Lisboa Agosto De 1988 (ricardo Rocha)

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Lisboa, agosto de 1988   Ricardo de Almeida Rocha nasceu no dia 27 de setembro de 1953 em Vitória, ES. Trabalhou como auxiliar de biblioteca,  escriturário e mecânico de trens. Casou­se aos dezenove anos com Lívia com quem teve dois filhos. Em 1987 viajou  para Portugal onde viveu por dois anos. Lá, escreveu o primeiro livro, “Lisboa, agosto de 1988”. Esse romance fala da  relação entre o fato histórico e os dramas anônimos, por meio de analepse e da prolepse, utilizando o monólogo  interior. 

Sexta‐feira, 25 de Abril de 2008 Não estou em qualquer das aparências de mim. Estou sozinho. Bem, não exatamente sozinho. Há a luz, as cintilações à superfície do rio. Um vagão. Um vagão cheio. Continue escrevendo, meu querido, tem de haver uma razão por que estejamos aqui; e escrever é antes isso – um fazer que não se origina no desejo de partilhar uma mensagem ou em uma visão. E sim em que, ao contrário, não sabemos, e queremos saber. Precisamos. Ou talvez eu só esteja bêbado, apenas isso. Mas não bebi nada, como é possível? O que há de errado comigo? Postado por Ricardo às 05:38 0 comentários

Sábado, 19 de Abril de 2008

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Arquivo do blog ▼ 2008 (12) ▼ Abril (4) Não estou em qualquer das aparências de mim. Estou... Assim? Para quê? Era para avaliar o potencial de p... Chegara a Portugal com objetivos seculares, um emp... 9 ► Março (8)

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Assim? Para quê? Era para avaliar o potencial de produção. Não saberia. Assim! – e ensinou. Pelas pontas das plantasse multiplica o numero de pés de onde estão saindo e divide‐se por três. Ele não entende e não entenderia nem se fosse uma conta simples. Do vestidinho erguido, pela abertura de algodão, esticada pelos adutores, sobre as carnes firmes, grácil, a pele exibe pontos sibilantes de arrepio. Ele me ama ou só me deseja? Qual a diferença? Ele mesmo, só muito tempo depois pensaria a respeito. Naquele momento apenas cresce ao sabor do vento, folha à deriva, barco que ao som do mar mistura um ruído agudo, um uivo, se mexe no mesmo lugar como a mão que imita as ondas. Olha só, numa mancheia dolhos eu conto cinqüenta pontas vindas de dez pés. Ah. Entendo. Você quer dizer que cinqüenta vezes dez, quinhentos, que divididos... pelo que mesmo? Ela ri. Ele sente a menta. Os seios redondos como a tal conta, por acaso e também porque. Raios do sol de inverno ao meio dia. Atravessam a copa da mangueira, pulsando na abertura da copa que à brisa se formava e fechava. Será que ele pensa no primeiro encontro, em Ribeirão? A mulher não separa o sexo do amos, mesmo as liberadas. Talvez essas quisessem, mas não é possível, não é possível, pensa Blandine quando de leve seus lábios se tocam. Ah, ela lembrava, sim, desde o primeiro momento que olhou para ele soube que era ele, descartou sua independência embora fosse o que mais prezasse, em teoria, não queria a piedade futura dos filhos como ela se apiedava dos pais, não era o que viveram juntos o que Blandine queria, não queria como Donda um lar para ser rainha e nem mais tarde a solidão da mãe que vive para os filhos, quando não vive a própria vida dos filhos. Sou mulher. Descobrirei o que significa. Agora, perto do milho, sob a mangueira, era só a missa que o sino anunciou. Ela propõe o casebre abandonado que dava para o lago. Ali se fez mulher, passe o clichê, como todos muito falso, se fez mulher com a convicção do artista que se exibe sabendo que é a hora do seu sucesso. O sangue não vertia, acariciava. Haveria outros momentos sob o céu da bem‐aventurança. Não só entre ela e Christian, também com um outro. Falo sério, Blandine, nunca senti isso por ninguém, nunca conheci uma mulher como você. Você conhecerá muitas mulheres, Pablo, irá conhecer uma que terá sido feita para você, tem só dezesseis anos, menino. Onde está o problema? O adolescente a conquistou. No amor era amante experimentado, Pablo, ela não podia entender como. Deixou‐se então levar, quase durou. Mas Christian. Christian fora o do pacto – todavia tampouco. Ah, quando o viu no milho com Kleber! O amor de sua vida. Momentos únicos aqueles, talvez como o primeiro cavalgar pelos cafezais. Nunca mais desde então. Quando, cinco anos depois, o revê. A musica do tempo sobre o lago. Não sabe se deverá tornar‐se os dias que transcorrem ou apenas sonhar de longe. O aroma cítrico, amadeirado. O rosto querido exposto ao êxtase é céu de roça, distante de si mesmo e de qualquer vínculo com a cidade. Gosto de amêndoa, a ilusão da afinidade, ou do poder da afinidade, na verdade um poder de si mesmo, nunca do outro, do relacionamento. O doce da mãe, de Donda, a calda na ponta dos dedos médio e indicador. Cinco anos se passaram. Nossa!, não parece... Fino, o fio não irá açucarar depois de frio? Desfalecimento. Espaços, espasmos, espírito espargido sobre a carne se apressando ao pedido de que fosse, por favor, sim, aplacado. O prazer. Que silencio é esse que precede o percurso interminável da mao não ser pela mão que acaricia? Como num movimento ensaiado, levantam simultaneamente o olhar das pedras

do calcamento. O ruído do motor do caminhão, distante, dá a idéia do minuto passado, como uma canção que insiste na mente após dormirmos. As ruas molhadas são almas, indicio definitivo. As brasas de uma fogueira não utilizada ardiam ao sol e a fumaça ao ar se misturava, ou era o próprio ar em seu caminho. A vida segue. Cabe ressaltar, antes dos corpos, do desejo e até da pessoa perante, o sonho ausente se faz pressentir – onde as afinidades convergem, miudezas partilhadas, o gesto adivinhado, o olhar desdenhando da palavra, almas trocadas como endereços em furtivos bilhetes cifrados que tudo deixam impresso na leitura da grafologia. Falo de amor, de um movimento da vida que segue mas súbito quis parar, cuja realidade apesar dos pesares é o corpo vivo, e apenas ele. De uma eternidade que, diferente de todas as montanhas, não se pode contornar. Está sempre ali, permanente e atemorizadora, contra a qual nada podem a arrogância, o medo ou a esperança, esse poder de é feito o eu inatingível. A fome na saciedade. Se estava escrito que eu deveria ser de Blandine, o sinal não foi o amor físico, sempre ao corpo limitado, mas a calma do dia seguinte, na espiritualidade que abandonara a busca de Deus para se concentrar na beleza qualquer. Não só o desejo, carente de outro corpo, mas a ternura anterior, mesmo em meio ao fetiche. O corpo do destino se forja na tortura, um sentimento que se pode escolher – falo de amor – dúctil ao arbítrio, rosa que floresce do cultivo, ninho com cuidado preparado. Pedi licença e entrei no restaurante para ir ao sanitário. Ao apanhar o papel higiênico no bolso, tirei junto a carteira, tive esse cuidado, perder documentos seria agora desastroso. Numa das separações plastificadas, aquela mesma foto dela, Blandine e uma foto recente de Francesca na casa de praia, soberba num biquíni clássico. Francesca. Separados na maior parte do tempo por causa do pub, ela crescera – não há a luz de nada saber acerca da cor? Por outro lado, Blandine deixara de ser por estar súbito ali a meu lado? A madeira se dá, generosa. Não escuta um único agradecimento junto aos gemidos do fogo. O calor abafado no cubículo. Sou a menina das montanhas, sou teus sonhos, a própria montanha. Mas. Ao lado do restaurante, a boate. A mulher que não dormira e sim morrera. Subíamos a viela cheia de latas. Célere uma ratazana passou à nossa frente na direção do lixo amontoado pelo pessoal da prefeitura que precedia os caminhões. Surgido do nada, o gato branco que, havia pouquinho, recebia nosso afago, saltou e a abocanhou. Por que os animais tem de ser maus se são criaturas sem arbítrio do próprio Bem? Eu não podia acreditar... O tempo tanto passara e ela ainda desviava para questões genéricas sem solução a nossa conversa que pedia o momento particular. Um ônibus passou raspando ao atravessarmos a avenida. Ela continuou. Está vendo? Para o sofrimento do homem há uma justificativa – Me dá licença um instantinho? Deve ter sido o chá do hotel. Agora estamos na esplanada à saída da boate. O garcon se aproximou, ouviu meu pedido, gritou para a cozinha e foi apanhar vinho verde no freezer. Na boca do metrô, não muito longe, dorme um mendigo. Blandine aponta. O quê? Para o sofrimento do homem, sim, cabe uma explicação natural, como no caso da miséria – ela parece recitar – quando o quinhão que satisfaria as necessidades do semelhante é retido... Eu praticamente acabara de voltar do sanitário. Estava meio sem alternativa. Será que esqueceu que conheço o discurso? Agora falará das guerras. – Como no caso das guerras... No queixo dela os mesmos seios tristes de quando da minha partida de Piumhi. Não, na verdade não. O queixo estava mais cheio, um queixo sedentário, financeiramente seguro. Mas os vértices dos lábios carnudos mantinham ângulos precisos de generosidade. Isso não perdera. Foi quando comecei a pensar em felicidade conjugal. Em como pode haver sensualidade, família, amor à arte e tudo mais, debaixo de um mesmo teto, na vida de uma casa. Aquela era uma esperança assassinada? Mas que esperança exatamente? Desejo generalizado de tal modo que todo produto, de margarina a tênis, e todo serviço, de banco a telefone, se vende na propaganda por meio da idéia de uma família feliz, de valores equilibrados de beleza, forca, trabalho e lazer. De uma casa viva? O amor ou a arte na verdade não são indispensáveis nesse quadro, exceto pelo conforto, pelo bem‐estar que nada intensifica. Não que o mal‐estar o faça. Então o quê? Como teríamos sido sem a separação? Me chamaria de “papai” diante dos filhos ou usaria amor como quem diz por favor? Teria se mantido aquele desejo – se estabelecidos, sem tédio; se em dificuldades sem brigas? Eu não mais olharia para outras mulheres? Seria eu o bastante para ela? Dependeria nossa harmonia da conta no banco e minha sutil de um equilíbrio sutil entre lar e motel, mantido no mesmo quarto? O segredo de tudo, pensei, é se manter pensando. Isso mesmo. A maldição do homem é se acostumar. A literatura seria ainda essencial se tivéssemos casado? Nossas mãos dadas sobre a mesa. Tato, pressão, imperceptível movimento. Quanto é delegado à pressão das mãos! Blandine, até que ponto você vai levar isso? Tirei o envelope do bolso e comecei a desdobra‐lo, solene. As guerras... Quis prestar atenção nas silabas, para não trocá‐las, mas a luminosidade embaça

Quis prestar atenção nas silabas, para não trocá‐las, mas a luminosidade embaça tudo, a partir do contato das mãos e dos olhares. O que podemos fazer em relação às guerras? O que devia nos importar era a nossa paz! Apaziguar o “Atântlico” no mediterrâneo ou talvez... ‐ Atlântico, Christian. Odiava quando ela me interrompia e muito mais se era para me corrigir. Ele continua tão lindo, com esse jeitinho de trocar letras e gaguejar, um doce... – A guerra é sem dúvida muito mais importante que nossa vida pessoal, meu amigo. E isso aqui o que é, perguntei apontando a carta. Você pensava em que guerra quando escreveu isso? (li alto) “ Você não é capaz de transmitir tranqüilidade a uma mulher, como o Luis é”. Mas não pára em casa. O que você queria, pensou ainda, quando ele vem traz o sustento, as roupas, as viagens. “E no entanto como sofri e como sofro por sua causa, desgraçado!” Uma lágrima! Uma lágrima nos olhos dela! Sim, uma dor tão grande que é quase física... Mas não posso, não mostrar qualquer emoção, chega. A dor. Uma rede de terminais nervosos. Outras impressões podem ter ou não relevância – a voz dela continua doce, tranqüila, pausada, sua língua sai ainda ligeiramente nas proparoxítonas – mas a dor tem sempre relevância, porque é o alarme, porque pode ser a salvação. Ela me olha com bondade. Aliás, você deve ter mais esse tipo de noção, por causa da enxaqueca. De ter aprendido a viver com a dor. Viver com a dor. Ainda tem as crises com tanta freqüência? Pensei com surpresa o quanto as dores haviam melhorado, o quanto as crises se haviam espaçado. Isso na pior fase de minha vida, com pressão de trabalho, ausência de afeto, fome, relento. – Tenho estado melhor. A enxaqueca é um sinal vago dum perigo remoto porque, imagino, é possível viver uma vida plena ou quase com enxaqueca, sem maiores danos físicos ou psicológicos. Não é? Respirando fundo, sinto o mundo para o qual foi necessário nascer de um vento que juntasse vida e virtude e ainda assim... É verdade. É possível. Sim. Viver com dor. Superar. Quando você realmente quiser, quando achar conveniente, quando estiver se sentindo à vontade para – Essa é a utilidade da dor, quando adverte e não incapacita mas motiva, fortalece. O perigo maior do qual alerta é a gente se acostumar com a sua ausência. Blandine morde o lábio inferior, que se deforma ligeiramente entre a brancura extraordinária de seus dentes frontais, transparentes, úmidos, luzindo. Eu mudei, Christian: era a menina Blandine, que não conhecia a dor, agora sou apenas Blandine. A virgem entregue ao herói. A minha menina. Ergueu ‐se das pedras um horizonte que em meu peito amou como ninguém antes jamais. Não há por que uma excluir a outra. Você não assume a carta? O raio da estrela transpassa a ambivalência dos sentimentos que se negam, densa em ondulações de memória. Nem lembro da carta para assumir ou não. Justamente por isso ele estava lendo. Disseram juntos Eu Você. Na mesa não apaziguada se refletem mudanças advindas do abismo. Eu queria. Você quer. Estrelas. Nebulosas. Estrutura espiralada. Gases e pó envolvem o que se diz. Não sabiam o que querer. “Você foi isso, Christian, uma doença”, continuei lendo, “mas não incurável” Jamais poderei deixar de amá‐lo. “Olho para a minha filha e dou graças a Deus por ter abortado de você”. Se refletem também fulgurantes nardos e raros fajardos, a ladeira de Heráclito e os céus da águia e das plêiades. Poço e profundeza. “ Pela paz que o Luis me transmite, pela segurança, logo irei amar ele tanto quanto te amei”. Minha voz foi desmaiando ao perceber que não pretendia ler aquele trecho. Não é possível, pensa ela, como poderei amar assim outro homem se nunca deixei de amar você ou deixarei? Diz então que era esse o seu consolo, sua vingança. Ninguém poderá me amar como ela amou um dia. E ela poderia amar um outro, que a merecesse, que a protegesse. ‐ O O Kleber devia ter dito que você estava em Lisboa. Se tivesse contado, ela deixaria de vir? Aliás, com o dinheiro que tem, foi o acaso que a levou a se hospedar num hotelzinho como aquele? A menina levada aos céus pela carruagem de fogo era menos que suas bonecas pretendiam. O que estava querendo dizer? Que ela viera na esperança de encontrá‐lo? Sua pretensão não tem limites! É maior que sua memória! – Mas não maior que o meu amor. Como se ela não ouvisse. Esqueceu que estivemos no Rio em hotéis muito piores? Pareceu‐me um hotel simpático, entrei e fiquei com o quarto. É como sempre faço. Se tivesse com o Luis, seria diferente, é claro. É claro. Luis não ficaria nesse tipo de hotel. É o jeito dele. Acha que deve oferecer à sua esposa todo conforto. Eu concedo a ele essa alegria – por que não? Onde está ele agora? Resolve uns assuntos no Porto, responde ela. E, antes que você pergunte, não estou com ele porque tenho umas coisas a resolver aqui, relativas a meu visto. E estou querendo me naturalizar. Não entendi nem tive tempo de perguntar. O garçom chegou. Quando saiu: nossos olhares. Nada mais. Ela disse te amo, ou circundou a mesa e se jogou em seus braços, poderia

Ela disse te amo, ou circundou a mesa e se jogou em seus braços, poderia ter sido assim, por que não? E como não separa o sexo do amor, agora o deseja, voltam para o hotel. Mais que uma possibilidade, quase uma lógica. Mas nada nunca mais será tão simples, nada tão de acordo com os sonhos, acabou essa fase, esse ciclo de vida. Agora será preciso entender, se conscientar, aceitar, não há mais essa com a qual sonha, menos ainda esse que costumava sonhar. O vinho aberto, as taças diante. Como na primeira vez, indizível, e todavia a partir dessa impressão poderia escrever um livro. Bem, não significa muito, poderia escrever um livro a partir de praticamente qualquer coisa. Mas viver, poderei? Enlevo e morbidez. Se misturam. Desespero de viver. Não escreveria livro algum, não sobre. Perfeição. Enfado da carne. Blandine. Talvez tenha entendido de seus olhos. Líquidos. Um riso discreto deixa em liberdade os rios, sem magia que os detenha ou apresse. Narciso na natureza integrado. Não há pressa. Não há vida no mundo. Não há vida fora desses olhos, dessas mãos. Suspiramos gemendo e gemendo choramos, ao passarmos as trevas, no silencio da seiva. Aquele momento! O passado à minha frente e o presente atrás de mim... Era hora de Francesca chegar do pub, pela rua em lento declive às minhas costas. Minha decadência. Um sonho de Blandine prova o vinho. Emoções emaranhadas que se roubam umas às outras. Blandine, cujo aspecto físico não mudara, vestida do jeito como costumava se vestir quando estava comigo, o rosto sem pintura, sem ter adquirido sotaque ou modos requintados, mantendo o acento mestiço e mineiro, tornava o estar ali com ela a vida real, e mecanismo mental tudo o que se passara após nos separarmos. Todos os meus impulsos são no sentido de abraça‐la, beija‐la, fazer confidências. Não compreendo. É possível que esse Luis seja mesmo uma pessoa especial. Não é o que costuma acontecer. Mulheres bonitas em geral, e mulatas jovens em especial, são trazidas para a Europa com o fim de serem submetidas à escravidão sexual, fazerem programas, para que sejam prostituídas. Tubo bem uma vez ou outra se sabe de um caso assim, de um cara rico que casa com uma, mas não é o natural, e no caso, há a questão de como a chamou, quem tenha intenções sinceras não usará aquele tipo de subterfúgio que usou no curso, “para que ela descansasse”, “parecia tão cansada”. Mas sou eu quem pensa isso, e não sou dono da verdade, de repente foi isso mesmo, sabe‐se lá. É possível. Mas esqueça ele só uns minutos, se permita só por esses momentos lembrar com alegre de nossos momentos juntos, é possível, ninguém está falando em traição, mas a gente se rever assim parece mesmo algo, de tão improvável, especial. Não é? O sofrimento do homem tem explicações de sobra. Ela retoma o discurso sem o menor constrangimento. O problema é quando a gente vê os animais sofrerem sem a menor consciência do que seja o mal. O escorpião atravessa o rio nas costas da ra. Sou um animal, disse eu, cheio de razão, só por dizer. Não vá me dizer que o meu sofrimento de hoje tem a ver com o fato de eu ter partido de Piumhi, talvez por não ter ido leva‐la ao aeroporto. Exatamente o que achava, a causa principal dos efeitos que carregava. Adianto‐me à sua resposta, temendo que tenha uma. Não falo de ação, mas de intenção. À fabula do escorpião, acrescentemos o ditado. De boas intenções o inferno. Quis de todo meu ser fazê‐la feliz. Sou tão inocente quanto um tigre ou um tubarão. O vinho subiu‐lhe às faces. De algum modo sim mudara. Em sua beleza imprimira a maternidade. Não me sinto mãe, sou antes a que abortou. Aos ruidos óbvios da noite se juntam as sombras murmurantes naqueles telhados. O branco da parede ao lado. As olheiras dela estavam mais fundas, seus braços mais carnudos, redondos, a forma como depilava agora as axilas era outra, a pele ali se tornara mais clara e não poderia imaginar que ali um dia tenha havido pelos. Lembrei então do momento em que oferecia o seio a Bruna e quando a acalantava. É quando você me olha assim com ternura, para esses braços que sentem a tua falta, e quando falasse tudo se dissiparia no cântico dos pastores – a menina na manta verde‐água, a mãe no chambre aveludado sobre a maternidade recente. A máquina fotográfica na cômoda do hotel. Peço para bater uma foto. Meio a contragosto Blandine aquiesceu. Sim, amor, um registro, um quarto em que ainda estejamos juntos, cercados pela luz que se derrama nas ruelas e junto ao rio. Há óleo entre o cacilheiro que sai e o que chega, há paz nas cintilações onduladas pela draga. Io posso. A empregada se dispõe a bater a foto, para que o amigo brasileiro também apareça. Passar‐se‐ão os anos. Eu digo Não. Em que pensa ela no instantâneo? A objetividade plana da mesa permite a sinuosidade do sonho e as lembranças. O arranjo das margaridas ao fundo. O rosa do robe reterá algo de eternidade. Marjorie, Marjorie Buell. Pensa decerto na menina, no futuro da menina, o poderá dizer à filha sobre vida amorosa? Nana neném, o amor no olhar de Blandine, aquilo era amor, não qualquer olhar que me tivesse algum dia dirigido. “Minha filhinha...” Não, nunca antes algo assim. Bom que a criança tivesse um pai amoroso e esse amor tivesse respaldo financeiro. Ela diz que quer perguntar uma coisa. Você esteve em abril, maio, em Madri? Podia jurar que era você, entrou num hotel em Atocha, deixei um recado na portaria.

jurar que era você, entrou num hotel em Atocha, deixei um recado na portaria. Estive, respondi, mas não me deram recado. Mas por que deixara um recado, o que dizia? Você teria ido me ver? Ainda o ama? Era uma mulher casada. Por cima de nós, o cartaz do cine Éden anunciava vibrante o terceiro Rambo, tremulando e estalando como uma imensa bandeira. Lisboa à noite. A multidão de jovens, vestida de negro, subia a ladeira da Glória para o inevitável Bairro Alto. Subia a pé, embora ainda fosse hora do bondinho (era cerca de onde e meia). O electrico está avariado, comentavam os que por nós passavam. Ainda eram jovens e todavia tinham um passado. Os corpos, vividos, sentiam os movimentos. Esquecem o que deveriam lembrar e se inquietam pelo que deveria estar esquecido. Portanto, por que não? Eram jovens – ou, dito de outro modo, sua juventude se emaranhara ao tempo de vida deles como folhas que terminam ao fim de um tempo, em partículas da terra dos parques. Cromossomos múltiplos nas células. A roupa do rapaz sabia como devia se comportar a cada movimento e, limpa, retinha algo do cheiro de sua pele. Ah, esse cheiro, o que primeiro chegou a ela vindo de Christian. Na entrada da boate, foi cumprimentado pelo segurança. Tímido, devolveu o cumprimento. Ei, podia ser então que aquele rapaz do bar em Madri nunca tivesse visto Oleana. As pessoas julgam, e particularmente ele era exímio nesse monstruoso item de humanidade. Ela pode agora pensar que sou um cara noturno, assíduo de boates. E julgar também é um sintoma da própria insegurança, preocupação com o que os outros estão pensando. O céu sobre eles. Pelo menos em Portugal as pessoas que lidam com o público são atenciosas, não odeiam o publico. Como se fizesse diferença, no rumo de sua vida. Lisboa. Noite de sexta‐feira. Uma vez saíram, uma única vez, para um programa noturno em Minas. Foram de táxi para Passos. Depois do jantar, foram dançar, o rosto dele se modificando nas luzes, dava para perceber que sabia dançar. Ainda não sei o que estamos fazendo aqui, dissera ela a rir, como quem diz É tudo estranho, mas estou gostando. O beijo sabia a chocolate branco. Derrete na língua. Aonde vamos depois? Durante o beijo seguinte, os jovens morcegos lisboetas passam por eles, numa outra sexta‐feira, num outro encontro dos dois, e o que ainda havia que devesse perdurar? Estão próximos à travessa da Boa Hora, o grupo passou por eles, quando vem a idéia. Por que não irmos? E dançarmos? Nada de adultério, só um passeio, escutar o fado. A bebida também fazia efeito em meu coração. Ela concordou. Tudo bem. Mas eu não deveria esquecer apenas bons amigos. Minha vida hoje é o Luis. Estranho, pensei, nessa época mães costumam esquecer os pais de seus filhos pequenos. Em todo caso... Ficou claro, sua vida era o Luis quando, dançando, nos beijamos. (Ela procura por chocolate branco). A Blandine mais que minha amiga jamais me beijaria, sequer dançaria comigo, em minha ausência. E o beijo na mulher a quem eu havia sido plenamente fiel durante o melhor período de minha vida, fez renascer uma urgência de fidelidade – uma necessidade maior que o próprio amor, a essa altura algo menor, uma invenção romântica – uma fidelidade que todavia já não podia oferecer à Blandine pois comigo traiamos mais que uma outra pessoa, traiamos essas pessoas especificas, nós mesmos fiéis. Os anos sessenta mexeram com as idéia de fidelidade. Mas o que tinha eu a ver com eles? O artigo era uma licença poética. Há vinte anos eu não tinha vinte anos. Fidelidade então era ter filhos, netos, e, quando saíssem de casa, envelhecer juntos. No fundo era ainda assim. A historia muda os costumes de um modo naturalmente externo, as pessoas são essencialmente iguais, que óbvio, pensei, elas vivem de modo essencialmente igual a seus antepassados. Aos treze, quatorze anos, não tenho por que me revoltar, desejar uma sociedade diferente; aos vinte, vinte um, apenas quando há uma exigência hormonal, que não desvie o caminho do amante. Há vinte anos é a mesma coisa e o mesmo se dá com o mundo. Jornalismo? Também está dentro dos sonhos e criatividade que se juntam ou para frustração ou para a falsa liberdade que ignora a situação interior. Blandine questiona o que todos: Por que não fiz uma faculdade quando se deu a obrigatoriedade do diploma? É que, meu anjo, as coisas irão mudar, essa exigência é a moda da vez, amanha também o diplomado estará rangendo e chorando porque lhe tiraram o emprego. Talvez até, não é improvável, pelo excesso de estudantes de jornalismo que serão diplomados a cada ano. Ou por causa dos meios tecnológicos como os corretores de ortografia e gramática. Estaria fazendo uma faculdade que também nada garantirá. Lembra, Blandine, o que você dizia sobre isso, que eu não deveria ter esse tipo de preocupação, que deveria apenas escrever, independente do reconhecimento? Lembra? De como a tecnologia mudaria as coisas etc.? A balconista espera que eu termine a frase e diz que a mesa está pronta. Há uma atmosfera de musgo na atmosfera da casa, com notas de couro. O ambiente do fado ao longo dos meses se incorporou à arquitetura e à decoração. Ela sabe agora que são iguais, que não houve culpados e alegremente percebe que ele se sente culpado, tanto quanto apaixonado, e ainda mais. Lá no fundo sabe

ele se sente culpado, tanto quanto apaixonado, e ainda mais. Lá no fundo sabe também que a paixão não é por ela, que só empresta o ser, o corpo e alma, para o ciclo de amadas, apenas uma, a essência sem rosto do amor, por isso com tantos. A agitação e a necessidade material multiplicam os objetivos não‐essenciais. Difícil discernir agora o que. Sem duvida um beijo. Definitivamente corpos que se apertam durante a dança. Nem sabiam se ainda se dançava assim. De resto, como o corpo suado, ao se acostumar ao ambiente refrigerado. Mas, paulatinamente, deixaram de ser tão irresponsavelmente felizes. Há uma vida lá fora. Ajeito na cadeira a resfolegante névoa de falação e cigarro, a que a musica faz pano de fundo exceto por três casais na pista de dança. O garçom se aproxima. Blandine pede. Toucinhos de céu e sorvete. Romeu e Julieta. Moléculas de infância. Excitado. Um milk‐shake de framboesa e dois Leônidas. Um cavalo se cumprirá na luz do pasto longínquo? Não, eu não tenho direito de interferir na vida de Blandine, em meio ao enrijecimento refleti, na normalidade de seu cotidiano. Desejaria para quem amasse o sofrimento de uma vida como a minha, entre a demasiada loucura e a lucidez excessiva? Nas línguas se esvai o sabor de romance. Eles percebem o sentido do real, o desespero. A patologia de um beijo. As flores de centro. A escuridão da discoteca cortada pelas lanças luminosas, azuis, vermelhas. Um momento, outro, para ser lembrado, apenas isso. A infelicidade, a felicidade que se sonha (sempre inatingível), as encarnações do amor (nunca o amor). A raça do acaso. O toque das mãos de Blandine entrelaçadas no pescoço dele era a gloria cujo acesso se perdera. Ela se tornara esposa de um executivo, mãe, dona‐de‐casa, pretendia abrir uma loja – uma vida na mais absoluta ordem, a opção dela. Lâmpadas piscam, uma luz ao longe, da roca dá para ver Piumhi. A recordação deles nos primeiros tempos, nos cafezais, não podia mais possuí‐la, quando muito toca‐la, como as mãos enlaçando o pescoço dele: a memória da desordem que recusara. Mas. E a falta que dele sentia? O quanto era importante para ela saber que ele estava vivo, ainda lutando, tentando trabalhar, escrever, o que mais se pode fazer com um dom? Ele não nascera para estabelecer família, cuidar de orçamento, seria como morrer. Então se consolou da falta que sentia dele, e da consciência de que o reencontro não podia ser um recomeço. Não poderiam fazer tal promessa um ao outro. Talvez por isso se permita ela dar‐se um pouco. Um beijo. Um beijo de consolação. Nos sons da noite ao longo do pulsar dos corações, no cheiro forte e acre do centro lisboeta, no frio que sensibiliza o ouvido, no gosto do vinho entre o prazer do primeiro gole e a náusea disfarçada pelo sorvete a nunca de Blandine, fortuitamente exposta como antes seus joelhos numa curva do táxi, frisa na retina a inocência. Era uma boa moca. Ele, um rapaz de boas intenções. O mundo nos estraga e corrompe, sempre o faz. Arrranca o coração e o deixa exposto como as nucas. Ela entrou no saguão e apanhou sua chave na portaria. Treme, dissimula, enrijece‐se. Um tipo de experiência que não possuía. Se ao menos tivessem feito esse tipo de coisa mais vezes, noitadas, tomar sorvete, andar de mãos dadas. A Blandine dele, assim a queria, e também não, que não estivesse ali, pois ela estava em perigo, arriscava a vida que conseguiu, e ele sabe como é difícil, como é humilhante até que o respeito dos outros se crie ao redor. Ah, mas como resistir? Se as coisas não tivessem se resumido a tanto sexo, a tantos passeios diurnos para ela tão banais – os montes, os rios, os lagos, as árvores – se tivesse havido encontros num sentido romântico mais convencional, um namoro como deveria nos velhos tempos, tipo há vinte anos. Ela pensa agora que podiam ter sido mais maleáveis. Afinal, nunca foram mesmo ligados aos movimentos contraculturais e toda aquela lengalenga de rebeldia e liberação. Pára, hipnotizada pelo quadro atrás do porteiro. Flores. Quantas vezes ele me deu flores? Ele me deu flores alguma vez? Bombons? Se Christian tivesse recolhido o namoro a essa guarida, se reconhecesse no relacionamento a necessidade desses mimos banais, como lingerie de presente no Dia dos Namorados! E todavia ele era tão gentil. Precisava ser assim tão diferente também, tão complicado? tão pouco ambicioso? Um pouco de clichê teria lhes feito bem, como, apesar de todo comercio, membros de uma família acabam por se reconciliar na noite de Natal. Esperei alguns minutos na friagem que despertava o ouvido, resfolegando de fraqueza. Depois caminhei lentamente e entrei também. Blandine está no quarto 203. Francesca no 404. Continuo subindo as escadas pesadamente até o quarto andar. Descalço. Desci após alguns instantes e parei no segundo. A porta se abre. Ângela está em seu próprio quarto, contíguo. Blandine recostada em travesseiros superpostos. O bebe dorme a seu lado, Sentei na beira da cama. Qual a idade de Bruna? Não deveria pairar nenhuma dúvida a respeito. Tinha um ursinho de pelúcia. Você não vai adivinhar o nome dele. Blandine sorri e não se saberá o quanto de engraçado havia no tal nome, e o quanto de amargura. Ah, sim, eu posso adivinhar. Claro. O ursinho lhe dá garantia de sonhos bons. É o que eu sou?, ele pergunta. Sim, um sonho bom. Por isso era tão fácil te amar nas noites. Nas responsabilidades cotidianas, melhor não tê‐lo por perto. Há tantas responsabilidades assim no cotidiano dela? Ela sabia o que de fato estava

responsabilidades assim no cotidiano dela? Ela sabia o que de fato estava perguntando e foi essa questão implícita que não respondeu. Responsabilidade demais. É preciso experiência e maturidade, equilíbrio. Era como se dissesse Agora eu sei, agora eu sou. E foi subitamente revelado a ele o momento em que Blandine decidiu vir para a Europa, as angustias da insegurança financeira – porque as preferia a ser dependente do pai (mas não estava apenas trocando de pai?) e o horror de partilhar a cama com alguém que não se ama. A vida, é preciso ambição. Saber o que se quer, ter metas, e lutar para atingi‐las. E ele entendeu o quanto havia de orgulho e sofrimento no que ela dizia, era como se a ouvisse dizer Estou viva, apesar de todos os sonhos que ficaram para trás com sua partida de Piumhi, Estou viva, materialmente até melhor do que estaria, e na parte afetiva tenho um homem que me ama. Subitamente lhe foi revelado como que o aposento em que ela vivia, cheio de dúvidas amargas solucionadas não com certezas mas com ação. A mão dela descansou na própria coxa, aqueles dedos gordinhos de japonesa que não faziam nenhum sentido nas mãos dela. Questionamentos, o sentido da vida, dilemas, poesia, tudo isso é retórico demais, irreal demais para se conciliar com os dias, com o dia‐a‐dia real e seus mecanismos de trabalho, de subsistência, de manutenção da saúde, de convivência com a família. Ambição. De ter uma boa casa, comer bem, usufruir de um lazer interessante, ser respeitado na sociedade e (claro) viajar. Os questionamentos e o sonho inócuo cabem bem na noite, como ele, como ela mesma agora há pouco, não nos dias. E o dia sempre chega. Quem sabe num livro. Quando soube, tanto quanto feliz, Blandine ficou preocupada. Mas era tudo tão novo, e acontecia tão rápido, que pouco sobrou de tempo para cismar. A explosão hormonal lhe subiu ao rosto e o peso do útero descia à alma. Tanto xixi, assim de pouquinho, vida escorrendo para tornar depois a existir na que se formava. A barriga era lisa e frágil. Não adianta tentar entender tanta transformação que não permanecerá. Decerto é assim desde que o mundo é mundo. O enjôo, a tontura, a fome, a falta de fome. Coisa lunar, só pode. Que outra explicação haveria? Em que lua será o parto? A crescente, dizem, é ótima para começos. A nova não é má, mas nada de minguante pelo amor de Deus. O desconforto, a dor nos seios, era por isso que tanto chorava? Inchava. Dos intestinos aos sentimentos conflitantes. Com o humor oscilava a pressão arterial e também as expectativas, maravilhosas ou cruéis. O ardor da pele anunciou enfim o esperado aumento da barriga. Ou seria impressão, como mais tarde os movimentos do bebê se revelarão apenas um discurso estomacal? Contaria a Christian, estava excitada, será ótimo. Se fosse menino, ia sugerir Diego. Se fosse menina, ia... Não, não... Se acontecesse de novo, agora enfim é outra vida, não diria mas, nem depois. Talvez tenha sido melhor. Mas ia se prevenir para não acontecer de novo, deveria pelo menos. Ou não? Tenho dúvidas hoje, intuição feminina talvez, de que não vai aceitar numa boa e, se aceitar, não será um pai como tem de ser. E se já é mesmo outra vida, por que não radicalizar de uma vez? Ok, ela sorriu. Eu aceito. Bruna é um bebê muito meigo, bonita, inteligente. Mostra a foto dela quando recém nascera. Estamos pensando em mandá‐la para a Suíça quando ela estiver na idade de escola. Ah. Sim, o ensino na Suíça. É. Luis conheceu um casal de Berna. Estiveram lá em casa esses dias. Eles se dispuseram conseguir uma vaga para ela quando estiver na idade. Essas coisas acontecem, veja o meu próprio caso ao vir para cá. Ah, por favor, um internato?... Porque não, Christian? Você mesmo. Eram outros tempos. Olha, ela disse, e riu da preocupação, certamente também eram diferentes os tempos em que seu meu pai te abrigou em casa, na época um estranho, e continuou rindo, mas era um riso de ternura, de memória, bem, havia também um tantinho de tristeza. Euh ec darest. Pessoa preparada, culta, fina, elegante, astral para cima, humor sutil. Decerto Bruna até já demonstrou interesse por piano. Você está zombando, Christian. Mas sei que no fundo você se importa mesmo. Era absurdamente verdade. Não disse nada. Ela falou quase para si mesma. Tão pequenininha, batendo as teclas. Mas, falando em educação européia, o que você faz na Europa? Escrevo um livro. @@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@ Há um descanso vítreo na chuva. Luz do abajur da cabeceira. Ao olhar da minha filhinha recém‐nascida, perfeita, me veio forte uma sensação estranha. A quem deveria agradecer uma dádiva assim? Não há a menor duvida. Deus existe e é amor. Deus, obrigado por esse batismo! Deitou de novo, aconchegando‐se ao bebe. Então pegou a carta. Por que ele insiste? Encostou o papel ao peito, apertou‐o. Devia imaginar que faria algo assim, morar na casa de minha mãe. E no meu quarto! E assim, saber meu endereço aqui. E quanto teria a falar! E quanto a saber! Mas era tarde. Não é, filhinha?, disse ao rolar a lagrima. Amor...

disse ao rolar a lagrima. Amor... Mas. Segurou a menina num gesto que se aproximava do desespero. E se houvesse uma anomalia? Deveria, por causa da dor, fechar os olhos ao principio perfeito? Isso só aumentaria a sua dor. Sem palavras, hospedes do Éden na chuva fina de Trieste. Ela e a árvore no meio do jardim. A natureza está sob os mesmos efeitos, prisioneira dessa mácula inverossímil e inegável. Um pássaro se choca com o vidro da janela. Mas um dia esse sistema de leis que governa (ou desgoverna) o mundo. Será restaurado. A criação se livrará da vaidade a que foi sujeita. Será liberta da corrupção para q gloria onde não mais haverá dor. Blandine acarinhou o gato que subirá na cama e o jogou no chão Ah, a dificuldade desventurada de reter no coração as coisas que a razão rejeita! Um relâmpago. Contudo, só esse paradoxo explica a sentença humana e as catastofres naturais – a vida. (Tocou a têmpora de Bruna, um toque tão suave que nem chega a existir). Fora de nós e também dentro. Somos como deuses, gerando vida, (Christian fala na carta sobre um livro), arte, discernindo o bem e o mal. E como bestas, sujeitos aos desejos carnais, vindo do pó e indo na sua direção. Temos a eternidade no coração e somos esmagados pelo tempo. O intelecto resiste: como pode uma criança inocente estar sob o peso da culpa de um adão distante e talvez sequer real? A brisa soprou, vinda da cozinha. A natureza está sob o mesmo peso, ela, a natureza, muito mais inocente que uma criança, pois jamais se tornará um adulto. (Fez de novo a paz – as retas de luz jorram da esquerda para a direita, de um vértice superior da janela para o oposto inferior) Fora de nós, e também dentro, tudo aponta para o silencio onde é possível vislumbrar o principio perfeito e suas perversões. Bruna, que dormia para a parede, virou seu rosto para nós. Lágrimas nos olhos que me ignoravam. Mas não a voz. Vê aqui, Blandine apontou. Não é igual a têmpora de minha mãe. Não pude verificar a semelhança. Bateram à porta. O senhor poderia vir aqui um momento, se faz favor? Sim? Pisei fora da soleira e encostei a porta. O porteiro sussurrava, supondo cumplicidade. Sua mulher esteve procurando o senhor várias vezes durante a noite. Estás a ver? , Minha mulher? Ouvi Blandine acarinhando Bruna. Ela está bastante perturbada, continuou ele, o que eu faço? Não era preciso fazer nada. Obrigado. A fúria que me impulsiona escadas acima já arrefeceu. No corredor do andar de nosso quarto. Parei à porta, pensativo como a praia vazia depois de uma onda. O som do sono de Francesca. Chega pelas frestas. Voltei às escadas. Desci devagar, decidido. A porta entreaberta. Entrei de novo no quarto de Blandine, me aproximando dela. A água de uma descarga corria pelos canos da parede. Ouvi o canto de pássaros e, apesar da escuridão, entendi que a noite havia acabado. Ela sussurrou. Estava quase dormindo. Eu nada pretendia senão dormir também. Deitei‐me a seu lado e ela recostou a cabeça em meu peito. Ah, amigo, por que as coisas têm de acabar? FAfaguei sua nuca. Foi assim, uma distração do destino. A jovem que foi mãe precisa reaprender a ser mulher? O contato era mínimo mas bastou para que os levassem. Eu me contenho, não porque sou mulher controlada, mas não haveria gemido ou grito proporcional. Como podem as coisas antigas se tornarem novas e no entanto estarem destinadas, em poucos momentos, a se dissiparem num passado mais que remoto, improvável quando o movimento da lógica permear a memória, assim, Ah, Blandine, estou sonhando, não me diga que não pode ser. Ele vai de um lado para o outro no quarto. Repete o caminho no tapete, da porta à janela, seus passos ali, mais fundos cada vez. Olha para ela, para Blandine. Com que sonha? É licito esperar que? Cavalga. O frio de fim de maio em Piumhi. Os cascos no galope. Vendinhas abrindo, o primeiro ônibus dos cafezais para a cidade, o primeiro trator com boléia, da cidade para os cafezais. Um movimento diferente do cavalo torna o amanhecer diferente. Não é mais pelo hóspede que será transtornada a rotina, ou não apenas. Vem dela própria. Como a caligrafia de súbito transforma o teor da escrita. Não diga. Ela está falando. Não sabia que falava dormindo. Christian pára e tenta entender. Desiste. De quê? Volta à janela. O sol. O sol do sul de Minas, sua terra querida – está acordando, à media que Minas se afasta ou Minas se afasta à medida em que acorda, ou é a mesma coisa? O quê? Ahn? Ele ri. Você disse alguma coisa, se era a mesma coisa. É a mesma coisa? O sonho era seu... Risadas. Uma pausa. Ela olha, pisca, o colchão registra suavemente a perna que se moveu sob a coberta, o braço que se esticou fora dela. O que posso dizer? O que será de nós? É preciso seguir adiante, continuar. Você sabe. Ouvir o amanhecer. Você é

nós? É preciso seguir adiante, continuar. Você sabe. Ouvir o amanhecer. Você é exageradamente romântico, não dá pra ser assim. E todavia. O que há de romântico em. Um beijo. Um seio tocado. A ereção que não chegava a ser. Blandine, será ainda lícito esperar? Minha vida num segundo. Dez horas da manhã, estávamos no aeroporto. Enquanto esperávamos o Luis, o que fizemos por cerca de meia hora (eles iriam tomar o próximo vôo para Roma), avistei um conhecido. Ele viu dois. Abraçou Blandine e a beijou. Pegou Bruna de Ângela para seu colo. Luis, esse é o... – Luis? Uma gargalhada discretíssima e ele perguntou. Vocês se conhecem? Vocês se conhecem?, repetiu Blandine. Estão pensando em mandar a menina para a Suíça. Um colégio na Suíça? Sabe, é um amigo do Luis, não sei direito os detalhes. Mas. Queria falar com ela. Isso. Educação da melhor, e toda liberdade. Pensei a respeito sem chegar a nenhuma conclusão. Acho que Blandine é bem livre. E educada. Claro que ela é, em qualquer sentido. Sabe seus limites. Quem nos vê há de pensar que jornalista é ela. Obrigado. Mas eu sei, Chris, o que sofri com a separação de meus pais. Não teve cabimento tudo o que deixei de aprender enquanto reciclava meus conhecimentos de café. Não sei. Agora olha só o que temos diante de nós, com toda nossa vivência e cultura. Um absoluto impasse. Pode ser, meu amigo, mas um impasse escolhido. Não quero que minha filha permita que lhe imponham sentimentos, remorsos, que ela não saiba para onde ir por não conhecer os caminhos. O Paulo estava? Talvez chegasse no dia seguinte, disse Filomena. Que pena. Sou o brasileiro que ele conheceu em Madri. Claro. Ele falou muito acerca de ti. Falou muito bem. Ela pergunta se ele estava, Christian, a querer. Entrar no negócio. Que remédio. Não deve ficar assim, Christian. O Paulo também era cheio de escrúpulos no começo, e agora... Ele imaginava. O lucro é tanto que torna o risco e quaisquer constrangimentos irrelevantes. Vou arrumar a cama no sofá. Ele não quer incomodar. Não será incomodo algum. Sou a Filomena, muito prazer. Paulo também fala muito de você e dá pra notar o quanto te ama. Ela sorriu. Que bom. Estavam juntos há quatro anos, Paulo e Filomena, e se davam muito bem. Mas em dezembro ele arrumou uma cena no estrangeiro, na Itália, ela achava. Para lavar papel, ela imagina. Desde então ele passa muito tempo fora do Porto. Mas eu compreendo. Nosso relacionamento continua muito bom, talvez tenha até melhorado com a distancia. Então passei a pensar que para as mulheres sexo e sentimento são a mesma coisa, ou duas tão ligadas que terminam por ser uma só. Que imagem se apagara e qual fora transmitida àquele coração pronto para pulsar o ressurgimento da amada? Nós nos conhecemos em Madri, disse Luis, quando fui tratar daqueles imóveis com o Paco, lembra? Claro que Blandine se lembrava e me explicou, rindo, que era a única que o chamava de Luis. Sentia‐se bem sendo a única a chamar pelo primeiro nome doutor Luis Paulo Coelho da Rocha. Mas, acrescentou, você não sabe da coincidência maior. Paulo ouvia atento, com um sorriso paralisado nos lábios. Sabe quem é ele? Luis Paulo não fazia idéia. O rapaz que eu namorava no Brasil. Aquele. De quem falara no Rio. Quando ele a convidou para passar as férias na casa de seus pais em Trieste. Portanto, não era, por exemplo, um policial do Departamento de Narcóticos se passando por viciado. Alivio. Uma pausa. Além disso, o assunto estava naturalmente se afastando da noite madrilena, de Gaia, de Filomena. Veja lá, gajo, se estás mesmo disposto. Todo dia chaváus ficam nas mãos dos bofes e ligeiramente torturados entregam os companheiros. Sem falar, é claro, da concorrência. Matam sem piscar. Principalmente esses africanos. Estão loucos de raiva com a CEE por causa da discriminação de que se julgam vitimas e não precisam mais que um mínimo pretexto para furar um branco. Obrigado. Estarei bem, não se preocupe. Vai dar tudo certo. Filomena havia me aprovado e Filomena tem um sexto sentido para essas coisas. Ela te ama. Pois, chaváu. Ela ficou louca comigo porque descobri que assumi com outra que, aliás, é brasileira também. Assumi com outra um compromisso que esperava eu

que, aliás, é brasileira também. Assumi com outra um compromisso que esperava eu assumisse com ela. Agora fazia sentido o jeito dele em Madri. Mas afinal quem ele amava? Amar, amor. Você é muito romântico. Não pode ser assim. Mas ele achava que não saberia viver sem Filomena, sem a certeza de que ela o estaria esperando. Seria capaz de mata‐la se me deixasse. Quanto à minha esposa, não a mataria. Talvez significasse que amava a Filomena. O que se vê num aeroporto nos momentos que antecedem um vôo. Na névoa, a imagem que não retenho nem esqueço. Piumhi. O que poderia ter sido. Uma vida familiar. Caminhos na roca são feitos com enxadas diferentes mas de mesmo formato. Com golpes precisos. Sem fugir ou desejar. Os olhos de Paulo procuram cumplicidade nos meus. Eu sei que você acha que convidei Blandine com segundas intenções, mas não é verdade. Simplesmente aconteceu. O que fazia num curso de portugues para estrangeiros no Brasil? Era apenas um dos cursos da escola, antecipou‐se Blandine. Tinha também aulas de italiano, que Luis assistia. Bem, querida, está na nossa hora. Aproximou‐se dela e a beijou ostensivamente. Adoro‐te! Mas em seus olhos não havia amor, ou pele menos eu não via amor. Ela aperta a minha mão e em outra mulher se tranforma. Recebe Bruna do marido, que a abraça. Adeus. Adeus, eu disse, mão não me mexi, nem mesmo para aguardar a partida no lugar apropriado. O que estou sentindo afinal? Que amor? Ou, como eles disseram, não pode ser assim? O que está acontecendo aqui exatamente? Se a paz existe, consiste no flash que precede as trevas. Quanto a destino, um diamante: a vontade lapida, e o trabalho, e o desejo. Que noite! Que manhã! A luz à janela. Os primeiros carros. Blandine agora está partindo, de vez. O estalido da mudança de minuto no relógio do aeroporto. Talvez eu devese estar em casa, lá no Rio, trabalhando, me alimentando bem, caminhando todas as manhãs, talvez estar dormindo sem sonhos, um sono reparador seguido de um despertar sensato. Mas não. Amor. Literatura. Ora vamos... No máximo parecido (fisicamente) com Kafka, e ainda esperando uma Dora, o que também não deveria. A diferença de idade nem é tão grande assim, nem Blandine tão apaixonada, nem eu genial. Deveria estar contribuindo com impostos, com meu sagrado direito ao voto, enfim, um homem respeitável, honesto, sem vícios, que não usa as pessoas, um exemplo, estar aqui – estar aqui vai além de qualquer avaliação lúcida da vida. É preciso agora juntar os pedaços, se você for capaz. Quando caminham para o avião, faço sinais. Deveria contra a nova situação refazer minhas expectativas e lembranças, mas não tenho forcas. Blandine levara minha vida para o avião e pleno de nada aqui estou após a decolagem. Não era nem saudade de um tempo ou tristeza por outro que não virá, um lar. Rapaz, o que você fez de sua vida!... De onde vêm estas dimensões que surgem num segundo, essa possessão? Grito. Não deixe que Bruna vá para a Suíça! Está passando. Só o tremor nas mãos. Vou me concentrar no telefonema do diplomata. Só pode ser para falar de trabalho. Esquecerei no trabalho o desencanto. Gritou em meio ao pesadelo. Suava em seu leito de prosperidade, chorava. Era por causa de gente como ele que gente comum se revoltava? Invejam a transitoriedade e não a gloria da flor. Bobagem, apenas um sonho, louca ilusão. Respirou fundo. Levantou‐se e tomou decisões para o dia seguinte. Assim tinha que ser. Afinal. Era um renomado homem público, um literato recomnhecido. E era rico. Lutara muito para chegar à posição que estava, purificara‐se pela obediência às leis democráticas, porque a publicidade e o primado do povo são correlatos. Crescera nas campanhas eleitorais em virtude de sua opção pelos pobres, angariando também o apoio dos religiosos. Aproveitara suas chances num mundo em que as oportunidades são iguais para todos – de que deveria se envergonhar? Ninguém é perfeito. Se todo homem tem seu preço, o seu era o preço de um homem íntegro. Por que então estava gritando no meio da madrugada? Pediria uma audiência no dia seguinte. Sim, era rico. Tantos lhe deviam favores. O escudo da riqueza era como a glória de Deus. Dinheiro. Foi o que precisou para livrar Antonio. Generoso, pouco queria em troca. Desejava antes dar. O corpo de Antonio. Que entrasse em lugares. Em lugares em que ele não deveria. Na bolsa, no trafico, nos bancos. O mesmo principio. Foder. E Antonio se tornou um homem livre, respeitável até. Mas o Antonio não está, meu sobrinho querido? Quando o vi na televisão, chorei, o senhor acredita?, chorei de saudade, fiquei arrepiado. E ele começou a gostar disso. Começou a pretender alcançar as coisas não só por meios legais, mas morais. Se alguém vasculhasse seu passado, não descxobriria as manchas pelo amante, o seu benfeitor, apagadas. Exceto se. Poderia sonhar com a respeitabilidade efetiva, não a dos quinze minutos. Um cargo. Aí entrava a ameaça do amante. Se um dia ele se recusasse...

cargo. Aí entrava a ameaça do amante. Se um dia ele se recusasse... Sexta à noite. Ele explica o negócio, mas Antonio responde: Eu mudei, doutor. Quero uma mulher e, para isso, quero ser um homem de respeito. Quero conquistá‐la. Sabe, Antonio, sinto algo estranho em ti. Tenho a dizer duas coisas. Primeiro, não és insubstituível. Não vou mais ameaça‐lo com seu passado, pois seria uma ameaça para mim mesmo, estamos juntos nesse barco. Mas se você morrer, quem chorará? E, se você morrer, hoje mesmo chamei a meu escritório um brasileiro. Tudo o que ele quer é um trabalho. Ou ainda menos, um livro publicado. Coisa simples. Estou pensando seriamente. Não faças com que me sinta desconfortável na tua presença, Antonio. Não quero ouvir nada acerca de brasileiros. O que está acontecendo afinal? O homem entrou pouco depois que Antonio deixou o apartamento. O diplomata tomava banho. Cantarolava no chuveiro. Esquecera o pesadelo. Esquecera, já, de Antonio. Chegara a pensar que estava velho para iniciar um novo relacionamento, mas esse Christian caiu do céu. Estava cheio de planos. Segurava o pênis e lavava a glande. Percebe enfim o vulto. Caía a tarde. Atravesso a transversal, perplexo com a noticia, o assassinato do diplomata. O dinheiro de Beatrice permanece quase intocado, mas o que siginifica, se significa algo, o meu regresso? Não tenho mais profissão, à obrigatoriedade do diploma se juntou um inelutável desprezo pelo jornalismo. O que eu tenho? Pus tudo a perder. Perdi minha vida. Não quero voltar. Prefiro morrer. Pego a Gago Coutinho. As mulheres passam com suas roupas escuras e maquiagem pesada apesar do calor, os seios apontam o outro lado de mim. A cabine telefônica. Se me perguntarem, não saberei dizer. Idas e vindas. Meus ombros se curvam mais e mais. Ah Francesca! Não imaginava que as coisas poderiam ter esas todas essas conseqüências. Olhei a rua. O que sobreviverá a tanta escuridão? As mulheres continuam passando, os penteados duros, os olhos debruados. Blandine não era assim. Leve, em vestidinhos de poás esvoaçantes, sempre com pregas duplas arrematando os decotes. A cabine. Posso ouvir a voz dela, de Blandine. Enquanto isso ela e Paulo em solo italiano. Ignoro a entrada Areeiro do metro e entrei num barzinho da Almirante Reis. Faço sinais. Em que vida? O crepúsculo além do infnito. Mais essa agora! – um buraco no meu tênis... Eu havia ficado numa pensão por ali, cuja referencia para mim era a Igreja dos Anjos. No quarto, ouvindo o casal vizinho nesse temo sem afinidade, nessa vida sem vida, sem razão de ser, não há mais o que esperar ou talvez um regresso que seria recomeço ou quem sabe a viagem de volta revelando o que seja preciso se é que seja enfim preciso algo. Saí do estabelecimento pisando o assoalho gorduroso, afasto‐me do vozerio que estalava eletricidade de tristeza. No ritmo da passada tensa, apanhara‐me a aura do quarteirão da igreja sem que me desse conta, algo nos vítreos sonhos da fachada, no sêmen das lâmpadas, me devolveu o mendigo que costumava dormir nas escadas do templo. Da primeira vez que ali passei, pediu‐me um cigarro. Vendo a cor, mas não o raio luminoso que é a própria cor, trouxe o vagabundo do lado de fora do café em Madri e na seqüência Oleana entrou exuberante. Aí está o vagão do metrô. Através da invisível retícula passa uma claridade baça, quase uma sombra. O desejo me faz renascer por segundos, segundo as técnicas de revelação e ocultação dos decotes. O lirismo amplo das planícies foge no cuanza de cigarros, do alto do café marroquino para a avenida ventosa em Luanda. Chove no dia em que deixamos a África, chove ao nos aproximarmos de Veneza, na carta de Katia a chuva recolheu meus traços em sua mente. Começava a chuviscar e o mendigo reaparece num tempo que não volta enm se adianta e é tudo o que há. A ressoar no relento dorme o homem em seus andrajos aquecido pela sopa da Assistência Social ali em frente. As mesmas escadas de meses antes e o mesmo mendigo alheio à noite que descera pontual com o conforto das trevas que o juízo perfeito ignora. Aproximei‐me num impulso e coloquei o maço de cigarros no raio de sua existência aveludada pelo vinho com essa aura cansada que nem dá tanto trabalho para os anjos da guarda velarem sem que ele piscasse. O mesmo bebedouro público onde tumultuado ainda os passos ecoando na cava noturna, tomo um gole. Enxugo os lábios e a barba em movimentos resignados dum modo de vida não o mais fácil, não sou o mesmo. Tomo meu rumo. Imerso o prédio num efeito de aquarela, minha janela iluminada, a mesma da vez anterior – sim, ficara com o quarto e agora desço estalando nos degraus, desliza pelos corrimão a mão depositária do calor de Blandine,e ao terminar a espiral recebi recebi do ruído dos carros e da aragem remota desconfortável profecia. Por entre os usuários de passos contidos conforme a educação recebida, desci na entrada Anjos do metrô. O vento encanado dos subterrâneos empresta, aos esparsos e discretos passageiros na plataforma, contração de rosto, olhos apertados, braços cruzados. Apanhei o trem. Jogava entre as estações de lado e de outro na dança de truques e trilhos. Next stop Estados Unidos. Saí. Espírito ascensional capta todos os níveis da alma a se juntarem ao percurso

Espírito ascensional capta todos os níveis da alma a se juntarem ao percurso da boca da estação à avenida, sempre atrás de uma pegada recente, tremulo, etéreo, e Matelda do outro lado do córrego de água benta colhia miosótis enquanto esperava para me levar à Virgem nela própria. Atravessamos ambos no semáforo, cruzamos um pelo outro, e fugiu a regina e madre por profundeza maior onde laços terrenos ainda me prendem, não me queira mal porque tenho minha vida para tocar e você, desculpe, não passa de um louco carente de afeto, clamando por atenção, sem mais esperança. A voz de Michel promete me levar à presença do Deus refletido no plástico da foto escura mas me deixa diante do cine Londres a contemplar os cartazes que me aproximam de meu desejo, ai de mim. Que gente toda é essa, empurrando pedras com os peitos em carne viva, uivando de dor, eu os vejo, outrora expoentes, hoje que coisa mais louca e absurda e impossível de entender como, pessoas que têm tudo de que precisam, e sem duvida haverá gente querida que as lamentem, parentes, amantes. Não tenho qualquer duvida. Atravessar essa rua, atravessar a geografia sôfrega que o sonho impôs e ir para o filme e de que me valerá tal como esse? Estou ainda perplexo e chocado. Tudo depende. As fotos adquirem vida e se juntam à multidão incorpórea comporando na bilheteria. Escritor condenado pelo vicio a relacionamento neurótico e sem acesso às benesses da bela editora. O segredo da sala de espera está contido no sabor de hortelã, no gole rascante da coca, e no lamentos dos sacos de papel. Uma noite como essa, disse a mulher, é cenário de surpresas, e há segredos também no tecido de sua saia saudável e na resposta da amiga que menciona os troféus de Bertolucci, estendendo‐se ainda o chocolate que se dissolve em minha língua. No ar condicionado e no relento o frio não é o mesmo? Na segunda hora da penúltima sessão, a pesada porta se abriu e a funcionária a segurou. Pessoas entrando e saindo se esbarravam. Apagaram‐se a luzes de novo. A escuridão. A projeção avisa: o vinculo com a sanidade reside na dor. É assim? Curar‐me matará o artista? A vida se equilibra sobre o abismo enquanto o lanterninha se aproxima e me leva até a poltrona. Gostaria de recostar a cabeça assim num recosto fofo do papai e me deixar impregnar do bem familiar, do descanso reparador, ah sim, talvez eu devesse! O sono fácil do assalariado... Mas não: a cabeça vacilante, o desconforto, o olhar doído, a dor de cabeça, os músculos aterrorizados, o espasmo extrapiramidal, o ouvido eternamente sensível, a fraqueza morbidaque se derrama no cinema. Faz tanto tempo que não sei mas existiu em mim um rapaz saudável e bom, educado, que pensava meus pensamentos. Era sábio e benigno. Desejava a beleza: não o espelho à parede colocado, menos ainda a espuma adesiva que o protege. Faz tanto tempo, não sei quanto. Muito, imagino. Subitamente a caminho dos cinqüenta, o dia ensombra o pássaro e nãohá mais encantamento, embora outro filme vá começar. A cidade. Refletia da noite na rua. Ouvindo os ruídos do casal vizinho, nos labirintos construídos pela imaginação da própria experiência sob o ranger da experiência alheia, eu escutava o jornal transmitido pelo rádio, e atenção, o locutor impostou solenemente o acento lusitano, o papa acaba de excomungar o bispo do cisma. Na beira da cama, imagino um escritor que de jornais não necesita. Desligo‐me da voz e penso o quanto os dogmas contrários se tocam, que a virtude só existe no equilíbrio de dois vícios. A água de ontem estava morna, intragável, mas tomei assim mesmo. Os raios revelam o pó que meus movimentos levantam. Quando voltava do cinema, já pouco, as vozes dos passantes erravam em moinha alma e os corpos das mulheres me faziam arear pela avenida, recolhida em mim para testemunho daquela noite. O asfalto molhado exala cintilante sentimento de desfecho. O casal. Combinaram fugir. Alugaram a única suíte da hospedaria. Era um menino, ele. Quinze anos. Na banheira juntos já nus. Ela tem corpo de mulher e o rosto também dá idéia de mais idade, talvez mais dos dezoito que tem de fato. Está sentada na borda da banheira. Conversam. A essa altura já deram pela nossa falta. Ele a lava e imediatamente rijos despistam os anos que não virão. Ela o envolve cuidadosamente, lava em movimentos circulares, serpente, não nos separaremos jamais, dois bichinhos enrodilhados e o beijo é quase uma pergunta, em que dialeto? Os pais deles, irmãos, jamais permitiriam. A medida que não ignora, e mais e mais se conscientiza, mais enlouquecida, firme e cuidadosa com o pequenino. E aí está a retribuição. Ninfa lavada, deusa, mãe e irmã mais velha, mulher, mulher inflamada e úmida, impetuosa e santa, pensa Christian ao discernir e juntar as palavras do outro lado da parede, palavras que servem de trilha, assim, a pé erguida, o pé crispado na borda, assim poderá ele consumar mesmo em pe como ficaram, o que se costuma acreditar difícil. Mas ele pode, é tão menino, corre ao vento e como fauno arremata. Não importa se nos acharem, teremos isso para sempre. Os lábios se juntam de novo. São arrebatados à janela, saem à rua, cavaleiros do ar, mariposas em torno da lâmpada do poste. O sino badalou na noite. Sagraria a noite enquanto vibrasse. A cabine. Querido! Elo inquebrantável, Francesca e eu nos encontraríamos ainda naquela madrugada. Quem sou? A que me agarro? Ao sexo ou à mulher no nível mais simples de consolo? Ainda guardo alguma coisa do jovem audacioso e

nível mais simples de consolo? Ainda guardo alguma coisa do jovem audacioso e inteligente de um tempo ao qual minha própria memória se recusa? De repente, a possibilidade do telefonema chegou como tábua no oceano. Os detalhes entre mim e ela, os detalhes mais sutis de nosso relacionamento e as coisas por demais óbvias, seu ciúme grosseiro e generosa devoção, surgem sempre assim, do nada, como esse telefone. Meu desejo e minha ira em relação à menina rica arrancada da dissimulação para a rua explicita onde temeroso eu me locomovia. Sua frieza em momentos cruciais e a labareda de sua paixão. Nada mais podia me surpreender, nada, e as tantas coisas sensualmente previsíveis se haviam tornado tão fundamentais, se não para aquele jovem, ao menos para mim, o homem de quem ele se retirou. Som de chuva. Mulher tu não sabes! Risadas altas. Francesca dise Vou ter que caminhar até a pensão debaixo dágua. Poderia pedir boléia, argumentou a amiga. Não pegaria bem. Ai que esse brasileiro já é uma doença, mulher! Pode ser, mas que sintomas! Francesca é menos infeliz do que eu. Encontra animo apara viver mesmo nessas condições. Já deixara o pub, ligou avisando. Posso vê ‐la dançando sob a chuva, cantarolando, vindo para a pensão. Janela. Sereias. De que baile voltam? Ali. Francesca. Agora ao menos não era mais um adultério. Blandine sim. Foi. Doideira. Assim, sobre a suave aspereza do cobertor, as mãos dela, ágeis e ardorosas, enganam o ser cansado. Em sua roupa batida. Por algum milagre não cheirando mal – cheirando dele. Por algum milagre e pela bondade de funcionários do comércio que permitiam os banheiros e pela dona da pensão que deixou que usasse a máquina e o varal. Vou abrir uma exceção. Quando Francesca souber, vai dar problema. Mas é uma senhora! Quase idosa... Aproveita a cabine. Estou ligando, Daniel, para dizer que entreguei a encomenda de Isabele. Ah, e você imagina que ela já não sabe? Eles irão lá a Paris, parece, mês que vem. Depois de desligar, levou com a recepcionista uns papos mais leves, mas por mais agradáveis que sejam, no final ela dirá um por demais respeitoso “senhor” e isso o deixará de novo arrasado. Quase lhe falou do livro, que coisa mais sem sentido teria sido. Meu Outro flutuava nas folhas por sobre os fios do bonde quando Francesca entrou. Das folhas se concluía qualquer coisa. A ordem do universo ou o contrário, a importância ou não da revolução. O verde quase negro ou cintilante em branco. Planos secundários. Nada é discernível, faz parte. Noite estranha. Tomei seu corpo molhado. Como se calará se eu não a beijar? Cala‐se. Bebe de mim, como se ainda houvesse o que. Senti tantas saudades, queridos! Anda, vai, vai. Agora. As mulheres vivem em chamas. Elas sabem o caminho. Aqueles mesmos fios de cobre, grosseiros, quase encostados à janela. Tempo de olhar o teto também, o tempo. Ela está linda assim, toda produzida. Está feliz. Ah, amor, pensei que não fose mais te ver, nunca mais! O que fiz de minha vida? A primavera partiu. Não serei mesmo resgatado? O papa e o bispo excomungado, os governos e os revolucionários, a rua e a casa luxuosa, o escritor e o editor, há vinte anos e sabe Deus há quanto tempo, são no fundo a mesma coisa, se reconhecem, como dois perdidos que na noite se reencontram. Os dias passavam. Agosto chega e nada muda. Francesca se muda para a pensão dos Anjos. Dias asfixiantes. Recomeçamos a vida em comum, mas com divisão de bens. Trabalhava no livro e nos afazeres domésticos. Quase não ligava quando me chamavam de chulo. Ele está estranho, estou a me preocupar, Christian, está tudo bem, amor? Sim, claro. Exceto, pensava, essa sensação. O fascínio da luz mais enganosa chegando com as transformações atmosféricas. Costumava dormir oito da noite, acordava à meia‐noite. Acordava, me arrumava e ia buscar Francesca. E quando voltamos e você logo adormece lá pelas quatro da manhã, me refugio na varanda. Escrevo. Escrevo vorazmente, pelo direito de escrever a palavra fim. Como se houvesse um sentido e todavia aí está o sentido, aprender da escrita mais que partilhar uma mensagem que na verdade não há. Escrevo na pensão, após a varanda, traído pela memória, pela sanidade e pelo instinto de sobrevivência. Escrevo. Na madrugada em que Francesca dorme ou naquela em que a levo ao pub ao longo da Avenida Liberdade até o parque Eduardo VII, nos bares do parque até fecharem, na volta da avenida, inicio da noite, ou esperando à saída, indo e vindo pela via esvaziada que se sublima. De quando em vez ia ao cinema, claro, esperando não sei o que da sessão, talvez algo como a de Madri, para Julia voltar a ser Julia e me esquecer de Trieste pelo reencontro. Puta! Vê como o meu italiano está ótimo! Ela acaso pensava que ele não percebera? Um dia, na saída de uma das salas do Quarteto, um significado, sons de sino numa cidade católica, enquanto a vida circunstante passa em silencio na travessa da Gloria, onde Francesca um dia dissera Esa não tem chulo entrei no sebo. Não deveria estar aberto, mas estava. E entrei. Crime e Castigo num exemplar italiano. Pelas fortes implicações que trazia, comprei o livro.

exemplar italiano. Pelas fortes implicações que trazia, comprei o livro. Voltei a pé pelo longo caminho até a pensão, feliz. Nessa noite, seu rosto no espelho da penteadeira, Francesca se perguntou o que fazia num relacionamento que da fidelidade de antemão havia prescindido. Não se incluía no rol das mulheres que se conformam em estar com um homem dividido, que ama outra, que toleram a relação assim maculada. No inicio, quando soube de Blandine, pensou que fosse apenas uma forma de ele se defender da existência de Franco. Na verdade, quando soube, pouco se lhe dera. Ele, Christian, era apenas uma aventura, como os outros. Surpreendeu‐se quando ao charme da sedução se aliou uma pompa insólita no desejo. Bem sabia que ele não consagrava os momentos posteriores de que ela tanto carecia. Se a principio nem se dava ao trabalho de pensar no assunto, incentivada pelo espírito de fuga, mais tarde, ao se despojar dos outros amantes, abriu largos espaços em seu tempo para o até então desdenhado pensamento reflexivo, constatou que a coragem para um rompimento é sempre cara. Sofria por ter se dado esse direito para crescimento. Olhou mais e fundamente. De seus olhos castanhos, a lâmpada, mel, escorria pelo quarto. Talvez verdadeiramente o amasse e dele precisasse para ser feliz, e aí Blandine passoui a ser ameaça àquela felicidade. Então Francesca dormiu pensando que, a partir do dia seguinte, seria a mais amável das mulheres. Controlaria seu gênio, seu ciúme, até seu desejo. Tentaria descobrir onde havia no sentimento dele a mágoa de Blandine e se superaria para agir do modo mais diverso. Mas não se mostrará subserviente. Não se deixará envolver por suas emoções. Esse tipo de coisa – essas pequenas determinações – sempre ocultam o tamanho real da vida e seu sentido inelutavelmente oculto, pensou Christian após ter se disposto a se mostrar mais tolerante com Francesca, caminhando pela avenida. Mas ela estava realmente disposta. Encararia seus defeitos, seria positiva, otimista, alegre. Conseguirá um outro emprego. Devotar‐se‐á. Por amor dele e dela mesma, que teria assim ao lado o seu homem, inteiro. Parará de se comparar com outras mulheres: aquela é mais magra, aquela tem um bom salário num trabalho pouco desgastante, aquela é livre. Agora, ele pensa que ela dorme. Ao amanhecer, com a camiseta rosa e o par de tênis novo, daria sozinha uma boa caminhada até a empresa daquela Cíntia, que na noite anterior fora no pub flagrar o marido. Assistente da presidência do instituto, cargo que ele até ali ocupara sem qualquer interesse além do salário e das secretárias do sogro. Claro que Francesca era capaz! E claro que aceitava, obrigado, obrigado, feliz como uma criança feliz. Te espero então amanha, disse Cíntia, em meio ao abraço mais sincero. Maldição não mais haverá que pudesse impedi‐la de, libertando‐se, transformar a sua numa vida satisfeita e útil, honesta. O mundo era belo e da beleza do mundo ela se impregnou. Dormiu na paz que por toda a vida em lugares errados procurara. Quando Francesa adormeceu naquele dia, não fui para a varanda fumar. Recostei, cabelos roçando minha barriga, e abri o livro ao acaso. Ah se no início conhecêssemos o fim! Mas se existe mesmo esse destino amaldiçoado, que seja pelo menos um mesmo destino. @@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@ (cont.) Não sabia por que a procurara mas agora estava convicta de ter sido uma decisão acertada. A compreensão mutua faz crescer tudo o que na vida se liga a crescimento. Olha. É difícil se perdoar por não ter percebido (me perdoe, agora que a conheço) por ter abandonado o seu amor, a sua terra. Tens a menina. É, tenho. Sorri pela primeira vez desde que chegou, ao olhar Bruna no quintal atrás dos pombos. Assim se passaram os dias. Alias, como aceitara a situação? Me diz, Filomena. O que havia para dizer? Simplesmente se apaixonara. Mas um dia não há mais como conciliar a paixão com um mínimo de – Dignidade? Enfim, não sabia. Mas o amor está aqui (segurou o peito com um puxão anterior da blusa), em mim, intacto. (queria que sim, pensou).. Não nesse miserável com quem casaste, como pôde, como eu pude? Me sujeitar a tal papel. Perdoa‐me? O mesmo amor, integro, que darei a um homem que o mereça. Nunca mais pensaria Ah se o Paulo estivesse aqui!, essa certeza marca o começo de uma nova vida, em liberdade. Blandine sabia do que estavam falando aquelas palavras roufenhas e lusitanas. As primeiras luzes da manhã entravam no quarto da pensão, e acordei. Não sentia no rosto o familiar alento o familiar alento. O que dizer? Que fiquei chocado? Perplexo? Apavorado? Não se diz nada numa hora assim. Meu calafrio. Um vácuo. Meu Deus. Como podia? Jamais a levei a sério quando dizia sofrer do coração. Ela era por demais hipocondríaca. É claro que sim, que seu coração sofria, por me amar. E ela sorria em silencio, porta que ligeiramente se abre e volta a se fechar sem que ninguém entre por ela. Segue‐se o ritual. Chamei por ela, senti o pulso, busquei calor. Fim do ritual.

Fim do ritual. Sua transitoriedade se aperfeiçoara. Transformada em imortalidade. Descanse, então. Que o hades seja um lugar melhor. Soube na recepção do hotel de Lisboa que ele deixara o estabelecimento no mesmo dia em que saíram juntos. Foi ao Palácio Foz, à Universidade, à Fundação, a todos os lugares mencionados desde que se encontraram na sala de TV até Luis Paulo aparecer no aeroporto. Nada. Haxixe: na policia, também, nada sabiam. Mas ficaram com o telefone dela, o do hotel, para o caso de alguma novidade. A ida ao consulado tmabém não deu resultado qualquer. Ele não havia se inscrito ao chegar, oficialmente sequer estava lá. E ela? Estava com a situação regularizada? Blandine empurrou o funcionário, que fosse à merda, e saiu. Começou a se desesperar. Chegara de Trieste, via Milão, pela manhã. Quando decidiu vir a Lisboa, não pretendia abandonar o marido. Havia justificado a necessidade da viagem: não era justo que Christian não soubesse acerca de Bruna. Estava certa de que Luis compreenderia. Estava errada. Agora não era mais só pela filha, estava ali por si mesma. Não podia mais viver longe do homem que tal sentimento desencadeara, o sofrimento de uma paixão é assim. Ou termina por encontrar uma solução acomodada ou transtorna a ponto de qualquer loucura. Que coisa mais dramática e ridícula, minha querida esposa! Ainda está muito por dizer? Portanto, estou a me reportar a isso mas acho que você sempre foi assim, dramática e ridícula. Não podia tampouco viver do país em que aprendera a forca da vida segundo o trabalho, da roca onde aprendera esse trabalho, não era vida aquela sucesao de pequenos incidentes de um conforto baixio. Luis não imagina que ela terá essa coragem. Menospreza o acaso e o sinal de alerta só se acende quando Michel vai visita‐lo no escritório. Que importava agora? Blandine não entende. Christian não falara com ela depois do aeroporto. Negócios ilícitos? Ora, que ela não o aborrecesse mais. Aliás, fique mesmo bem quietinha e arrume logo tuas coisas. Mas saiba. Se o denunciasse nem terá tempo de se arrepender. Não era nada daquilo, disse ela. Se me ama, se ama a menina, nada vai mudar. Não me importam seus negócios? Imagino que não, se te derem a cidadania e todas as suas vantagens. Ele quase acreditava realmente que não. E se calhar nem a Filomena importa. Ó pá que rapariga compreensiva! Blandine não sabe do que ele está falando. O olhar de Luis Paulo alcança aquela dimensão em que amor ou ódio inexistem. Ali só o gelo do ego habita. Estou a ver. Ela era mesmo muito cínica! Súbito ela caiu em si. Viu‐se sufocada por todo tipo de pensamento amargo. Junta as ultimas forcas para concluir. Você está fora de si. Como ela própria estivera. O mais severo dos julgamentos. Estava fora de si, responde ele, quando não percebeu que ela apenas o usara para ter uma vida confortável na Europa, sua puta. Sim, e é verdade o que esse idiota contou – quando ele ligara? Blandine está próxima da janela. Há faíscas no céu de Trieste, venta muito como sempre na superfície do mar, é possível que neve, mais hoje mais amanhã, a terra sofre os efeitos da raça humana, nota‐se pelos efeitos nas estações. Há faíscas por sobre o casario e chamas no horizonte. O momento em que se desiste de apagar o incêndio. Ele não telefonou. Não mesmo? E o próprio Luis conta com detalhes sobre Filomena e seus negócios em Portugal e na Espanha, porque em certos momentos mesmo o pior mentiroso sente uma necessidade irresistível de se livrar do nojo da mentira. Aliás, negócios que salvaram a vida do brasileiro e agora ele cospe no prato e trai um amigo. E por causa de uma putinha negra! Se merecem! Mas e daí? Mal sabe que lhe fez um favor, Luis estava mesmo a querer sair de Trieste, a situação na Iugoslávia ia piorar, na Itália mesmo, permanecer ali seria um atraso de vida., Ia para a Suíça e quando tivesse se instalado buscaria Filomena e o filho deles, até nisso ela era superior a Blandine, me deu um filho macho! Bruna não pode mesmo ser filha dele. Ah, vagabunda, precisava mesmo de toda aquela historia de “intuição paterna”? Estúpida! Agora some! Luis Paulo sai, dizendo que quando voltasse não queria mais vê‐la por ali. Em Lisboa, antes de procurar Christian, ela vai para o quarto de hotel. Está exausta. A menina ressona. Deita‐a e fecha as cortinas, depois deita ela própria. Fecha os olhos. Todas as coisas que apenas são, nem boas nem más, tudo o que apenas é, nem bem nem mal em si mesmo – estão, está – em suas mãos tremulas de humanidade. Muitos anos depois ainda lembrará com clareza daqueles momentos. Os traços de Christian, desenhados pelo seu cansaço, pairam no quarto, são os traços, não sei, é como se fossem um resumo da humanidade e assim de

são os traços, não sei, é como se fossem um resumo da humanidade e assim de sua doença. O que sei é que ele é. Mecanismo de um fado básico. Angustiado mergulho no silencio, louvor da solidão, beijo tornado saudade. Adormecendo. Branco luminoso de um cenário – rebanhos, montes, cheiro branco de brilho intenso. Três horas da madrugada. A noite se dispersa. Recordações. Está isolada do mundo por um véu suspenso pelos anjos da memória. E súbito, de novo, o vermelho em meio às folhas. Sim, só muito tempo depois, misturado ao perfume dos campos. Permaneceremos aqui após partimos, como folhas secas, escurecidas, que se partem no solo. Havia alcançado aquela atmosfera em que amor e ódio não existem mais, apenas a fraqueza humana. Vira‐se, de lado, de frente para a lua da rua que se insinua pela fresta da janela e entra no seu propósito de procurá‐lo aqui e ali e quem sabe. Enfim. O tempo convém aos corações transpassados pelas ultimas lanças de um reino destruído. Essa cara precisava de alguém e ela de se dar, acontecera. Seu velho pai e aquela idéia tão típica, rapaz, você precisa de uns tempos na roca. O que o senhor Jean realmente pretendia? Esse canto, parece, sim, nana neném, o boi da cara preta mas estilizado, por assim dizer. Ele precisava de alguém como ela e ela estava ali. Simples assim. E agora. O peso da cabeça afunda o travesseiro. Houve então o silencio pleno que liga um dia ao outro. Desci as escadas com os olhos ardendo por ter chorado tudo. Bati a porta da dona da pensão, bati, bati. Não atenderam. Sai sem destino pelas ruas de Lisboa. Ao atravessar a praça da igreja, ali estava ele, armado pela coincidência. Não o reconheci a principio, de terno e gravata, junto a dois outros sujeitos igualmente elegantes. Vendo os rapazes assim bem apessoados, veio‐me a velha vontade de ser assim, normal, próspero, feliz, opressor. Pedi fogo. Mas claro. Eu era um gajo queimado. Dias de sorte ele estava a ter. Para Antonio foi fácil reconhecê‐lo, pela barba e a jaqueta preta de sempre. Ao sinal, os dois outros o agarraram e levaram para trás da igreja. Um dava pontapés; o outro, socos no ouvido. Afinal ele não iria ter a chance de saber se era eficaz a receita de Blandine, Dissolva camomila em óleo de cozinha, coe e pingue umas duas gotas – É um antiinflamatório natural. Ah, para os males do tratamento anterior com antibióticos, própolis e muito sol antes das nove e depois das três. E abusar de iogurte. Essa igreja... Posso ouvir sermões sobre adultério pregados por padres adúlteros. Quando tudo se torna grave demais, basta observar a vida de quem aponta o dedo acusador. Mas agora, que tudo ficou claro como uma pequena distancia faz com os quadros de uma exposição, esse é um pensamento fugaz. Ficam muitas outras coisas. Você não tem ciúmes de mim? Francesca me perguntou isso quando se tornou óbvio que eu sabia de seus casos, não com relação a Franco. Acho que também uma vez em sonho. Me passou esse sonho pela cabeça quando percebi que estava morta. Por isso talvez agora considero. Salvou meu relacionamento com ela o fato de ter tantos amantes e não estar Franco entre eles. Esse homem... se aproxima... Mas não. Mesmo que. Não há esperança. Se vai, como ela se foi. Ah, realmente eu não teria suportado, ela, Francesca, minha mãe, dormir com seu marido – o rival insuportável porque contra quem não se pode lutar. Fosse o casamento de Francesca convencional, eu não teria suportado, e por mais conveniência material que houvesse, seria um relacionamento, o nosso, condenado. Agora, eis que se fortalecerá. Ela fora abandonada, como eu próprio. A dependência se desfizera. Éramos ela e eu enfim, com tudo de bom e mau que pudesse isso ter. E logo apenas eu. Amor, me perdoe. O que, Francesca? Demorara demais a perceber, disse ela, o quanto precisava de mim, de mim mais do que do dinheiro, e do dinheiro menos do que imaginava. Não faz mal, querida amiga. Não faz mais diferença agora. Está mandando que me soltem. Antonio. É o que faz. Não sei em que sentido pode ser, como ele está dizendo, um “assunto pessoal”. Tira a gravata e o paletó, puxa o canivete e determina um outro para mim quando digo, à sua pergunta, que estou sem o estilete. Não sei que expectativa deva ser satisfeita. Não quero machucar pessoas e já há uma lâmina gelada em meu coração. Arremeto ao braço armado. A morte nos gumes refletida. Bach; São Mateus. Questão de segundos. Sentiu o golpe. Deve desabar. O calor é insuportável. Tem febre. E esse impacto. Eu andava resfolegando só de subir os andares da pensão, de fazer amor com Francesca. Este joelho em meu estômago. O que afinal está dizendo, aos gritos? – os esses e cês juntos chiam no português daqui, como um fogo que crepita; quase diriam que ecoam desde longe. Este rasgo nas costelas. Naturalmente. É sangue respingado. O que resta de minha energia se dissipa na noite. Sombras.

O que resta de minha energia se dissipa na noite. Sombras. O sino vibrava e por um pouco de tempo ainda vibraria – badalar de novo, jamais. Eu me transformara em algo diverso de homem. Quem eu era? O quê? A expressão puro, o afeto de estranhos, a vida futura, a posteridade, o crescimento espiritual, o amor, o dever, a missão, os sonhos – o sangue que salpica o caderno diz mais do que qualquer palavra escrita. Do galinheiro, Blandine escutou o pranto de Bruna. Correu, atravessou a horta, chegou ao lugar onde a menina estava. Mamãe, se Deus realmente ouvisse as orações, o gatinho não teria morrido. A menina rezara por ele a noite inteira. Deus deve ter coisas mais importantes com que se preocupar. A mãe sentiu o choque. Novamente o corpo. Viva de novo. Nem tentaria entender. Fechou os olhos. Debruçada sobre o animalzinho, diz à filha que traga leite pois o gatinho estava vivo. Bruna obedece, tremula de expectativa. Blandine usufrui o momento de tornar a presenciar os acontecimentos. Gritinhos de alegria. Mami! ele tá bebendo! Blandine agora deve voltar ao trabalho. A chuva parara. Ainda bem, diz a criança, a umidade é ruim pro gatinho doente. Ragazza triestina. O fim. Sob as estrelas do céu, acabam as estradas de minha vida na terra. El pasagio. Você poderá dizer que há algo errado comigo; eu diria que há algo errado com o mundo. Serão sempre dois pontos de vista. Esperando a senhora na igreja Esperando. Surge o anjo, pergunta‐me algo. A flor ou a espada? A flor – a flor, é claro. Delírio. Não voltarei: poderei ser. Eu mesmo? Quase sem o sopro. Solidão. Erbarme dich. Troveja. Qui comincia. Passeggiatina di una vita ad una altra. Lembranças. Nuvem. Estrela. Luzes se desprendem das folhas batidas pelo vento que me levará, tesouro que resta. Escutando a voz do anjo na rua. Escutando. A verdade me transpassa. A espada – a espada, é claro. O mendigo faz sinais. O guarda se limita a olhar. O homem atravessa; há firmeza nos passos andrajosos. Fala com o policial. Atrás da igreja. Sim. Lá estava, realmente. O corpo ensangüentado. Logo se ouviam as sirenes. Aumentam. Vêm de todos os lados. Os carros das televisões chegam ao local da tragédia. Aqui, aqui! A que horas? Amanhecia. O vento sopra em direção ao sul. O que penso e não faço não tem valor sequer mental. Que falem, pensa o motorista. Não me arrependo. Apaixonara‐se por uma amiga de infância. Reaprendeu o prazer, desapegou‐se de artimanhas. Que dia lindo, é como se o céu realmente ardesse. Como assim, Não venham para a Baixa? O eu do outro lado, reverso de limites inequívocos, ecos de um grito ditado por indisposições nervosas, esquecimento feito inocência; de resto, irreconhecível. Quem escuta? E que caminho vou tomar para o serviço? Entre o nascimento dos filhos, estala o piso do segundo andar, range. A boca da mãe se retorce. Ei, o que é isso, está louco? Mas outro carro passa, também numa manobra arriscada. Bombeiros? O rio. Uma nereida. Sobe das águas em mim. É como se daí, dessas águas, das suas cintilações, o universo se refletisse. Quem quer falar comigo? Se a vida é processo, toda estagnação arranca a essência do caminho. Como era bom renascer ao novo dia, sair pela manhã, comprar pão e o jornal, beijar a mulher e as filhas, sonhar. Sei de uma mulher, lembra, que a muitos inflamou, de acordo com as leis de uma natureza que não raro se respeita a si mesma ou ao que se supõe padronizou ela, como se as dobras de suas roupa, os franzidos de seu cenho e os sulcos de suas nádegas se eternizassem no céu de agosto e no barulho do vento transtornado, aterrorizando por aterrorizar. Não existe palavra possível, repete o eco, mas sons, perspicácias, sorções, circunstantes, curiosos. Tudo ele soube a ziguezaguear pelos interstícios do trânsito em direção ao local determinado. Não bloqueiem o caminho! Fragmentos nos projetam, como a viatura, e recordações nos devolvem à vida anterior, como os autos. O que aqui é inútil? Deixem‐me passar!, gritou com a cabeça para fora do carro. Não o detivessem! Imagens que ficarão para sempre na memória. Pessoas. Se faz favor. Agüente firme, já vai chegar ajuda. Outra explosão. Poderá ser gás, ou um aparelho de ar condicionado. Na pensão dos Anjos, o telefone não pára. Não, ele ainda não voltou, deve chegar logo. De nada. Na verdade, a proprietária não sabe a que horas voltará, nem mesmo se tinha saído. Repete, enfadada. Não, não está. Era o editor do jornal brasileiro que, armado de oferta inescusável, precisava de alguém que cobrisse a catástrofe. Ele não está, sim, dou o recado. Resmungando, a mulher. Diante da TV. Na tela, o fogo destrói o coração de Lisboa. O número não pára de dar ocupado. Maria das Dores teria também uma oferta irrecusável, caso tivessem atendido. Afinal não é tão grave, há montes de jornalistas por aqui, brasileiros também, e conhecidos; cobrarão mais, é claro, mas é um momento único, vale a pena. Maquete. Talcos.

Maquete. Talcos. O vigia. O policial. O repórter. O bombeiro em chamas. O homem que se esvai em sangue. Os prédios cospem labaredas, o rio ao fundo. No canto obscuro, há gemidos. Um ardor imenso e ruidoso. Que cenário! Como chegou a tanta amargura esse homem que dá a impressão de ter sido outrora feliz? Bruna se pergunta por que tanta dor, por que erra assim, sem amigos, por que não tem descanso, exceto talvez essas horas que passa no cyber café. Ao longo da noite, a mais antiga luz, onde a sabedoria ergueu seus muros em meio às trevas, está para ele proibida. Exceto talvez por Bruna. Pelo carinho que sente por ela, que tanto o ajudou no comecinho, quando nada sabia de internet. Pelo tamanho bem que lhe deseja. Mas não argumenta desse sentimento para alguma expectativa, que não há. Além das seis horas na loja, de onde tira seu sustento, ela trabalha como voluntária, o que em si não significa necessariamente muito, mas se dedica, diante dela seu bairro se abre, amplia seu lugar no mundo, sua roupa é simples, está limpa, faz algo por alguém, por ela mesma. E o homem outrora feliz agora sangra, por assim dizer esfarrapado – não tem proteção social, foi fatal perder seu emprego numa época em que a juventude era o requisito profissional mais importante, o qual ele não tinha mais. Na verdade, não tinha tampouco outros, outros requisitos: dera as costas ao mundo, modo que encontrou para manter um mínimo de sua integridade original. Dera as costas a tudo. Trabalho, amor, família, e a segurança que daí advém. Ela não entende nada disso. Precisa ganhar para comer e dormir, e poder ser útil, ajudando outros jovens que, apesar da disseminação da rede mundial de computadores, não sabem usa‐la, e quando sabem é para nada além de sites de relacionamento. O homem não ia ali para isso, porque fazer amigos, mesmo virtuais, é preciso algo que igualmente perdeu, o sentido de socialização. Escrevia num blog, escrevia livros eletrônicos, comentários de filmes e de livros. Bruna, enquanto escrevia seu diário (num caderno, por trás do balcão, não em seu terminal), dava olhadas de relance e imaginava o que poderia ele escrever, os tipos de filme de que gostava, que livros costuma ler. Quando se aprende a viver como ela, imagino, não se pensa muito na vida. Mas algo os une. Se o consumo é o fim de tudo hoje, pensaram ambos em momentos diferentes, ao observar as reações de namorados, de cônjuges. Senhor, sou homem cuja carne envelhece, mas Tu permaneces de geração em geração. Converte‐nos. O sorriso dela, meigo e forte, o acusa. Porque ama, não tem tempo para amargura ou ciúme, desvela‐se, como a brisa num dia de sol. Ela nunca existiu na verdade. É um mito, Bruna. É esse mesmo seu nome, ontem ouviu alguém dizer. O todo pela parte. Cheia e forte, contornos forjados pelo trabalho doméstico, talvez até na roça. E, como se faz como a massa de pão, será posta na cama, coberta, para crescer. De noite ele a cobrirá de novo, caso ela se descubra. Fica observando como ela dorme, tão serena. A filha que não teve, mulher que fugiu. Nem a presença súbita do noivo para buscá‐la, o desperta. Ela está ainda deitada, um ligeiro tremor nos olhos fechados, depois vai até ele, que está lendo na sala, e lhe dá um beijinho no rosto, um copo de leite nas mãos, pergunta se ele quer também. Quantos anos terá, uns cinqüenta? Sabe‐se que tipo de homem é esse, desa idade, que gosta de navegar na internet. Mas, pensa Bruna, se tanto escreve, será um escritor, um jornalista talvez? E tenho medo de quem escreve, mais quanto melhor: há no escrever bem certa magia que, mal usada, destrói a prática do que se escreve, o bem e a beleza que deveria ser expressada. Bruna o vê, a rua escurecida, o dia ofegante, os efeitos da insônia. Ninguém à volta deles. Não, não há esperança. Ele é a rua, o cansaço, o sono que não concilia; e ela, a loja, o trabalho, a luz. Oi, como vai o senhor? O que é o inferno senão o esquecimento? O abismo está ali, onde pode ser visto mas jamais descrito. Vale a pena essa vida de eternidades perfeitas e inalcançáveis? As chamas ardem no vazio, cenário transitório do que apenas pode ser lembrado. Que esperança? Aqui, aqui! Olhem! A infância para a mulher que a tudo assiste petrificada; o corpo para a jovem que apenas dá uma paradinha antes de ir pegar a condução para o trabalho; os bens para o analista econômico – o que, para o homem ensangüentado? que Maio para o velho basco? Que propriedades possui a proximidade do fim? – fim, não esquecimento, mas possibilidades que perduram. Calma, vai ficar tudo bem, diz o mendigo. O corpo, a infância, os bens, e há de ser além disso alguma outra coisa eu não apreendo agora, pensa, seu sangue empapando o partícipe papel. O que esse senhor está dizendo? Creio que o conheço; pelo menos já o vi por aqui. Não consegue articular palavra, quer perguntar o que é essa claridade espantosa, esse aterrorizante brilho, esse sangue, mas Não fale, diz o mendigo, o policial se agacha e repete Não fale, a ambulância já vai chegar. As chamas abrandam. Legam, do ardor inicial, faces fantasmagóricas aos

As chamas abrandam. Legam, do ardor inicial, faces fantasmagóricas aos edifícios. Cadáveres de pedra. As pessoas atingidas devem se dirigir às juntas de freguesia, entrar em contato com a Câmara Municipal ou com a Casa de Misericórdia de Lisboa. Podem eventualmente olhar para trás. O fogo destruiu aquela região mas, até onde se saiba, ninguém saiu por isso da cidade. Olhei então aquelas coisas sob todos os prismas possíveis e tornei a olhar, de uma perspectiva improvável. Se estou irremediavelmente preso ao tempo, o tempo ele mesmo não faz diferença para mim; se o espaço é onde tenho de ser, o espaço em si não importa. O Chiado se erguerá do fogo para se inscrever, restaurado, numa nova Lisboa, a do euro. Olhei e existir era tudo, o sentido da vida estava ali. Nessa época, a situação econômica no Brasil estará estabilizada, não será mais tão comum imigrantes brasileiros. Ao contrário, os portugueses irão procurar nova vida longe de Portugal, sobretudo na Angola em reconstrução. Tímido é o falso sorriso, a vida é falsa porque falsa a opção – reconhecimento de um mundo cujos valores não são os meus? Às vezes alguém se lembra do velho Chiado para falar de Fernando Pessoa e lembrar que a literatura, ardendo, arrebata; que ali era o coração da conversa política, da noite deslumbrante em restaurante da moda. Todos concordam. Um pouco da historia deixou‐se consumir nas chamas. Ninguém sabe de um rapaz chamado Christian que morou ali do lado e foi esfaqueado naquela mesma madrugada. Todos concordarão, dali a vinte anos, que a Rua Garret é a mais bonita de Lisboa. Nesse primeiro momento a polícia judiciária considera apenas que é prematuro pensar na hipótese de fogo posto. Na mochila não há documentos. Só cadernos e blocos de notas: poemas, artigos, crônicas, diário e até o esboço de um romance, manuscrito – incenso em um holocausto. Chamada. Esses estranhos mecanismos com que se reverte a existência, pensou. Conhece Katia e termina por se decidir, acredita que realmente foi ali, ao se tornarem amigas, convencer‐se de que é necessário. Irá então ao Porto, não que fizesse algum sentido, talvez possa entender, sabe lá , talvez aprender e se preparar. Mecanismos. Não importa se livros, filmes, peças, músicas, importa que vida, revivificada. Assina os documentos, fica com os pertences. Sai do prédio. Você é a Filomena! Passou duas semanas no Porto. Tornam‐se amigas, confidentes. Coisas assim acontecem. Talvez o relacionamento de antemão condenado dê certo justamente por essa expectativa. É verdade, disse Blandine, no tilintar de louça do almoço. Paulinho a puxava pela saia – O que é verdade, tia? Louça, pano, pés no assoalho e transito lá fora, no sentido de Lisboa. Foi Filomena quem indicou o amigo de seu pai, dono de uma gráfica. Vinte anos depois, coisas ainda são acrescentadas. Bruna digita entre um cliente e outro. Então um dia Blandine acompanhou o transito. Adeus! Tchau, adeus! Fica com Deus! Lisboa, as velhas casas de Alfama. Quase sem desvio se chega à Costa do Sol. Nela e sob ele, Blandine dizia adeus em uma nota no caderno. No táxi para o cais, confusa, devia estar estar em Trieste e não estava. O que realmente sentia? O que entendia? O Tejo passa, do lado esquerdo, se confunda com a bruma, retira contornos, perde‐se na transitoriedade do motor, e em sua pele o ar frio murmura, Quem é você?, até onde se retorna às origens além da imagem do senhor Jean levando chá quando ela estava acamada, até onde a esperança poderia ter ido além da casinha com um Christian quase idoso mas ainda viril, doce mas de imprevisíveis rompantes. Desperta. Roberto, o taxista. Não cintila mais, perde‐se com o navio (ou a ponte, ou que miragem), que ficou para trás no caminho – o navio que eventualmente passara mas adiante estará o seu, esperando –, Bruna, as mãozinhas de Bruna, desde quando mesmo seu coração deixou de se apertar em seu peito, a partir de que momento a morte de Christian (ou o fato de não ter sido enterrado) deixou de fragilizá‐la, ou seria melhor dizer fortalece‐la para a fraqueza, ou quem sabe fortalecê‐la, apenas – enfim, desde quando sobrevivia apenas, sem atributos? O livro a ajudaria, estava cansada. O leitor, a consciência de leitores, saber que existirão, a completaria. Como se fosse um reflexo à luz da tarde nas águas do Tejo. Agora descansaria, descansaria em casa. Os passos saem com o bater da porta do carro. O velho navio, reconfortante visão. Um carimbo – Obrigado, senhorita. Escreve a ultima anotação européia. Uma forca além dela continuará escrevendo por meio dela as palavras que se escrevem a si mesmas. Não se trata de talento, nem de posteridade. Morreria se não escrevesse – ou, pelo menos, poderia morrer. Terá a ver com resistência, esa sobrevivência, esse existir anônimo que depende das coisas públicas, de privação, privacidade e dor? Os sonhos do ego, isso é um paradoxo, terminam por apagar o ego, e mal me lembro, se me lembro, do que vivi. Agora há o silencio, ou poderia eu dizer a

lembro, se me lembro, do que vivi. Agora há o silencio, ou poderia eu dizer a essência do vazio, em oposição a qualquer coisa ligada a bem ou mal‐estar físico e moral. Há um outro sofrimento, que não sei como chamar, que é quase ausência de sofrimento, não espero que você me entenda. A fraqueza humana – olho em volta os outros desabrigados – pode ser pura força. Como disse o médico. Parece que proporciono algum tipo especial de prazer ao me furarem. É o senhor? Foi o senhor daquela feita, não é mesmo, ali no metrô? É, sou eu – Mas desta vez foi um pouco pior, estás a ver? Vai me dever mais esa. Parece mesmo que tenho algum tipo mórbido de prazer em sobreviver aos furos, e vale em muitos sentidos. – Shh, quietinho. Foi assim, e não tive mais ânimo para ir a lugar algum. Aqui e ali e quanto tempo? Eu podia ser meu pai. Há no homem um tempo próprio, nem mais nem menos, nem breve nem longo – não arrisque dizer eterno –, um tempo simplesmente, sem significado, sem relação com o espaço, real e irreal, limítrofe, subversivo, intenso. Dá para ver a praça, sob a marquise de onde ele está. A moça se levanta do banco de jardim e se afasta. Seu caminhar decidido marca a distancia entre silencio e silencio. Não o esforço do desespero mas um comportamento cotidiano. Ali, do lugar mais distante, é possível ter noção do quão perto esteve. Ela sobe e desce a elevação da rua, recorta em seu vulto a paisagem em chamas, leva para si todo o corpo da ruína que sobre ele se abatera junto à impenetrabilidade da noite que pontualmente desce do céu. Abriu a porta. Pablo! Lembra‐se de mim? A porta entreaberta, um convite. Ele entra. Você sumiu e a cidade nunca mais foi a mesma. Costumavam – lembra? – sair às noites e elas eram tão iguais, tão agradáveis. Mas sabiam que não ia durar. Você não nasceu para a roça Blandine. Mas talvez para ele, para Pablo, sugeriu ela, irônica. Riram. Talvez. Para dezoito anos ele era; para vinte e dois, ela. Agora a diferença é a mesma, mas é outra, dois anos e tanto depois, não é? Você continua o mesmo. Saíram, lancharam, dançaram, dormiram no apartamento de um amigo. Era como se Christian nunca. Não podia pretender substituí‐lo ou retê‐la. Aconteceu. Nunca abandonei a esperança de. Minha vida amorosa acabou, querido amigo. O impacto nem foi o que ela disse mas a franqueza com que soou. Pablo não sabia se tivera uma, além de esperar que ela voltasse. Definitivamente, continuava o mesmo. Você me conta?, como foram as coisas?, sabe como é, você nasceu aqui, sabe como as coisas funcionam, não queria essa história, mas a sua, de seus lábios, esses lábios. Esses lábios assim não podem falar... Então as lembranças. No dia em que conheceu Pablo, Christian partira havia dois meses. Mais uma semana até beijá‐la. Dormiram juntos quando? Tudo preâmbulo de nada. Você iria, mais cedo ou mais tarde. Ainda ouço histórias sobre teu pai, e o quanto vocês se parecem. É, iria, ela partiria sim. E fui. E agora, amigos? Pablo! Ah, tática antiga. Riram de novo. Há quanto tempo ela não ria? Amigos, claro. Conta pra mim. Sim contaria aos poucos. Tenho escrito, mas não sei. Escrito? Paulo não poderia ajuda‐la quanto a isso. Detestava ler, escrever, estudar. Sou bom mesmo no trator, como teu irmão. É. Ela sabia do que ele gostava. Mais uma vez. Rir era o estado natural de Blandine na companhia de Pablo e isso a cativou definitivamente quando percebeu que funcionava também com Bruna. Quando voltava à noitinha para casa, os morcegos ao redor, nuvem negra ante a magnitude do poente, tudo não passou, pensava, da gestação dessas montanhas, desses seixos entardecidos, sob a corrente translúcida do riacho ao lado de nossa casa. Europa.... Tudo aquilo – que direi – nada além de um enfeitado e mórbido vazio. Preenchido afinal, graças a Deus, pela pureza de Bruna, pelo fogo de sua presença – sua meiguice cala o terror noturno. Todas as coisas em seus lugares, destino ou como se queira chamar, vontade ou o quê, trabalho talvez, enfim. Tudo se apresenta e se perde e adiante se reapresentará de algum modo acrescido e todavia sempre igual. Estações. Folhas. Vida frágil. Decerto nem pensaria em questionar o tempo, ou melhor o intervalo, os rumos que a gente toma, as escolhas que faz, estão aí e serão para sempre, a quem ama ou odeia se dar‐se‐á motivos e assim se formarão em nossas memória, a saber, em nosa vida, também, talvez no futuro desconhecido mas imaginado. Quando despertava. O sol obliquo parecia ter, naqueles raios novos, um caminho traçado desde a janela sobre o berço até além da porta, se perdendo, se

caminho traçado desde a janela sobre o berço até além da porta, se perdendo, se disipando, na ainda penumbra da cozinha, sob a mesa, quase no fogão, junto à lenha. O livro. Não houve sacrifício, não foi isso. Alguém disse que toda ação é um paradoxo, um meio de caminho entre o ideal e o real, temperado pelo caráter. Aqui, onde agora Bruna dorme, ele não está, mas às vezes o vejo, e penso no seu corpo, no destino de seu corpo, não sei se acredito em qualquer das linhas de investigação da policia portuguesa. A lâmpada acesa por causa do bebe perdeu a função original, tornou‐se a lâmpada do hotel, quando poderiam ter ficado juntos, mas insisti e peguei o avião, e agora. E esse homem que não está aqui? E aquele? Ah, a emoção da nova manhã... a vida renasce no movimento entre os lençóis, se tudo renascesse assim, ainda haveria você, me tocando assim, me beijando assim, sim a manhã é a parte mais bonita do dia, mas hoje não quero acordar, fica mais um pouquinho comigo. E Christian ficou até quase nove horas. Não há nisso nada de especial, só um sonho, um despertar, lugares novos que nem sempre diferem dos conhecidos ou, ao contrário, habituais que se desconhecem. Lisboa. A destruição que precede a reconstrução. Estava só, como sempre estive, cambaleante pelas proximidades da posta‐restante, entre as pessoas na calçada, e me cabia o esforço de interromper a ruína. O pano de fundo do tráfego na Baixa. Estive morto e renasci. Palavras serão insuficientes, sábias que sejam, e não são; e não as sei. A fluência não mais me auxilia. Há aqui um problema não pequeno. Havia uma hora que caminhava, envolto pela estranha luz, não do sol ou de lâmpadas. Renasci apenas para morrer outra vez? Então a moça mais desejável do mundo cruzou o meu caminho na musica da manha urbana que não oferecia muito a um estrangeiro sem lugar aonde ir, sem dinheiro e, suprema falta de sorte, que viesse a tentar o suicídio com remédios. Agora procuro um lugar ideal para passar meus últimos momentos. A cidade se recusa a oferece‐lo para mim. A aura lisboeta é uma aura boa, há generosidade nas pessoas, comerciantes ou marginais. O cheiro de sopa se mistura ao de haxixe. Pairam junto aos perfumados convites da noite. Essas mulheres sabem o que é isso, são misericordiosas. Mas as ruas jamais deixam de serem hostis. Há algo de experiência, de ensinamento. As coisas corriqueiras estão permeadas de ridículo e superfluidade. É que a gente se acostuma. Enxergo o bem e mal apequenados com olhos de lágrimas contidas. Diante de mim o bem supremo. Quisera tê‐lo reconhecido antes. Ela parou, se virou, me olhou com ternura. A energia que emanava de suas feições, num louco ceticismo, atribui aos comprimidos que tomara. Hoje sei que me esperava. Por isso tardou a abrir a porta do edifício. Por que eu a deveria chamar? Dizer que tinha uma aparência etérea? Que eu precisava de um lugar onde morrer em paz? Como eu não decidia entre conquista ou morte, ela falou comigo. Venha. Possuía um apartamento naquele prédio. Não acredito que disse tal coisa. Os contornos são difusos. O contato das mãos é cálido. O tempo continuava passando, mais curto se tornara o meu tempo. Morri talvez e entrei em outra dimensão. Talvez fosse o espírito designado para me receber. Se não, era questão de talvez uma hora, não mais. Ela sabia. Como? Blandine ter voltado para o marido deixou de ser a lancinante dor de sempre, o vazio que o fogo de Francesca não mais pode preencher. O que ela está dizendo agora? Fala com um outro de mim. E o que lhe responde? Um choro, um choro de recém‐nascido. Disse‐me então que vivesse. Impossível, se o veneno já está em meu sangue. Não durma. Eu poderia ficar o quanto precisasse, poderíamos fazer o que eu quisesse. Desde que você não se deixe vencer pelo sono, Christian. Como sabe meu sono, quero dizer, meu nome? Seria uma tortura, uma verdadeira tortura não dormir, eu estava morrendo de sono. A luz traz seu corpo entre os vapores do vestido e entre os sons da noite se destaca sua voz suave. Não meu querido: você está apenas morrendo. Não sei o que é isso em seus olhos, sentimento? Amor? É possível? Com licença um momento, disse ela. Sorriu. Não se esqueça – Não esqueceria. Não, não dormirei. Pus‐me a esquadrinhar o apartamento. Passáramos o vestíbulo ao entrar e agora eu estava sentado num sofá na sala, forrado dum tecido semelhante à hulha, verde, se assim posso dizer, bastante confortável e inadequado para alguém que, morrendo de sono, tem a determinação de não dormir; e, acrescento, não sonhar com rios e cursos de água – e se ao adormecer fixasse o olhar nas listras do

com rios e cursos de água – e se ao adormecer fixasse o olhar nas listras do sofá, listras brancas de hulha, seriam quedas dágua e cachoeiras, e além um arco‐íris. Paredes azuis. Flores na mesa de centro. Um coração taquicárdico. A janela é grande, dá para horizontes concretos, cinzas, com algum recorte de copas e eventuais pássaros do equilíbrio, de asas aquosas e iluminas penas. Há abandono e recuperação de estados líquidos, discerníveis nas estrelas: parecem folhas a brilhar. As portas estão abertas, tanto a do quarto quanto a do banheiro, de um e de outro nascendo as suaves luzes foliáceas. Adaptam‐se à penumbra da sala. Um velho conta estórias para seus netos, que escutam enquanto esperam pela idade. O tapete felpudo, após cada passo meu, retornava a seu estado anterior, a seu descanso, e as aves levam a canção do tempo também presente nas raízes entrelaçadas no solo. O lugar era tão aconchegante que praticamente me esqueci que morria ou – pensamento que não me abandonara de todo – estava morto. Eu me movia com o lugar, alimentava‐me dele, em perfeita simbiose. Aproximei‐me do parapeito. Meu querido... Quem sou? De onde vinha aquele cheiro, e aquele grito, e aquele sino? Para onde vai esse silêncio? No horizonte um espaço de camadas superpostas. Não tem a ver comigo. É uma visão, que não perdura nem deve na verdade perdurar. Porque toda vida provém de uma vida anterior. Então quem era aquele no reflexo do vidro, modificando‐se a partir de meus movimentos e dos movimentos da janela? A imagem de um homem cujo perfil assinala estilo; na face, calor e engenho. Nada indica angústia. Ansiedade, só a espera de alguém que fora se trocar e logo, logo voltaria. A presença daquela que eu acabara de conhecer, embora eu não a visse, se fez forte num fluxo contínuo que me atravessava e ganhava os ares, a cidade, o rio, o horizonte e além, e os trazia de volta. Quando a vi, era prisioneiro; a cela se abriu. Ao conhece‐la morria, estava morto. E agora onde em mim – A lua está cheia. O tempo passou e vi a manhã chegar da janela do apartamento de minha amiga, sem que ela tivesse voltado à sala. O sono se fazia insuportável. Porém de algum modo o alimento que o sono traz com o descanso, a substituição do que estava gasto, a renovação da vida, todas essas coisas – parecia – mesmo sem o sono haviam se processado. Então entendi que, desde que absorvera o veneno, quando tomei os comprimidos na saída da clinica, em meio ao desconforto abdominal pela ferida (lembrei ao rever o grande relógio do saguão), já tinham se passado vinte e quatro horas. Desde então foi a peregrinação em busca de um banco de praça, de um gramado, para o escuro sim. Num domingo, em plena manhã de um domingo, isso não foi possível. Deitei dezenas de vezes e fui outro tanto impedido de adormecer pela cena lisboeta. Sentei em diversas praças, para ser mexido e puxado pelas crianças. Antes de encontrá‐la. Não durma. Dentro desse espaço‐tempo, ou o que, fui, acho, reconstruído, invertendo os processos segundo a luz. Gestação. O sono afinal. Acordei, encharcado de suor, na parte mais alta da encosta, ali onde fica a igreja, de onde se vê, silenciosa e distante, a torre. Estava eu portanto no local que observava da janela durante a noite. Vestia uma blusa de lã e um sobretudo. Como fora parar ali, me perguntei, mas a questão era outra: onde estava a janela de onde eu via este lugar? Seguindo a orientação débil de meus sentidos recém‐despertos, localizei o lugar do prédio. Naturalmente, não havia prédio algum. Uma questão com que não estava acostumado a lidar: vida onde deveriam haver soluções dramáticas. Aliás, não havia prédios por ali. Meus olhos ardem, doem na verdade. Não é a mesma coisa. O corpo está formigando. não tenho qualquer saudade. Pode‐se dizer. Feliz. Subitamente a ausência percebida daquela a quem conhecera na noite anterior se tornou sua presença. Lisboa é um espectro de si mesma. Vi pela janela de uma montra, uma menina que cantava. Suzi Kirkjevo, diz a legenda. A musica em meus olhos. Estremeço. Talvez como os pastores frente aos anjos. Ela está aqui, sentada nesse calafrio ao longo de minha coluna. Acredita em mim, me escuta. O que mais posso querer? O sentido de direção não voltou, embora eu já esteja bem desperto. Não sei como dizer isso. Sem problema. O calor das lembranças vivifica os pés de café, na luz do dia pleno cintilando, rios verdes que sombreiam as ruas de café à frente. Do desvario europeu se originou essa realidade, de que seus olhos podem ser editores; mas também cada flor invisível na mata possui um aroma, uma beleza e um significado. Na ultima curva da volta, é permitida a visão da luz enquadrada na janela ao longe. Nossa casa. É impossível imaginar esse lugar sem você ou imaginar você em

Nossa casa. É impossível imaginar esse lugar sem você ou imaginar você em outro lugar. A terra exala cheiros de amada satisfeita. Outros pingos tamborilam no telhado a percussão de uma cantiga remota. Um sentimento fecundo se reflete nas poças e no riacho – as águas, as águas – as águas correndo límpidas entre a florescência. Levam, como se fosse uma folha, do bosque para a cidade, a sagração de uma luz noturna: um dia, a circunstancia eterna da ausência há de consentir numa sinfonia que não há. O vento leva o que se vê e verá o vento quando não mais for possível – quando as folhas secas, partidas, misturarem‐se ao pó. E a vida gesticulará, em ciclos, como notas de suítes assistidas pelo tempo. E o tempo caminhará largo para a eternidade, vendo a vida como a vê um adágio. Os apanhadores de café subiam na carreta engatada ao trator, prontos para mais um dia, em meio à algazarra com que zombavam da faina diária. Ao avistarem a mulher e sua filha, calaram‐se. Depois que passaram, até não mais que – pontos no pó da estrada – emaranharam‐se num crescendo os mexericos. Uma lenda se fizera em torno da mulher, por causa de seu isolamento desde que voltara com uma criança de sua misteriosa viagem e fora viver na chácara de seu pai – sozinha, exceto pela filhinha e os animais. Com sua loucura. Sua historia, os camponeses adaptavam à própria capacidade de compreensão, o que multifacetava a lenda. Mas em nenhuma versão se achava a verdadeira historia. Postado por Ricardo às 06:40 0 comentários

Terça‐feira, 8 de Abril de 2008 Chegara a Portugal com objetivos seculares, um emprego em jornal e um vínculo afetivo estável. Se no meio do caminho descobri a grandeza da literatura e a miséria, isso se devia à vaidade da qual fugira. Então me vi na carta. Não é metáfora. Vi minha imagem na carta. O papel fino me refletia ali sentado, recortado contra o trânsito que flui na direção do Porto. Acinzentado brilho imperial cobre o casario nas ladeiras ao redor. Cheiro de vinho no ar ao de grelha e rio se mistura. Francesca na memória de minha língua. Tamborilam as fontes nos ladrilhos rangentes à passagem dos bondes. O prédio na esquina do paço ergue‐se triste em cicatrizes e olhos, duplicado abaixo ao longo da poça no meio‐fio. Minha gola azul de zuarte está levantada até as orelhas e as sobrancelhas se encontram na glabela. No cenho, a leitura se converte em saudade e dor. Ergo os olhos. As dragas empurram as ondulações contra a superfície sáxea que margina a avenida até a torre de Belém. As moças passando não sabem o que é aquilo e para que serve. Espero a subsistência do jornalista e do escritor o nome; todavia, se devo escrever, será apenas para a manutenção da sanidade e transcender a fome e o relento. Postado por Ricardo às 04:53 0 comentários

Terça‐feira, 1 de Abril de 2008

9   Estar verdadeiramente apenas ao não estar, ao lembrar, ao imaginar. Este recibo da proprietária da pensão no Bairro Alto me traz mais daquele período do que de fato sentia lá estando. Recrio aquela vida e, súbito, eis que é vida enfim, justo aqui, perto assim da morte. Algo sobre Angola deverá vir na correspondência que recebi ainda no Brasil. Vamos ver. Aquela Time na casa de Oleana. O Proust de bolso! Vejamos. O começo do livro será talvez em Paris, chegando de avião com Francesca, talvez. É. Pode ser. Não sei dizer. Idéias confusas. O fato é que. O exercício de passar aqueles textos todos para um único deixa a mercê do assalto de sentimentos por demais intensos, quase violentos para minha vulnerabilidade. Não sei. Aqueles dias obscuros tem uma luz peculiar, a que a vida posterior concede àquela que não se sabe enquanto está passando. O livro perdeu a perspectiva literária, o leitor, a posteridade, a necessidade de reconhecimento, enquanto o trabalho desmaia de desejo e mais exigente se torna na execução, obrigando a renúncias básicas, como a da felicidade, da amizade ou do prazer. Definitivamente, não sei. Viro o postal. É minha tediosa letra sobre papel amarelado, o que mais? O universo reflete de todas as nossas conversas, amigo, nas quais tenho constantemente pensado, desde que você, tolo, foi atrás de minha irmã. Fui. Vim. Estou. Agora aqui. É noite. São 23 horas. Oito horas da noite em Piumhi. A praça está quieta, sem movimento. O casal que passa se lembra. Mas claro. Era um cara legal. Ah, claro, ela também. Muito bonita. Nunca mais. Nunca mesmo. Sumiram. E o Kleber? Dizem que vai se casar. É uma noite excepcionalmente quente. Não deveria. Tempo estranho. Um miado no telhado do hotel.

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Durou duas semanas. Sexta à noite, no meu desespero, Francesca chega sem preâmbulos. Briguei com Garlos, diz, quem está ele a pensar que é para falar daquela forma na frente de todos? Pedira demissão. Mas não se preocupe, amor. A casa

fazia sim parte do contrato. E ela telefonaria para Franco no dia seguinte. Pediria algum dinheiro. Alugaremos então um apartamento. E, tenho certeza, o próprio Franco nos conseguirá trabalho junto às suas relações em Lisboa. Naquele momento escutei um miado agudo vindo do telhado. Ali. Saindo de sua casa em Roccabernarda. É ela. Uma mulher maravilhosa. Com a roupa do corpo, um belo corpo. É então que combinam. O que ela venha a precisar, é só pedir. É então que combinam. O que ela venha a precisar, é só pedir. Vá com Deus. Agora, ela de novo, ligando para a Itália. A mesma roupa, um pouco suada, o mesmo corpo, tantinho cansado,. Não está em casa. Decerto foi para Nápoles. Não. Ninguém sabe onde. Claro que há uma explicação. Enquanto isso podemos recorrer a seus avos em Póvoa. Não era caso de desespero. Os navios passam ao longo do Tejo, os cacilheiros o atravessam. Ali estou, de novo. Somos, eu e Francesca, duas pessoas sem nada em comum mas não posso abandona‐la agora numa situação em que se meteu por minha causa. Sei porém que não dará certo, jamais dará certo, é uma questão de tempo, ela mesmo me abandonará. Esperarei. Um casal em Cascais. Amigos dos últimos conhecidos da agenda de retornados de Francesca. Precisam de caseiros. Melhor ficarem com o trabalho do que sermos constrangidos a hospedá‐los. É, também acho, diz o marido. Está resolvido. Na quarta seguinte, ultimo dia de Francesca no escritório de Garlos, já havíamos mudado para a linha do Estoril, no fim da qual o casal tinha a chacrinha.

Durou uma semana. Quinta pálida, perturbada entre ass arvores que farfalham, ela chega pelo caminho que traz à habitação dos caseiros. Estou cozinhando na lareira porque o gás acabou e só poderei buscar um novo botijão no dia seguinte. Ela estivera durante todo o dia e parte da noite na casa principal, servindo os convidados. Desabou chorando sobre o sofá e disse que não agüentava mais, era superior às suas forcas, não estava acostumada, não agüentava mais. O senhor Couto compreendeu, a senhora Couto lamentou. Partimos no dia seguinte à tarde. Durante o percurso de volta a Lisboa, escondia de mim os olhos. Quando na penúltima estação as pessoas começaram a apanhar suas coisas para descer no Sodré, ela toma minha mãos, me encara, por favor me perdoe, queria o melhor para mim, amava‐me. Estremeci. Ao descermos na estação do cais, estávamos na rua, sozinhos, amaldiçoados. É hora de começar a aprender a viver, diz ela, como se Franco não existisse. Não iria atrás de advogados ou detetives, até porque não tinha dinheiro para isso. ‐ Eu tenho. Não era muito. Mas creio que para isso. Como não quer o meu dinheiro?, eu aceitei o teu todo esse tempo! Por que eu insistia, perguntou, irritada. Não te incomodava tanto a dependência? Agora estava livre, não dependia mais. Anoitecia e tomei consciência da noite. O vento começou a soprar.

@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@@ Postado por Ricardo às 06:43 0 comentários

Sábado, 29 de Março de 2008

7   Ah, ela lembrava, sim, desde o primeiro momento que olhou para ele soube que era ele, descartou sua independência embora fosse o que mais prezasse, em teoria, não queria a piedade futura dos filhos como ela se apiedava dos pais, não era o que viveram juntos o que Blandine queria, não queria como Donda um lar para ser rainha e nem mais tarde a solidão da mãe que vive para os filhos, quando não vive a própria vida dos filhos. Sou mulher. Descobrirei o que significa. Agora, perto do milho, sob a mangueira, era só a missa que o sino anunciou. Ela propõe o casebre abandonado que dava para o lago. Ali se fez mulher, passe o clichê, como todos muito falso, se fez mulher com a convicção do artista que se exibe sabendo que é a hora do seu sucesso. O sangue não vertia, acariciava. Haveria outros momentos sob o céu da bem‐aventurança. Não só entre ela e Christian, também com um outro. Falo sério, Blandine, nunca senti isso por ninguém, nunca conheci uma mulher como você. Você conhecerá muitas mulheres, Pablo, irá conhecer uma que terá sido feita para você, tem só dezesseis anos, menino. Onde está o problema? O adolescente a conquistou. No amor era amante experimentado, Pablo, ela não podia entender como. Deixou‐se então levar, quase durou. Mas Christian. Christian fora o do pacto – todavia tampouco. Ah, quando o viu no milho com Kleber! O amor de sua vida. Momentos únicos aqueles, talvez como o primeiro cavalgar pelos cafezais. Nunca mais desde então. Quando, cinco anos depois, o revê. A musica do tempo sobre o lago. Não sabe se deverá tornar‐se os dias que

transcorrem ou apenas sonhar de longe. O aroma cítrico, amadeirado. O rosto querido exposto ao êxtase é céu de roça, distante de si mesmo e de qualquer vínculo com a cidade. Gosto de amêndoa, a ilusão da afinidade, ou do poder da afinidade, na verdade um poder de si mesmo, nunca do outro, do relacionamento. O doce da mãe, de Donda, a calda na ponta dos dedos médio e indicador. Cinco anos se passaram. Nossa!, não parece... Fino, o fio não irá açucarar depois de frio? Desfalecimento. Espaços, espasmos, espírito espargido sobre a carne se apressando ao pedido de que fosse, por favor, sim, aplacado. O prazer. Que silencio é esse que precede o percurso interminável da mao não ser pela mão que acaricia? Como num movimento ensaiado, levantam simultaneamente o olhar das pedras do calcamento. O ruído do motor do caminhão, distante, dá a idéia do minuto passado, como uma canção que insiste na mente após dormirmos. As ruas molhadas são almas, indicio definitivo. As brasas de uma fogueira não utilizada ardiam ao sol e a fumaça ao ar se misturava, ou era o próprio ar em seu caminho. A vida segue. Cabe ressaltar, antes dos corpos, do desejo e até da pessoa perante, o sonho ausente se faz pressentir – onde as afinidades convergem, miudezas partilhadas, o gesto adivinhado, o olhar desdenhando da palavra, almas trocadas como endereços em furtivos bilhetes cifrados que tudo deixam impresso na leitura da grafologia. Falo de amor, de um movimento da vida que segue mas súbito quis parar, cuja realidade apesar dos pesares é o corpo vivo, e apenas ele. De uma eternidade que, diferente de todas as montanhas, não se pode contornar. Está sempre ali, permanente e atemorizadora, contra a qual nada podem a arrogância, o medo ou a esperança, esse poder de é feito o eu inatingível. A fome na saciedade. Se estava escrito que eu deveria ser de Blandine, o sinal não foi o amor físico, sempre ao corpo limitado, mas a calma do dia seguinte, na espiritualidade que abandonara a busca de Deus para se concentrar na beleza qualquer. Não só o desejo, carente de outro corpo, mas a ternura anterior, mesmo em meio ao fetiche. O corpo do destino se forja na tortura, um sentimento que se pode escolher – falo de amor – dúctil ao arbítrio, rosa que floresce do cultivo, ninho com cuidado preparado.

Pedi licença e entrei no restaurante para ir ao sanitário. Ao apanhar o papel higiênico no bolso, tirei junto a carteira, tive esse cuidado, perder documentos seria agora desastroso. Numa das separações plastificadas, aquela mesma foto dela, Blandine e uma foto recente de Francesca na casa de praia, soberba num biquíni clássico. Francesca. Separados na maior parte do tempo por causa do pub, ela crescera – não há a luz de nada saber acerca da cor? Por outro lado, Blandine deixara de ser por estar súbito ali a meu lado? A madeira se dá, generosa. Não escuta um único agradecimento junto aos gemidos do fogo. O calor abafado no cubículo. Sou a menina das montanhas, sou teus sonhos, a própria montanha. Mas. Ao lado do restaurante, a boate. A mulher que não dormira e sim morrera. Subíamos a viela cheia de latas. Célere uma ratazana passou à nossa frente na direção do lixo amontoado pelo pessoal da prefeitura que precedia os caminhões. Surgido do nada, o gato branco que, havia pouquinho, recebia nosso afago, saltou e a abocanhou. Por que os animais tem de ser maus se são criaturas sem arbítrio do próprio Bem? Eu não podia acreditar... O tempo tanto passara e ela ainda desviava para questões genéricas sem solução a nossa conversa que pedia o momento particular. Um ônibus passou raspando ao atravessarmos a avenida. Ela continuou. Está vendo? Para o sofrimento do homem há uma justificativa – Me dá licença um instantinho? Deve ter sido o chá do hotel. Agora estamos na esplanada à saída da boate. O garcon se aproximou, ouviu meu pedido, gritou para a cozinha e foi apanhar vinho verde no freezer. Na boca do metrô, não muito longe, dorme um mendigo. Blandine aponta. O quê? Para o sofrimento do homem, sim, cabe uma explicação natural, como no caso da miséria – ela parece recitar – quando o quinhão que satisfaria as necessidades do semelhante é retido... Eu praticamente acabara de voltar do sanitário. Estava meio sem alternativa. Será que esqueceu que conheço o discurso? Agora falará das guerras. – Como no caso das guerras... No queixo dela os mesmos seios tristes de quando da minha partida de Piumhi. Não, na verdade não. O queixo estava mais cheio, um queixo sedentário, financeiramente seguro. Mas os vértices dos lábios carnudos mantinham ângulos precisos de generosidade. Isso não perdera. Foi quando comecei a pensar em felicidade conjugal. Em como pode haver sensualidade, família, amor à arte e tudo mais, debaixo de um mesmo teto, na vida de uma casa. Aquela era uma esperança assassinada? Mas que esperança exatamente? Desejo generalizado de tal modo que todo produto, de margarina a tênis, e todo serviço, de banco a telefone, se vende na propaganda por meio da idéia de uma família feliz, de valores equilibrados de beleza, forca, trabalho e lazer. De uma casa viva? O amor ou a arte na verdade não são indispensáveis nesse quadro, exceto pelo conforto, pelo bem‐estar que nada intensifica. Não que o mal‐estar o faça. Então o quê? Como teríamos sido sem a separação? Me chamaria de “papai” diante dos filhos ou usaria amor como quem diz por favor? Teria se mantido aquele desejo – se estabelecidos, sem tédio; se em dificuldades sem brigas? Eu não mais olharia para outras mulheres? Seria eu o bastante para ela? Dependeria nossa harmonia da conta no banco e minha sutil de um equilíbrio sutil entre lar e motel, mantido no mesmo quarto? O segredo de tudo, pensei, é se manter pensando. Isso mesmo. A maldição do homem é se acostumar. A literatura seria ainda essencial se tivéssemos casado?

Nossas mãos dadas sobre a mesa. Tato, pressão, imperceptível movimento. Quanto é delegado à pressão das mãos! Blandine, até que ponto você vai levar isso? Tirei o envelope do bolso e comecei a desdobra‐lo, solene. As guerras... Quis prestar atenção nas silabas, para não trocá‐las, mas a luminosidade embaça tudo, a partir do contato das mãos e dos olhares. O que podemos fazer em relação às guerras? O que devia nos importar era a nossa paz! Apaziguar o “Atântlico” no mediterrâneo ou talvez... ‐ Atlântico, Christian. Odiava quando ela me interrompia e muito mais se era para me corrigir. Ele continua tão lindo, com esse jeitinho de trocar letras e gaguejar, um doce... – A guerra é sem dúvida muito mais importante que nossa vida pessoal, meu amigo. E isso aqui o que é, perguntei apontando a carta. Você pensava em que guerra quando escreveu isso? (li alto) “ Você não é capaz de transmitir tranqüilidade a uma mulher, como o Luis é”. Mas não pára em casa. O que você queria, pensou ainda, quando ele vem traz o sustento, as roupas, as viagens. “E no entanto como sofri e como sofro por sua causa, desgraçado!” Uma lágrima! Uma lágrima nos olhos dela! Sim, uma dor tão grande que é quase física... Mas não posso, não mostrar qualquer emoção, chega. A dor. Uma rede de terminais nervosos. Outras impressões podem ter ou não relevância – a voz dela continua doce, tranqüila, pausada, sua língua sai ainda ligeiramente nas proparoxítonas – mas a dor tem sempre relevância, porque é o alarme, porque pode ser a salvação. Ela me olha com bondade. Aliás, você deve ter mais esse tipo de noção, por causa da enxaqueca. De ter aprendido a viver com a dor. Viver com a dor. Ainda tem as crises com tanta freqüência? Pensei com surpresa o quanto as dores haviam melhorado, o quanto as crises se haviam espaçado. Isso na pior fase de minha vida, com pressão de trabalho, ausência de afeto, fome, relento. – Tenho estado melhor. A enxaqueca é um sinal vago dum perigo remoto porque, imagino, é possível viver uma vida plena ou quase com enxaqueca, sem maiores danos físicos ou psicológicos. Não é? Respirando fundo, sinto o mundo para o qual foi necessário nascer de um vento que juntasse vida e virtude e ainda assim... É verdade. É possível. Sim. Viver com dor. Superar. Quando você realmente quiser, quando achar conveniente, quando estiver se sentindo à vontade para – Essa é a utilidade da dor, quando adverte e não incapacita mas motiva, fortalece. O perigo maior do qual alerta é a gente se acostumar com a sua ausência. Blandine morde o lábio inferior, que se deforma ligeiramente entre a brancura extraordinária de seus dentes frontais, transparentes, úmidos, luzindo. Eu mudei, Christian: era a menina Blandine, que não conhecia a dor, agora sou apenas Blandine. A virgem entregue ao herói. A minha menina. Ergueu‐se das pedras um horizonte que em meu peito amou como ninguém antes jamais. Não há por que uma excluir a outra. Você não assume a carta? O raio da estrela transpassa a ambivalência dos sentimentos que se negam, densa em ondulações de memória. Nem lembro da carta para assumir ou não. Justamente por isso ele estava lendo. Disseram juntos Eu Você. Na mesa não apaziguada se refletem mudanças advindas do abismo. Eu queria. Você quer. Estrelas. Nebulosas. Estrutura espiralada. Gases e pó envolvem o que se diz. Não sabiam o que querer. “Você foi isso, Christian, uma doença”, continuei lendo, “mas não incurável” Jamais poderei deixar de amá‐ lo. “Olho para a minha filha e dou graças a Deus por ter abortado de você”. Se refletem também fulgurantes nardos e raros fajardos, a ladeira de Heráclito e os céus da águia e das plêiades. Poço e profundeza. “ Pela paz que o Luis me transmite, pela segurança, logo irei amar ele tanto quanto te amei”. Minha voz foi desmaiando ao perceber que não pretendia ler aquele trecho. Não é possível, pensa ela, como poderei amar assim outro homem se nunca deixei de amar você ou deixarei? Diz então que era esse o seu consolo, sua vingança. Ninguém poderá me amar como ela amou um dia. E ela poderia amar um outro, que a merecesse, que a protegesse. ‐ O O Kleber devia ter dito que você estava em Lisboa. Se tivesse contado, ela deixaria de vir? Aliás, com o dinheiro que tem, foi o acaso que a levou a se hospedar num hotelzinho como aquele? A menina levada aos céus pela carruagem de fogo era menos que suas bonecas pretendiam. O que estava querendo dizer? Que ela viera na esperança de encontrá‐lo? Sua pretensão não tem limites! É maior que sua memória! – Mas não maior que o meu amor. Como se ela não ouvisse. Esqueceu que estivemos no Rio em hotéis muito piores? Pareceu‐me um hotel simpático, entrei e fiquei com o quarto. É como sempre faço. Se tivesse com o Luis, seria diferente, é claro. É claro.

Luis não ficaria nesse tipo de hotel. É o jeito dele. Acha que deve oferecer à sua esposa todo conforto. Eu concedo a ele essa alegria – por que não? Onde está ele agora? Resolve uns assuntos no Porto, responde ela. E, antes que você pergunte, não estou com ele porque tenho umas coisas a resolver aqui, relativas a meu visto. E estou querendo me naturalizar. Não entendi nem tive tempo de perguntar. O garçom chegou. Quando saiu: nossos olhares. Nada mais. Ela disse te amo, ou circundou a mesa e se jogou em seus braços, poderia ter sido assim, por que não? E como não separa o sexo do amor, agora o deseja, voltam para o hotel. Mais que uma possibilidade, quase uma lógica. Mas nada nunca mais será tão simples, nada tão de acordo com os sonhos, acabou essa fase, esse ciclo de vida. Agora será preciso entender, se conscientar, aceitar, não há mais essa com a qual sonha, menos ainda esse que costumava sonhar. O vinho aberto, as taças diante. Como na primeira vez, indizível, e todavia a partir dessa impressão poderia escrever um livro. Bem, não significa muito, poderia escrever um livro a partir de praticamente qualquer coisa. Mas viver, poderei? Enlevo e morbidez. Se misturam. Desespero de viver. Não escreveria livro algum, não sobre. Perfeição. Enfado da carne. Blandine. Talvez tenha entendido de seus olhos. Líquidos. Um riso discreto deixa em liberdade os rios, sem magia que os detenha ou apresse. Narciso na natureza integrado. Não há pressa. Não há vida no mundo. Não há vida fora desses olhos, dessas mãos. Suspiramos gemendo e gemendo choramos, ao passarmos as trevas, no silencio da seiva. Aquele momento! O passado à minha frente e o presente atrás de mim... Era hora de Francesca chegar do pub, pela rua em lento declive às minhas costas. Minha decadência. Um sonho de Blandine prova o vinho. Emoções emaranhadas que se roubam umas às outras. Blandine, cujo aspecto físico não mudara, vestida do jeito como costumava se vestir quando estava comigo, o rosto sem pintura, sem ter adquirido sotaque ou modos requintados, mantendo o acento mestiço e mineiro, tornava o estar ali com ela a vida real, e mecanismo mental tudo o que se passara após nos separarmos. Todos os meus impulsos são no sentido de abraça‐la, beija‐la, fazer confidências. Não compreendo. É possível que esse Luis seja mesmo uma pessoa especial. Não é o que costuma acontecer. Mulheres bonitas em geral, e mulatas jovens em especial, são trazidas para a Europa com o fim de serem submetidas à escravidão sexual, fazerem programas, para que sejam prostituídas. Tubo bem uma vez ou outra se sabe de um caso assim, de um cara rico que casa com uma, mas não é o natural, e no caso, há a questão de como a chamou, quem tenha intenções sinceras não usará aquele tipo de subterfúgio que usou no curso, “para que ela descansasse”, “parecia tão cansada”. Mas sou eu quem pensa isso, e não sou dono da verdade, de repente foi isso mesmo, sabe‐se lá. É possível. Mas esqueça ele só uns minutos, se permita só por esses momentos lembrar com alegre de nossos momentos juntos, é possível, ninguém está falando em traição, mas a gente se rever assim parece mesmo algo, de tão improvável, especial. Não é? Postado por Ricardo às 06:46 0 comentários

Terça‐feira, 25 de Março de 2008

3   Ela entrou no saguão e apanhou sua chave na portaria. Treme, dissimula, enrijece‐se. Um tipo de experiência que não possuía. Se ao menos tivessem feito esse tipo de coisa mais vezes, noitadas, tomar sorvete, andar de mãos dadas. A Blandine dele, assim a queria, e também não, que não estivesse ali, pois ela estava em perigo, arriscava a vida que conseguiu, e ele sabe como é difícil, como é humilhante até que o respeito dos outros se crie ao redor. Ah, mas como resistir? Se as coisas não tivessem se resumido a tanto sexo, a tantos passeios diurnos para ela tão banais – os montes, os rios, os lagos, as árvores – se tivesse havido encontros num sentido romântico mais convencional, um namoro como deveria nos velhos tempos, tipo há vinte anos. Ela pensa agora que podiam ter sido mais maleáveis. Afinal, nunca foram mesmo ligados aos movimentos contraculturais e toda aquela lengalenga de rebeldia e liberação. Pára, hipnotizada pelo quadro atrás do porteiro. Flores. Quantas vezes ele me deu flores? Ele me deu flores alguma vez? Bombons? Se Christian tivesse recolhido o namoro a essa guarida, se reconhecesse no relacionamento a necessidade desses mimos banais, como lingerie de presente no Dia dos Namorados! E todavia ele era tão gentil. Precisava ser assim tão diferente também, tão complicado? tão pouco ambicioso? Um pouco de clichê teria lhes feito bem, como, apesar de todo comercio, membros de uma família acabam por se reconciliar na noite de Natal. Esperei alguns minutos na friagem que despertava o ouvido, resfolegando de fraqueza. Depois caminhei lentamente e entrei também. Blandine está no quarto 203. Francesca no 404. Continuo subindo as escadas pesadamente até o quarto andar. Descalço. Desci após alguns instantes e parei no segundo. A porta se abre. Ângela está em seu próprio quarto, contíguo. Blandine recostada em travesseiros superpostos. O bebe dorme a seu lado, Sentei na beira da cama. Qual a idade de Bruna? Não deveria pairar nenhuma dúvida a respeito. Tinha um ursinho de pelúcia. Você não vai adivinhar o nome dele. Blandine sorri e não se saberá o quanto de engraçado havia

no tal nome, e o quanto de amargura. Ah, sim, eu posso adivinhar. Claro. O ursinho lhe dá garantia de sonhos bons. É o que eu sou?, ele pergunta. Sim, um sonho bom. Por isso era tão fácil te amar nas noites. Nas responsabilidades cotidianas, melhor não tê‐lo por perto. Há tantas responsabilidades assim no cotidiano dela? Ela sabia o que de fato estava perguntando e foi essa questão implícita que não respondeu. Postado por Ricardo às 05:46 0 comentários

5   Ainda eram jovens e todavia tinham um passado. Os corpos, vividos, sentiam os movimentos. Esquecem o que deveriam lembrar e se inquietam pelo que deveria estar esquecido. Portanto, por que não Eram jovens – ou, dito de outro modo, sua juventude se emaranhara ao tempo de vida deles como folhas que terminam ao fim de um tempo, em partículas da terra dos parques. Cromossomos múltiplos nas células A roupa do rapaz sabia como devia se comportar a cada movimento e, limpa, retinha algo do cheiro de sua pele. Ah, esse cheiro, o que primeiro chegou a ela vindo de Christian. Na entrada da boate, foi cumprimentado pelo segurança. Tímido, devolveu o cumprimento. Ei, podia ser então que aquele rapaz do bar em Madri nunca tivesse visto Oleana. As pessoas julgam, e particularmente ele era exímio nesse monstruoso item de humanidade. Ela pode agora pensar que sou um cara noturno, assíduo de boates. E julgar também é um sintoma da própria insegurança, preocupação com o que os outros estão pensando. O céu sobre eles. Pelo menos em Portugal as pessoas que lidam com o público são atenciosas, não odeiam o publico. Como se fizesse diferença, no rumo de sua vida. Lisboa. Noite de sexta‐feira. Uma vez saíram, uma única vez, para um programa noturno em Minas. Foram de táxi para Passos. Depois do jantar, foram dançar, o rosto dele se modificando nas luzes, dava para perceber que sabia dançar. Ainda não sei o que estamos fazendo aqui, dissera ela a rir, como quem diz É tudo estranho, mas estou gostando. O beijo sabia a chocolate branco. Derrete na língua. Aonde vamo depois? Durante o beijo seguinte, os jovens morcegos lisboetas passam por eles, numa outra sexta‐feira, num outro encontro dos dois, e o que ainda havia que devesse perdurar? Estão próximos à travessa da Boa Hora, o grupo passou por eles, quando vem a idéia. Por que não irmos? E dançarmos? Nada de adultério, s um passeio, escutar o fado. A bebida também fazia efeito em meu coração. Ela concordou. Tudo bem. Mas eu não deveria esquecer apenas bons amigos. Minha vida hoje é o Luis. Estranho, pensei, nessa época mães costumam esquecer os pais de seus filhos pequenos. Em todo caso... Postado por Ricardo às 05:10 0 comentários

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