Livros Exigidos - Vestibular 2009/2010 Uel

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LIVROS EXIGIDOS U EL 2009-2010

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PORTANTO:

NÃO SUBSTITUI A LEITURA DAS OBRAS!

Marília de Dirceu Tomás Antônio Gonzaga É a lírica amorosa mais popular da literatura de língua portuguesa. Segundo o autor do prefácio da obra (Lisboa 1957), Rodrigues Lapa, não é a persistência dos elementos tradicionais da poesia, mais ou menos pessoalmente elaborados, que nos dão definitivamente o seu estilo. Este consiste sobretudo nas novidades sentimentais e concepcionais que trouxe para uma literatura, derrancada no esforço de remoer sem cessar a antiguidade. Um amor sincero, na idade em que o homem sente fugir-lhe o ardor da mocidade, e uma prisão injusta e brutal - foram estas duas experiências que fizeram desferir à lira de Dirceu acentos novos. Estamos ainda convencidos de que o clima americano, mais arejado e mais forte, contribuiu poderosamente para a revelação desse estilo, em que se sentem já nitidamente os primeiros rebates do romantismo e a impressão iniludível das idéias do tempo." Dividido em liras que a partir da publicação do poema em livro, em 1792, foram declamadas, musicadas e cantadas em serestas e saraus pelo Brasil afora. Referindo-se à lira III da parte III, Manuel Bandeira escreveu : "Nessa lira esqueceu o Poeta a paisagem e a vida européia, os pastores, os vinhos, o azeite e as brancas ovelhinhas, esqueceu o travesso deus Cupido, e a sua poesia reflete com formosura a natureza e o ambiente social brasileiro, expressos nos termos da terra com um fino gosto que não tiveram seus precursores". Existem três fatores básicos que contribuíram para a individualidade poética de Gonzaga: o romance com a menina Maria Dorotéia; a prisão injusta e brutal, como inconfidente; e a magia da natureza e do clima tropical. A obra se divide em duas partes (há uma terceira, cuja autenticidade é contestada por alguns críticos): Na 1ª parte estão os poemas escritos na época anterior à prisão do autor. Nela predominam as composições convencionais, as características arcádicas: o pastor Dirceu celebra a beleza de Marília em pequenas odes anacreônticas. Em algumas liras, entretanto, as convenções mal disfarçam a confissão amorosa do amor: a ansiedade de um quarentão apaixonado por uma adolescente; a necessidade de mostrar que não é um qualquer e que merece sua amada; os projetos de uma sossegada vida futura, rodeado de filhos e bem cuidado por suas mulher etc. Nesta 1ª parte das liras o autor denota preferência pelo verso leve, tratado com facilidade. Já a 2ª parte (e a terceira, se autêntica), foi escrita na prisão da ilha das Cobras, e os poemas exprimem a solidão de Dirceu, saudoso de Marília. Encontramos aí a melhor poesia de Gonzaga. Entende-se aqui que as características préromânticas se fazem sentir mais agudamente. O sentimento da injustiça, da solidão, da saudade de Marília, o temor do futuro e a perspectiva da morte rompem constantemente o equilíbrio clássico. As convenções, embora ainda presentes, não sustentam o equilíbrio neoclássico. O tom confessional e o pessimismo prenunciam o emocionalismo romântico. Nesta 2ª parte das liras, há o emprego do verbo no passado: o poeta vive de lembranças e recordações passadas. Em Marília de Dirceu, há a refinada simplicidade neoclássica: uma dicção aparentemente direta e espontânea, cheia de imagens graciosas e de alegorias mitológicas; um ritmo agradável, suavizado pelos versos curtos, pela alternância de decassílabos e hexassílabos, pelo uso do refrão e dos versos brancos. A estrutura métrica das liras são a versificação pouco variada e, a par dos versos de quatro sílabas, melhor ditos células métricas, vêm a redondilha menor, com acentuação na 2ª e 5ª sílabas; o heróico quebrado, sempre em combinação; a redondilha maior; o decassílabo.

INOCÊNCIA Visconde de Taunay Sertão de Santana do Paranaíba, 1860. Pereira ( Martinho dos Santos Pereira ) vive na fazenda com Inocência, sua filha de 18 anos. Seu pai exige-lhe obediência total, num regime antigo e educada longe do mundo. Escolhe para ela o noivo, Manecão, um homem criado no sertão bruto, de índole violenta. Maria Conga é uma preta, escrava de Pereira. Tico é o guarda da moça Inocência, bastante fiel apesar de ser mudo. Um dia, Pereira encontrou-se com um rapaz que percorria os caminhos do sertão a medicar. Havia feitos estudos no colégio do Caraça e iniciado Farmácia em Ouro Preto. Chamavam-no de "doutor", título que não menosprezava. Seu nome era Cirino Ferreira dos Santos ( Dr. Cirino ). Inocência estava doente de "uma febre braba" e o "doutor" curou-a . Os dois apaixonaram-se mais tarde: eram demasiados os cuidados que o "doutor" tinha para com ela. Amavam-se às escondidas e o laranjal era local de encontros proibidos. Pensavam que ninguém poderiam desconfiar... mas Tico, o anãozinho mudo, estava atento... Nesse ínterim, Pereira andava é desconfiado do Dr. Meyer, um caçador de borboletas, que por lá aparecera! Desconfiava a tal ponto que o ilustre entomólogo passou a ser "persona non grata". Dr. Meyer tinha por objetivo descobrir espécimes novos para museus europeus. Respeitava com muito carinho e muita atenção a bonita Inocência. José Pinho (Juque), ajudante de Dr. Meyer, explicava a função de seu patrão: procurar insetos. E isso durante quase dois anos... Garcia, leproso, aparece na fazenda do Sr. Pereira. Quer falar com Dr. Cirino. O "médico" diz-lhe que a doença e incurável e contagiosa. Inocência foi maltratada pelo pai, quando este soube de seu amor com o doutor. Foi atirada contra a parede. Resistiu e jurou não se casar com Manecão, o sertanejo violento. Mas o pai – Sr. Pereira – achou que a filha estava de "mau olhado", por causa do Dr. Meyer. E encontrou uma solução: ele ou Manecão mataria o intruso alemão. Dr. Meyer não deu ouvidos a Pereira, zombado de sua ameaça. Tomou-se de vergonha: era ofensa demais. Tico, após testemunhar o amor existente entre Inocência e Cirino, explicou ao Sr. Pereira tudo que se passava... Manecão começou a seguir os passos de Cirino. Até um dia interpelou-o . Tirou uma garrucha da cintura e... Cirino caiu por terra, pedindo água e sussurrando o nome de Inocência. Agonizante, exigia do mineiro Antônio Cesário que não deixasse Inocência casar-se com Manecão... Dr. Guilherme Tembel Meyer, em 1863, apresentava aos entomólogos do mundo a sua mais recente descoberta: uma borboleta até então desconhecida: "Papilio Innocentia:" em homenagem à Inocência, a moça do sertão de Santana do Paranaíba, da Parte sul oriental do Mato Grosso. Inocência, coitadinha... Exatamente nesse dia dois anos faria que seu gentil corpo fora entregue à terra, no intenso sertão de Santana do Parnaíba, para dormir o sono da eternidade...

Esaú e Jacó Machado de Assis Publicado em 1904, Esaú e Jacó é o penúltimo romance de Machado de Assis. O título é extraído da Bíblia, remetendo-nos ao Gênesis: à história de Rebeca, que privilegia o filho Jacó, em detrimento do outro filho, Esaú, fazendo-os inimigos irreconciliáveis. A inimizade dos gêmeos Pedro e Paulo, do romance de Machado, não tem causa explícita, daí a denominação de romance "Ab Ovo" (desde o ovo). É o romance da ambigüidade, narrado em 3ª pessoa, pelo Conselheiro Aires. Pedro e Paulo seriam "os dois lados da verdade". Filhos gêmeos de Natividade e Agostinho Santos, à medida que vão crescendo, os irmãos começam a definir seus temperamentos diversos: são rivais em tudo. Paulo é impulsivo, arrebatado, Pedro é dissimulado e conservador - o que vem a ser motivo de brigas entre os dois. Já adultos, a causa principal de suas divergências passa a ser de ordem política - Paulo é republicano e Pedro, monarquista. Estamos em plena época da Proclamação da República, quando decorre a ação do romance. Para apaziguar a discórdia fraterna, de nada valem os conselhos de Aires, amigo de Natividade, nem as previsões de discórdia e grandeza feitas por uma adivinha (A Cabocla do Castelo), quando os gêmeos tinham ainda um ano. Até em seus amores, os gêmeos são competitivos. Flora, a moça de quem ambos gostam, se entretém com um e outro, sem se decidir por nenhum dos dois: a moça é retraída, modesta, e seu temperamento avesso a festas e alegrias, isso levou o Conselheiro Aires a dizer que ela era "inexplicável". O conselheiro Aires é mais um grande personagem da galeria machadiana, que reaparecerá como memorialista no próximo e último romance do autor: velho diplomata aposentado, de hábitos discretos e gosto requintado, amante de citações eruditas, muitas vezes interpreta o pensamento do próprio romancista. As divergências entre os irmãos continuam, muito embora, com a morte de Flora, tenham jurado junto a seu túmulo uma reconciliação perpétua. A morte da moça, porém, une temporariamente os gêmeos, mais tarde, também a morte de Natividade cria uma trégua entre ambos, mas logo se lançam às disputas. Continuam a se desentender, agora em plena tribuna, depois que ambos se elegeram deputados por dois partidos diferentes, absolutamente irreconciliáveis: cumpre-se, portanto, a previsão da adivinha: ambos seriam grandes, mas inimigos. Esaú e Jacó , pelos motivos expostos, poderia intitular-se Indecisão . As personagens, mesmo as secundárias, não possuem caracteres positivos estáveis; atravessam a obra como criaturas que dão a impressão de incerteza ao primeiro olhar. A figura de Flora não se fixa na memória do leitor sem deixar um rastro de dúvidas quanto à sua preferência por um dos gêmeos. Termina sem chegar a separar Pedro e Paulo, fundindo-os num só, tal como acontecia em suas alucinações. Na forma, Esaú e Jacó , como expressão literária, é uma obra-prima pouco lembrada pelos críticos. Machado de Assis atinge uma superioridade estilística só mesmo inferior à que conquista em Memorial de Aires . As idéias de Machado são como as moedas: possuem duas faces — cara e coroa —; o seu valor, porém, torna-as únicas

SONETOS Florbela Espanca Poetisa portuguesa, natural de Vila Viçosa (Alentejo). Nasceu filha ilegítima de João Maria Espanca e de Antónia da Conceição Lobo, criada de servir (como se dizia na época), que morreu com apenas 36 anos, «de uma doença que ninguém entendeu», mas que veio designada na certidão de óbito como nevrose. Registada como filha de pai incógnito, foi todavia educada pelo pai e pela madrasta, Mariana Espanca, em Vila Viçosa, tal como seu irmão de sangue, Apeles Espanca, nascido em 1897 e registado da mesma maneira. Note-se como curiosidade que o pai, que sempre a acompanhou, só 19 anos após a morte da poetisa, por altura da inauguração do seu busto, em Évora, e por insistência de um grupo de florbelianos, a perfilhou. Estudou no liceu de Évora, mas só depois do seu casamento (1913) com Alberto Moutinho concluiu, em 1917, a secção de Letras do Curso dos Liceus. Em Outubro desse mesmo ano matriculou-se na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, que passou a frequentar. Na capital, contactou com outros poetas da época e com o grupo de mulheres escritoras que então procurava impor-se. Colaborou em jornais e revistas, entre os quais o Portugal Feminino. Em 1919, quando frequentava o terceiro ano de Direito, publicou a sua primeira obra poética, Livro de Mágoas. Em 1921, divorciou-se de Alberto Moutinho, de quem vivia separada havia alguns anos, e voltou a casar, no Porto, com o oficial de artilharia António Guimarães. Nesse ano também o seu pai se divorciou, para casar, no ano seguinte, com Henriqueta Almeida. Em 1923, publicou o Livro de Sóror Saudade. Em 1925, Florbela casou-se, pela terceira vez, com o médico Mário Laje, em Matosinhos. Os casamentos falhados, assim como as desilusões amorosas, em geral, e a morte do irmão, Apeles Espanca (a quem Florbela estava ligada por fortes laços afectivos), num acidente com o avião que tripulava sobre o rio Tejo, em 1927, marcaram profundamente a sua vida e obra. Em Dezembro de 1930, agravados os problemas de saúde, sobretudo de ordem psicológica, Florbela morreu em Matosinhos, tendo sido apresentada como causa da morte, oficialmente, um «edema pulmonar». Postumamente foram publicadas as obras Charneca em Flor (1930), Cartas de Florbela Espanca, por Guido Battelli (1930), Juvenília (1930), As Marcas do Destino (1931, contos), Cartas de Florbela Espanca, por Azinhal Botelho e José Emídio Amaro (1949) e Diário do Último Ano Seguido De Um Poema Sem Título, com prefácio de Natália Correia (1981). O livro de contos Dominó Preto ou Dominó Negro, várias vezes anunciado (1931, 1967), seria publicado em 1982. A poesia de Florbela caracteriza-se pela recorrência dos temas do sofrimento, da solidão, do desencanto, aliados a uma imensa ternura e a um desejo de felicidade e plenitude que só poderão ser alcançados no absoluto, no infinito. A veemência passional da sua linguagem, marcadamente pessoal, centrada nas suas próprias frustrações e anseios, é de um sensualismo muitas vezes erótico. Simultaneamente, a paisagem da charneca alentejana está presente em muitas das suas imagens e poemas, transbordando a convulsão interior da poetisa para a natureza. Florbela Espanca não se ligou claramente a qualquer movimento literário. Está mais perto do neo-romantismo e de certos poetas de fim-de-século, portugueses e estrangeiros, que da revolução dos modernistas, a que foi alheia. Pelo carácter confessional, sentimental, da sua poesia, segue a linha de António Nobre, facto reconhecido pela poetisa. Por outro lado, a técnica do soneto, que a celebrizou, é, sobretudo, influência de Antero de Quental e, mais longinquamente, de Camões. Poetisa de ecessos, cultivou exacerbadamente a paixão, com voz marcadamente feminina (em que alguns críticos encontram dom-joanismo no feminino). A sua poesia, mesmo pecando por vezes por algum convencionalismo, tem suscitado interesse contínuo de leitores e investigadores. É tida como a grande figura feminina das primeiras décadas da literatura portuguesa do século XX.

Estrela da vida inteira de Manuel Bandeira A obra Estrela da vida inteira é a reunião das poesias completas de Manuel Bandeira. Neste livro é possível compreender toda a genialidade deste poeta, que fez com que sua obra seja eterna e passível de ser compreendida e sentida em qualquer época. Seu estilo lírico e ao mesmo tempo despojado certamente continuará atraindo milhares de gerações. Neste livro se encontram poemas que povoam o imaginário brasileiro e que são essenciais para a formação de qualquer leitor. O livro é, na verdade, um conjunto de livros do poeta recifense. São eles: • Cinza das Horas (1917): Nele podemos perceber que o poeta, vindo da tradição simbolista e parnasiana, mantém com ela profundos laços e caminha, paradoxalmente, para uma ruptura dessa tradição. • Carnaval (1919): Muito bem recebido pela nova geração da época e por parte da crítica especializada. É um livro sem unidade. Sob pretexto de que no carnaval todas as fantasias se permitem, segundo o próprio poeta, admitiu na coletânea uns fundos de gaveta, três ou quatro sonetos que não passam de pastiches parnasianos, e isto ao lado das alfinetadas dos `Sapos´. O poema “Os Sapos” é uma sátira ao parnasianismo e foi lido por Ronald de Carvalho durante a Semana de Arte Moderna, no Teatro Municipal de São Paulo, em 1922. O poema seria considerado uma espécie de hino nacional dos modernistas. • Libertinagem (1930): Com a publicação deste livro, pode-se dizer que a poesia de Bandeira amadureceu definitivamente, no sentido de uma liberdade estética. Além disso, o poeta consolidou sua temática existencial e explorou com mais freqüência as cenas e imagens brasileiras. Poemas que se transformaram em clássicos: "Não Sei Dançar", "Pneumotórax", "Poética", "Evocação do Recife", "Poema tirado de uma Notícia de Jornal", "Teresa" e "Vou-me Embora para Pasárgada". • Estrela da Manhã (1936): Bandeira tinha 50 anos quando, sem encontrar editor, publicou, sem ter recursos financeiros, 50 exemplares (papel doado e impressão custeada por subscritos). Alguns músicos como Jaime Ovall e Radamés Gnatali, entre outros, interessaram-se por seus textos. Em 1945, o poeta compôs as letras para uma série de canções, a pedido do maestro Villa-Lobos, que queria composições tipicamente brasileiras para serem cantadas em ocasiões festivas. Foram reunidas com o nome de Canções de Cordialidade (“Trem de Ferro”, ”Berimbau”, "Cantiga”, “Dona Janaína”, ”Irene no CÉU”, ”Na Ruia do Sabão”, “Macumba do Pai Zuzé”, “Boca de Forno”, “O Menino Doente” e “Dentro da Noite”, publicados em outras obras. • Lira dos Cinqüent'Anos (1940): Publicação de emergência, o primeiro convite que o poeta recebeu de uma editora. Bandeira candidatou-se à Academia Brasileira de Letras. • Belo Belo (1948): Esse título foi tirado de um poema da Lira dos Cinqüent'Anos. Numa edição posterior, de 1951, foram acrescentados alguns poemas. • Mafuá do Malungo (1948): Livro publicado na Espanha por iniciativa de João Cabral de Melo Neto. Mafuá significa feira popular, malungo é um africanismo, significando companheiro. Nesse livro, Bandeira faz jogos com as primeiras letras das palavras, faz também sátiras políticas, brinca “à maneira de” outros poetas. • Opus 10 (1952-1955): A expressão do título vem do universo da música. A palavra latina Opus indica genericamente obra, composição, e o número indica a posição de determinada peça num conjunto de composição do autor. Nomeando um livro seu a partir de uma expressão tomada no universo da música, Bandeira ressalta a importância da música e da musicalidade em sua obra. • Estrela da Tarde (1960): Reeditado em 1963, com novos poemas. É a maturidade do poeta completo que Bandeira já é ao tempo deste livro, onde ele tanto retorna ao soneto tradicional (reinventado na sua poética), como se utiliza de recursos gráficos – talvez inspirados nas vanguardas contemporâneas - na montagem de poemas como “O Nome em Si”.

Vestido de noiva Nelson Rodrigues A peça inicia com buzina de automóvel, barulho de derrapagem violenta, vidraças partidas, sirene de ambulância. O cenário é dividido em três planos, que o autor denomina: alucinação, memória e realidade. Os sons ouvidos referem-se ao atropelamento de Alaíde, que é levada a um hospital. O plano da realidade encena a luta de Alaíde contra a morte, em estado de coma, na mesa de operação, bem como os acontecimentos que sucedem o atropelamento: a movimentação dos repórteres, a reclamação de uma leitora de um jornal sobre o abuso de velocidade dos automóveis, a conversa do marido, Pedro, com os médicos, a morte da protagonista, o velório, o luto dos parentes, e finalmente o casamento de Pedro com Lúcia, irmã de Alaíde. Os planos da memória e da alucinação apresentam no início da peça uma certa definição, para irem-se interpretando à medida que a ação evolui. Esses dois planos são projeções exteriores do subconsciente de Alaíde, uma mulher inconformada com a condição feminina na classe média alta carioca, o que provoca nela um desejo irresistível de transgredir: como se tentasse realizar-se adotando as regras de um jogo adverso, ela seduz todos os namorados da irmã, e acaba casando-se com o último deles, Pedro. A irmã promete vingança, e, depois de algum tempo, quando o casamento entra naquela fase de tédio, trama com Pedro a maneira mais extremada de descartar Alaíde: seu assassinato. Alaíde, nos dias que antecedem o acidente, parece desconfiar que estava jurada de morte, e, enquanto definha na sala de cirurgia, tenta reconstruir em sua mente os acontecimentos passados, misturando-os ao seu delírio, à satisfação dos desejos reprimidos. Em sua alucinação, misturada com a memória, Alaíde encontra na figura de Clessi apoio para a reconstrução dos fatos passados e da revelação subconsciente de seus desejos, entre os quais o assassinato de Pedro, como retaliação à trama macabra que ele perpetrara de acordo com sua própria irmã. Neste universo social, a permissão da vivência sexual para a mulher só ocorre de uma entre duas maneiras: ou ela se casa de acordo com os preceitos religiosos e sociais, ou ela transgride tudo, tornando-se prostituta. No caso de Alaíde, ela acaba conseguindo ter acesso ao sexo na vida real e uma tentativa no subconsciente, em sua amizade com Clessi. Inconformada com as convenções sociais repressoras da mulher, Alaíde não consegue em vida opor-se a elas, mas consegue manipular as pessoas com seu poder de sedução. Perto da morte, seu desejo de transgressão toma corpo e salta aos olhos nas cenas em que se torna amiga da prostituta e consegue inclusive matar, com a maior frieza, o marido traidor. Ninguém presta, nesta peça: Alaíde é neurótica e oportunista, Pedro e Lúcia são presumidos assassinos e hipocritamente se casam, com o consentimento dos pais de Lúcia e da inexpressiva mãe de Pedro. Alaíde é a protagonista de Vestido de Noiva. É uma mulher insatisfeita e inconformada com a condição feminina. Seduz os namorados da irmã como uma tentativa de auto-afirmação, que a faz parecer melhor aos próprios olhos. É como ela diz a Lúcia, em tom de provocação: "Eu sou muito mais mulher do que você - sempre fui! Após conquistar Pedro, que se torna seu marido, demonstra um certo desinteresse e frustração pela vida de casada, ao mesmo tempo em que se sente ameaçada de morte por Pedro e Lúcia. O atropelamento é um desfecho trágico da tensão dos últimos dias da protagonista, e tanto pode ser suicídio como acaso ou assassinato. Em seu delírio e lembranças, reconstrói no subconsciente as injustiças de que se julga vítima e revela seu fascínio pela vida marginal de Madame Clessi. Lúcia, irmã de Alaíde, aparece em quase toda a peça como Mulher de Véu. É uma pessoa também insatisfeita, incompleta, que vive atormentada pelo sentimento de ter sido passada para trás pela irmã. Parece ter conseguido uma grande vitória com a morte de Alaíde e seu casamento com Pedro, mas as cenas finais sugere que ela não estará melhor em seu casamento do que Alaíde em seu túmulo. Pedro é o elemento dominador, é quem manipula as mulheres para conseguir o que quer. Namora Lúcia inicialmente, deixa-se seduzir por Alaíde, com quem se casa pela primeira vez, e depois concebe um plano macabro de eliminar a esposa para retornar aos braços da irmã. É o industrial bem sucedido, que representa o bom partido para as moças casadoiras que conseguirem fisgá-lo, mesmo sabendo que viveram à mercê do macho opressor. Madame Clessi é a prostituta do início do século que povoa a mente de Alaíde, desejosa de viver um mundo de sensações picantes. Ela havia residido na casa de Alaíde décadas atrás, e os pais da protagonista resolvem queimar seus pertences, alguns dos quais são salvos, inclusive o diário. Clessi representa (para Alaíde) o ideal de mulher liberada, que agride a sociedade hipócrita que Alaíde nega, mas na qual ela transita.

Toda poesia Ferreira Gullar Precursor do concretismo paulista e autor do Manifesto Neoconcreto de 1959 (que seria a ponta de lança do movimento que reuniu artistas plásticos como Amilcar de Castro, Lygia Clark, Ligia Pape e Franz Weissmann), Ferreira Gullar é um vanguardista que, após implodir a linguagem, quis implodir a própria idéia de vanguarda em nome do engajamento político. A virada na obra do poeta se deu com dois ensaios dos anos 60 que acabam de ser reeditados em um único volume: Cultura posta em questão e Vanguarda e subdesenvolvimento (editora José Olympio). Nascido em São Luís do Maranhão em 1930, o autor de Muitas vozes mudou em 1951 para o Rio de Janeiro – onde levou a experimentação formal, iniciada com A luta corporal, até o radicalismo do Poema enterrado (1959): uma sala subterrânea, construída na casa do pai do artista Hélio Oiticica, em que três cubos de madeira de diferentes tamanhos contêm a palavra “Rejuvenesça”. A partir daí, Gullar dá uma guinada em sua vida e em sua poética, ingressando no Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC-UNE), fazendo a crítica do “internacionalismo” das vanguardas (“toda criação estética nasce do particular”) e, paradoxalmente, produzindo alguns dos livros mais inovadores da literatura brasileira contemporânea – como o Poema sujo, escrito na Argentina em 1976, marcando o fim de um período de exílio que, a partir de 1971, o levou sucessivamente a Moscou, Santiago, Lima e Buenos Aires. ENTREVISTA: Cult – Fazia diferença dizer isso tendo sido um vanguardista? F.G. – Eu não era um cara alheio à vanguarda que resolveu criticar a vanguarda. Eu levei a experiência de vanguarda na poesia brasileira mais longe do que qualquer um por aí. Eu sabia do que estava falando. O que eu coloquei foi o problema de uma vanguarda internacional que desconhecia, como desconhece, as características dos países. Já tinha havido em 1959, na Bienal de São Paulo, a experiência do tachismo [escola pictórica de origem francesa que utiliza “manchas” – em francês, taches – sobre a tela]: você andava pela Bienal e em todos os estandes nacionais – fosse japonês, argelino, brasileiro ou francês – era a mesma coisa, eram só obras “tachistas”, só quadros com manchas, quilômetros de pinturas sempre iguais. Uma monotonia, uma pobreza, sem qualquer marca peculiar de cultura. Minha defesa do caráter nacional da arte não era nacionalista, pois nunca fui chauvinista, mas partia da consciência de que toda criação estética nasce do particular, e não do geral. A ciência pode nascer do geral, pois procura leis e conceitos universais; mas a arte nasce do particular. Cult – E onde está a arte brasileira com traços particulares? F.G. – A arte brasileira é o Siron Franco, o João Câmara, o Franz Weissmann, o Marcelo Grassman, com suas gravuras belíssimas. É claro que esta arte não vai competir com esse mundo disparatado do Big Brother ou da arte em vídeo, que é uma coisa chatíssima e que só existe para curadores. As pessoas vão procurar onde está o ser humano, que muitas vezes pode estar numa pequena gravura ou num quadro. Há um ano eu assisti a um espetáculo na Urca, para um público de cinco pessoas, encenado no quarto de uma casa. Sabe o que estava sendo encenado lá dentro? Crime e castigo [adaptação do romance de Dostoiévski], uma experiência incrível. Enquanto o mundo vai ficando globalizado e massificado – o que vai contra o ser humano, porque ninguém nasceu para morar em cidades do tamanho de São Paulo ou da cidade do México e por isso as pessoas vão se juntando e criando pequenas tribos –, a verdadeira arte está sendo feita para pequenos grupos de pessoas que ainda se comovem. Cult – Isso inclui a poesia? F.G. – O poeta não está nisso. A poesia, felizmente, não tem mercado e por isso não foi arrebatada por essa loucura. Eu costumo dizer que a poesia não vale nada, não tem nenhum valor... no mercado; ela só tem valor para as pessoas que a amam. Cult – Voltando à questão das vanguardas: você disse em entrevista aos Cadernos de Literatura do Instituto Moreira Salles que sua fase neoconcreta não expressava o Brasil. Mas uma poesia subjetiva, visceral, com a de A luta corporal não é também uma forma de expressão da realidade? F.G. – Eu me referia especificamente ao neoconcretismo; eu quis dizer que o caráter abstrato, desvinculado da realidade geográfica e social, do concretismo e do neoconcretismo, não expressava aquele momento de efervescência do Brasil. Eu não quis dizer que não era expressão de nossa vida cultural, mas que não era expressão de nosso momento político; eu era desligado dessa realidade, tanto que, a partir do momento em que me engajei no CPC, comecei a ler e aprender sobre o Brasil. Eu sabia muito mais sobre literatura francesa, sobre o cubismo ou sobre o romantismo alemão do que sobre o Brasil. Eu era um analfabeto em Brasil. Depois disso, minha poesia se tornou muito mais próxima da realidade social.

Levantado do Chão José Saramago Sobre seu estilo, o próprio Saramago define como um momento "dos mais belos de sua vida de escritor". Quando escrevia Levantado do Chão (1982), seu primeiro sucesso editorial, na forma de um texto convencional, ele conta: "Sem saber como, sem ter pensado nisso, começo a escrever como se tivesse contando aquela história, e contando aquela história, conto-a sem pontuação, da mesma maneira como falamos, com sons e pausas". E complementa: "Abolir a pontuação não foi decidido por alguém que quer escrever algo novo. Foi resultado lógico da aceitação de um tipo de narração que se confunde muito com a oralidade, tem a ver com essa mágica do conto oral. (...) O que eu quero é que o leitor ouça... ouça aquilo que está no livro" (ZERO HORA, 1998). Levantado do Chão, de 1980, título que simboliza, nesta hora, com perfeição, a vida e a produção literária de um autor que conheceu o desalento e a incompreensão mas que soube porfiar, erguendo-se do chão, qual fértil campo espiritual que Saramago cultivou e que neste dia frutificou de uma forma perene. Nesta obra de 1980, Saramago eleva em epopéia a vida dos trabalhadores alentejanos, em três gerações de dor e sofrimento, viajando como narrador (que se trata a si próprio como «o narrador») entre o passado do século XV e o tempo do presente acompanhando Domingos Mau-Tempo, o seu filho João, os seus netos António e Gracinda, casada com António Espada, personagem importante na diérese. A diferenciação existente entre Levantado do Chão e a tradição do romance histórico é mais nítida no estatuto do narrador e nas funções das personagens. Quanto ao primeiro aspecto, notamos a existência de um narrador que acompanha a ação, comenta e critica, em onisciência, que usa o aforismo ou a profecia levando o leitor a incorporar-se no texto numa dialética ativa entre passado, presente e futuro, na qual ele é guia e consciência. As personagens são alvo da análise objetiva até à exposição do estatuto fictício e de inverosimilhança numa mistura de realista e ficcional, que é apresentada ao leitor revelando a meta-ficção histórica. A reconstrução do romance histórico em Saramago tem na personagem, como já indiciamos, outro exemplo de subversão. Na tradicional ordenação das personagens do romance histórico, podíamos encontrar o protagonista-tipo, representante das evoluções do momento histórico-social e as figuras históricas típicas. Estes elementos são a antítese em Saramago. A história contada por Saramago atravessa vários períodos de Portugal, desde a época da monarquia, no início do século XX, o fim da monarquia, a república, a ditadura e a volta da liberdade no final do século XX. Personagens 1ª geração: Tempo de silêncio. São pessoas acuadas pela religião, pela opressão do governo e exploradas pelos donos das terras. A vida é marcada pelo conformismo e não vêem nenhuma perspectiva de mudança. É representada por Domingos Mau-Tempo 2ª geração: tempo das perguntas. Os homens passam a questionar sua situação e a ver que algo pode mudar e que a mudança depende deles, da sua coragem para enfrentar os donos das terras , o governo e se revoltar contra a Igreja. É representada por João Mau-Tempo 3ª geração: Tempo da luta. Os homens passam a fazer greves e a lutar pelas mudanças que desejam. Nesse período, muitos são presos e outros tantos morrem. Manuel Espada é o revolucionário que marca essa época.

MORANGOS MOFADOS CAIO FERNANDO ABREU Morangos Mofados, Caio Fernando Abreu (Contos. Editora Brasiliense; São Paulo; 6º edição; 145 páginas, 1985). Como cenas rápidas de um trailer narrando histórias em busca de um sentido para o mundo. Ao fundo, músicas (rock, blues, tango, MPB) ajudam na composição do cenário, embalado em ritmo quase cinematográfico. Imagens explodem em palavras lapidadas, manifestadas em dores, angustias, fracassos, encontros e desencontros, esperanças, enfim, milhões de sentimentos misturados, costurados em pequenas teias a formar um enorme mosaico de emoções que marcou uma época. E ainda continua a identificar gerações e gerações que se sucedem após o lançamento apoteótico da obra. Dividida em três partes, Morangos Mofados é, sem dúvida, a composição mais conhecida de Caio Fernando Abreu. A primeira parte, intitulada “O Mofo”, narra a queda de valores, dos amores, a solidão, a fragilidade humana, a embriagues, o consumo de drogas, o desespero, o desamor, a dor na forma mais fria e crua. Escrita de forma precisa, quase cirúrgica, Caio vai nos apresentando uma série de personagens anônimos, que ao final se personifica em uma única pessoa: o autor? Ou, quem sabe, até mesmo qualquer um de nós. O gosto amargo da derrota, cheirando a mofo, a vômito, a vodca barata, a cigarros. Uma melodia sentimentalmente melancólica ao fundo. Escuridão e desencontros. O gosto da solidão esculpida em delírios da alma. Encravada em labirintos tortuosos e escuros de forma magistral. A sensação é idêntica à saída de uma montanha-russa. “Os Morangos”. Aqui, uma paz tranqüilizadora invade de forma mágica a alma das personagens. Como se a existência de um final feliz fosse possível e breve, ou como se a vida fosse menos pesada. O doce levemente ácido do morango fundindo na língua, mostrando um belo dia de sol após uma tempestade. Mas o doce dá espaço para a acidez, transformando pedaços de magias em mágoas e solidão. Enquanto o dente fere o vermelho brilhoso do morango, na boca permanece o gosto azedo do preconceito, do medo, dos sonhos perdidos, das utopias transformadas em contas bancárias. O enjôo natural dos abusos. Dos delírios causados pelo excesso de cocaína Histórias envolvendo vagabundos (giramundos), hippies sem destinos, loucos, comunistas, yupes desenfreados, compulsivos, sargentos, preconceitos, estupidez, falta de amor. Dos sonhos de uma geração apodrecendo na latrina comum. Das vidas apodrecendo em latrinas fétidas comuns. A paz tão perto e tão distante que os rápidos movimentos de nossos olhos não conseguem captar. Tampouco poderiam. “Morangos Mofados”. A terceira parte. Com os olhos fechados, ouço “Let me take you down, ’cause I’m going to Strawberry Fields. Nothing is real and nothing to get hungabout. Strawberry Fields forever.” Como se eu estivesse em um universo paralelo, um refúgio, um abrigo, uma morada longe, mas dentro, do caos urbano. Uma espécie de esconderijo para se abrigar da chuva tóxica, ou dos desatinos do coração. Enquanto imagens explodem diante de nossos olhos cansados, ao fundo, o som dos Beatles vai levemente aumentando, aumentando… Caio nos deixa com a boca aberta, o livro nas mãos e o pensamento longe, imaginando: E se a vida fosse diferente? Para ler e reler sempre que a saudade – ou a dor – falar mais alto. Os morangos mofados, como estrangeiro em sua terra natal, ou girassóis no inverno enfeitando os pastos da Rússia, ou uma Guerra Santa… O cheiro e o gosto do mofo ultrapassam toda a simbologia poética do morango.

Ponciá Vicêncio Conceição Evaristo Exemplo de romance afro-brasileiro, falando da identidade negra, Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, vai de encontro à tese segundo a qual a escrita dos descendentes de escravos estaria restrita ao conto e à poesia. Além de estabelecer um saudável contraponto com o abolicionismo branco do século XIX e com o negrismo modernista de um Jorge Amado, um José Lins do Rego ou Josué Montello, Ponciá Vicêncio remete ao Isaías Caminha, de Lima Barreto; em menor escala, ao Brás Cubas, de Machado de Assis; e, com certeza, ao memorialismo de Carolina Maria de Jesus e ao Ai de vós, de Francisca Souza da Silva, entre outros. Em todo o romance percebe-se a prosa recheada de linguagem poética. A obra nos narra pequenos acontecimentos do cotidiano, mas o seu olhar transcende o automatismo viciado com que se observam as coisas do diaa-dia para olhar com essência a poesia da vida. O texto de Ponciá Vicêncio destaca-se também pelo território feminino de onde emana um olhar outro e uma discursividade específica. É desse lugar marcado pela etnicidade que provém a voz e as vozes-ecos das correntes arrastadas. Vê-se que no romance fala um sujeito étnico, com as marcas da exclusão inscritas na pele, a percorrer nosso passado em contraponto com a história dos vencedores e seus mitos de cordialidade e democracia racial. Mas, também, fala um sujeito gendrado, tocado pela condição de ser mulher e negra num país que faz dela vítima de olhares e ofensas nascidas do preconceito. Esse ser construído pelas relações de gênero se inscreve de forma indelével no romance de Conceição Evaristo, que, sem descartar a necessidade histórica do testemunho, supera-o para torná-lo perene na ficção. A história de Ponciá Vicêncio, contada no romance, descreve os caminhos, as andanças, as marcas, os sonhos e os desencantos da protagonista. A autora traça a trajetória da personagem da infância à idade adulta, analisando seus afetos e desafetos e seu envolvimento com a família e os amigos. Discute a questão da identidade de Ponciá, centrada na herança identitária do avô e estabelece um diálogo entre o passado e o presente, entre a lembrança e a vivência, entre o real e o imaginado. Descendente de escravos africanos, Ponciá surge já de início despojada do nome de família, pois o "Vicêncio", que todos os seus usam como sobrenome, provém do antigo dono da terra e era como lâmina afiada a torturar-lhe o corpo. Essa marca de subalternidade, que denuncia a ausência entre os remanescentes de escravos dos mínimos requisitos de cidadania, estende-se pelo penoso circuito de vazios e derrotas, no qual tanto a menina quanto a mulher vão sendo alijadas dos entes queridos e de tudo o que possa significar enraizamento identitário. E depois de perder também os sete filhos que gerou, Ponciá cai na letargia que a faz perder-se de si mesma. Ponciá vai em busca de dias melhores na cidade, mas acaba desterritorializada numa favela, vegetando ao lado de um marido que não a compreende. Sua descendência escrava vai se confirmando na vida difícil que leva, nos sonhos apagados pela discriminação e pela marginalização que tanto ela, quanto os outros de sua família sofrem. Sua condição social e cultural continua, portanto, sendo regida pelo passado africano. Sua trajetória do espaço rural para o urbano representa sua condição diaspórica. A passagem em que a menina faz a viagem de trem para a cidade confirma isso: O inspirado coração de Ponciá ditava futuros sucessos para a vida da moça. A crença era o único bem que ela havia trazido para enfrentar uma viagem que durou três dias e três noites. Apesar do desconforto, da fome, da broa de fubá que acabara ainda no primeiro dia, do café ralo guardado na garrafinha, dos pedaços de rapadura que apenas lambia, sem ao menos chupar, para que eles durassem até ao final do trajeto, ela trazia a esperança como bilhete de passagem. Haveria, sim, de traçar o seu destino. Também o irmão de Ponciá, Luandi, vai para a cidade em busca de sonhos como achar a irmã que há muito havia partido e juntar dinheiro. Sua viagem também marca a diáspora daqueles que, desterritorializados, perpetuam as histórias do navio negreiro. Luandi chega à cidade sem eira nem beira. Tinha perdido pelo caminho o endereço da irmã. Chegou num dia de chuva e frio. Trazia muita fome também. Outra personagem que embarca no trem negreiro em busca dos filhos é a mãe de Ponciá e de Luandi: Maria Vicêncio. Em um dos capítulos do livro, o narrador nos diz que ela sabia que, por mais que relutasse, um dia a cidade também faria parte de sua travessia. Não sentia desejo algum pela aventura da viagem. Se a sua vida era a da terra, em que ela vivia, o que faria longe de lá? E a viagem de Maria Vicêncio ocorre semelhante a dos filhos: Quando o trem, depois de intermináveis dias e noites, parou na estação, Maria Vicêncio esticou as pernas com dificuldade. Ficara todo tempo da viagem encolhida com a trouxa no colo, rezando suas orações. Sentiu a bexiga pesada, estava com vontade de urinar, mas o medo não permitira que ela se levantasse e fosse ao banheirinho do trem ou mesmo dos lugarejos em que máquina parava.

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