WALLER CHAVES DA COSTA
Do Estado de Natureza ao Estado Civil em John Locke
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Goiás, para obtenção do título de Mestre em Filosofia. Área de Concentração: Filosofia Política Orientador: Dr. Joel Pimentel Ulhôa
Goiânia 2003
2
SUMÁRIO RESUMO:
v
ABSTRACT:
vi
INTRODUÇÃO: 1. Apresentação:
1
2. Vida e Obra de John Locke:
6
3. As Influências de Filmer e Hobbes: 13 CAPÍTULO I – HOBBES E O ESTADO DE NATUREZA: 1.
Sobre a Noção de Estado Natural: 22
2.
O Enfoque de Thomas Hobbes: 34
CAPÍTULO II – O ESTADO DE NATUREZA EM JOHN LOCKE: 1. A Questão da Experiência:
62
2. A Lei Fundamental da Razão: 66 3. Sobre o Poder Paterno: 83 4. A Instituição da Propriedade Privada:
101
CAPÍTULO III – O ESTADO CIVIL EM JOHN LOCKE: 1. Estado de Guerra e Ofensa à Propriedade: 129 2. O Poder Executivo da Lei da Natureza:
135
3
3. A Criação da Sociedade Política:
145
CONCLUSÃO:
158
BIBLIOGRAFIA:
161
3.
A CRIAÇÃO DA SOCIEDADE POLÍTICA:
3.1. A noção de carência e o inconveniente maior do estado de natureza:
Uma coisa que a própria experiência permite que o homem conheça é que a vida em estado natural é carente de uma série de coisas. Não por outro motivo, Locke inicia o capítulo em que fala da instituição da sociedade com a noção de carência. No estado natural proposto por Locke, o homem não é um bicho solitário e desprendido de seus semelhantes, mas antes, um ser carente. Não porque o queira, mas por determinação de seu próprio Criador, eis que, conforme a Escritura (Gn, c. 2, v. 18), o próprio Deus é quem diz não ser bom que o homem fique só: Tendo Deus feito o homem uma criatura tal que, segundo seu próprio juízo, não lhe era conveniente estar só, colocou-o sob fortes obrigações de necessidade, conveniência e inclinação para conduzi-lo para a sociedade, assim como proveu de entendimento e linguagem para perpetuá-la e dela desfrutar. (Locke, 2001, p. 451– 2T, § 77)
A partir de tal proposição, ou seja, a de que o homem é um ser naturalmente carente, Locke recorre à figura da sociedade conjugal para apresentar duas noções fundamentais em sua teoria: a) a de que toda sociedade tem uma finalidade específica; e b) a de que o poder reitor de cada sociedade se limita por tal finalidade:
4 Porém, como os fins do matrimônio não exigem que o marido esteja investido de tal poder [um poder absoluto sobre a mulher], a condição da sociedade conjugal não lho concede, por não ser de modo algum necessário para esse estado, (...) nada sendo necessário a nenhuma sociedade que não seja necessário aos fins para o qual ela foi formada. (Locke, 2001, pp. 455-456 – 2T, § 83) – grifos meus.
Na filosofia política de John Locke, o estado natural é pautado pela luta que cada homem empreende em prol de sua preservação, o que resulta, como vimos, na existência de um direito natural à propriedade privada. O maior inconveniente de um tal estado é a parcialidade na aplicação (enforcement) da lei fundamental da natureza, nos casos em que a propriedade privada (incluídos os direitos à vida e à liberdade) sofre qualquer tipo de turbação, ou seja, nos casos de deflagração do estado de guerra. A parcialidade na aplicação da lei fundamental da Razão tem fulcro na própria essência dos homens, esta coisa de que todos os seres humanos participam, algo a todos os homens imanente, que atesta e certifica a natural igualdade entre todos. Para Locke, no estado de natureza já há propriedade privada, embora não exista qualquer autoridade comum. Assim, cada homem tem o direito de resolver os conflitos que envolvem a sua propriedade privada, situação que tenderia para a perpetuação dos conflitos, pois que, cada um sendo juiz de sua própria conduta, é improvável que alguém se condene para preservar os interesses alheios. Ora, é justamente esta perspectiva hobbesiana que Locke pretende evitar, o que é feito com base em duas assertivas: a) os homens tem direito natural à propriedade privada; b) o fim específico da sociedade política é a proteção de tal propriedade: O sinal inequívoco do surgimento da sociedade civil é quando todos os indivíduos transferiram para a sociedade ou para o corpo coletivo seu poder individual de exercer a lei da natureza e de proteger sua propriedade. Esse é o pacto social, que é justo para todos, uma vez que todos fazem o mesmo sacrifício com vistas aos mesmos benefícios. Instaura-se, com ele, um juiz
5 terreno, dotado de autoridade para resolver todas as controvérsias e reparar os danos que venham a atingir qualquer membro da sociedade política, como passa a ser denominada. (Laslett, 2001, p. 157)
3.2. A finalidade da sociedade política:
Como visto, o estado natural lockeano não é destituído de poder político1, embora, para a superação dos inconvenientes já apontados, seja necessário que tal poder se transfira das mãos de todos os membros da comunidade para as mãos de uma autoridade comum, que passará a ser a titular exclusiva do direito de fazer leis com a finalidade de regular a propriedade privada2. Em Locke, mesmo após a instituição da sociedade política, o poder político segue limitado por sua finalidade original, qual seja, a proteção da propriedade privada, que é um direito natural. Por isto, a lei civil, assim entendida a manifestação suprema do poder da commonwealth, tem o objetivo específico de favorecer o desenvolvimento daqueles que a ela se sujeitam: Pois a lei, em sua verdadeira concepção, não é tanto uma limitação quanto a direção de um agente livre e inteligente rumo a seu interesse adequado, e não prescreve além daquilo que é para o bem geral de todos quantos lhe são sujeitos. Se estes pudessem ser mais felizes sem ela, a lei desapareceria por si mesma, e mal mereceria o nome de restrição a sebe que nos protegesse de pântanos e precipícios. (Locke, 2001, p. 433 – 2T, § 57)
Mas, 1
apesar
dos
inconvenientes,
o
estado
natural
Political Power is that Power which every Man, having in the state of Nature, has given up into the hands of the Society, and therein to their Governours, whom the Society hath set over it self, that it shall be imployed for their good, and the preservation of their Property. (Locke, 2000, p. 381 – 2T, § 171) 2 Political Power then I take to be a Right of making Laws with Penalties of Death, and consequently all less Penalties, for the Regulating and Preserving of Property, and of employing the force of the Community, in the Execution of such Laws, and in the defence of the Common-wealth from Foreign Injury, all only for the Publick Good. (Locke, 2000, p. 268 – 2T, § 3)
6
lockeano nada tem a ver com o inferno proposto por Hobbes. Para Locke, o estado natural é razoável em todos os sentidos: nem tão bom a ponto de não precisar ser suplantado, nem tão insuportável a ponto de fazer com que os homens chancelem a intervenção absolutista3. A representação do estado natural como permeado por fatos bons e ruins é preponderante para a teoria lockeana sobre o Governo Civil. Em primeiro lugar, os homens nascem livres e donos de suas próprias pessoas, além de terem direito natural a acessar e se apropriar de todas as coisas que a natureza (ou Deus) ofereceu à raça humana, o que é um fato bom. Por outro lado, a própria constituição dos homens a todos nos impede de considerar a vida neste mundo como fácil e isenta de preocupações, o que é um fato ruim: muito cedo, cada homem percebe que, na busca das conveniências necessárias a uma vida segura e confortável, terá de despender sua energia, pois, por abundante que sejam os bens a todos legados pela mão espontânea da natureza, poucos são os bens cuja utilidade deriva de sua mera existência, sendo pequeno, quando não nulo, o valor que se dá ao fruto ainda dependurado no galho ou à terra não cultivada. Entra em cena, neste ponto, a Razão, uma faculdade da mente que permite ao homem entender a relação entre o fato empírico do trabalho e a individuação da propriedade privada: pelo dispêndio de sua energia laboratícia, parte integrante de sua propriedade privada em sentido lato, o homem cria ou aumenta o valor do bem naturalmente dado a todos, o que lhe defere a posse do bem trabalhado. Em outras palavras, pode-se dizer que aquele que laborou para a aquisição ou melhoria de um bem é retribuído com a titularidade exclusiva de sua posse. Todavia, a despeito das faculdades racionais, Locke 3
He does not want to suggest too bad a picture of the state of nature, because he wants to argue that are definite conditions on the state’s exercise of political power. (...) On the other hand, Locke does not want the state of nature to be so good that there is no obvious reason why people would ever wish to leave it. (Thomas, 1995, p. 24)
7
admite que homens sempre haverá que ofenderão o comando da lei fundamental da Razão, realizando alguma conduta contrária à regra da máxima preservação da Humanidade. Ao assim agirem, tais homens ofendem não apenas os interesses privados de suas vítimas, mas os interesses de todos os membros da comunidade, que têm um direito natural de seguir suas vidas sem que sejam molestados com contínuas ameaças à sua propriedade privada. Conclui-se,
portanto,
que,
quando
estipula
ser
a
preservação da propriedade os fins da sociedade política, Locke aceita que as relações econômicas não só antecedem as relações políticas, como também definem seus contornos. No que tange à finalidade do Estado, pode-se dizer que a Política está a serviço da Economia, ou seja, o estado civil existe para potencializar o estado natural, que é, no fim das contas, o estado meramente econômico, em que nada havia a não ser o natural comércio entre os homens, de onde deriva a própria noção de propriedade privada: O “estado de natureza” em abstrato dos teólogos é preenchido, em Locke, com um conteúdo concreto. É o local das relações econômicas entre os indivíduos e representa muito bem a descoberta de um plano econômico das relações humanas, distinto do plano político. Ou ainda, o estado de natureza significa a individuação do momento econômico como momento precedente e determinante do político. A sociedade natural, isto é, a sociedade em que os homens vivem conforme as leis naturais – não impostas mais ou menos arbitrariamente por uma autoridade – se transforma em uma sociedade dominada pelas leis da livre concorrência, elas também naturais. (Bobbio, 1997, pp. 205-206)
Se as relações entre os homens, mormente pelo que diz respeito ao direito à propriedade privada, ou seja, ao uso e gozo dos bens a todos dados em comum, contam com uma natureza peculiar própria, é de se esperar que tais relações não devam ser pervertidas no estado civil. É assim que Locke logra estabelecer os limites ao exercício do poder civil, por parte do Estado:
8 Delineia-se, assim, um contraste, que terá muitas conseqüências, entre a sociedade econômica – como sociedade natural – e a sociedade política – como sociedade artificial – , que se sobrepõe à primeira, e só é aceitável se essa sobreposição não a deforma, mas apenas a regula. Nesta resolução da sociedade da natureza em sociedade das relações econômicas, a economia funciona como estrutura básica, a política como superestrutura. Como veremos (...), não há dúvida de que, para Locke, a política deve estar a serviço da economia. Neste primado do econômico, que é também o natural, residem a característica e a modernidade do jusnaturalismo fundado pelo filósofo inglês. (Idem, ibidem)
3.3 Consentimento
e
Renúncia.
As
noções
de
Encargo, Confiança e Mandato:
O poder político existe para regular a propriedade privada, a qual se legitima já no estado natural. A passagem para o estado civil tem, então, a finalidade específica de garantir aos homens que, em casos de ofensa ou ameaça de ofensa à sua propriedade privada, a execução da lei fundamental da natureza deixará de ser passível de execução por todos e cada homem, para que o seja pelo Governo escolhido nos termos dispostos pela commonwealth. Neste ponto, a interpretação costumeira é no sentido de que Locke “separa o processo do pacto, que cria uma comunidade, do processo subsequente pelo qual a comunidade confia o poder político a um governo – embora possam ocorrer ao mesmo tempo, trata-se de dois processos distintos.” (Laslett, 2001, p. 166)4 4
Locke proposes a two-way process by which government is formed. In the first stage each person makes a compact with every other wishing to quit the state of nature whereby it is agreed to surrender her executive power of the law of nature, and to make it over to all those (as a collectivity) who have entered this compact. (...) The formation of the community leaves things incomplete, and calls for second stage in order to establish the civil society. The parties to the original compact are aiming for a remedy to the “inconveniencies” of the state of nature: they need a common, agreed interpretation of the law of nature, impartially enforced. So their collective executive power of the law of nature must be exercised by a formally constituted authority. This will be referred to as the ‘government’, though Locke does not, of course, have in mind a specific
9
Após a instituição da sociedade política, os homens passam a contar com uma legislação formal, por haverem transferido à pessoa exclusiva do Governante o poder de executar a primitiva lei fundamental da natureza, bem assim o poder de executar tantas quantas outras leis o Poder Legislativo venha a promulgar. Falar da gênese do estado civil em Locke significa, portanto, retornar ao momento de instituição da lei civil, ou seja, ao momento em que o poder político deixou de pertencer a todos e foi transferido à(s) pessoa(s) escolhida(s) pela commonwealth. O poder político é o poder que cada homem tem, no estado de natureza, de escolher os meios que julgar convenientes para que se garanta, ou se restabeleça, nos casos de consumação da ofensa, a eficácia da lei fundamental da Razão. É este poder político, ou seja, este direito de escolha dos meios que, ao ingressar no estado civil, o homem renuncia à sociedade, ainda que apenas nos casos em que ela possa garanti-lo.5 O homem nasce livre, sua liberdade fundando-se na igualdade, igualdade ligada ao fato de a todos os homens caber, no estado de natureza, a mesmíssima quantidade de direitos. Mas para que qualquer um desses direitos deixe de lhe pertencer, ou seja, para que seu natural direito de executar a lei fundamental da razão seja transferido para a sociedade política, impõe-se a adesão de seu consentimento: Mas, seja como for, esses homens, evidentemente, eram de fato livres e qualquer que seja a superioridade que alguns políticos atribuiriam hoje a qualquer deles, eles mesmo não a alegavam, mas eram, por consentimento, administration, but rather a constitutional form of government. (Thomas, 1995, pp. 2526) 5 O exemplo clássico de uma situação em que é impossível ao Estado garantir a preservação do indivíduo colhe-se nos casos que o Direito Penal catalogou como “legítima defesa”. Apesar da exclusividade da jurisdição estatal para promover a persecução, o processo e a execução penais, não é razoável exigir que um homem não revide a agressão injustamente praticada contra si.
10 todos iguais, até que, pelo mesmo consentimento, estabeleceram governantes. De modo que todas as sociedades políticas tiveram início a partir de uma união voluntária e no mútuo acordo entre os homens que agiam livremente na escolha de seus governantes e formas de governo. (Locke, 2001, p. 474 – 2T, § 102)
6
Mais ainda: o homem, além de livre, é também um ser racional, não podendo ceder direitos naturais sem os quais sua preservação seria ainda mais difícil, ou seja, aqueles cuja perda importaria em ofensa à própria lei fundamental da razão. Deriva daí a noção de encargo, segundo a qual, após criar o corpo político, o que cada homem cede à sociedade política não é a plenitude de seus direitos, todos indo parar agora nas mãos do Estado, mas apenas aqueles direitos específicos a que todos e cada um dos homens decidem renunciar. É por esta noção, mais que por qualquer outra, que Locke se afasta do absolutismo hobbesiano. As metáforas do mandato e do cheque em branco bem exemplificam a diferença. Para Hobbes, ao contratarem, uns com os outros, a criação do Leviatã, os homens passam a outro homem (pois que o Soberano não pode jamais ser conduzido por coisas ou animais) um cheque em branco, ou seja, o mais executável dos título de crédito, para que ele, Soberano, possa lhes cobrar, pela segurança e paz ofertadas, o preço que bem lhe convier. O problema da proposta hobbesiana é que, na prática, o Soberano é livre para causar tantos males quantos possam infestar a mente de quem se encontra no exercício do poder, mente que, por ser humana, não é isenta do erro e da arbitrariedade. 6
Now as Locke assumes that in the state of nature persons are ‘owners’ of their executive power of the law of nature, there is no way in which these powers can end up in other hands except by each person consenting to such a transfer. Although Locke thinks that there is good reason why the executive power of the law of nature should come to be in the hands of a single authority, that authority would not be legitimate unless the original owners of the executive power of the law of nature consented to relinquish it. Thus Locke is committed to giving a contract argument for legitimate government. (Thomas, 1995, p. 25)
11
Juridicamente falando, a doutrina de Locke é mais sutil: ao contratarem a instituição de um corpo que lhes possa garantir a execução imparcial da lei fundamental da natureza, os homens terminarão, em um segundo instante, por envolver a pessoa a quem se defere o poder político da sociedade, ou seja, o chefe do Governo, em uma outra espécie de contrato: o contrato de mandato. Neste
ponto,
a
tradução
para
o
Português
dos
comentários de Laslett se refere à figura de um depósito, sugerindo que Locke pretendia, com o uso do termo trust, evitar que o governante da sociedade política pudesse reclamar quaisquer benefícios em seu nome pelo exercício do governo: Para que se firme, ou se compreenda, um contrato, é preciso que as partes envolvidas obtenham dele alguma vantagem, o que, aplicado à política, significaria que o governo deve obter do exercício da governança alguma vantagem a que os governados estariam obrigados a conceder. Ora, é exatamente isso que Locke pretendia evitar a todo custo. Embora as pessoas estejam contratualmente vinculadas uma à outra, o povo não está contratualmente submetido ao governo, e os governantes se beneficiam do exercício da governança apenas na qualidade de pares do “corpo político”. São meros delegados do povo, fiéis depositários que podem ser afastados caso não correspondam à confiança neles depositada. (Laslett, 2001, p. 166)
Todavia, esta acepção de trust como encargo, ou seja, como a responsabilidade que prende o depositário à coisa depositada sob sua guarda, é apenas um dos significados do substantivo originalmente escolhido por Locke para representar a relação entre Governo e governados: trust. I. s. confiança, fé; guarda, cuidado, custódia; responsabilidade; crédito; (com., fin.) truste; (com.) consórcio; (jur.) fideicomisso; (jur.) curadoria; (com., jur.) depositário, curador. (Houaiss, 1974, p. 573)
Penso que Locke faz uso do termo para significar não o encargo em si mesmo, mas a confiança que a “maioria” deposita no Governo em relação à sua atuação em prol do bem comum. A despeito
12
da opinião de Laslett, pode-se afirmar que o pacto proposto por Locke é um contrato que vincula também a pessoa do Governante, pois que o mandato é uma espécie de contrato, embora, via de regra, implique em obrigações apenas ao mandatário.7 De todo modo, é difícil concordar com a proposta de um Governo que receba um cheque em branco para estipular o preço que bem lhe convenha pela segurança buscada no pacto societatis hobbesiano. No pacto proposto por Locke, o Governante atua como representante da vontade da maioria8, mas nunca além dos limites impostos por uma lei natural e normativa, a lei fundamental da razão, que prega a preservação da humanidade, bem assim a conservação da propriedade privada.
3.4. A questão da maioria:
Vimos, por todo o trabalho, que Locke é um dos grandes defensores do individualismo, ou seja, um filósofo que sempre realça a importância e a dignidade do indivíduo no complexo jogo das relações políticas. Neste último tópico da dissertação, enfrentarei o problema da conciliação entre tal proposta individualista e a carga coletivista trazida pela noção de maioria. No item anterior, foi dito que na passagem do estado de natureza para o estado civil, os homens renunciam ao seu direito 7
A favor dessa interpretação, as definições de ambos os institutos jurídicos, constantes do Código Civil Brasileiro recém promulgado. Ao tratar do mandato, o Código diz que “Opera-se o mandato quando alguém recebe poderes para, em seu nome, praticar atos ou administrar interesses. A procuração é o instrumento do mandato.” (art. 653). Ao tratar do depósito, o mesmo diploma reza que “Pelo contrato de depósito recebe o depositário um objeto móvel, para guardar, até que o depositante o reclame” (art. 627). 8 Maioria formada pelas pessoas tributáveis, ou seja, pelos proprietários., conforme se viu no item 4 do capítulo II.
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natural de executar a lei fundamental da natureza nos casos de ofensa à propriedade privada lato sensu, ou seja, nos casos de deflagração do estado de guerra. Renunciar, todavia, é verbo transitivo direto e indireto, exigindo dois objetos distintos. Sabendo-se a que se renuncia, resta buscar saber a favor de quem se renuncia o poder executivo da lei fundamental da natureza: à commonwealth, corpo que tem a característica de ser único. Pois quando um número qualquer de homens formou, pelo consentimento de cada indivíduo, uma comunidade, fizeram eles de tal comunidade, dessa forma, um corpo único, que se dá apenas pela vontade e determinação da maioria. (Locke, 2001, p. 469 – 2T, § 96) – grifos meus.
Ainda
que
Locke
não
demonstre
o
mesmo
rigor
mecanicista de Hobbes, neste ponto ele admite que, na dinâmica das relações sociais, este corpo único representado pela sociedade política (commonwealth) não é inerte, agindo em uma certa direção. Como então conciliar a noção de um corpo único no meio de tantas pressões individuais? Isto foi parcialmente respondido no item 4.6 do capítulo anterior, em que revelei a ideologia capitalista por trás do discurso lockeano: na verdade, as múltiplas pressões capazes de reunir os homens em sociedade se resumem, no fim das contas, às pressões de uma maioria formada pelas pessoas tributáveis, ou seja, pelos proprietários do capital (terra e dinheiro). O consentimento desta maioria de proprietários é o que orienta a sociedade política, ou seja, dirige o seu Poder: Pois sendo aquilo que leva qualquer comunidade a agir apenas o consentimento de seus indivíduos, e sendo necessário àquilo que é um corpo mover-se numa certa direção, é necessário que esse corpo se mova na direção determinada pela força predominante, que é o consentimento da maioria; do contrário, torna-se impossível que aja ou se mantenha como um corpo único, uma comunidade única, tal como concordaram devesse ser os indivíduos que nela se uniram – de modo que todos estão obrigados por esse consentimento a decidir pela maioria. (Locke, 2001, p. 496 – 2T, § 96) – grifos do original.
14
Revela-se, assim, que, entre os muitos vetores que pautam a vida social, a maioria é a força dominante, no sentido de ser a força resultante de todas, que move a própria sociedade política, que como vimos, é única9. Sociedade
política
e
maioria
são,
portanto,
noções
siamesas na filosofia política de Locke: uma não existe sem a outra. Todavia, a questão da maioria é uma das que mais chamam a atenção dos comentadores, pelo fato de impor a difícil antinomia entre o caráter individualista da propriedade privada em Locke, e o coletivismo trazido pela noção de maioria. Com Macpherson, pode ser dito que Esse individualismo [o de Locke] é necessariamente coletivismo (no sentido de afirmar a supremacia da sociedade civil sobre qualquer indivíduo). Porque afirma que uma individualidade que só pode ser plenamente realizada pelo acúmulo de propriedades, e portanto, somente realizada por alguns, e apenas à custa da individualidade dos outros. Para permitir o funcionamento de uma sociedade dessas, a autoridade política precisa ter superioridade sobre os indivíduos; porque se assim não for, não pode haver garantia de que as instituições da propriedade essenciais para essa espécie de individualismo terão sanções adequadas. (Macpherson, 1979, p. 267)
Conclui-se,
portanto,
que
a
contradição
entre
individualismo e coletivismo em Locke não é senão aparente: A noção de que o individualismo e o “coletivismo” são as duas pontas opostas de uma escala ao longo da qual podem ser arrumados os estados e as teorias de estado, indiferentemente ao estágio de evolução social em que aparecem é superficial e ilusória. O individualismo de Locke, que é o de uma sociedade capitalista emergente, não exclui, mas ao contrário, requer a supremacia do estado sobre o indivíduo. Não é uma questão de mais individualismo, ou de menos coletivismo; antes, quanto mais rematado o individualismo, mais completo é o coletivismo. (Macpherson, 1979, p. 268).
9
The Majority having, as been shew’d, upon Mens first uniting into Society, the whole power of the Community... (Locke, 2000, p. 354 – 2T, § 132)
15
CONCLUSÃO:
Como dito na introdução, esta dissertação sobre a filosofia política de John Locke pretendia refazer o caminho que levou os homens a migrar do estado natural para o estado civil, até o ponto da construção da sociedade civil. Ao seu cabo, é possível perceber que Locke logra êxito em seu projeto de refutação não só ao patriarcalismo, mas a toda e qualquer proposta absolutista. Além de uma bem lançada ideologia colhida nos ventos de seu momento histórico, as lições do Segundo Tratado importam em uma teoria que de fato consegue, partindo de um conceito de homem como um ser naturalmente político e racional, estabelecer uma sociedade com uma finalidade específica. Em outras palavras, Locke logra êxito em seu projeto de justificar a hipótese de um Poder Civil limitado. No estado de natureza de Locke, são precárias as tentativas de se suplantar as eventuais manifestações do estado de guerra, haja vista que, por serem livres e iguais, não se pode esperar que os homens sejam imparciais no julgamento de suas próprias causas. Com efeito, quando um homem ofende a propriedade privada alheia, ofende também a lei da Razão, o que significa que já renunciou ao seu uso, situação que defere ao ofendido o direito até mesmo de exterminar sua vida, eis que, não havendo limite para a irracionalidade do ofensor, tampouco se há de exigi-lo por parte do agredido inocente. Assim, em Locke, o estado de natureza carece de um mecanismo de regulação da propriedade. É este o problema que Locke se propõe a resolver: por ser privada, a propriedade não pode ser regulada por uma justiça igualmente privada. O caráter privado, no sentido de “pertencente a cada
16
homem individualmente”10, da noção de propriedade é a fonte da parcialidade na execução da lei fundamental da natureza, ou seja, é a matriz de todo o problema do estado natural. Para contornar tal problema, Locke postula a instituição de uma justiça comum, ou, nos termos da Teoria Geral do Processo, uma jurisdição comum: acima de quaisquer dois contendores, há de haver um terceiro vértice, ou seja, um árbitro comum habilitado a dizer um direito também comum. Quer se utilize o termo justiça comum ou jurisdição comum, o que Locke deixa assentado é que o fim do estado de guerra, ou seja, “a solução da lide”, há de ser ditado por um Poder Comum, não mais exercido pelos indivíduos que alegam ser os detentores da propriedade privada no caso concreto, em que no mínimo um dos contendores age contrariamente à lei fundamental da razão. Esta é, em resumo, a ponte que Locke estabelece, uma ponte entre o caráter privado da noção de propriedade, e o caráter público da noção de governo.11 Contrariamente a Filmer e à teocracia anglicana, e em defesa da então florescente burguesia proprietária, Locke afirma que o poder da sociedade política não deve se direcionar para o bem de um único indivíduo, nem mesmo o da pessoa do Magistrado, mas apenas para o bem público. Em outras palavras, por ser essencialmente útil e necessário aos homens (notadamente aos proprietários do capital), o Poder Civil deve servir ao bem comum: A propriedade, cuja origem se encontra no direito que tem o homem de utilizar qualquer das criaturas inferiores para a subsistência e conforto de sua vida, destina-se ao benefício e vantagem exclusiva do proprietário, de forma que este poderá até mesmo destruir, mediante o uso, aquilo de que é proprietário, quando exija a necessidade; já o governo, cuja finalidade é a 10
Embora não exclusivamente. Mais uma vez, ressalte-se o aproveitamento dessa idéia na teoria geral do processo: a vedação da auto-tutela significa reconhecer que os interesses privados de cada homem abalam seu julgamento acerca das contendas nas quais ele se vê envolvido. 11
17 preservação do direito e da propriedade de cada um, preservando-o da violência e da injúria dos demais, destina-se ao bem dos governados. (Locke, 2001, pp. 299-300 – 1T, § 92)
Partindo do senso comum e da observação dos fatos à sua volta, orientando-se rumo à preservação dos direitos naturais do indivíduo, enfeixados, todos, no chamado direito à propriedade, Locke estabelece
um
pensamento
político
contido
em
uma
conhecida
expressão idiomática da língua inglesa: an Englishman’s home is his castle, ou seja, a casa de um homem é onde ele tem privacidade e segurança para ser livre. Assim, apenas sob a égide de um Estado que efetivamente proteja sua propriedade privada, e não no estado natural, ou, menos ainda, sob as asas de um soberano absoluto, é que o homem pode, finalmente, “existir como seu próprio Monarca.” Em resumo: para Locke, a sociedade política, bem como seu Governo, têm uma finalidade específica, que é a de proteger a propriedade privada individual. Ressalte-se, porém, a presença de uma ideologia capitalista que acaba por deferir aos proprietários, e apenas a eles, o comando da commonwealth.12
FIM
12
Os indivíduos que têm os meios de realizarem suas personalidades (isto é, os proprietários) não precisam se reservar direitos em oposição à sociedade civil, de vez que a sociedade civil é dirigida por e para eles. Tudo o de que precisam é insistir em que a sociedade civil, ou seja, a maioria deles mesmos, é superior a qualquer governo, porque senão um determinado governo poderia sair da linha. (Macpherson, 1979, p. 267)
18
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