Muito se tem escrito, falado e discutido sobre os prazeres da leitura, sobre as conquistas sociais proporcionadas pelos livros, por tudo que podemos aprender e nos maravilhar com as narrativas e com os mais diversos mundos que as histórias fazem chegar até nós. Muito também se tem discutido sobre a liberdade de ler, quesito que para muitos é considerado fundamental quando se fala em escolha de livros. Especialistas, professores e mesmo pais e leigos em literatura discutem se a leitura deve ser obrigatória, se cobrar resultados ou quantidades ajuda ou não a formar leitores. Sabemos não ter a resposta pronta, mesmo porque não se trata de uma resposta única para contextos tão variados de leitura, que dialogam com os variados grupos sociais e culturais representados em especial pela escola e as famílias.
Apesar de não adotarmos ou defendermos uma resposta acabada, acreditamos num formato de trabalho que, sem abandonar a liberdade e o alto grau de encantamento, ou seja, nenhum dispositivo de medição palpável ou mensurável, se preocupa – sim com a qualidade do que é lido e com os espaços diferentes nos quais acontecem as leituras. Daí pensarmos numa diferença entre ler na vida e ler na escola.
Escolher livremente as leituras está na esfera do ler na vida. Esta sim, leitura sem nenhum compromisso, que a ninguém deve ser dada nenhum tipo de devolutiva, leitura que acontece no tempo e com quantidades, escolhas e critérios naturais de cada leitor. Leitura feita para nós mesmos, para a qual podemos escolher livremente apenas biografias ou romances, adotar um autor e ler toda sua obra, perseguir um tema, um gênero, fazer leituras complexas ou algumas bem simples, selecionar o horóscopo do jornal e deixar a política de lado, reler o mesmo livro dezenas de vezes, gostar mais dos religiosos ou de auto ajuda e assim por diante, numa seleção enorme de títulos. Alguns leitores afirmam que esta liberdade é a que caracteriza a mais prazerosa de todas as leituras, já que livre de qualquer cobrança. Também é verdade que é aquela que se reserva a todo público, a todas as idades e em qualquer situação. Porém quando lemos para alguém que não nós mesmos, precisamos de outro conjunto de atitudes e experiências. Num dizer mais científico, uma nova postura e estética.
A responsabilidade de uma leitura que se faz para um outro não é só de ler por prazer e se deixar encantar pelas narrativas; ainda que sem esta finalidade, talvez não valha a pena ler para outro. Ler na escola representa formar leitores que possam, dentro de um leque variado e amplo, escolher seus próprios caminhos e também reproduzir atitudes leitoras. Todos sabemos que ensinamos bem quando sabemos do que estamos falando, conhecemos nosso assunto. É uma tarefa não fácil, pois precisamos abrir mão de nossos gostos pessoais, de nossas escolhas e nos manter absolutamente abertos para outras leituras, que nem nos pareçam prazerosas. Não podemos ensinar apenas aquilo que gostamos, é preciso ler também o que não gostamos, o que criticamos, o que não nos agrada. Nossos alunos precisam ter contato com todo tipo de texto e seus gostos podem ser bastante distintos dos nossos. Além disso, é tarefa do professor oferecer uma grande diversidade de opções no qual os alunos se sintam livres e, ao mesmo tempo, tentados. Mas ainda não é só: é preciso aprender a ler diferentes tipos de texto e para tal o professor precisa se preparar cada vez mais, tornar-se um apaixonado real pela leitura, procurar os textos que não conhece e não se acostumar num único tipo de texto. Como dito acima, não é tarefa fácil, já que nossa tendência primeira é seguir em busca de nossas escolhas e dos títulos que mais gostamos, que mais nos fazem sentir bem.
Esse desafio produz, geral e inevitavelmente, um encontro com o inusitado. Não é raro ouvir comentários de professores e demais leitores públicos que agregam um tanto a mais na sua lista de livros preferidos quando se lançam a uma busca por novos e inusitados títulos. O leitor coletivo, o leitor público, o professor, tem a responsabilidade de ser um leitor mais preparado que seus ouvintes, sempre aprende com eles, mas deve pesquisar e levar a cada encontro com o ouvinte, um conjunto de narrativas que se distingam, que formem uma lista e uma coletânea aberta a muitas tendências. Diante de um acervo de uma sala de leitura, ou de uma biblioteca é comum procurarmos por aquilo que já conhecemos ou nos guiarmos por alguns critérios como nome do autor, ilustrações, imagens que constituem o livro, até mesmo somente a capa, o tema, a espessura do livro, a quantidade de páginas.
Tais práticas são muito comuns e acabam por repetir as mesmas práticas de nossos alunos quando buscam suas leituras. Quem procura algo absolutamente inusitado? Algo que nunca imaginou que um dia pudesse ler? Assim é a escolha de muitos leitores. Esse receio é absolutamente compreensível e legítimo, pois não costumamos nos aproximar do desconhecido, mas a leitura exige essa postura. Não gosto de biografia? É preciso buscar e ler. Nunca ouvi falar de ensaio, que gênero será esse? É para lá que eu vou. Histórias em Quadrinhos, oh não, é para pequenos! Será que tenho certeza disso?
Podemos também colocar nessa discussão, o item da qualidade do que se lê. Se é verdade que podemos aliar liberdade de escolha com uma boa dose de ajuda na escolha, também podemos e devemos (na leitura na escola) nos esforçarmos para atingir cada vez graus maiores de qualidade daquilo que é lido. A palavra qualidade assume aqui dois significados ou duas dimensões. A primeira delas se refere ao grau de compreensão e apreensão do texto lido, objetivo primordial da escola. Nesta dimensão, queremos indagar não apenas se a leitura é autônoma, se é rápida, se é integral, mas questionamos se o leitor foi capaz de mergulhar com intensidade na narrativa e consegue extrair dela o máximo que o autor escreveu. Nunca mergulhamos numa única obra, a leitura sempre nos indica novos mundos e novas leituras e é isso que chamamos de extrair o máximo! Outra dimensão da palavra qualidade se refere a escolha de bons textos. Dimensão difícil de se avaliar, pois chegamos até ela não só com um bom conhecimento de livros, mas com o exercício constante e apaixonado da leitura. Quanto mais se lê e se busca novos autores, gêneros, estilos e épocas; quanto menos se conforma com que já foi lido, mais se ganha experiência para qualificar os textos. A opinião e julgamento sobre as duas dimensões da qualidade é bastante difícil, pois necessita de um alinhamento entre gostos e atividades pessoais e coletivas. Na escola, atividades de julgamento são chamadas genericamente de avaliação e não podem prescindir de tal instrumento. Livres das velhas fichas de leitura que causaram o afastamento de muitos leitores em décadas passadas, a escola aprendeu a utilizar novos e deliciosos métodos de avaliar a performance leitora de seus alunos. Um deles é o de não ter dúvida de afirmar que melhor avalia, o professor que também melhor lê.
Um breve "exame de consciência" antes de continuarmos nossa conversa sobre "Ler na vida e ler na escola":
Como estou me saindo nas duas atividades?
O
que tenho escolhido para mim e para meus alunos?
Tenho me esforçado para pesquisar títulos, editoras, gêneros e temas que desconheço?
Tenho exigido de meus alunos uma postura leitora que seja exigente, ou seja, que persiga uma grande abrangência de títulos, que seja constante e prazerosa? E quando faço isso, lembro de exigir de mim mesmo a mesma postura?
Tenho
lembrado que posso descobrir outros mundos que nem suspeitava, ao me aventurar em novas leituras?
Antes
de fazer uma leitura coletiva, ou seja, uma leitura escolhida para um grupo, que não seja apenas para o leitor-solitário, podemos tentar ainda esse autoquestionário.
-Preparei
a leitura antes de fazê-la?
-Conheço
meu público? Sei como me comportar com ele e o que pedir em troca?
-Sei
a qual gênero pertence o livro escolhido, que idéias traz, que temas discute?
-Já
li algo sobre o autor, ilustrador, tradutor?
-
Esta leitura me lembra outras narrativas?
-
Por que escolhi este texto e não outro?
-
Fiz comparações, procurei outros títulos que dialoguem com este escolhido?
-Posso
e consigo falar do livro escolhido? Explorei suas imagens, li a apresentação, o prefácio, as orelhas, explorei-o como um objeto e com "um todo" de informações?
-Procurei
outras versões, outras traduções ou adaptações (se acaso existem)?
-Conformei-me
com a idéia de ler as mesmas leituras de todos os anos ou fui em busca de mais títulos para deixar meu grupo mais sábio?
-
Não descansei enquanto não tive certeza de reunir e procurar um elevado grau de excelência com a leitura feita e com o que pude aprender lendo para mim e depois levando esta leitura para um outro público?
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Procurei o que não conhecia e mergulhei no seu conhecimento?
São
perguntas simples, mas que fazem toda a diferença quando se deseja garantir um bom nível de trabalho com leitura.
Podemos
aqui, ainda, relembrar um dos fundamentos do Programa Ler e Escrever. Vejamos: Página 25 do volume 1 – Professor Alfabetizador:
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Pesquisei nos acervos da sala de aula, biblioteca e outros espaços até esgotá-los? http://www.rodrigoloureiro.com.br/coluna/imagens/livros.JPG
Porque é fundamental que o(a) professor (a) seja um modelo de leitor? Muitas vezes, esses alunos não convivem com pessoas que lêem; portanto, você é uma referência muito importante quando se trata de explicitar os usos e funções da leitura e da escrita. Ao compartilhar com os alunos os diferentes propósitos com os quais aborda os textos, ao convidar os alunos a participar e testemunhar diferentes práticas de leitura, você está ensinando a eles comportamentos de leitor. Assim, você pode compartilhar suas ações quando lê na sala de aula. Por exemplo: ao consultar uma lista para encontrar um número de telefone, ao buscar uma informação do Diário Oficial, ao ler seu planejamento para o dia, entre outras possibilidades. Isso tudo contribui para que os alunos passem a ter conhecimentos sobre a função social da escrita. No aconchego do seu quarto, com a luz do abajur acesa, mergulhado na leitura de um livro absolutamente pessoal, ou deitado preguiçosamente na praia em companhia daquele livro de receitas ou fazendo palavras cruzadas, o professor está livre de qualquer mediação ou critério. Na sala de aula, o professorleitor ganha novas e imprescindíveis possibilidades de se relacionar com os livros. E, acredite, essas possibilidades fazem muito bem a ele que se descobre ainda mais leitor, já que capaz de contagiar todo seu grupo.