Orientar-se para o Jardim Julio Cesar Assis
2009
A Transfiguração na abside da basílica de São Apolinário em Ravena, século VI
“Na tradição cristã, a árvore da vida tem sido com frequência representada como a cruz e a cruz como a árvore da vida. Na igreja em que nos reunimos para cultuar no domingo pode existir na abside um lindo mosaico da transfiguração, com a montanha representada como um local do Paraíso: as árvores, as plantas, as flores e os pássaros. No centro, representando Cristo, está a cruz no lugar da árvore da vida. A transfiguração oferece um vislumbre do estado de Paraíso ao qual estamos retornando”1.
Paraíso e inferno não são dois lugares diferentes, mas uma mesma realidade além das palavras ou dos sentidos. Significam uma única experiência, originada da mesma fonte eterna, e percebida pelos seres humanos como duas situações diferentes. Esta experiência é a visão de Cristo na luz incriada de sua glória divina. O Paraíso é o Reino2.
“O caminho em direção a Deus passa por nossa humanização”3.
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Orientar-se para o Jardim Julio Cesar Assis Mestre em História das Idéias Universidade de São Paulo
[email protected] A volta do Filho do Homem será como um relâmpago que sai do Oriente e brilha no Ocidente4
Orientar-se é descobrir o Oriente, a origem5. No Oriente está o Jardim, onde as pessoas comungam com as Pessoas. A pessoa A pessoa é mistério indefinível. Autoconsciente, racional, com livre arbítrio e capaz de amar. São pessoais a Trindade, os anjos e os seres humanos6. A Trindade O Pai é princípio sem princípio do Filho e do Espírito Santo. A pessoa do Pai gera o Filho. Da pessoa do Pai procede o Espírito. O Espírito leva o amor paternal do Pai para o Filho e o amor filial do Filho para o Pai. O Filho não é o Pai, mas Ele é o que o Pai é. O Espírito não é o Filho, mas Ele é o que o Filho é. Os Três são Um em divindade e o Um é Três nas pessoas7. A Trindade é comunhão eterna8 e amorosa de pessoas divinas, que consciente e livremente cria “todas as coisas visíveis e invisíveis”9. Os anjos Os anjos são as criaturas centrais do mundo inteligível10, incondicionados pelo espaço e em duração temporal plena de eternidade. Intelectuais e diáfanos11, criados antes do mundo sensível e do ser humano, existem para glorificar a Deus, para sua própria felicidade e como mensageiros entre o divino e o humano.
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O mundo A vocação do mundo visível é a translucidez, revelar o Criador para o ente humano. O mundo foi criado “em prol do ser humano enquanto espírito encarnado e fator livre e consciente, capaz de utilizá-lo de modo contingente e guiá-lo rumo a um estado no qual o mundo se torne um meio totalmente elástico e transparente para o diálogo entre pessoas humanas, e entre elas e Deus enquanto suprema realidade pessoal”12. O ser humano O ser humano é a criatura central do mundo sensível sujeito a espaço e tempo. Soprando nele seu hálito vivificante, Deus o fez à “imagem e semelhança” de Sua natureza eterna13. A imagem de Deus no ente humano é estrutural e a semelhança conjuntural, dependente da ativação da estrutura com o exercício voluntário da virtude. “A Santa Trindade nos criou à sua imagem, a partir do modelo eterno que possuía em seu seio antes que o mundo fosse”14. Sendo a Trindade comunhão de pessoas divinas, o ser humano é pessoal e destinado a comungar com Deus e com as outras pessoas angélicas e humanas. No Jardim do Deleite Ícone do divino no mundo sensível, Adão foi ordenado ao serviço no santuário paradisíaco, preservando-o15. Era consciente, livre para acertar ou errar e naturalmente bom, mas ainda não amadurecera definitivamente suas virtualidades. “Para o ser humano, o mundo tinha a mesma transparência que tem para uma criança inocente – ainda que a criança, quando começa a fazer o mal, pode em breve colidir com a opacidade do mundo – mas o mundo não tinha a mesma transparência que tem para o santo que verdadeiramente venceu sua opacidade”16.
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As árvores no centro do Jardim “O simbolismo da Árvore é muito claramente que a Árvore é o mundo – a Vida em si – tendo seu tronco enraizado no desconhecido. Seus ramos, folhas, flores e frutos formam a multiplicidade de criaturas – ‘Eu sou a videira; vós sois os ramos’17 – que florescem da sempre fértil fonte da vida. A madeira [hylé] da Árvore é a matéria18, prima materia, da qual todas as coisas são feitas”19. No centro do Jardim duas árvores, uma cujo fruto se poderia comer, a Árvore da Vida, e a árvore da ciência do bem e do mal, cujo fruto ainda não se deveria tocar, pois seria mortal. As árvores são ícones de duas perspectivas na relação com o mundo sensível: “Os pais acima citados20 sugerem que pelas duas árvores devemos entender um único e mesmo mundo: visto através da mente movida pelo espírito, este mundo é a Árvore da Vida, que nos coloca em contato com Deus; mas visto e utilizado por uma consciência separada da mente movida pelo espírito, ele representa a árvore do conhecimento do bem e do mal, que separa o ser humano de Deus”21. Saindo do Jardim Fortificando-se com os frutos da Árvore da Vida, nossos ancestrais, já deificados22, poderiam então desfrutar da outra árvore23. Mas comeram prematuramente o fruto da árvore da ciência do bem e do mal, e “a condição humana conheceu, ao menos em sua realidade biológica, uma mutação catastrófica”24. O organismo sutil se densificou: “o Senhor Deus fez vestes de pele para Adão e sua mulher e os vestiu”25. As pessoas, que conheciam os semelhantes como sujeitos transparentes, tornaram-se indivíduos que os percebem como objetos opacos. Sendo o ser humano a criatura central e sujeito consciente do mundo sensível, este como um todo se solidificou26.
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“Deus criou o ser humano para a incorruptibilidade”27, mas ele corrompeu a si e à criação sensível: “Comeste da árvore cujo fruto Eu vos proibira de comer, maldita seja a terra por tua causa”. O Senhor “exilou o homem e a Oriente do Jardim do Deleite colocou querubins com uma espada flamejante para guardar o caminho da Árvore da Vida”28. A Árvore permanece no Paraíso O Paraíso continua existindo após a saída de nossos ancestrais: “Ao vencedor Eu darei a comer da Árvore da Vida que está no centro do Paraíso de Deus”29. “No centro da Cidade30, estendendo seus ramos sobre as margens do rio, está a Árvore da Vida, que dá frutos doze vezes ao ano; a cada mês ela frutifica e suas folhas servem para curar as nações. Não mais haverá maldição”31. O Paraíso é acessível aos santos em vida: “Felizes aqueles que cumprem seus mandamentos, para que tenham direito à Árvore da Vida, e possam entrar através dos portais da Cidade”32. Paulo foi “arrebatado ao Paraíso”, realidade outra que o inteligível e o sensível: “não sei se estava no corpo ou fora do corpo”33. No “terceiro céu”, o sanctum sanctorum paradisíaco, ouviu “palavras inefáveis” daquela Sabedoria que “é a Árvore da Vida para os que a alcançam e felicidade para os que a guardam”34.
A Porta Santa como Árvore da Vida; igreja ucraniana greco-católica, Polônia
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Da Árvore à Cruz “A Árvore da Vida, plantada por Deus no Paraíso, prefigurou esta honrosa Cruz, pois já que a morte veio através de uma árvore, era necessário que a vida e a ressurreição também fossem concedidas por uma árvore”35. Reza a tradição que Seth, filho de Adão e Eva, conseguiu junto ao anjo guardião sementes da Árvore da Vida. Um ramo que brotou da semente da Árvore “tornou-se o célebre báculo de Moisés36, que se transformou em uma serpente para confundir os mágicos egípcios; com o qual ele dividiu as águas do Mar Vermelho para que os filhos de Israel pudessem fugir em segurança das hostes de Faraó; sobre o qual ele pendurou nehushtan, a serpente de bronze, para que todos que a olhassem ficassem livres da praga das víboras, e com o qual ele bateu na rocha do deserto para que dela jorrasse água. Tornouse uma viga no grande templo erguido por Salomão, o Sábio. Com o tempo passou para a oficina de carpintaria de José, o padrasto de Jesus, e dele foi adquirido por Judas, o Traidor, o qual por fim entregou-o aos soldados romanos, que o usaram para a Cruz na qual crucificaram o Cristo – para a Cruz que se tornou a Cruz da Salvação”37. Na Cruz a natureza humana é purificada pelo sangue do Verbo encarnado e em Sua transfiguração e ressurreição liberta-se virtualmente das “vestes de pele”. Deixa de ser rígida e opaca, voltando a sua plasticidade e transparência originais. “Na ressurreição, nosso corpo será recoberto pela beleza da alma, a alma pela beleza do espírito e o espírito revestido da Glória de Deus”38. “A modalidade ‘densa’, ‘material’ do corpus natum (o corpo nascido da Virgem) deixa de ser manifesta: é reabsorvida em seu princípio psíquico, o qual por sua vez é reabsorvido em seu princípio espiritual. Eis porque o túmulo está vazio de um corpo”39. “A Transfiguração é a revelação da natureza já intrinsecamente gloriosa do Corpo de Cristo, revelação mantida secreta até a Ressurreição (Marcos 9:9). Nesta revelação as três testemunhas40 viram realizar-se em Jesus a união 7
transcendente da Torah exterior (Moisés) e da Torah interior (Elias), na medida mesmo em que a opacidade da carne do Homem-Deus muda-se em transparência e revela sua realidade luminosa: aqui o exterior e o interior, o exotérico e o esotérico são reconciliados”41. Voltando ao Jardim Como ir para além da banalidade opaca do mundo dos indivíduos42? Deixando de ser um indivíduo e convertendo-se em pessoa autoconsciente, racional, dotada de livre arbítrio e capaz de amar. Após a pessoa se orientar e voltar ao Jardim, saberá que “através de Cristo somos capazes de não apenas recuperar o estado de Adão antes da queda, mas também atingir outro ainda mais alto que este: o estado que Adão atingiria se não caísse”43. O Jardim está no Oriente e a passagem que leva à Árvore da Vida no Oriente do Oriente44. Do sanctum sanctorum do Jardim procede o Verbo encarnado: “Graças à misericórdia interior de nosso Deus, o Oriente que vem do alto nos visita, para iluminar os que vivem nas trevas e na sombra da morte, para guiar nossos passos no caminho da paz”45.
Mosaico irlandês contemporâneo Salve Senhora, carro de fogo para o Verbo e Paraíso vivo, contendo em seu seio o Senhor, madeiro da Vida46
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Bibliografia Barker, Margaret. “Paradise Lost”; “The Secret Tradition”; “Fragrance in the making of sacred space”. www.margaretbarker.com/Papers/default.htm
Boon, Nicolas. Au coeur de l’écriture. Paris, 1987. Borella, Jean. Ésotérism guénonien et mystère chrétien, Lausanne, 1977. The Secret of the Christian Way. Albany, 2001. Gregório de Nazianzo. The Fifth Theological Oration, IX. www.ccel.org/ccel/schaff/npnf207.iii.xvii.html
Guénon, René. Le règne de la quantité et les signes des temps, cap. XVII. Formes traditionelles et cycles cosmiques. Paris, 1986. Irineu de Lion, Against Heresies, IV. www.newadvent.org/fathers/0103400.htm
João de Damasco.The Orthodox Faith. St. John of Damascus Writings. The Fathers of the Church vol. 37. Washington, 1981. www.newadvent.org/fathers/3304.htm
Lossky, Vladimir. Orthodox Theology. Crestwood, 1978. Metallinos, George. “Paradise and hell according to orthodox tradition”. www.oodegr.com/english/swthria/kol_par1.htm
Rose, Seraphim. Genesis, creation and early man. Platina, 2000. Staniloae, Dumitru. The Experience of God, II. Brookline, 2000. Thunberg, L. Microcosm and mediator: the theological anthropology of Maximus the Confessor. Chicago, 1995. Watts, Alan. Myth and ritual in Christianity. Boston, 1968.
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Barker, “Paradise Lost”. Metallinos. 3 Staniloae p. 26. 4 Mateus 24:27. 5 A raiz hebraica QDM exprime a idéia de “origem”, seja a origem da trajetória solar ou uma origerm temporal. Orientar-se é tanto descobrir o Oriente como a tradição ortodoxa. Barker, “Fragrance in the making of sacred space”; Guénon, Formes traditionelles et cycles cosmiques, p. 63-64. Cf. as palavras indo-européias origem, oriente, primordial e outras. 6 Racional: dotada de logos, logicidade; a natureza angélica é “racional, inteligente, livre”. The Orthodox Faith. St. John of Damascus Writings, p. 205. 7 Gregório de Nazianzo, The Fifth Theological Oration, IX. 8 Eterno não é o perene, mas o que está fora do tempo; tudo é simultâneo. 9 Credo Niceno-Constantinopolitano. 10 No mundo invisível há entes vivos periféricos aos anjos, como os jinn do islamismo, assim como no mundo visível há seres vivos periféricos aos seres humanos, os animais e plantas. 11 Incorpóreos quanto aos humanos e às criaturas sensíveis periféricas e corpóreos quanto a Deus. Corporalidade sem “vestes de pele”. Lossky p. 81. 12 Staniloae p. 78. 2
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“Elohim disse: Façamos o ser humano à nossa imagem e semelhança”. Gênesis, 1:26. Elohim é o plural de El (Senhor). “O ser humano é um organismo composto de alma e carne, formado à semelhança de Deus e moldado por Suas mãos, o Filho e o Espírito Santo, aos quais Ele disse: ‘Façamos o ser humano’“. Irineu de Lion, Against Heresies, IV. Sabedoria 2:23. 14 João de Ruysbroeck cf. Borella, Ésotérisme, p. 377. Este modelo eterno é o Verbo. 15 Gênesis 2:15. “Cultivar” a oração e “guardar” seus frutos; Rose p. 170. “Guardar o Jardim” é uma reiteração, pois “jardim” significa “guardado” cf. o francês garder e o inglês garden. O hebraico pode ser traduzido como cultuar (abad) e preservar (shamar); Barker, “Paradise Lost”. “Cultivar” e “cultuar” procedem da mesma raiz indo-européia. 16 Staniloae p. 104. 17 João 15:5. 18 Madeira deriva do latim materia, de mater, mãe. 19 Watts p. 160. 20 Basílio de Cesareia (c. 330-379), Máximo Confessor (c. 580-662), Nicetas Stetatos (séc. XI) e Gregório Palamas (12961359). 21 Staniloae p. 166-167. 22 Semelhantes a Deus não pela natureza, mas pela recepção da graça divina incriada. 23 Contemplar os logoi da criação sensível. Thunberg p. 165. 24
Lossky p. 67.
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Gênesis 3:21. Guénon, “Solidification du monde”, Le règne de la quantité, cap. XVII. 27 Sabedoria 2: 23. 28 Gênesis 3:17 e 3:24. Ver nota 31. 29 Apocalipse 2:7. 30 A Jerusalem Celeste. 31 Apocalipse 22:1-3. “Não haverá mais maldição”; ver nota 28, Gênesis 3:17. 26
32 33
Apocalipse 22:14.
2 Coríntios 12:4. A posição tradicional dos Pais da Igreja é a realidade do Paraíso, o que não impede uma interpretação alegórica; Thunberg p. 383. 34 Provérbios 3:18. Lossky p. 15. 35 The Orthodox Faith. St. John of Damascus Writings, p. 352. 36 Chamado explicitamente de “báculo de Deus”. Êxodo 4:20. 37 Watts p. 54-55. João de Damasco confirma esta tradição no livro IV de The Orthodox Faith, Writings p. 352. João Maximovitch transmite a mesma tradição (www.orthodoxphotos.com/readings/john/3/cross.shtml). “Tradição” vem do latim traditio, “trazer”: “os apóstolos nos trouxeram muitas coisas que não foram escritas”, Writings p. 354. Ver notas 34 e 36. Êxodo 7:12, 14:16-17, 17:6; Números 21:9; 1 Reis 6:31-33; Ezequiel 9:4. Também no hinário cristão oriental. 38 Boon, Au coeur de l’écriture, p. 83. 39 Borella, The Secret, p. 195. 40 “Tiago e João foram lembrados na tradição da Igreja como tendo sido sumos sacerdotes e Pedro como o primeiro Bispo de Roma”. Barker, “The Secret Tradition”. 41 Borella, Ésotérisme, p. 229. 42 Lossky p. 43.
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Rose p. 190. Gênesis 2:8 e 3:24. 45 Lucas 1:78-79. O Reino é shalom, paz. 46 Akathistos (Hino à Theotokos). 44