir o tempo. É também uma forma de prestar uma homenagem a esse cineasta tão pouco prestigiado em nossos dias no Brasil. PALAVRAS-CHAVE: roteiro, imagem poética, cinema russo, Andrei Tarkovsky The final version plot of The Mirror (TARKOVSKY,1974) came from a three stages process that results on a work where the film-maker has got an organic shape that could harmonize structurally the cine-journal and memory based representation fiction. This article is just a report of that plot transformation process associated to an poetic image reflection that came from the author’s register in his book Sculpting in Time. It’s also an way to paying tribute to this film-maker so little recognized by nowadays in Brazil. KEYWORDS: plot, poetic image, Russian cinema, Andrei Tarkovsky
“Ninguém que traiu seus princípios alguma vez pode voltar a manter uma relação pura com a vida”. Andrei Tarkovsky
De 1960 a 1986 Andrei Arsenevich Tarkovsky (1932-1986) dirigiu nove filmes: O rolo compressor e o violino (1960), A infância de Ivan (1962), Andrei Rublev (1966), Solaris (1972), O Espelho (1974), Stalker (1979), Nostalgia (1983), Tempo de viagem (1983) e O Sacrifício (1986) – ou seja, um filme a cada dois, três ou quatro anos. Destes, apenas dois ele não assina o roteiro (A infância de Ivan e Stalker); em todos os demais, Tarkovsky o assina em parceria com alguém. Na maioria deles, porém, além da direção e roteiro, o cineasta russo assina também o argumento: O rolo compressor..., Andrei Rublev, O Espelho, Nostalgia e O sacrifício. Tarkovski se inscreve na categoria dos grandes diretores de cinema que produziam o que se pode chamar de “filme de autor”1, numa fase em que o processo de especialização das funções dos profissionais da área do áudio-visual estava ainda num estágio inicial. Esta era a forma que os diretores encontravam para imprimir uma determinada unidade na obra, já que é raro ter a sorte de encontrar alguém com quem se tem afinidade com relação a concepção estética. Direção, argumentação e roteiro são funções que se imbricam de uma forma quase simbiótica, estão inextricavelmente ligadas, de modo que, para respeitar a criação daquela unidade orgânica da obra, Tarkovsky não via como ser possível a não ser assumindo para si estas funções. Ao inquirir sobre o processo de construção do roteiro nos filmes de Tarkovsky, o que se deseja na verdade é criar uma oportunidade para rever, retomar e recuperar a obra de um cineasta, cuja peculiaridade se evidencia em cada plano, em cada seqüência e diálogo. Seus filmes continuam resistindo à passagem do tempo. A superfície de suas imagens permanecem impregnadas de inequívoca sensibilidade poética, transbordante na forma e no conteúdo. Sendo assim, a escritura deste artigo não é resultado de uma pesquisa propriamente dita no campo da estética do áudio-visual, antes, trata-se de um pretexto para revisitar, partilhar e chamar a atenção sobre a obra e a importância das reflexões daquele que foi considerado um dos mais importantes diretores de sua época, Andrei A. Tarkovsky. O estudo da construção do roteiro dos filmes de Tarkovsky pode dar origem a pesquisas de desdobramentos conseqüentes, tendo em vista o revigoramento 1
Em oposição aos filmes comerciais, cuja exigência é a da eficácia que atende exclusivamente aos pressupostos do mercado consumidor.
porque passa o cinema brasileiro da retomada. No caso deste artigo, deter-se-á no processo de confecção do roteiro do filme O Espelho, produzido em 1974, pautandonos no relato detalhado que o cineasta faz em seu livro, Esculpir o tempo (Martins Fontes, 2002). Ele conta que o roteiro passou por três versões diferentes: a primeira surgiu a partir de anotações de lembranças da infância que o atormentavam. Eram imagens relacionadas à “evacuação durante a guerra” e ao “instrutor militar” de sua escola. A idéia era escrever uma novela, mas logo depois achou o tema muito frágil e a novela nunca saiu. Sobre essa primeira versão do roteiro, intitulado originalmente como Um dia branco, branco, Tarkovsky faz o seguinte comentário: ...minha concepção estava longe de ser clara; um simples fragmento de minhas lembranças, cheio de uma tristeza elegíaca e de nostalgia pela infância, não era o que eu queria. Era óbvio que faltava alguma coisa ao roteiro, e o que faltava era crucial. Portanto, mesmo quando o roteiro estava sendo apreciado pela primeira vez, a alma do filme ainda não viera habitarlhe o corpo. Eu tinha plena consciência de que precisava encontrar uma idéia chave que o elevasse acima do nível de uma reminiscência lírica (p.153-154).
A partir dessa percepção, o cineasta escreveu uma segunda versão do roteiro, em que “...pretendia intercalar os episódios da infância contidos na novela com fragmentos de uma entrevista franca com minha mãe” (2002, p.154). A tentativa era de justapor duas formas paralelas de percepção do passado: a da mãe e a do narrador. Para o público, esse jogo iria adquirir forma por meio da interação de “duas projeções diferentes desse passado nas lembranças de duas pessoas muito próximas uma da outra, mas de gerações diferentes” (2002, p.154). No final, essa segunda estrutura também foi abandonada pelo diretor em virtude de continuar sendo “excessivamente direta e pouco sutil”. De que modo surgiu então a terceira e definitiva versão do roteiro que deu origem a um dos filmes mais tocantes de Tarkovsky? Obviamente entre uma versão e outra passaram-se anos. Finalmente, embora reticente ainda com a possibilidade de conseguir harmonizar documentário e ficção, a terceira versão surge a partir de uma bem sucedida tentativa de combinar o cine-jornal com representações ficcionais, de modo que “as transições entre o tempo subjetivo (da memória) e o tempo verdadeiro das reportagens do exército russo da segunda guerra mundial puderam se combinar de forma harmônica, quase, como diz o autor, como um milagre. Tarkovsky relata que depois de “examinar exaustivamente milhares de metros de película” encontrou
a “seqüência do Exército Soviético atravessando o lago Sivash”. Deixemo-nos guiar por essa impressionante narrativa: Fiquei perplexo, (...) ali estava um registro de um dos momentos mais dramáticos da história do avanço soviético de 1943. Era um material único, e eu mal podia acreditar que se tivesse gasto tanto filme para registrar um só acontecimento em observação contínua. Sem dúvida, a cena fora filmada por um camera-man de extraordinário talento. Quando, na tela à minha frente, e como que saídas do nada, surgiram aquelas pessoas devastadas pelo esforço terrível e desumano daquele trágico momento histórico, tive certeza de que aquele episódio tinha que se tornar o centro, a própria essência, o coração e o sistema nervoso desse filme que tivera início simplesmente como uma reminiscência lírica íntima (p.155).
Desse modo, o cineasta conseguiu encontrar uma pista que poderia levar à “idéia chave” que faltara na primeira versão, que poderia levá-lo à “alma do filme”. Encontrara finalmente o elo entre suas reminiscências infantis – que ficaria no plano da memória e, portanto, no plano do tempo subjetivo – e o relato histórico do cinejornal – que ficaria no plano objetivo do documentário e, portanto, no tempo verdadeiro da reportagem. Assim, um episódio da infância do cineasta sobre a evacuação durante a guerra, aparentemente apenas “uma reminiscência lírica íntima”, ao cravar-se em suas lembranças como um tormento, tornou-se mais tarde o ponto de impulso que iria resolver esteticamente toda a proposta inicialmente confusa do roteiro. Na estrutura do filme, embora essa reportagem componha um episódio menor, ela constitui-se no centro de irradiação que ilumina e faz compreender o sofrimento por que passaram os integrantes da família do narrador. Esse acontecimento histórico, o evento da segunda grande guerra, e seus desdobramentos – que afetaram tragicamente o modo de vida das pessoas em todos os níveis – determinaria para o resto da vida os dramas vividos pelo cineasta, sua família e por toda uma geração de famílias da população da Rússia. Sobre essa seqüência dos soldados soviéticos, o autor escreve: A cena era sobre aquele sofrimento que é o preço do chamado progresso histórico, e sobre as incontáveis vítimas que, desde tempos imemoriais, o mesmo exige. (...) uma vez impressa na película, a verdade registrada nessa crônica de uma autenticidade absoluta deixava de ser simplesmente semelhante à vida. Tornava-se, de repente, uma imagem de sacrifício heróico e do preço desse sacrifício: a imagem de um momento histórico decisivo, obtida a um custo incalculável. (...) Quase não houve sobreviventes (p.156).
Esse ponto de vista crítico do progresso perpassa quase todos os seus filmes e se torna tema do discurso em cenas de Nostalgia e O Sacrifício.
O relato sucinto dos caminhos percorridos por Tarkovsky para a formulação do roteiro diz muito sobre sua forma de trabalho, sua concepção da função da arte e do papel do artista. Muita coisa veio a ser pensada, formulada e realizada ao longo do próprio processo de filmagem. Obviamente O Espelho marca uma guinada na prática fílmica do autor, “os roteiros dos meus filmes anteriores foram mais claramente estruturados” (2002, p.157). No caso deste, os princípios foram outros: ele não seria “elaborado e planejado antecipadamente”; “veríamos primeiro sob quais condições o filme adquiriria forma por si próprio: dependendo das tomadas, do contato com os atores, da construção dos sets etc” (2002, p.157). O principal nesta experiência, segundo o relato do autor, foi “desenvolver uma clara percepção da atmosfera”, bem como uma visão do “estado interior, a tensão interior específica das cenas a serem filmadas e da psicologia dos personagens” (2002, p.157). O filme O Espelho é um filme de cerca de 200 tomadas de seqüências longas. Durante o processo de montagem, conta o autor, chegaram a pensar que o filme não se sustentaria e não ficaria de pé. Não conseguiam imprimir unidade, nem conexões internas e nem lógica nenhuma até que num “belo dia, quando, de certa forma, tentávamos fazer uma última e desesperada recomposição – ali estava o filme” (2002, p.138). A sensação narrada por Tarkovsky é do acontecimento de um milagre, de repente, “o material adquiriu vida, as partes começaram a funcionar organicamente, como se unidas por uma corrente sangüínea, (...) o próprio tempo, fluindo através das tomadas, acabara por harmonizar-se e articular-se” (2002, p.138). Sobre o filme, Tarkovsky afirma que: O Espelho é também a história da velha casa onde o narrador passou sua infância, da fazenda onde ele nasceu e onde viveram seu pai e sua mãe. Esta casa, que com o passar dos anos se transformara em ruínas, foi reconstruída, “ressuscitada” a partir de fotografias da época e dos alicerces que ainda sobreviviam. Assim, acabou ficando exatamente como fora quarenta anos antes. Quando mais tarde levamos até lá minha mãe, que passara a infância naquele lugar e naquela casa, sua reação superou todas as minhas expectativas. O que ela experimentou foi uma volta ao seu passado, e isso me deu a certeza de que estávamos no caminho certo. A casa despertou nela os sentimentos que o filme pretendia expressar...” (2002, p.158).
Grande parte da matéria prima do filme O Espelho vem da experiência autobiográfica do autor. Entretanto, o modo como Tarkovski o faz, imprime “a autoridade da terceira pessoa da arte da narrativa” (LE FANU, 1987, p.69). Mark Le Fanu em sua obra The Cinema of Andrei Tarkovsky (1987) analisa os principais aspectos da
poética deste filme que podem revelar a sensibilidade refinada do cineasta. Há recorrências por exemplo de imagens dos elementos da natureza: o fogo (casa pega fogo em O Espelho e em O sacrifício, em Nostalgia, um homem põe em seu corpo), água – em suas diversas possibilidades, poças d’água, copos d’água, chuvas, rios e lagoas, cisternas etc, a terra e o ar nas paisagens e nos ventos que fazem vibrar árvores e folhas. Imagens de espelhos e demais superfícies refletoras, da presença de sonhos, de rememorações do passado (flashback). Há uma seqüência que mostra uma espécie de “recordação mística” (p.72): “o pai do narrador volta para casa depois de uma longa ausência, quando a mãe do narrador lava seus cabelos numa bacia”. Neste momento, água começa a escorrer do telhado e pelas paredes, pedaços de blocos de construção caem do teto, ela anda alegremente através de uma “tempestade dentro de casa”. Nós a vemos rapidamente num espelho comprido: então num outro espelho no outro lado do quarto, sua imagem é transformada na de uma mulher envelhecida (LE FANU, 1987, p.72). Num segundo momento de recordação do passado, o espelho aparece novamente: ocorre quando Natalia, a esposa do narrador, questiona seu marido sobre as razões de o casamento deles terem se rompido. Aqui, a conversação é conduzida enquanto ela se olha num espelho e, a certa altura, ela sopra sobre ele e apaga a umidade com seus dedos2 (LE FANU, 1987, p.72).
Um terceiro flashback ocorre mais tarde no filme, durante a guerra, quando o garoto de pés descalços e sua mãe chegam à casa de um vizinho. Enquanto a mãe vai para outro quarto barganhar com a dona da casa a venda de seus brincos, o jovem Alexei é deixado sozinho. “É hora do crepúsculo; a chama no lampião se agita e se extingue. A face do garoto reflete-se intensamente no espelho pendurado sobre uma lareira. É um momento de memória e mistério” (LE FANU, 1987, p.72). Poética da imagem Nas seqüências de rememoração da infância evocadas acima, algo nos afeta de forma poderosa. Algo faz com que alguma coisa interna se agite cambaleante até nos deixar meio extasiados ou meio transtornados. Compreendemos tudo que se 2
Tradução feita pela autora. Cf. citação no original em inglês: “...when Natalia, the narrator’s wife (Margarita Terekhova de novo, em seu papel “no presente”), questions her husband about the reasons for their marriage breaking up. Here the conversation is conducted as she glanced at herself in the looking glass, at one stage breathing on it and rubbing out the moisture with her fingers (p.72).
passa ali, mas não de forma racional. A compreensão se dá mais como uma espécie de insight. Dependendo da intensidade daquilo que nos afeta, pode-se ter uma correspondência física mesmo: nossa respiração fica alterada (mais acelerada), o coração começa a bater mais rápido, os olhos ficam marejados. Perguntamo-nos interiormente como ele teve coragem de fazer aquilo, porque sentimo-nos tão expostos. Essas cenas parecem querer revelar-nos nossa própria fragilidade de uma forma tão sincera e honesta, que nos comove: nem sempre uma revelação que queremos ou que nos sintamos preparados para ter sobre a vida e a existência humanas, devido a dores profundas que ela enseja. O que se encontra nessas composições visuais é a forma de Tarkovsky de dar realidade a sentimentos ou a percepções tão subjetivas (dele), que ao se aproximar de uma Verdade, tornam-se também nossos sentimentos e nossas percepções. Para isso ele rompe com o realismo da utilização do tempo “real e objetivo” que costuma marcar as obras cinematográficas em geral. Ele faz um uso muito particular do tempo, criando outros ritmos e espaços que nos fazem transitar do interno ao externo de forma transparente e obscura ao mesmo tempo: estamos nos deparando enfim com o que estamos tentando definir como imagem poética. O poema é tanto a parte material da poesia, quando seu modus operandi, ou seja, é aquilo que faz suscitar no sujeito a poesia. Do mesmo jeito, a imagem poética é o suporte material e o modus operandi da poesia no cinema, aquilo que faz suscitar no sujeito um estado poético. De acordo com a teoria da poética da imagem de Tarkovsky, a imagem artística tem que ser capaz de “avança[r] para o infinito, e leva[r] ao absoluto” (p.122). O autor, em suas reflexões sobre a obra de arte, assevera que embora se trate de um conceito sintagmático difícil de ser formulado e compreendido – “não dá para ser expresso por meio de uma tese precisa” – a idéia de imagem artística pode ser entendida apenas por meio da arte: quando o pensamento é expressado numa imagem artística, isso significa que se encontrou uma forma exata para ele, a forma que mais se aproxima da expressão do mundo do autor, capaz de concretizar o seu anseio pelo ideal (2002, p.122).
Em sua meditação sobre a arte, o autor nos ensina que “a imagem artística é sempre uma metonímia em que uma coisa é substituída por outra”, o menor no lugar do maior: para referir-se ao que está vivo, o artista lança mão de algo morto; para falar do infinito, mostra o finito. Substituição [...] não se pode materializar o infinito,
mas é possível criar dele uma ilusão: a imagem (2002, p.42). A concepção de imagem artística de Tarkovsky passa por um processo profundo de autoconhecimento e de auto-percepção do sujeito e do mundo, e da relação entre o sujeito e o mundo, da verdade da existência e da vida. Sua percepção é de que todo o
nosso
passado
encerra
uma
verdade
singular:
“a
singularidade
dos
acontecimentos de que participamos, com a individualidade absoluta dos personagens com os quais nos relacionamos” (2002, p.122), só essa experiência do mundo da vida, particular e singularmente vivida, pode se tornar matéria bruta para o artista, porque ela é a nota dominante de cada momento da existência. Na leitura que Le Fanu faz da obra de Tarkovsky, ele enfatiza essa relação do cineasta com o passado e como ele valoriza a tradição: “nosso passado é nossa fortuna. Nós existimos como seres morais até o ponto em que possuímos, amamos e imitamos como ancestrais3” (1987, p. 73). O princípio vital é único em si mesmo e o artista deve tentar apreender esse princípio e torná-lo concreto. A cada vez, busca renová-lo, a cada nova tentativa de renovação, mesmo que frustrada, tenta-se “obter uma imagem completa da Verdade da existência humana”. Para o cineasta russo, a qualidade da beleza “encontra-se na verdade da vida, que o artista assimila e dá a conhecer de acordo com sua visão pessoal” (2002, p.122). De acordo com uma observação precisa da lógica da vida pode-se descobrir a “pulsação da verdade” e “seguir os caprichosos desvios da vida”. Tentando determinar a definição de imagem, o autor prossegue afirmando que imagem “é uma impressão da verdade, um vislumbre da verdade que nos é permitido em nossa cegueira” (2002, p.123). Assim, ela é indivisível e inapreensível e depende da nossa consciência e do mundo real que tenta corporificar. “Se o mundo for impenetrável, a imagem também o será” (2002,p.123). Ao falar da imagem que reproduz em sua estrutura a observação precisa da vida, Tarkovsky evoca como modelo a poesia japonesa, o haicai: “nesta, o que me fascina é a recusa em até mesmo sugerir a espécie de significado final da imagem, que pode ser gradualmente decifrado como uma charada”. No haicai, as imagens nada significam para além de si mesmas, por expressarem tanto, “torna-se quase impossível apreender seu significado final” (2002, p.124). Tarkovski conseguiu imprimir em suas obras, essa mesma lógica das imagens da poesia haicai, a mesma 3
Cf. LE FANU, M. (1987, p.73). “Our past is our fortune. We exist as moral beings in so far as we possess, love and imitate ascestors”.
simplicidade e exatidão com relação à observação da vida, a mesma estrutura plena de sentido, que não se deixa por causa desta mesma plenitude, agarrar por um significado único. Essa lógica da imagem poética está refletida nas cenas ao longo do filme todo. Apenas para citar algumas, além das já evocadas acima, podemos falar das seqüências que tratam das reminiscências da infância do cineasta em que Alexi, ainda criança, depara-se com o leite derramado; com a ventania externa (ao tentar entrar em casa para fugir da ventania, encontra suas portas trancadas); às cenas dos sonhos, das seqüências de reportagens e cine-jornais etc. Diante disso, pode-se afirmar que, para Tarkovsky, “uma verdadeira imagem artística oferece ao espectador uma experiência simultânea dos sentimentos mais complexos, contraditórios e, por vezes, mutuamente exclusivos” (2002, p.128). Com essa concepção, Tarkovsky confronta diretamente a vertente que considera a imagem como significado único, “mensagem” expressa pelo diretor; contrariamente, o cineasta russo afirma que imagem é “um mundo inteiro refletido como que numa gota d’água” (p.130). Com esse poder de síntese, a imagem artística é portanto única e singular em contraposição aos fenômenos da vida real que costumam ser destituídos de complexidades e grosseiramente banais (2002, p.132). Nesse sentido, a arte para o autor “não deve apenas refletir, mas transcender; seu papel é fazer com que a visão espiritual influencie a realidade” (2002, p.114). Nesse ponto, deparamos com um aspecto fundamental para se compreender a arte de Tarkovsky, por que ela, em última análise, está diretamente ligada a espiritualidade. Numa entrevista, perguntado sobre o que significa arte, Tarkovski responde que “antes de definir arte ou qualquer conceito, devemos responder a uma questão anterior: o que significa a vida do homem na Terra?” E a resposta a esta questão primordial mostra de que modo a espiritualidade está na base da concepção de obra de arte para Tarkovsky: Talvez estejamos aqui para melhorar a nós mesmos espiritualmente. Se nossa vida tende para este crescimento espiritual, então arte é algo que se toma de lá. Isto, é claro, de acordo com minha definição de arte. A arte poderia ajudar o homem neste processo. (...) A arte enriquece as próprias capacidades espirituais do homem e ele pode então despertar sobre si mesmo, para isso que nós chamamos de vontade livre (free will).
Nesse sentido, para Tarkovsky, “o artista nunca vai em busca de um método pelo método, ou apenas em nome da estética; ele é dolorosamente forçado a
desenvolver o método como um meio de transmitir com fidelidade a sua visão de autor acerca da realidade” (2002, p.120). Por fim, pode-se dizer que o artista enriquece o seu próprio arsenal com o objetivo de fomentar a comunicação e levar as pessoas a se compreenderem melhor, nos níveis intelectuais, emocionais, psicológicos e filosóficos mais elevados. Assim, também se pode dizer que os esforços do artista têm por objetivo melhorar e aperfeiçoar a vida das pessoas, de facilitar a sua compreensão mútua (2002, p.120).
Semelhante experiência está na base do filme “O Espelho”. A sensibilidade das imagens presentes no filme instaura instantaneamente um estado poético em seus espectadores. A capacidade de comunicação emocional da obra foi, sem dúvida, uma árdua “vitória sobre o silêncio” não apenas de Tarkovsky, mas de uma geração inteira de pessoas e famílias que viveram e presenciaram os horrores causados pela irracionalidade de um gesto como foi o da Segunda Guerra mundial.
Referência Bibliográfica ANTUNES, Y. “Imagem poética” in A imagem poética do nuevo teatro latinoamericano: os casos do TEC e LA CANDELÁRIA da Colômbia. Tese de doutorado defendida na USP, em 2007, Orientador: Prof. Dr. Sedi Hirano. LE FANU, M. The cinema of Andrei Tarkovsky. Londres: Instituto do Filme Britânico, 1987. TARKOVSKY, A. Esculpir o tempo. Trad. de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2ª. ed.,2002. Entrevistas dadas por Tarkovsky: http://www.youtube.com/watch?v=7Me--xHG-mQ&feature=related, captado em 10 de outubro de 2010. http://www.youtube.com/watch?v=V27XlEDLdtE, captado em outubro de 2010. Seqüência do filme “O Espelho”: http://www.youtube.com/watch?v=-pu49SYGRnk&feature=related