O Apocalipse de Wagner No princípio pensou em mudar-se. Mas Wagner sabia o quanto de esforço e trabalho teve de empreender para realizar o seu projeto de morar em um apartamento na orla da cidade, onde a vista eterna para o mar simbolizasse a grande conquista de sua vida. Sentar-se na varanda e respirar o ar puro da noite, trazido pela brisa marinha, reconfortava o seu espírito; e o barulho das ondas quebrando na praia fazia-lhe esquecer o preço dos impostos e da taxa de condomínio que pagava para desfrutar daquela paz. Ao prazer proporcionado pelas maravilhas da sua nova residência acrescentava a música clássica, em especial a música de Richard Wagner, seu homônimo, cuja abertura do terceiro ato da ópera Die Walküre tinha como ícone sonoro de sua vida, por harmonizar-se com a sua luta e o seu sucesso. Uma noite, logo após iniciar mais uma audição da Cavalgada das Valquírias, Wagner foi atingido nos ouvidos pela estridência de uma voz feminina que, acompanhada de um som grave e ritimado, invadiu seu espaço sagrado, despejando milhões de decibéis de uma ininteligível e agressiva seqüência sonora. Atordoado, Wagner dirigiu-se à varanda de seu apartamento, eis que o som parecia provir da rua. E entre incrédulo e atordoado identificou a fonte daquela impensável agressão sonora: um automóvel, com todas as portas abertas, equipado com uma aparelhagem de som capaz de prover, com indiscutível qualidade, a sonorização de uma colossal casa de espetáculos. Surpreso, Wagner acreditou tratar-se de um evento especial, algo que somente aconteceria naquela noite, e tratou de fechar as janelas e refugiar-se no interior da casa. Mas foi em vão. Na noite seguinte e em todas as demais que se seguiram, os veículos sonorizados estacionavam à sua porta e despejavam o entulho sonoro, variando apenas o gênero da “música”: ora funk, ora pagode. Nos quiosques em frente, os felizes proprietários dos veículos confraternizavam em incontáveis e intermináveis rodadas de cerveja, temperadas com conversas em linguagem chula e, não raro, com o despejo dos resíduos da bebida na via pública. A paz almejada por Wagner esvaiu-se em pouco tempo. O refúgio e o sossego que imaginava ter conseguido com tanto esforço ao longo dos quase quarenta anos de trabalho sucumbiram diante da ocupação democrática do espaço público, ainda que as conseqüências de tal ocupação resultassem na invasão do espaço privado de um cidadão de bem. Mas Wagner era um homem criativo, e logo pensou uma forma de demonstrar aos apreciadores dos gêneros musicais modernos o valor da música clássica, ao mesmo tempo levando-lhes em domicílio o prazer de com ele dividir uma audição das Valquírias. Da idéia passou à prática. Na manhã seguinte levou o seu veículo a uma loja de acessórios especializada em sonorização e instalou em seu carro um equipamento capaz de rivalizar com todos os demais que já vira diante de sua janela. Naquela noite escolheu uma tranqüila praça de bairro da periferia e para lá se dirigiu, munido de um CD com a sua peça favorita: a Cavalgada das Valquírias, na interpretação da Berliner Philharmoniker, conduzida pelo Maestro James Levine. Em sua crença, Wagner dava como certo que ao usar a potência do equipamento sonoro de seu carro para reproduzir boa música para os moradores daquela localidade estaria, a um só tempo,
levando cultura para a periferia e retribuindo o tratamento que lhe dispensavam aqueles moradores. Assim, tal como faziam os seus visitantes, Wagner estacionou seu carro na pracinha às dez da noite e ligou o som. As Valquírias ecoaram pelas redondezas, com todo o seu esplendor e imponência. O primeiro tiro foi certeiro. Atravessou o vidro da janela do carro de Wagner e explodiu no painel, levando pelos ares o CD player e tudo o que havia dentro e ao redor dele. O segundo e os que se seguiram não foram menos precisos. Um atravessou a cabeça de Wagner lançando-lhe os miolos a uma distância tal que nem mesmo o mais exímio legista seria capaz de reunir os fragmentos para reconstituir sua estrutura. As pessoas assistiam impassíveis àquele espetáculo. Afinal, não lhes era comum presenciar um suicídio como aquele. Entregue em domicílio. Dissipada a fumaça dos tiros, a platéia retirou-se em silêncio. A ordem local já tinha sido restabelecida. No caminho de casa, de mãos dadas com o pai, o garoto intrigado não resistiu e perguntou: - Pai, quem era aquele homem? - Apenas um maluco que resolveu perturbar o nosso sossego, filho. Liga não, retrucou o homem. A praça esvaziou-se rapidamente. As portas e janelas das casas se fecharam e as luzes se apagaram. O silêncio voltou a reinar na noite da periferia, soberano. Na orla, em frente a casa de Wagner, o pagode e o funk animavam o churrasco regado a cerveja que atravessava a madrugada. Wagner e as Valquírias já não tinham mais com o que se incomodar.