O Verbo De Muhammad.doc

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Sobre a Sabedoria da Singularidade (al-hikmat al-fardiyah) no Verbo de Muhammad* [A essência de] sua sabedoria é singularidade [ou “incomparabilidade”], pois ele foi o indivíduo mais perfeito do gênero humano1. É por isso que o ato criador (al-amr) começa com ele [enquanto protótipo permanente] e se completa com ele; pois, por um lado, ele era “profeta enquanto Adão estava ainda entre a água e a argila” 2, e, por outro lado, foi, em sua existência terrestre, o “selo” (khātim) de todos os profetas3. O primeiro número singular, de que derivam todos os outros, é o ternário4. Ora, Muhammad era o primeiro símbolo de seu Senhor, pois havia recebido as “palavras universais” que são os conteúdos dos nomes que Deus ensinou a Adão; tinha ele também a natureza tríplice do símbolo, sendo este [na realidade] o símbolo dele mesmo5. É pelo fato de a realidade essencial (haqīqah) de Muhammad comportar a singularidade primordial — manifesta em tudo quanto é naturalmente tríplice — que ele disse ao falar do amor, fonte da existência: “Três coisas do vosso mundo, dentre todas as coisas tríplices que ele contém, me foram feitas dignas de amor”, a saber, as mulheres, os perfumes e a oração, na qual ele encontrava “o frescor de seus olhos”6.

Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. Na perspectiva de Ibn ‘Arabi, isso não significa que Jesus tenha sido menos perfeito que Muhammad; significa somente que a perfeição do primeiro se situa de certo modo fora da série dos seres humanos, uma vez que o Cristo não teve pai humano. O Profeta, por outro lado, era inteiramente homem, tanto do lado paterno quanto do materno. Não é preciso dizer que estas considerações não alteram o sentido do dogma cristão, que afirma a humanidade perfeita do Cristo. 2 Palavra do Profeta. 3 Ele é chamado “Selo dos Profetas” porque, depois dele, não houve nem haverá outros profetas até o fim do ciclo atual da humanidade. O papel de “selo” implica a síntese de tudo quanto o precede: a mensagem de Muhammad confirma e resume a dos profetas anteriores. Por sua realidade espiritual, logo “interior”, Muhammad se identifica necessariamente com o Verbo eterno; por outro lado, seu papel cíclico “completa” a manifestação terrestre do Verbo. Essa polaridade entre os aspectos principial e temporal do Profeta se situa numa “dimensão” cósmica diferente da das duas “descidas” do Cristo, a primeira das quais anunciou o final do ciclo atual, ao passo que a segunda abrirá o ciclo futuro. 4 Fard significa ao mesmo tempo “singular” e “ímpar”. O primeiro número ímpar é o três, visto que a unidade não é um número, mas o princípio mesmo da série dos números. O primeiro ternário metafísico é o do Conhecedor (al-‘āqil), o Conhecido (al-ma‘qūl) e o Conhecimento (al-‘aql); o primeiro ternário cósmico é o do Cálamo (a essência ativa), da Tábua Guardada (a substância passiva) e do Livro Universal (o produto de ambos). 5 De modo que o símbolo comporta uma essência, uma forma aparente e aquilo que liga esta àquela. A significação lógica do símbolo coincide com sua essência ontológica. 6 Metáfora árabe que significa “a consolação”. * 1

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Mencionou as mulheres em primeiro lugar e a oração em último lugar porque a mulher, quanto à sua origem, é uma parte do homem, que a manifestou7, e porque o homem deve conhecer sua própria alma antes de poder conhecer a seu Senhor; isto porque seu conhecimento do Senhor é como o fruto do seu conhecimento de si mesmo, donde a palavra do Profeta: “Quem conhece a si mesmo, conhece a seu Senhor (man ‘arafa nafsahu faqad ‘arafa rabbah).” Disto se pode deduzir, quer que Deus não pode ser conhecido e que não é possível alcançá-Lo — o que é perfeitamente válido —, quer que Deus pode ser conhecido. É preciso que saibas, em primeiro lugar, que não te conheces a ti mesmo; depois, que tu te conheces e que, por conseqüência, conheces a teu Senhor. Muhammad era o símbolo mais evidente de seu Senhor, assim como cada parte do universo [do qual Muhammad representa a síntese qualitativa] é o símbolo de sua origem, que é seu senhor. As mulheres lhe “foram feitas dignas de amor” no sentido de que ele se inclinava para elas com o mesmo afeto que o todo tem por suas partes. É isso que, em sua realidade íntima e do ponto de vista divino, quer dizer a palavra de Deus sobre a criação do homem: “E quando Eu tiver moldado sua forma e lhe insuflar o Meu espírito.”8 Por outro lado, Deus fala do seu intenso desejo de encontrar-se com o homem, pois disse a Davi a respeito daqueles que O desejam: “Ó Davi, sou Eu que tenho por eles um desejo ainda mais intenso.”9 O que Ele deseja é um encontro particular, aquele do qual se diz no hadīth sobre o Anticristo: “Nenhum de vós verá seu Senhor sem antes morrer.” É preciso, pois, que o desejo de encontrar a Deus, naqueles que possuem essa qualidade, seja verdadeiramente intenso. Quanto ao desejo de Deus por aqueles que Lhe são próximos — e que porém Ele já vê como vê todos os seres, mas quer que eles O vejam igualmente, o que é impossibilitado pelo estado deles, — esse desejo, dizíamos, é análogo ao sentido da palavra divina: “Nós os provaremos até que saibamos”10; e, não obstante, Deus sabe todas as coisas. Mas Ele deseja que se manifeste essa qualidade [divina] particular que não pode se manifestar senão na morte [daqueles que O amam]. Por essa qualidade, Ele põe à prova o desejo que eles têm d’Ele, como Ele mesmo diz no hadīth sobre a hesitação divina, palavra que se refere igualmente àquilo de que falamos aqui: “Em tudo que faço, não há nada em que hesite tanto quanto hesito em arrebatar a alma de meu servo crente, que tem horror à morte; e Eu tenho horror de lhe fazer mal; e no entanto é preciso que ele Me encontre.” Exprimindo-se assim, Deus consola o servo; não diz: “e, no entanto, é preciso que ele morra”, para não o afligir com a idéia da morte; mas como o homem só pode encontrar a Deus depois da morte, — segundo a palavra do Profeta: “Nenhum de vós verá seu Senhor sem antes morrer”, — Ele diz: “e, no entanto, é preciso que ele Me encontre”. Ora, Deus nos fez saber que Ele insuflou no homem Não é em sua essência que a mulher é uma parte do homem, uma vez que sua essência é independente da polaridade dos sexos; é em sua determinação cósmica, que é hierarquicamente inferior á do homem. 8 Alcorão, XV, 29. 9 Segundo uma palavra do Profeta. 10 Alcorão, XLVII, 33. 7

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Seu espírito, de tal modo que é a Si mesmo que Ele deseja; pois acaso não criou o homem em Sua “forma”, o que significa que ele é gerado de Seu Espírito? Pelo fato de o homem, em sua constituição natural, ser composto dos quatro elementos, que se chamam também “humores” sob o aspecto de sua manifestação [orgânica] no corpo, o Sopro divino, abrasando-se em contraposição à umidade contida no corpo humano, conferiu ao espírito humano sua natureza ígnea11. Por esse motivo Deus dirigiu-Se a Moisés sob a aparência de fogo, depois de provocar nele o desejo de procurar fogo12. Se a constituição humana participasse diretamente da Natureza universal [que engloba também os anjos], o Espírito nela insuflado seria [pura] luz. Por outro lado, se Deus simbolizou [Seu ato criador] pelo ato de soprar, é porque fez alusão à Expiração do Absolutamente Bom [nafas ar-rahmān, ou seja, a expansão misericordiosa das possibilidades de manifestação a partir de seu estado de latência no princípio]13. Pela Expiração divina, a determinação essencial do homem se fez manifesta; e por causa do receptáculo predisposto o Espírito não apareceu como luz (nūr), mas como fogo (nār). O Sopro divino, pois, é inerente àquilo pelo que o homem é homem [no sentido de sua qualidade humana primordial]. Dessa natureza [primordial do homem] Deus fez derivar uma segunda “pessoa”, criada em sua forma, e a chamou mulher. Logo que esta surgiu na forma do homem [ou como uma imagem de sua “forma” essencial], este se inclinou para ela, pois todo ser ama a si mesmo; e ela se voltou para ele como para sua terra natal. Assim, as mulheres lhe “foram feitas dignas de amor”, do mesmo modo que Deus ama aquele que criou “em Sua forma”, a tal ponto que ordenou aos anjos de luz, com todo o seu poder e na elevação de seu grau e de sua natureza, que se prostrassem diante dele 14. É daí que vem esse parentesco [íntimo entre Deus e o homem]. É a forma [no sentido puramente qualitativo do termo] que constitui o parentesco mais elevado, mais fulgurante e mais perfeito, pois ela é de algum modo a “reprodução” da Existência divina, do mesmo modo que, pela sua existência, a mulher reproduz o homem e faz dele um dos pólos de um casal. Há assim um ternário: Deus, o homem e a mulher; o homem tende a seu Senhor, que é sua origem, como a mulher tende ao homem. Deus “fez com que as mulheres lhe fossem dignas de amor” do mesmo modo que Ele mesmo ama aquele que criou “em Sua forma”. O amor [divino] não tem por objeto outra coisa senão aquilo que proveio do ser que ama; e o amor do Profeta provém somente daquilo do qual ele mesmo proveio, ou seja, de Deus; é por isso que ele disse: “elas me foram É isso que constitui a diferença entre o espírito transcendente e o espírito vital, sendo a qualidade ígnea coextensiva com a vida individual sutil e psíquica. 12 Alcorão, XX, 8-10. 13 “O Absolutamente Bom [ou, o Clemente] (ar-rahmān) se assentou sobre o trono” (Alcorão, XX, 4); ora, o trono simboliza a manifestação integral; é, portanto, sob o Seu aspecto de beatitude-misericórdia (ar-rahmāniyah) que Deus “desenvolve” a manifestação universal. Sobre a teoria da Expiração divina, vide Introducrtion aux doctrines ésotériques de l’Islam, p. 69. 14 Alcorão, II, 30-34. 11

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feitas dignas de amor”, e não que as amou por si mesmo; pois seu amor era ligado a seu Senhor, do qual havia ele recebido sua “forma” — e inclusive seu amor por sua mulher, à qual amava em virtude do amor de Deus por ele, por identificação com o Amor divino. Quando o homem ama a mulher, ele deseja a união, ou seja, a união a mais completa possível no amor; e, na forma composta de elementos, não há união mais intensa que a do ato conjugal. Por isso, a volúpia invade todas as partes do corpo, e por isso também a lei sagrada prescreve a ablução total [do corpo depois do ato conjugal]; a purificação deve ser total como fora total a extinção do homem na mulher quando do arrebatamento da volúpia [da união sexual]. Como Deus tem ciúmes de seu servo, Ele não tolera que este creia gozar de outra coisa que não seja Ele mesmo. Purifica-o, portanto, [pelo rito prescrito], para que ele se volte, em sua visão, para Aquele no qual na realidade se extingüiu — pois não há outra coisa senão essa. Quando o homem contempla Deus na mulher, sua contemplação incide sobre aquilo que é passivo; quando O contempla em si mesmo, em vista do fato de que a mulher procede do homem, ele O contempla no que é ativo; e quando O contempla n’Ele mesmo, sem a presença de nenhuma forma provinda d’Ele, sua contemplação corresponde a um estado de passividade em relação a Deus, sem intermediário algum. Assim, sua contemplação de Deus na mulher é a mais perfeita, pois então é a Deus na qualidade de ativo e passivo que ele contempla, ao passo que, na contemplação puramente interior, contempla-O somente em modo passivo. Também o Profeta — sobre ele a bênção e a paz! — teve de amara as mulheres por causa da perfeita contemplação de Deus nelas. Não é possível, de modo algum, contemplar Deus diretamente sem a presença de algum suporte [sensível ou espiritual], pois Deus, em Sua Essência absoluta, é independente dos mundos15. Ora, como a realidade [divina] é inacessível sob esse aspecto [da Essência], e como toda contemplação (shahādah) só existe numa substância, a contemplação de Deus nas mulheres é a mais intensa e mais perfeita; e a união mais intensa [na ordem sensível, que serve de suporte para essa contemplação] é o ato conjugal. Esse ato corresponde à projeção da Vontade divina sobre aquele que Ele “criou em Sua forma”, no momento mesmo em que o criou, para nele reconhecer-Se a Si Mesmo, e o desenvolveu, modelou-o harmoniosamente e insuflou-lhe o Seu Espírito, que não é outro senão Ele, a tal ponto que o exterior [do homem primordial] é criatura e seu interior é Deus. Sendo assim, Deus dotou o homem da faculdade de dispor desse templo [o corpo humano] do mesmo modo que Deus “dispõe da ordem desde o céu” — que é o degrau supremo da existência — “até a terra” — que é o que há de mais baixo, ocupando o elemento terra a base da hierarquia dos elementos16. A contemplação (shahādah ou mushāhadah) implica uma certa polaridade entre sujeito e objeto, polaridade essa que só o Conhecimento essencial pode ultrapassar; mas, nesse caso, já não existe nem o sujeito individual nem o mundo objetivo. 16 Alcorão, XXXII, 4. 15

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Falando das mulheres, o Profeta chamou-as an-nisā, um plural ao qual não corresponde nenhum singular17; pois disse: “Três coisas do vosso mundo me foram feitas dignas de amor, as mulheres (an-nisā), etc.”, e não: “a mulher” (al-mar‘ah), fazendo assim alusão ao fato de que as mulheres ocupam um grau ontológico posterior ao seu; a raiz da palavra nisā, com efeito, significa vir depois, ser a última. Ora, o Profeta amou as mulheres precisamente em razão do seu grau ontológico, pois elas eram como o receptáculo passivo de seu ato e situavam-se em relação a ele como a Natureza universal (at-tabī‘ah) em relação a Deus; é, com efeito, na Natureza universal que Deus faz eclodir as formas do mundo pela projeção de Sua vontade e pelo Mandamento [ou Ato: al-amr] divino, o qual se manifesta como ato sexual no mundo das formas constituídas pelos elementos, como vontade espiritual (al-himmah) no mundo dos espíritos de luz e como conclusão lógica 18 na ordem discursiva; tudo isso não é outra coisa senão o ato de amor do ternário primordial refletindo-se em cada um desses aspectos. Aquele que ama as mulheres dessa maneira as ama pelo amor divino; mas aquele que só as ama em virtude da atração natural priva a si mesmo do conhecimento intrínseco dessa contemplação. O ato sexual será para ele uma forma sem espírito; o espírito, bem entendido, continua sempre imanente na forma como tal, mas permanece imperceptível para aquele que se aproxima de sua esposa — ou de qualquer mulher — movido somente pela volúpia, sem conhecer o verdadeiro objeto de seu desejo. Um tal homem é tão ignorante a respeito de si mesmo como seria um estranho total que nunca o tivesse conhecido. As gentes sabem que sou cheio de amor; Mas não sabem quem eu amo... Isso se aplica muito bem àquele que ama movido somente pela volúpia, ou seja, aquele que ama o suporte da volúpia, a mulher, mas permanece inconsciente do sentido espiritual daquilo de que se trata. Se ele o conhecesse, saberia por que goza e saberia também quem goza [realmente] dessa volúpia19; assim, seria [espiritualmente] perfeito20. Assim como a mulher [em sua condição natural, não em sua essência inteligente] ocupa um grau inferior ao do homem21, — de acordo com a palavra corânica: “Quanto aos homens, eles precedem [em sua Segundo o comentador an-Nābulūsi, a forma coletiva exprime sempre a passividade. 18 Ou seja, como a “cópula” das premissas, que engendram a conclusão. 19 Pois a Realidade divina é ao mesmo tempo o verdadeiro sujeito e o verdadeiro objeto de todo ato primordial. 20 Pela união, em sua consciência espiritual, dos complementaes primordiais. 21 Em seus Futūhāt, Ibn ‘Arabi afirma que, a rigor, a mulher é virtualmente capaz das mesmas perfeições espirituais que o homem, como prova a existência de mulheres “perfeitas como a mãe do Cristo, a esposa de Faraó e a filha do Profeta”: é a condição cósmica das mulheres que é inferior à do homem; além disso, as mulheres espiritualmente perfeitas são mais raras do que os homens que atingiram essa perfeição. 17

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dignidade legal] as mulheres em um grau”22, — o ser criado “na forma de Deus” ocupa um grau hierarquicamente inferior ao d’Aquele que o criou “em Sua forma”, malgrado a identidade de forma que existe entre eles. É precisamente por esse grau, que distingue o Criador de Sua criação, que Deus é “independente dos mundos” e é o primeiro agente; pois o segundo agente é a “forma”, embora não tenha, evidentemente, o papel de princípio autônomo. É assim que as determinações essenciais (al-a‘yan) se distinguem umas das outras em virtude dos seus graus [ontológicos], e é a exemplo disso que todo conhecedor [de Deus] atribui a cada coisa real o seu grau de realidade; também Muhammad — sobre ele a bênção e a paz! — teve de amar as mulheres por amor divino. Quanto a Deus, Ele “dá a cada coisa sua natureza própria” 23, e logo sua realidade própria; o que equivale a dizer que Ele só dá a cada coisa aquilo que lhe é devido essencialmente em virtude daquilo mesmo que ela representa [enquanto possibilidade]. O Profeta mencionou as mulheres em primeiro lugar porque elas representam o princípio passivo e porque a Natureza universal [que é o princípio plástico universal] precede tudo quanto se manifesta a partir dela pela [ação da] “forma”. Ora, na realidade, a Natureza universal não é outra senão a Expiração de Absoluta Bondade (an-nafas ar-rahmāni) na qual se desenvolvem as formas do mundo, da mais alta à mais baixa, pela infusão (suryān) do Sopro divino na matéria prima (al-jawhar al-hayūlānī); é o que acontece no que diz respeito ao mundo dos corpos [terrestres e celestes]; quanto à infusão do Sopro divino [na Natureza total] quando da manifestação dos espíritos de luz e das condições [gerais da existência], trata-se de algo de outra ordem24. Em seu dito [“três coisas do vosso mundo...”], o Profeta fez prevalecer o feminino ao masculino, insistindo assim no papel das mulheres; pois, para dizer “três”, ele disse thalāthun, palavra que em árabe só se emprega para designar uma coletividade feminina; entretanto, das três coisas enumeradas [as mulheres, o perfume e a oração], uma é masculina, a saber, o perfume; e os árabes sempre fazem prevalecer o masculino; dizem, por exemplo: “as meninas e o menino são belos”, e não: “belas”, sem dar atenção à preeminência numérica do elemento feminino numa coletividade. Ora, o Profeta era versado em língua árabe [e estava, pois, perfeitamente consciente do emprego inusitado do termo], e quis fazer alusão à significação espiritual desse amor, que lhe havia sido inspirado sem que ele o tivesse escolhido voluntariamente; foi assim, ademais, que Deus lhe “ensinou” o que ele “não sabia”25 antes, e que o favor divino para com ele foi imenso. Exprimindo-se dessa maneira, pois, fez prevalecer o feminino ao masculino; e quem melhor do que ele conheceria as verdades principiais Alcorão, II, 228. Alcorão, XX, 52. 24 Disso se conclui que, para Ibn ‘Arabi, a Natureza Universal (tabī‘at al-kull) é análoga ao que os hindus chamam de Prakriti, ao passo que a matéria prima (aljawhar al-hayūlānī) corresponde somente à substância plástica do mundo formal, tal como a entendiam também os cosmólogos helenizantes. 25 Alcorão, XCVI, 4. 22 23

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e seria mais perspicaz em matéria de lei? Por fim, fez da última das três coisas mencionadas o complemento da primeira pelo gênero feminino e inseriu a realidade masculina entre as duas, pois começou pela menção das mulheres e terminou pela da oração, sendo ambas as noções do gênero feminino; já o perfume acha-se mencionado entre as duas, por analogia com a situação ontológica do próprio Profeta: o homem, [com efeito], se encontra situado como intermediário entre a Essência (dhāt), da qual emana, e a mulher, que emana dele; situa-se portanto entre duas entidades femininas, uma das quais, a Essência, é feminina por sua noção, enquanto a outra é realmente feminina, da mesma maneira que, na frase enunciada pelo Profeta, as mulheres são realmente femininas e a oração só é feminina verbalmente; o perfume situa-se entre as duas como Adão se situa entre a Essência que o manifesta e Eva que se manifesta a partir dele. De resto, se preferires, podes substituir “Essência” por “Qualidade” ou por “Potência”; seja qual for o termo que escolheres para a primeira entidade, ele será sempre feminino, mesmo que sigas o costume de certos [cosmólogos] que fazem de Deus “a causa” do universo, pois “a causa” é igualmente um termo feminino26.  Quanto à significação espiritual do Perfume, que o Profeta menciona depois das mulheres, — por causa dos perfumes da existência 27 que se encontram nas mulheres, o que motiva o dito popular: o melhor perfume é o abraço da bem-amada, — essa significação é a seguinte: o Profeta foi criado como o adorador (al-‘abd) por excelência, que não levantou jamais a cabeça para se atribuir a senhoria 28, mas que, pelo contrário, não deixou de se prostrar e de permanecer em pé diante de Deus, no estado de [perfeita] receptividade, até que Deus extraísse dele o que nele havia criado e lhe conferisse a função ativa no mundo das emanações (anfās) espirituais que são os perfumes da existência [os quais se renovam sem cessar a partir dos arquétipos]. É por isso que o perfume lhe foi feito digno de amor e foi mencionado por ele depois das mulheres. Por essa ordenação [que vai das mulheres para o perfume deste para a oração], o Profeta respeitou a ordem ascendente da manifestação divina [que, do ponto de vista relativo, procede da potencialidade indistinta da substância passiva para a atualização completa de todos os seus conteúdos virtuais], ordem à qual faz alusão a palavra corânica: Al-Qashāni observa que o masculino corresponde à determinação, ao passo que a natureza feminina é relativamente indeterminada, uma vez que tem parentesco com a substância receptiva não formada; é esse aspecto da natureza feminina que o simbolismo verbal transpõe por analogia inversa para a Natureza principial, cuja realidade é superior á de toda determinação ou forma. 27 Literalmente: da “existenciação” (takwin); trata-se das “expirações” (anfas) da Misericórdia divina que “dilata” (naffasa) as possibilidades suscetíveis de passar à existência. 28 Segundo a palavra do Profeta: “Dizei de mim: o servo (‘abd) de Deus e seu mensageiro, para que não venhais a cair no exagero que as gentes manifestaram a respeito de meu irmão Jesus.” 26

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“Aquele que eleva em graus, o Senhor do Trono...” 29; Deus é chamado aí “Senhor do Trono” por causa de Sua “entronização” [quando de Sua manifestação integral] em Seu nome O Absolutamente Bom [ar-rahmān, segundo a palavra: “O Absolutamente Bom Se estabeleceu sobre o Trono”30]; tudo quanto o Trono engloba é alcançado pela Misericórdia (rahmah) divina, segundo a palavra (hadīth qudsī): “Minha misericórdia engloba todas as coisas”, assim como o Trono engloba todas as coisas 31. É pelo princípio dessa revelação do Rahmān sobre o Trono que engloba todas as coisas (al-‘arsh al-muhīt) que a Misericórdia divina se espalha pelo mundo, como já explicamos neste livro e em nossos Futūhāt. O perfume é posto em relação com a união sexual na passagem corânica que atestou a inocência de ‘A’ishah [a esposa do Profeta, que alguns haviam caluniado injustamente]. A esse respeito, disse Deus: “Que as mulheres impuras sejam para os impuros, e os homens impuros para as impuras, e que as mulheres puras sejam para os puros, e os homens puros para as puras; estes são inocentes do que dizem [os caluniadores]...”32, [passagem que se pode também traduzir assim: “Que as mulheres mal-cheirosas sejam para os mal-cheirosos, e os homens malcheirosos para as mal-cheirosas; e que as mulheres perfumadas sejam para os perfumados, e os homens perfumados para as perfumadas...”]; os puros são, assim, descritos como se exalassem um bom odor [do mesmo modo que a boa palavra, no Alcorão, é chamada tayibah, que significa “boa” ou “perfumada”], pois a palavra é essencialmente sopro, como o odor é essencialmente exalação; a palavra pode, pois, dizer-se perfumada ou mal-cheirosa segundo aquilo que ela manifesta por seu conteúdo verbal. Na medida em que a palavra [ou o sopro] é principialmente divina em sua realidade essencial, todo enunciado é bom [ou perfumado]; mas, uma vez aplicada a distinção entre bem e mal 33, ela pode ser boa [ou perfumada] ou má [ou mal-cheirosa]. É assim que o Profeta disse do alho: “É uma planta da qual detesto o odor”; não disse: “É uma planta que eu Alcorão, XL, 15. Alcorão, XX, 4. 31 O Trono (al-‘arsh) “engloba todas as coisas”; simboliza a manifestação universal tomada em sua expansão total, que comporta o equilíbrio e a harmonia; é o suporte da manifestação gloriosa de Deus, da MisericórdiaBeatitude (ar-rahmāniyah). Posto que seja atemporal do ponto de vista divino, a expansão total do cosmos se apresenta, do ponto de vista relativo, como o seu cumprimento final. O trono divino é “sobre as águas” (Alcorão, XI, 9), ou seja, ele domina o conjunto das potencialidades cósmicas ou o oceano da substância primordial; isso nos lembra do simbolismo hindu e budista do lótus que se abre sobre a superfície da água e que é a um só tempo a imagem do universo e a sede da Divindade revelada. Essencialmente, o Trono se identifica com o Espírito universal. Segundo o ponto de vista sufi, cada coisa, considerada em sua natureza primordial, é o Trono de Deus. Em particular, é o coração do contemplativo que se identifica com o Trono, do mesmo modo que o lótus, segundo o simbolismo hindu e budista, se identifica com o coração. 32 Alcorão, XXIV, 26. 33 Ou seja, uma vez considerado esse enunciado em sua particularidade distintiva, que é ou conforme ou contrária às perfeições do Ser. 29 30

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detesto”, pois a essência de algo não é jamais detestável 34; tudo que se pode detestar é uma certa manifestação, e essa aversão por sua vez pode resultar de um costume, da ausência de afinidade entre as naturezas, de uma tendência individual, de uma lei sagrada, de uma falta da perfeição necessária ou de outros fatores ainda. Uma vez que a ordem (al-amr) divina se divide em bem e mal, como acabamos de estabelecer, o Profeta foi dotado do amor do bem [ou do bom odor] à exclusão do mal [ou do mau odor]. O Profeta disse que os anjos são ofendidos pelos maus odores; e uma vez que o homem foi criado da “argila de oleiro fermentada”35, ou seja, putrefata, os anjos o detestam por natureza. O escaravelho, por sua vez, não suporta o perfume da rosa, que porém é um dos melhores perfumes; mas é mau para o escaravelho. Do mesmo modo, todo homem que tem o temperamento do escaravelho, mental e formalmente, não suporta a verdade quando a ouve, mas aprova antes a vaidade, segundo a palavra corânica: “Aqueles que crêem na vaidade e não crêem em Deus...” 36, e mais adiante: “... estes são os perdidos”, que se perdem a si mesmos, pois aquele que não distingue o bem do mal [ou o bom odor do mau odor] não tem inteligência. Deus só inspirou ao Profeta o amor do bem em todas as coisas, e essencialmente só há o bem. Ora, será concebível que exista no mundo uma constituição que só experimente o bem em todas as coisas e ignore o mal? Diremos que isso não é possível, pois, no princípio mesmo do qual emana este mundo, isto é, em Deus, encontramos a repulsa e o amor; ora, o mal não é senão o que detestamos, e o bem, o que amamos 37; o mundo é criado “na forma de Deus” [e, logo, segundo o amor e a repulsa]; quanto ao homem, é criado segundo duas formas [a de Deus e a do mundo]. Não pode, portanto, existir uma constituição que perceba somente um aspecto da realidade; por outro lado, pode existir uma constituição que distinga o bem do mal [ou o perfumado do mal-cheiroso] e ao mesmo tempo saiba que aquilo que tem um sabor ruim é bom em si mesmo, uma vez abstraído esse sabor. Que esse ser, pela sua concentração no bem, se distraia da sensação do mal, é certo que é possível; mas quanto a dizer que o mal possa desaparecer do mundo, quer dizer, do cosmos, eis aí algo impossível. É certo que a Misericórdia divina se manifesta assim no mal como no bem; [como não existe um mal absoluto, todo mal apresenta aspectos de bem, por ínfimos que sejam]; um ser mau é bom em si mesmo [na homogeneidade do sistema fechado que ele representa], e é para ele que o bom parece mau; não existe nada de bom que não seja mau sob

Porque essa essência provém de uma necessidade cósmica, de uma “idéia” platônica. 35 Alcorão, XV, 26. 36 XXIX, 52. 37 Ibn ‘Arabi pensa aqui no sentido que se atribui “de fato” à palavra “mal”, e não no que se lhe deveria atribuir “em princípio”. Todavia, é surpreendente que o Sheikh al-Akbar não especifique essa nuança ou só a especifique implicitamente, dizendo que aquele que não distingue o bem do mal é falto de inteligência. Se os anjos têm aversão pelo homem, isso tem uma razão objetiva: a “luz” de que são criados é mais conforme ao Ser do que o “barro putrefato”. 34

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algum aspecto e para uma certa constituição, e vice-versa, como acabamos de demonstrar38.  Já o terceiro termo que completa [o ternário que exprime] a singularidade primordial [a sabedoria muhammadiana] é a oração (aççalāh), da qual o Profeta diz: “O frescor de meus olhos me é dado na oração” [ou seja, nela ele encontra sua consolação] 39; pois a oração é uma contemplação e um chamado secreto trocado entre Deus e seu servo, de acordo com a palavra divina: “Lembrai-vos de Mim, Eu Me lembrarei de vós” (ou: “Mencionai-Me, Eu vos mencionarei”: adhkurunī adhkurkum)40. Segundo a palavra divina fielmente transmitida desde o Profeta, a oração é um culto sujo sentido é repartido entre Deus e seu servo e que se liga, portanto, por um lado a Deus e por outro lado ao indivíduo: “Reparti a oração em duas metades, entre Mim e Meu servo; uma delas é devida a Mim, a outra a Meu servo; e Meu servo receberá o que pede.” Assim [na recitação da surat-al-fātihah41, que constitui o texto principal da oração ritual], o servo diz: “Em nome de Deus, o Absolutamente Bom (arrahmān), o Misericordioso (ar-rahīm)”, e Deus responde: “Meu servo Me menciona (ou: se lembra de Mim)”; o servo diz em seguida: “Louvado seja Deus, Senhor dos mundos”, e Deus diz por sua vez: “Meu servo Me rende graças”; o servo continua: “O Absolutamente Bom, o Misericordioso”, e Deus diz: “Meu servo Me louva”; o servo recita: “O Rei do dia do juízo”, e Deus diz: “Meu servo Me glorifica, ele se remete a Mim.” Eis aí a primeira metade da oração, a que se refere a Deus — exaltado seja — exclusivamente. Em seguida, o servo profere: “É a Ti que adoramos, e é a Ti que imploramos ajuda”; e Deus diz: “Isto está repartido entre Mim e Meu servo, e meu servo receberá o que pede”; esse versículo exprime, pois, uma participação mútua. Quando o servo diz, em seguida: “Conduznos pela via reta, a via daqueles sobre os quais está a Tua graça, não dos que são objeto da Tua cólera nem dos que erram”, Deus diz: “Tudo isso retornará ao Meu servo, e Meu servo receberá o que pede.” A segunda metade da oração, pois, se refere exclusivamente ao indivíduo, do mesmo modo que a primeira se refere a Deus somente. Isso faz compreender a necessidade [ritual] de se recitar essa sura [na oração]: aquele que não a recita não cumpre a oração partilhada entre Deus e Seu servo. A oração é um chamado secreto trocado entre Deus e o adorador; é também, portanto, uma invocação (dhikr) [termo que significa indiferentemente: invocação, menção, recordação, reminiscência]. Ora, aquele que invoca a Deus se encontra na presença de Deus, segundo a O mal é “bom”, não na medida em que se opõe a um bem, mas pelo seu fundamento ontológico, que é forçosamente positivo; em seguida, pela sua causalidade, que implica necessariamente fatores positivos; e, por fim, em sua necessidade cósmica. 39 Segundo a metáfora árabe, os olhos se refrescam quando cessam a amargura e o ardor das lágrimas. 40 Alcorão, II, 147. 41 Alcorão, I. 38

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palavra divina (hadīth qudsī) transmitida fielmente desde o Profeta: “Assisto à invocação daquele que Me invoca” (anā jālisu man dhakaranī); e aquele que se encontra na presença d’Aquele a quem invoca, esse mesmo O contempla, se for dotado da visão intelectual. Trata-se aí de contemplação (mushāhadah) e de visão (ru’yah); mas aquele que não possui a visão intelectual (baçar) não O contempla. É por essa atualidade ou ausência de visão na oração que o adorador pode julgar de seu próprio grau espiritual. Se ele não O vê, que O adore pois pela fé “como se O visse” [segundo a definição que o Profeta deu de ihsān, a virtude espiritual: “Adorar a Deus como se O visses, pois, se tu não O vês, Ele porém te vê”]; que O imagine diante de si [literalmente: em sua qiblah, sua orientação ritual] quando dirigir a Ele o seu apelo 42, e que “preste ouvidos” ao que Deus lhe responderá. Se é o imām [ou seja, aquele que dirige a oração comunitária] de seu próprio microcosmo e dos anjos que rezam com ele — e cada um que cumpre a oração é imām, sem dúvida alguma, pois os anjos rezam atrás do adorador que reza só, como atesta a palavra profética, — ele realiza por isso mesmo a função do enviado de Deus na oração, no sentido de que é o representante de Deus; quando recita [ao levantar-se da inclinação]: “Deus ouve a quem O louva”, anuncia a si mesmo e aos que rezam atrás de si que Deus o ouviu; e os anjos e os demais adoradores respondem: “Ó Senhor nosso, a Ti o louvor!”, pois é Deus quem diz pela boca de Seu adorador: “Deus ouve a quem O louva” [tanto essas palavras quanto a resposta são de regra na oração ritual]. Vê, pois, a função sublime a que corresponde a oração e qual é o fim a que ela conduz. Aquele que não alcança o grau da visão espiritual (ar-rū’yah) na oração não a realizou plenamente e não encontra ainda nela “o frescor de seus olhos”; pois não vê Aquele a Quem se dirige. Se não ouve o que Deus lhe responde na oração, não é daqueles que “prestam ouvidos”: aquele que não está presente diante de seu Senhor quando ora, e não O ouve nem O vê, não está, no fundo, em estado de oração, e a palavra corânica: “que presta ouvidos e que é testemunha” não se aplica a ele. O que distingue a oração de todos os demais ritos [de obrigação universal] é o fato de que ela, enquanto dura, exclui toda outra ocupação (ritual ou profana); mas o que há de maior em tudo quanto ela comporta em matéria de palavras e gestos é a menção de Deus [ou a invocação de Deus: dhikr-ullāh]. De resto, já explicamos nos Futūhāt o estado do homem perfeitamente viril quando da oração. Pois Deus diz [no Alcorão}: “A oração impede as transgressões passionais e o pecado grave”43, precisamente porque o adorador está obrigado a se ocupar somente da oração enquanto ela dura; “mas, sem dúvida, a invocação de Deus (dhikr-ullāh) é maior...”44. E isto, aplicado a oração, deve-se entender no sentido de que a invocação [ou o apelo] que Deus dirige a Segundo a palavra do Profeta: “Em verdade, Deus está presente na qiblah de cada um de vós”; o comentador an-Nābulūsi acrescenta: “Essa concentração imaginativa não é contrária à fé quando o homem a exerce conscientemente, sabendo que é impotente para compreender a Deus pela imaginação; pois está dito no Alcorão: Não impomos a nenhuma alma uma obrigação maior do que a sua capacidade” (II, 286; VI, 153; VII, 40). 43 XXIX, 44. 44 Ibid. 42

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seu servo, quando da resposta divina ao pedido e ao louvor, é maior que o apelo que o adorador dirige a Deus; pois a grandeza se pode atribuir a Deus somente — exaltado seja! — É por isso que ele diz: “Deus conhece o que fazeis”45, e diz: “... ou que presta ouvidos ou que é testemunha...” 46, ou seja, que presta ouvidos ao apelo (dhikr) que Deus lhe dirige na oração. Nessa mesma ordem de idéias diremos também: pelo fato de a existência derivar de um movimento inteligível, aquele que produz o mundo a partir de seu estado de não manifestação até sua manifestação, a oração ritual sintetiza todos os movimentos, que são [essencialmente] três, a saber: um movimento ascendente, que corresponde à posição ereta do adorador, um movimento horizontal, análogo à posição inclinada, e um movimento descendente, indicado pela prostração ritual. O movimento ascendente corresponde ainda à atitude por excelência do ser humano, ao passo que a tendência do animal é horizontal e a tendência dos vegetais é descendente [uma vez que seus órgãos de nutrição são as raízes]. Já os minerais não possuem movimento próprio; quando uma pedra se move, obedece a um impulso que vem de fora dela47. No que diz respeito à palavra do Profeta: “O frescor de meus olhos me é dado na oração”, sua forma indica expressamente que o estado de que se trata não resulta de uma tendência individual, pois a revelação (tajallī) de Deus na oração é um ato divino e não um ato daquele que ora. Se o Profeta não tivesse dito isso a respeito dele mesmo, é porque teria recebido a ordem de cumprir a oração sem que Deus Se tivesse revelado a ele. Mas, como essa ordem foi a expressão de um favor divino para com ele, o Profeta disse: “O frescor de meus olhos me é dado na oração.” Ora, esse “frescor dos olhos” não é outra coisa senão a contemplação do BemAmado, contemplação essa que [segundo os significados de “repouso” e “imobilidade” implicados no termo qurrah, “frescor”] faz repousar o olhar do amante e fá-lo imobilizar-se em sua visão, de tal modo que, naquele momento, ele já não vise nenhuma outra coisa, quer voluntária, quer involuntariamente. É por isso que ele é proibido de se desviar [da orientação ritual] durante a oração, pois todo desvio é algo que Satanás rouba da adoração, e por esse roubo impede o adorador de contemplar seu Bem-Amado. Se fosse verdadeiramente o seu Bem-Amado [que ele estivesse buscando contemplar], esse adorador que desvia o rosto de sua orientação ritual certamente não se desviaria; mas todo homem tem consciência de seu próprio estado de alma e sabe muito bem qual é a sua Ibid. “Nisto há em verdade uma advertência para todo aquele que tem um coração, ou que presta ouvidos e que é testemunha (ou:consciente)” (Alcorão, XL, 36). 47 Segundo o comentador al-Qashāni, os três movimentos “existenciais”, que são reproduzidos pelos gestos do fiel e pelas tendências naturais das três categorias de entes orgânicos, são, do ponto de vista principial: o movimento criativo descendente, que por assim dizer se afasta do Princípio para estabelecer os fundamentos do universo; depois dele, o movimento criativo ascendente, que faz eclodir os graus da manifestação a partir de sua base “material”; e, por fim, o movimento de expansão “horizontal” da manifestação em seus diversos níveis de atualidade. Esses movimentos principiais correspondem rigorosamente às três tendências universais que os hindus chamam de gunas. 45 46

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atitude espiritual durante a adoração, pois: “o homem é testemunha de si mesmo, seja qual for a desculpa que apresente” 48; ou seja, ele distingue perfeitamente a mentira da sinceridade em sua alma, pois é impossível que um ser ignore seu próprio estado, objeto de seu assentimento (dhawq) direto. O que se designa pelo termo “oração” (çalāh) comporta ainda outras distinções; isso porque, segundo o texto corânico, Deus nos ordena, por um lado, dirigir nossas orações a Ele, e, por outro lado, faznos saber que Ele mesmo nos dispensa a graça de Sua própria “oração” (çalāh), que ele “ora” sobre nós 49, de tal modo que a oração vai de nós para Ele e d’Ele para nós. Quando é Ele quem “ora”, o faz em virtude de Seu nome O Último (al-ākhir), pois sob esse aspecto Sua manifestação supõe a manifestação prévia do ente criado. Ora, [essa revelação divina segundo o sentido do Nome O Último] não é outra senão a determinação de Deus que o adorador “cria” em sua orientação ritual, seja por sua visão intelectiva, seja por sua crença dogmática. É a conformação da Divindade à crença do crente: a Divindade varia segundo a capacidade de seu “lugar” [ou receptáculo] de revelação, como o exprimiu Junayd quando respondeu à pergunta [sobre a relação existente entre o conhecimento de Deus e o conhecedor]: “A cor da água é a cor de seu recipiente”; eis aí sem dúvida uma resposta magistral, que toca a própria natureza daquilo de que se trata; {essa determinação divina “criada” durante a oração] é Deus na medida em que “ora” sobre nós. Por outro lado, se somos nós que oramos, é a nós que se refere o Nome O Último, no sentido de que estamos então implicados nesse Nome em razão daquilo que explicávamos há pouco sobre a condição divina correspondente a esse Nome50; vimos então depois d’Ele, na medida mesma do nosso estado [espiritual], de tal modo que Ele não nos olha senão em virtude da forma [espiritual] que nós mesmos manifestamos; pois, sem dúvida, aquele que ora permanece sempre atrás 51. Está dito no Alcorão: “[Não vês que todos exaltam a Deus, aqueles que estão nos céus e sobre a terra, e os pássaros que voam em hierarquias?] Cada qual conhece sua oração e seu louvor”52; ou seja, cada qual conhece seu próprio grau de “retardamento” [ou inferioridade] na adoração [por comparação com o que seria uma adoração plenamente adequada] de seu Senhor, e [conhece] seu louvor, que é [conforme ao] que sua capacidade [espiritual: al-isti’dad] pode afirmar da transcendência divina. “Haverá alguma coisa que não exalte o Seu louvor?”53, ou seja, o louvor de seu Senhor, o Sábio, o Perdoador; [“mas vós não compreendeis o seu louvor”]: não poderíamos compreender o louvor [os modos de louvor] de todo o universo distintamente, tomando cada coisa à parte. Alcorão, LXXV, 14-15. Ou seja, Ele nos abençoa. O verbo çalla tem o duplo sentido de “orar” e “abençoar”. 50 Ou seja: Nós vimos “depois” porque nossa oração pressupõe alguém a quem se dirige, a saber, Deus. 51 Ou seja: é ele que limita ou que restringe, que determina o conteúdo em função do continente. 52 Alcorão, XXIV, 41. 53 Alcorão, XVII, 46. 48 49

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Segundo um certo ponto de vista, o pronome [possessivo] na frase: “Haverá alguma coisa que não exalte o Seu louvor?” se refere à coisa mesma, o que significa que a criatura louva por meio daquilo que ela é. Isso é análogo ao que dizíamos do crente, a saber, que ele louva a Divindade que é conforme à sua própria crença e assim se liga a essa Divindade; ora, todo ato volta a seu autor, de tal modo que o crente se louva a si mesmo, como a obra louva seu artífice: toda perfeição e todo defeito que ela manifesta recaem sobre o seu autor. Do mesmo modo, a Divindade [enquanto] conforme à crença é criada por aquele que nela se concentra, e Ela é sua obra. Louvando aquilo em que crê, o crente louva sua própria alma, e é por causa disso que condena as crenças diferentes da sua; se fosse eqüitativo, não o faria; mas aquele que está fixado numa tal adoração particular ignora necessariamente [a verdade intrínseca das outras crenças], pelo fato mesmo de sua crença em Deus implicar uma negação de outras formas de crença. Se conhecesse o sentido da palavra de Junayd: “A cor da água é a cor de seu recipiente”, admitiria a validade de toda crença e reconheceria Deus em toda forma e em todo objeto de fé. O fato, porém, é que ele não tem conhecimento [de Deus], mas fundamenta-se unicamente na opinião (zann) da qual fala a palavra divina: “Conformo-Me à opinião que Meu servo tem de Mim”, o que significa: Não Me manifesto a meu adorador senão segundo a forma de sua crença; logo, que ele generalize, se quiser, ou que determine. A Divindade conforme à crença é aquela que pode ser definida, e é Ela o Deus que o coração pode conter [segundo a palavra divina: “Nem Meus céus nem Minha terra Me podem conter, mas o coração de Meu servo fiel Me contém”]. Pois a Divindade absoluta não pode ser contida por coisa alguma, uma vez que Ela é a própria essência das coisas e Sua própria essência; não se diz de um ser qualquer que ele se contém a si mesmo; por outro lado, também não se diz que ele não se contém. Compreende-o, pois! Deus — exaltado seja! — fala a verdade, e é Ele quem conduz pelo reto caminho.

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