TEMPO DE GUERRA O 11 DE SETEMBRO, OS REALITY SHOWS E AS ESTRATÉGIAS DE MOBILIZAÇÃO PELA IMAGEM1
Stella Senra
RESUMO O artigo aborda as transmissões televisivas ao vivo de imagens de conflito, enfocando, em vez da sua suposta objetividade, o seu potencial de mobilizar afetivamente o espectador. Analisamse as imagens dos atentados de 11 de setembro e aquelas, que aparentemente não são de conflito, dos reality shows, em particular o programa Casa dos Artistas. Argumenta-se que do primeiro ao segundo caso passa-se de uma mobilização total a uma mobilização individual: a intensidade máxima das poucas imagens das torres dá lugar a um estado de permanente disponibilidade das imagens, no qual todas elas se equivalem. Palavras-chave: televisão; atentados de 11 de setembro; reality shows. SUMMARY The article discusses alive television broadcasts of conflict images, emphasizing their potential of emotionally mobilizing viewers instead of their supposed objectivity. It analyses the images of September 11 attacks and those, which are not apparently conflictive, from reality shows, particularly Casa dos Artistas (Artist's House). It argues that from the first to the second case there is a transformation from a total mobilization to an individual one: the extreme intensity of the few WTC towers images gives place to a state of permanent disposition of images, each of them equivalent to all others. Keywords: television, September 11 attacks, reality shows.
(1) Este trabalho foi concebido para apresentação na 2a Conferência Internacional do Documentário, sob o tema "Imagens de conflito", por ocasião do 7 a Festival Internacional de Documentários "É tudo verdade" (São Paulo, abril de 2002).
No filme Elogio do amor, de Jean-Luc Godard, um personagem diz em certo momento a respeito do documentário: "Nunca soube bem o que é isso". A interrogação tem de fato marcado a história dessa modalidade cinematográfica, sempre assombrada por uma promessa de verdade que, se lhe impôs limites, fez dela um rico campo de discussões e experimentos, que têm contribuído para impulsionar o entendimento da imagem. Essa promessa, de resto, sempre rondou as imagens em movimento, donde a atribuição a elas, como um legado "natural", de qualidades como autenticidade, transparência, fidelidade, que, embora já deslocadas do foco principal dos estudos da imagem, são ainda decisivas para a construção do ideário da informação. Se o documentário foi visitado por tal sorte de compromisso com a verdade, inaugurou — à diferença da informação jornalística, que nunca pôs em questão suas premissas — uma profícua discussão sobre esse regime de imagens, a qual tanto lhe permitiu reivindicar a legitimidade das suas imagens, a convicção na sua plenitude, como o tem levado a pôr sua NOVEMBRO DE 2002
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inocência em questão, a trabalhar a tensão entre imagem e realidade ou a testar novas dinâmicas na articulação entre sons e imagens. As imagens de conflito não costumam levantar as dúvidas do personagem de Godard. Elas lidam com questões prementes do tempo presente, que por sua própria natureza já solicitam um envolvimento maior tanto da parte de quem as fabrica quanto do seu espectador. Além disso, o estado de emergência em que em geral são criadas, a segurança com que são identificadas, a confiança que despertam, a carga afetiva que mobilizam e a adesão que podem acarretar não contribuem, por sua vez, para propiciar a reflexão. Se as imagens documentais têm suas maneiras próprias de "negociar" com o mundo (alguns dirão: elas são um "discurso"), as imagens de conflito parecem ter sido diretamente arrancadas dele. Elas são feitas quase sempre em situação de emergência, muitas vezes de improviso, e com certeza tiram proveito dessa urgência que as condena a um certo comedimento ou austeridade quanto ao uso de meios e de recursos da linguagem, a uma certa homogeneidade estilística — restrições que em geral as inocentam de qualquer articulação discursiva ou retórica. É por isso que elas pretendem escapar à tão temida manipulação que assedia suas congêneres, respondendo, a seu modo, a uma promessa de legitimidade que nunca parou de interrogar as imagens em movimento. Os cinéfilos sabem como a economia de meios, a parcimônia no uso dos recursos de linguagem, tem sido prestigiada ao longo da história do cinema — sobretudo do documentário —, a ponto de constituir a base de um projeto estético. As imagens de conflito não chegam propriamente a tomar um partido estético; pelo contrário, se é possível reconhecer nelas uma certa conformação será justamente o seu aspecto "mal-acabado", que resulta, com certeza, da urgência com que são produzidas, da falta de tempo para decisões e escolhas — restrições que contribuem, de resto, para assegurar tanto a sua legitimidade quanto a forte conotação afetiva que potencializa seu desempenho. É à distância do olhar, ao recuo em relação ao objeto, ao não-envolvimento que se costuma associar o equilíbrio da visão supostamente objetiva. Sabemos como os protocolos da informação opõem emoção a envolvimento à distância e recuo diante dos acontecimentos, e como tem sido árdua a tarefa de contestar seu projeto de objetividade. O que talvez seja peculiar às imagens de conflito é que o envolvimento que preside à sua produção contribui, igualmente, para assegurar a sua legitimidade. As mesmas marcas da fatura intempestiva, que elevam sua temperatura, atuam também como uma espécie de autenticação ou de "assinatura" do real. A máquina mundial de informação tem, evidentemente, grande apreço por esse tipo de imagem, por sua capacidade de atuar, ao mesmo tempo, em dois tabuleiros — o da emoção e o da objetividade — sem pôr em risco o primado da verdade. Tomando as imagens ao vivo como o exemplo mais acabado de imagens de conflito, procurarei pôr em foco, em vez da sua suposta objetividade, o seu potencial afetivo, sua capacidade de "tocar" o espectador. Para tanto abordarei as imagens das torres do 11 de setembro, que todos têm na memória, e outras que não são, à primeira vista pelo menos, de conflito: as
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do primeiro reality show brasileiro, Casa dos Artistas. No primeiro caso tratase de transmissão ao vivo de alcance mundial concentrada num tempo curto: menos de um dia de duração; no segundo esse alcance é reduzido às dimensões da transmissão nacional, estendendo-se porém sua duração para um tempo sem limites, o tempo real. Tentarei mostrar como, do primeiro ao segundo caso, passa-se de uma mobilização total a uma mobilização individual, e como da intensidade máxima das poucas imagens das torres se passa a uma certa "rarefação" da emoção, a um estado de "disponibilidade" das imagens, no qual todas elas se equivalem.
(2) DeLillo, Don. Mao II. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, pp. 170171.
Por sua própria natureza, as imagens de conflito freqüentam territórios de exceção, lidam com manifestações do "extraordinário" e podem tocar no que Roland Barthes chamou de "intratável", no horror — donde o caráter muitas vezes ambíguo da sua repercussão: queremos e ao mesmo tempo não queremos vê-las. Duas posturas cujo contraponto, no campo da criação das imagens, está representado, de um lado, na afirmação de Adorno de que a arte tornou-se impossível após Auschwitz e, de outro, na de Stockhausen, de que os atentados do 11 de setembro foram a obra de arte suprema. O terrorismo é um desses exemplos extremos que as imagens de conflito são levadas a testemunhar. Em seu livro Mao II, de 1991, o escritor norte-americano Don DeLillo procura entender o prestígio do horror no nosso mundo ao analisar a força devastadora do que ele chama de "narrativa terrorista", as razões pelas quais ela teria substituído a narrativa do romancista. Para DeLillo, ao declínio dos escritores como "formadores de sensibilidade e de opiniões" corresponde justamente o aumento de influência dos terroristas sobre a consciência das massas. O terror é o único ato significante desde que a sociedade foi reduzida à conspurcação e à saciedade, diz ele. Tudo é absorvido no nosso mundo: o artista, o maluco de rua, todos são tratados e incorporados; só a cultura ainda não descobriu como assimilar o terrorista. Evidentemente a confusão pode se instalar quando o terrorista mata um inocente, argumenta o escritor (basta ver a polêmica que se instalou após os atentados mesmo entre intelectuais norteamericanos), mas o terrorismo é exatamente a única linguagem que chama a atenção, acrescenta ele, a única que o Ocidente entende. DeLillo sugere a existência de uma relação, ou de uma certa dinâmica, entre o poder da narrativa terrorista e as imagens que inundam o nosso mundo: a linguagem única do terror seria "a forma de dominar a disparada de infindáveis correntes de imagens a que estamos submetidos"2. Como ato terrorista exemplar, os acontecimentos de 11 de setembro de fato tiveram o dom de interromper essa corrente contínua de imagens que nos assolam. Mais ainda, ao fazê-lo, interferiram no funcionamento da máquina mundial de informação, deixando no ar uma dúvida sobre quem, de NOVEMBRO DE 2002
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fato, teria feito aquelas imagens, quem propriamente as teria mostrado. No 11 de setembro a irrupção dos fatos, por si só, foi extremamente traumática, mas também o modo de abordagem da televisão sobre os acontecimentos foi profundamente abalado. Diante da catástrofe a TV não teve o seu habitual domínio das imagens, nem seus jornalistas puderam, como de costume, assegurar sua mise-en-scène. Por algumas horas tivemos a impressão de que a televisão ficara como que "imobilizada", como suas câmeras, diante das torres, de que também ela fora seqüestrada e, como suas imagens, tornada refém. Os autores dos atos do 11 de setembro não se limitaram a monopolizar as telas do mundo: também subverteram o funcionamento corrente do dispositivo televisivo e interferiram na relação habitual entre imagem e acontecimento. Sabemos como o som tem sido a base da televisão: na TV é a palavra que diz, e se faz acompanhar pelo fluxo de imagens. Transparentes um ao outro, esses dois fluxos pretendem assegurar, por sua vez, a "transparência" que sustenta o princípio da informação. Os atos do 11 de setembro, mais particularmente o episódio das torres, impuseram, de certo modo, uma ruptura entre imagem e som na transmissão ao vivo. Feitas a grande distância — e esse "ponto de vista" já estava embutido na estratégia dos atentados —, as imagens das torres não tinham som, não se faziam acompanhar do seu som próprio, como costuma acontecer com as imagens jornalísticas. Além disso, durante o tempo em que a imagem das torres ficou nas telas de TV não houve voz institucional que lhe fizesse face. O governo não se fez presente e os jornalistas, por sua vez, pouco tinham que dizer. Tanto quanto os espectadores, eles foram surpreendidos e, como eles, se limitaram a contemplar e esperar. Suas câmeras, fixas, pareciam hipnotizadas à distância pelas duas torres. Como os espectadores, os jornalistas foram "conduzidos" por aquela imagem sem som, por uma imagem que se bastava a si mesma e que ia como que "se fazendo" ali, na hora, e impondo-se às câmeras. Se os terroristas roubaram a narrativa dos romancistas, como escreveu Don DeLillo, os autores dos atentados de 11 de setembro destituíram de sua função os fabricantes de imagens, oferecendo-lhes uma imagem "inteira", una, sem contracampo possível. Eles fizeram, ao mesmo tempo, o acontecimento e a imagem e tornaram inoperante, por algum tempo, o modo de representação consagrado pela televisão3. No 11 de setembro os autores dos atentados desencadearam o horror mediante uma ação de grande impacto e impuseram sua imagem de intensidade máxima. Em resposta, a máquina mundial de informação adotou uma estratégia de "gerenciamento do horror" que também teve na imagem o lugar privilegiado do seu exercício. Por um lado — e renovando uma estratégia estabelecida desde a Guerra do Golfo —, ela passou a "administrar", com evidente proveito ideológico, a revelação e o ocultamento do horror, determinando que imagens difundir — as dos armamentos, do poder bélico — e quais ocultar — as das vítimas, dos seus corpos e seu sangue. Por outro, teve de operar um "realinhamento de significação" que impôs, em face do sentido pleno e unívoco do ato terrorista, uma dinâmica entre "o bem" e "o mal", com a qual todo o mundo — e todas as imagens — tiveram de se conformar4. 76 NOVOS ESTUDOS N.° 64
(3) Jean Baudrillard notou que, num mundo de "acontecimentos fajutos" e de imagens corriqueiras, o 11 de setembro "ressuscitou", ao mesmo tempo, a imagem e o acontecimento. Diferentemente do que aqui se sustenta, a tese desse crítico é de que o 11 de setembro fez que a realidade "absorvesse" a energia da ficção, tornando-se ela mesma ficção. Não é a violência que chega primeiro, escreve ele, mas a imagem, à qual vem se juntar o "frisson" do real. Retomando um dos seus temas mais caros, Baudrillard argumenta que no 11 de setembro o real tornou-se "a derradeira ficção" (Baudrillard, Jean. "L'esprit du terrorisme". Le Monde, 03/11/2001, pp. 10-11). (4) Tratei desse tema em Senra, Stella. "Estratégias da imagem". Folha de S. Paulo, "mais!", 04/ 11/2001.
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(5) Jünger, Ernst. L'état universel, suivi de la mobilization totale. Paris: Gallimard, 1990, pp. 112-113.
Falando da I Guerra Mundial, o filósofo alemão Ernst Jünger definiu um "estado de mobilização total" que "aciona as massas" e, ao mesmo tempo, "cada existência individual". Quando impera esse tipo de mobilização, afirma Jünger, nada mais na sociedade é estranho ao estado de guerra. "O chefe de esquadrilha que, no fundo da noite, dá a ordem de bombardeio", escreve ele, "não é mais capaz de distinguir combatentes e não-combatentes, assim como as nuvens mortais de gás se estendem sobre tudo o que vive com a indiferença de um fenômeno meteorológico". Para que tais ameaças se tornem possíveis, adverte Jünger, é preciso uma mobilização "que não seja nem parcial nem geral, mas total, e arrole até a criança de berço. Nenhum átomo sequer é estranho a tal trabalho da guerra", diz ele, "e nós mesmos estamos voltados, no nível mais profundo, para esse processo frenético"5. Com a declaração de um estado de guerra permanente a partir do 11 de setembro, toda a sociedade foi levada, como descreveu Jünger, a se deslocar para um estado de emergência, que passou a incorporar todos os aspectos da vida de todos, em todo o mundo. Desde o 11 de setembro sabemos o que o filósofo quis dizer: todo o mundo se encontra em guerra, em guerra permanente, em estado de mobilização total. Numa sociedade em estado de mobilização total, todas as imagens são imagens de conflito e a mobilização total começa quando nos tornamos seus espectadores. Passemos às imagens de Casa dos Artistas, e vejamos como elas podem ser tomadas, igualmente, como imagens de conflito.
No Brasil também vivemos uma guerra, uma guerra interna, não declarada, guerra larvar, da qual todos sabem intimamente que fazem parte. Num país que recalca seu estado de guerra e ao mesmo tempo abusa das imagens, as imagens de conflito tendem a predominar, mas acabam sendo, ao mesmo tempo, despotencializadas. É o que acontece com as cenas, sempre renovadas, das rebeliões nos presídios, das guerras de gangues nas favelas, dos conflitos em torno do MST: de tão freqüentes elas acabam se tornando banais, mera paisagem sobre a qual nossos olhos deslizam, quase sem ver. À primeira vista, as imagens do programa Casa dos Artistas não parecem ser imagens de conflito. Mas qualquer uma delas, indiferentemente, pode se prestar ao entendimento do que eu gostaria de demonstrar: também essas imagens, aparentemente inocentes, ecoam o conflito, também elas dizem respeito, tanto de modo direto quanto indireto, à nossa guerra muito particular. Lembremos, em primeiro lugar, que uma figura bastante familiar dessa guerra — o seqüestro — as precedeu e, de certa forma, as introduziu. O seqüestro da filha de Sílvio Santos e a invasão da casa do animador pelo seqüestrador antecederam, de alguns meses, o lançamento de Casa dos Artistas (a transmissão ao vivo do segundo seqüestro chegou mesmo a bater a auNOVEMBRO DE 2002
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diência da TV no 11 de setembro). Homem da imagem, Sílvio Santos é ainda dono de grande cadeia de TV na qual, bem sabemos, a violência sempre foi atrativo maior. Naquele dia ela entrou dentro de sua casa, foi exercida contra a sua pessoa. Fernando Dutra Pinto, seu seqüestrador, não era, no entanto, um terrorista. Era provavelmente um telespectador, daqueles com quem o animador tanto gosta de dialogar. (Os animadores de auditório, dizem, foram os primeiros a tomar a televisão como um meio de massa próximo do seu público, representando-o na tela como uma espécie de manifestação "primitiva" da interatividade. Nesse sentido talvez o seqüestrador tenha sido uma espécie de exemplo, irônico e trágico ao mesmo tempo, de interatividade levada às últimas conseqüências, num país em que as relações são habitualmente definidas pela violência.) Com seu gesto, diferentemente dos autores do 11 de setembro, ele não queria subverter o funcionamento da televisão; ao contrário, para que seu ato surtisse efeito a TV tinha de continuar funcionando como sempre funcionou. De fato, foi o que aconteceu. A casa de Sílvio Santos, como sabemos, ficou na tela da TV durante todo um dia. Mas diferentemente das poucas imagens das torres o lugar foi mostrado de todos os ângulos, enquanto um dispositivo tentacular de informação acompanhava as imagens e mantinha o público a par da negociação. Um homem da imagem como Sílvio Santos sabe como ficar no ar aconteça o que acontecer. E sabe também pôr a proveito as emoções vividas pelo seu público. Para realizar Casa dos Artistas, Sílvio Santos escolheu esse mesmo lugar já sinalizado e investido pela emoção do público — uma casa bem ao lado da sua, um dado que não deve ser negligenciado quando se considera a repercussão do programa no país. Modalidade televisiva de grande sucesso no mundo, os reality shows (RS) tiveram início na Europa em 1999. Se algo os liga à guerra é precisamente a década de 1990, que eles encerram e que teve início com a Guerra do Golfo (1991) — essa que foi, não por acaso, a primeira experiência de mobilização mundial pela TV. Parece abusivo apontar uma relação direta entre os dois episódios; afinal, esses programas, chamados justamente de "programas de convivência", operam com o território da intimidade, a "casa", nos limites de uma domesticidade acomodada. Mas é possível divisar, na oposição entre a guerra e o recolhimento individual, uma espécie de dinâmica entre mobilização e desmobilização, ou melhor, entre "mobilização total" — esse fenômeno definido por Jünger que revivemos com os atos do 11 de setembro — e o que Alain Ehrenberg, ao estudar as formas embrionárias dos RS, chamou de "mobilização individual": o fato de que qualquer um possa aceder à cena e representar o seu próprio papel 6 . Do mesmo modo, é possível estabelecer uma relação entre tal "mobilização individual" e o que chamei de "disponibilidade da imagem": uma condição diferente, se não oposta, à intensidade das imagens consagradas do 11 de setembro. Ainda no início dos anos 1990 a revista Esprit examinou os primeiros reality shows7, então programas com reconstituições de vida (com atores ou com as pessoas que viveram as experiências narradas), distinguindo neles 78 NOVOS ESTUDOS N.° 64
(6) Ehrenberg, Alain. "La vie en direct ou les shows d'autenticité". Esprit (Paris), nº 188, janeiro de 1993.
(7) Esprit, loc. cit. Na França, também os Cahiers du Cinema dedicaram-se aos RS (cf. nota 9, a seguir). Recentemente o caderno "mais!" da Folha de S. Paulo (31/03/2002) examinou o fenômeno entre nós.
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aspectos que os atuais RS levariam às últimas conseqüências: a erosão das fronteiras entre gêneros televisuais, o lugar de destaque atribuído ao telespectador. Mostrou também a tendência desses programas a abolir a tela (por meio da interatividade), as convenções cênicas e a narrativa tradicional em virtude de sua inscrição no cotidiano — rupturas que os atuais RS também levariam a cabo. Os analistas da revista mostraram que o princípio desses programas se baseava na manifestação da experiência direta das pessoas comuns, mostrada de modo suficientemente sóbrio e econômico para "parecer real". Sem herói, sem construção narrativa, tal despojamento seria, segundo os críticos, a base de uma televisão que ofereceria ao telespectador a possibilidade de transformar sua vida em espetáculo. Mexendo com suas vidas em profundidade, ela teria a pretensão de se colocar a serviço dos indivíduos, que passariam então a consumir "relação" e não o "sonho" que a TV sempre ofereceu. Os analistas de Esprit concordavam, então, que essa eleição do indivíduo como centro da atenção, assim como a importância conferida à sua história banal, seriam o contraponto de uma perda de referências generalizada, de um esvaziamento da esfera pública e de um encolhimento da política no último final de século — condições que, evidentemente, não são tãosomente particulares ao contexto francês. Tal prestígio do indivíduo, que na verdade acompanhou o predomínio do projeto neoliberal nas duas últimas décadas, acaba atuando, na opinião dos diferentes analistas, como uma resposta, ou um modo de sanar suas dificuldades numa sociedade em que seu lugar se confundiu com o das instituições, em que os sentidos se esvaeceram, em que o Estado se eclipsou e a sociedade civil tende a assumir seu papel. Nessas condições, a "autonomia" de cada um torna-se o que Alain Ehrenberg chama de "uma imposição de massa". Para esse crítico, particularmente, é à luz desse novo tipo de massificação, que não faz mais um amálgama de todos mas destaca apenas um indivíduo, que deve ser interpretada a valorização, pelos reality shows, do homem comum, da sua "espontaneidade", "sinceridade", "emoção" — enfim, da sua "autenticidade" —, que faz dele o "herói da sua própria vida". À medida que a esfera pública se desvencilha de suas atribuições, o campo de ação da televisão se amplia e passa a propor o diálogo com o telespectador e a impor uma cultura, assistencialista, terapêutica, que tem o papel de sanar a falência das mediações políticas. No seu aspecto geral, tais análises podem ser estendidas ao Brasil, onde a televisão tem sua atuação hiperdimensionada e onde, portanto, o encolhimento da esfera pública, reiteradamente constatado pelos mais variados estudiosos, confere papel de maior destaque ainda tanto aos programas de ajuda quanto àqueles que encenam a vida do telespectador. "A vida como ela é" — esse o lema do novo realismo televisivo segundo Ehrenberg; em vez do velho mundo da verossimilhança, que tanto confortou a imagem, prima a "autenticidade", tomada como "qualidade de gente que só tem a seu favor o fato de não ser ninguém". Desse ponto de vista, qualquer um passa a ser interessante a ponto de poder desempenhar o seu próprio papel. É assim que o telespectador se torna, nas palavras do analista, "o derradeiro profissional da
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televisão", pois só esse "telespectador emancipado" sabe comunicar o que ele é realmente. Os programas que inauguram a linhagem dos RS elegeram justamente o homem comum como herói de uma história, a sua, afirma Ehrenberg; mas ele só adquire existência se essa história for conhecida. Mostrando seus feitos cotidianos e banais, a TV ensina cada um a gerenciar sua vida e a resolver seus problemas a partir do que "é", e é exatamente isso que o crítico chama de "mobilização individual": cada um torna-se "profissional" de sua própria vida, o que faz dessa modalidade de televisão uma "técnica de massa para viver como indivíduo". "Consumir relação" é isto, diz Ehrenberg: esperar da TV o "conselho personalizado em massa". Reconstituições e encenações têm, assim, a função de fazer falar, fazer saber e fazer agir dentro dos limites prescritos por essa vida individual, estabelecendo um vaivém entre palavra e ação. Para que as pessoas possam agir é preciso lhes "dar" a palavra. Ehrenberg avança elementos muito elucidativos para entendermos a implantação dos RS entre nós. Mas seu ponto de vista acerca da "mobilização individual" deve ser considerado com um certo recuo. Assim, se o valor que ele atribui a ações como "participar", "dar a palavra", passar "da passividade à atividade" deve ser redimensionado (a palavra "dada" é muito diferente do gesto afirmativo de quem a toma), também o uso insistente de noções como "autenticidade", "vida real", "sentimentos verdadeiros", assim como a exigência de "sobriedade" na sua exposição, parecem sugerir que não estamos longe do velho e conhecido ideário da imagem. Sabemos que a verdade da imagem é a contrapartida da afirmação do indivíduo. Mas numa sociedade dominada pelas mídias, em que é o gesto de colocar o indivíduo em cena que lhe atribui sentido, que o faz existir, é a própria noção de indivíduo que entra em crise. Talvez a função dessa imagem seja, justamente, mantê-lo de algum modo em circulação. É o que passaremos a examinar em relação aos atuais reality shows. A fórmula desses programas deslocou-se da vida de um para a vida de alguns participantes, e levou ainda mais longe a idéia da "vida como ela é". Reúnem-se pessoas ditas "normais"8, que por sua vez não devem "representar papéis" nem "encenar emoções": tudo deve ser "real". Para tanto os participantes são retirados de seu ambiente, trancados numa casa e vigiados por câmeras que transmitem sua imagem em tempo integral. O total isolamento e a exibição permanente da imagem visam — é o que dizem os entusiastas da nova fórmula — trazer à tona "sentimentos verdadeiros" — donde a importância e a insistência da "conversa"9. Há um prêmio em dinheiro no final, e a interatividade consiste na eliminação, pelos telespectadores, dos participantes indesejáveis. Ganha, evidentemente, quem ficar. Esse modelo de encenação, que oferece os participantes do programa — escolhidos entre os telespectadores — em espetáculo ao vivo e em tempo integral, parece de fato levar às últimas conseqüências aquele papel do telespectador definido por Alain Ehrenberg como o "profissional de sua vida" e como "derradeiro profissional" da TV. Mas podemos avançar um pouco mais do que o autor nessa sua análise. Pois quando o telespectador se torna 80 NOVOS ESTUDOS N.° 64
(8) Tais expressões são tiradas da descrição habitualmente feita desses programas. (9) Em geral são as imagens desse tipo de programa que têm sido mais visadas pelos analistas, como aqueles que abordaram a "proposta estética" de um RS francês de grande sucesso, Loft Story, nos Cahiers du Cinema de julho de 2001 (nº 558). Uma polêmica foi desencadeada no ano seguinte (nos 566 e 567, fevereiro e março) quando a revista colocou o mesmo programa na sua lista dos dez melhores do ano. A discussão focalizou, mais uma vez, a imagem, cuja "nulidade" foi denunciada pelos leitores, enquanto os críticos tomaram seu "presente contínuo" como o "horizonte absoluto da TV". Entusiastas do novo programa da TV francesa, os Cahiers defenderam seu aspecto "inovador", destacando seu caráter aleatório, "que questionaria o cinema no seu próprio terreno" e aboliria o discurso, colocando em causa "a razão do autor".
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(10) DeLillo, Don. Rumor branco. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 202.
Recebido para publicação em 30 de setembro de 2002. Stella Senra é jornalista, pesquisadora e ensaísta nas áreas de jornalismo e cinema.
tal espécie de "profissional" que encena sua vida, fazendo-se ao mesmo tempo personagem de si mesmo, quando passa literalmente para o outro lado da tela (e sabemos que o projeto dos participantes do programa é ficar na TV, como verdadeiros profissionais), não é só o próprio indivíduo que deixa de existir: o personagem, no sentido tradicional do termo, se torna, por sua vez, obsoleto. É bom lembrar, a essa altura, que os RS brasileiros têm uma particularidade em relação aos seus congêneres: eles vieram otimizar o rendimento de um capital eminentemente brasileiro — a emoção despertada pelas telenovelas. Além do prestígio desse gênero entre nós, depois de trinta anos de convívio com as telenovelas o telespectador já aprendeu a "ler" todas as personagens, a vasculhar suas intimidades e até a palpitar na sua trajetória. Nesse sentido, os atuais RS não precisam mais "propor" personagens muito definidas, nem tampouco acompanhar suas trajetórias: os telespectadores brasileiros já podem dispensar tais exigências. Na verdade não se trata mais, nesses programas, de personagens definidas por um caráter, dotadas de uma interioridade, de um objetivo, mas apenas de "indicações": traços, sinais, sugestões que ator e público podem "desenvolver" (o termo é dos participantes), enfim, uma certa "tipologia" que, como num processo de autoalimentação, se move num universo de significação já hiper-sinalizado pela própria mídia. Nem "indivíduos" nem tampouco "personagens" — daí o valor exemplar de Casa dos Artistas: seus participantes eram "artistas" (com a conotação que o termo tem entre nós, de gente da televisão), artistas "fajutos" ainda por cima, gente da periferia da TV. Menos que personagens, mais que gente comum, esses mediadores terão de certa forma contribuído para facilitar a passagem do telespectador das telenovelas para a nova forma televisiva, ajudando-o a lidar mais facilmente, como num jogo, com tais traços e sinais. Mas se não há mais personagens nem tampouco indivíduos, o que acontece nos reality shows? Parece-me que o que se faz nos RS são simulações, verdadeiras "simulações de indivíduo". Simulação no sentido militar do termo: exercício ou treinamento que envolve tanto atores quanto telespectadores nesta que talvez seja a primeira (mas, para alguns, já a última) modalidade televisiva após a convergência entre televisão e internet. Por isso eles ficam 24 horas no ar. E talvez nem seja mais o caso de dizer que "ficam no ar": eles estão apenas "disponíveis" — como dados e informações na rede. Não se trata mais, portanto, de "intensidade" da imagem, como no 11 de setembro, mas da sua "disponibilidade" em um estado de total "indiferenciação": todas as imagens se equivalem e são colocadas em disponibilidade permanente para quem quiser acessar, conectar e desconectar qualquer delas, a qualquer momento. Afinal, não foi com o computador que se desenvolveu a técnica militar da simulação? E não foi ele que a colocou, por meio dos jogos, ao alcance de todos? Simular indivíduos enquanto a sensação de vazio cresce, os sentidos fogem. Treinamento? Guerra? Jogo? Por certo esses três objetivos não se NOVEMBRO DE 2002
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excluem, mas nem por isso têm o poder de alterar o estatuto mais modesto, ou menos espetacular, em face dos atos do 11 de setembro, da simulação — da qual uma descrição, uma vez mais, de Don DeLillo dá bem conta: "Estamos aqui para simular [...]. E lembrem que não estamos aqui para gritar nem correr pela rua. Somos vítimas discretas. Não estamos em Nova York nem em Los Angeles. Aqui basta gemer baixinho"10.
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