Ler Em Vários Sotaques

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1

LER EM VÁRIOS SOTAQUES Sessão de Poesia

2

António Nobre (Norte de Portugal) Viagens na Minha Terra Às vezes, passo horas inteiras Olhos fitos nestas Traseiras, Sonhando o tempo que lá vai; E jornadeio em fantasia Essas jornadas que eu fazia Ao velho Douro, mais meu Pai. Que pitoresca era a jornada! Logo, ao subir da madrugada, Prontos os dois para partir: — Adeus! adeus! é curta a ausência, Adeus! — rodava a diligência Com campainhas a tinir! E, dia e noite, aurora a aurora, Por essa doida terra fora, Cheia de Cor, de Luz, de Som, Habituado à minha alcova Em tudo eu via coisa nova, Que bom era, meu Deus! que bom! Moinhos ao vento! Eiras! Solares! Antepassados! Rios! Luares! Tudo isso eu guardo, aqui ficou: ó paisagem etérea e doce, Depois do Ventre que me trouxe A ti devo eu tudo que soul No arame oscilante do Fio, Amavam (era o mês do cio) Lavandiscas e tentilhões... Águas do rio vão passando Muito mansinhas, mas, chegando Ao Mar, transformam-se em leões! Ao Sol, fulgura o Oiro dos milhos! Os lavradores mai-los filhos A terra estrumam, e depois Os bois atrelam ao arado E ouve-se além, no descampado Num ímpeto, aos berros: - Eh! bois!

E, enquanto a velha mala-posta, A custo vai subindo a encosta Em mira ao lar dos meus Avós, Os aldeãos, de longe, alerta, Olham pasmados, boca aberta... A gente segue e deixa-os sós. Que pena faz ver os que ficam! Pobres, humildes, não implicam, Tiram com respeito o chapéu: Outros, passando a nosso lado, Diziam: "Deus seja louvado!" "Louvado sejal" dizia eu. E, meiga, tombava a tardinha... No chão, jogando a vermelhinha, Outros vejo a discutir. Carpiam, místicas, as fontes... Água fria de Trás-os-Montes Que faz sede só de se ouvir! E, na subida de Novelas, O rubro e gordo Cabanelas Dava-me as guias para a mão: Isso... queriam os cavalos! Que eu não podia chicoteá-los... Era uma dor de coração. Depois, cansados da viagem, Repoisávamos na estalagem (Que era em Casais, mesmo ao dobrar... ) Vinha a Sra Ana das Dores "Que hão de querer os meus Senhores? Há pão e carne para assar..." Oh! ingênuas mesas, honradas! Toalhas brancas, marmeladas, Vinho virgem no copo a rir... O cuco da sala, cantando. . . (Mas o Cabanelas, entrando, Vendo a hora: "É preciso partir").

3

Caía a noite. Eu ia fora, Vendo uma estrela que lá mora, No Firmamento português: E ela traçava-me o meu fado "Serás Poeta e desgraçado!" Assim se disse, assim se fez. Meu pobre Infante, em que cismavas, Por que é que os olhos profundavas No Céu sem-par do teu País? Ias, talvez, moço troveiro, A cismar num amor primeiro: Por primeiro, logo infeliz... E o carro ia aos solavancos. Os passageiros, todos brancos, Ressonavam nos seus gabões: E eu ia alerta, olhando a estrada, Que em certo sítio, na Trovoada, Costumavam sair ladrões. Ladrões! Ó sonho! Ó maravilha! Fazer parte duma quadrilha, Rondar, à Lua, entre pinhais! Ser Capitão! trazer pistolas, Mas não roubando, — dando esmolas Dependuradas dos punhais ... E a mala-posta ia indo, ia indo. o luar, cada vez mais lindo, Caía em lágrimas, — e, enfim, Tão pontual, às onze e meia, Entrava, soberba, na aldeia Cheia de guizos, tlim, tlim, tlim! Lá vejo ainda a nossa Casa Toda de lume, cor de brasa, Altiva, entre árvores, tão só! Lá se abrem os portões gradeados, Lá vêm com velas os criados, Lá vem, sorrindo, a minha Avó. E então, Jesus! quantos abraços! — Qué dos teus olhos, dos teus braços, Valha-me Deus! como ele vem! E admirada, com as mãos juntas,

— E os teus estudos, tens-me andado? Tomara eu ver-te formado! Livre de Coimbra, minha flor! Mas vens tão magro, tão sumido... Trazes tu no peito escondido, E que eu não saiba, algum amor? No entanto entrava no meu quarto: Tudo tão bom, tudo tão farto! Que leito aquele! e a água, Jesus! E os lençóis! rico cheiro a linho! — Vá, dorme, que vens cansadinho. Não adormeças com a luz! E eu deitava-me, mudo e triste. (— Reza também o Terço, ouviste?) Versos, bailando dentro em mim... Não tinha tempo de ir na sala, De novo: — Apaga a luz! — Que rala! Descansa, minha Avó, que sim! Ora, às ocultas, eu trazia No seio, um livro e lia, lia, Garrett da minha paixão... Daí a pouco a mesma reza: - Não vás dormir de luz acesa, Apaga a luz! ... (E eu ainda... não!) E continuava, lendo, lendo... O dia vinha já rompendo, De novo: - Já dormes, diz? - Bff!... e dormia com a ideia Naquela tia Doroteia, De que fala Júlio Dinis. Ó Portugal da minha infância, Não sei que é, amo-te a distância, Amo-te mais, quando estou só... Qual de vós não teve na Vida Uma jornada parecida, Ou assim, como eu, uma Avó?

4 Toda me enchia de perguntas, Como se eu viesse de Belém! António Gedeão (Portugal) Adeus, Lisboa Vou-me até à Outra Banda no barquinho da carreira. Faz que anda mas não anda; parece de brincadeira. Planta-se o homem no leme. Tudo ginga, range e treme. Bufa o vapor na caldeira. Um menino solta um grito; assustou-se com o apito do barquinho da carreira. Todo ancho, tremelica como um boneco de corda. Nem sei se vai ou se fica. Só se vê que tremelica e oscila de borda a borda. Chapas de sol, coruscantes como lâminas de espadas, fendem as águas rolantes esparrinhando flamejantes lantejoulas nacaradas. Sob o dourado chuveiro, o barquinho terno e mole, vai-se afastando, ronceiro, na peugada do Sol. A cada volta das pás moendo as águas vizinhas, nos remoinhos que faz, nos salpicos que me traz e me enchem de camarinhas, há fagulhas rutilantes, esquírolas de marcassites, polimentos de pirites, clivagens de diamantes, Numa hipnose coletiva, como um friso de embruxados, ao longe os olhos cravados em transe de expectativa, todos juntos, na amurada, numa sonolência de ópio, vemos, na tarde pasmada, Lisboa televisada num vasto cinemascópio.

O sol e a água conspiram num conluio de beleza, de elixires que se evadiram de feiticeira represa. Fulva, no céu incendido, em compostura de pose, a cidade é colorido cenário de apoteose. Há lencinhos agitados nos olhos de todos nós, engulhos de namorados, embargamentos na voz. Nesta quermesse do ar, neste festival de tons, quem se atreve a acreditar que os homens não sejam bons? Adeus, adeus, ribeirinha cidade dos calafates, rosicler de água-marinha, pedra de muitos quilates. Iça as velas, marinheiro, com destino a Calecu. Oh que ventinho rasteiro! Que mar tão cheio e tão nu! Ó da gávea! Põe-te alerta! Tem tento nos areais. Cá vou eu à descoberta das índias Orientais. Não tenho medo de nada, receio de coisa nenhuma.

A vida é leve e arrendada como esta réstea de espuma. Toda a gente é séria e é boa! Não existem homens maus! Adeus, Tejo! Adeus Lisboa! Adeus, Ribeira das Naus! Adeus! Adeus! Adeus! Adeus!

5

Fernando Pessoa (Portugal)

Viajar! Perder países! Ser outro constantemente, Por a alma não ter raízes De viver de ver somente! Não pertencer nem a mim! Ir em frente, ir a seguir A ausência de ter um fim, E da ânsia de o conseguir! Viajar assim é viagem. Mas faço-o sem ter de meu Mais que o sonho da passagem. O resto é só terra e céu.

6 António Aleixo (Algarve)

Num arranco de loucura, filha desta confusão, vai todo o mundo à procura daquilo que tem à mão Queremos ver sempre à distância o que não está descoberto, Sem ligarmos importância ao que está à vista e perto. Porque será que nós temos na frente, aos montes, aos molhos, tantas coisas que não vemos nem mesmo perto dos olhos? Sei que umas quadras são conselhos que vos dou de boa fé; outras são finos espelhos onde o leitor vê quem é Julgam-me mui sabedor; e é tão grande o meu saber que desconheço o valor das quadras que sei fazer. Eu não tenho vistas largas, nem grande sabedoria, mas dão-me as horas amargas lições de filosofia Peço às altas competências Perdão, porque mal sei ler, P’ra aquelas deficiências Que os meus versos possam ter.

Nada direi, mas, enfim, Vou ter a grande alegria De a Arte dizer por mim Tudo quanto eu vos diria

7

Daniel Filipe (Cabo Verde)

Desnecessária explicação Que importa a melodia, se acaso aos outros dou, com pávida alegria, o pouco que me sou? Que importa ao que me sabe estar só no meu caminho, se dentro de mim cabe a glória de ir sozinho? Que importa a vã ternura das horas magoadas, se ao meu redor perdura o eco das passadas? Que importa a solidão e o não saber onde ir, se tudo, ao coração, nos fala de partir?

8 Alda Espírito Santo (Santo Tomé)

EM TORNO DA MINHA BAIA Aqui, na areia, Sentada à beira do cais da minha baía do cais simbólico, dos fardos, das malas e da chuva caindo em torrente sobre o cais desmantelado, caindo em ruínas eu queria ver à volta de mim, nesta hora morna do entardecer no mormaço tropical desta terra de África à beira do cais a desfazer-se em ruínas, abrigados por um toldo movediço uma legião de cabecinhas pequenas, à roda de mim, num voo magistral em torno do mundo desenhando na areia a senda de todos os destinos pintando na grande tela da vida uma história bela para os homens de todas as terras ciciando em coro, canções melodiosas numa toada universal num cortejo gigante de humana poesia na mais bela de todas as lições HUMANIDADE.

9 Tony Tcheca (Guiné) CANTO À GUINÉ Guiné sou eu até depois da esperança Guiné és tu camponês de Bedanda teimosamente procurando a bianda na bolanha que só encontra água na mágoa da tua lágrima Guiné és tu criança sem tempo de ser menino Guiné és tu mulher-bidera em filas de insónia noites di kumpra pon (mafé di aos) Guiné é um grito saído de mil ais que se acolhe n calcanhar da terra adormecida Mas Guiné somos todos mesmo depois da esperança

10 Luandino Vieira (Angola)

Canção para Luanda A pergunta no ar No mar Na boca de todos nós: - Luanda onde está? Silêncio nas ruas Silêncio nas bocas Silêncio nos olhos - Xê mana Rosa peixeira responde? - Mano Não pode responder Tem de vender Correr a cidade se quer comer! «Ola almoço, ola amoçoeé Matona calapau Jiferrera jiferreresé» - E você Mana Maria quitandeira Vendendo maboque Os seios-maboque Gritando Saltando Os pés pescorrendo Caminhos vermelhos De todos os dias? «Maboque m’boquinha boa Dóce docinha» - Mano Não pode responder O tempo é pequeno para vender! Zefa mulata O corpo vendido Baton nos lábios Os brincos de lata Sorri Abrindo o seu corpo - seu corpo-cubata!

Seu corpo vendido Viajado De noite e de dia. - Luanda onde está? - Mano dos jornais Luanda onde está? As casas antigas O barro vermelho As nossas cantigas Tractor derrubou? Meninos nas ruas Caçambulas Quigosas brincadeiras minhas e tuas asfalto matou? - Manos Rosa peixeira Quitandeira Maria Você também Zefa mulata dos brincos de lata - Luanda onde está? Sorrindo As quindas no chão Laranjas e peixe Maboque docinho A esperança nos olhos A certeza nas mãos Mana Rosa peixeira Quitandeira Maria Zefa mulata - Os panos pintados Garridos Caídos Mostraram o coração: - Luanda está aqui!

11

Domi Chirongo (Moçambique)

Batata africana Sinto a garganta muito quente não consigo engolir esse produto disseram-me que tenho doença da lua e o médico de família diz que consegue tratar tudo mas os outros que lá foram não voltaram e o curandeiro disse que melhoraram mas ninguém sabe se morreram ou não no entanto o ocidente aplaude diz que há melhorias na verdade diminui-se a pobreza quando morrem os pobres essa é a nossa lógica infelizmente assim acontece!

12 Carlos Drummond de Andrade (Brasil)

O Mundo é Grande O mundo é grande e cabe nesta janela sobre o mar. O mar é grande e cabe na cama e no colchão de amar. O amor é grande e cabe no breve espaço de beijar

13 Vinicius de Moraes (Brasil) O Girassol Sempre que o sol Pinta de anil Todo o céu O girassol Fica um gentil Carrossel. O girassol é o carrossel das abelhas. Pretas e vermelhas Ali ficam elas Brincando, fedelhas Nas pétalas amarelas. — Vamos brincar de carrossel, pessoal? — "Roda, roda, carrossel Roda, roda, rodador Vai rodando, dando mel Vai rodando, dando flor". — Marimbondo não pode ir que é bicho mau! — Besouro é muito pesado! — Borboleta tem que fingir de borboleta na entrada! — Dona Cigarra fica tocando seu realejo! — "Roda, roda, carrossel Gira, gira, girassol Redondinho como o céu Marelinho como o sol". E o girassol vai girando dia afora . . . O girassol é o carrossel das abelhas.

14 Cecília Meireles (Brasil)

Se eu fosse apenas... Se eu fosse apenas uma rosa, com que prazer me desfolhava, já que a vida é tão dolorosa e não te sei dizer mais nada! Se eu fosse apenas água ou vento, com que prazer me desfaria, como em teu próprio pensamento vais desfazendo a minha vida! Perdoa-me causar-te a mágoa desta humana, amarga demora! – de ser menos breve do que a água, mais durável que o vento e a rosa...

15 Borja da Costa (Timor)

Calai Montes Vales e fontes Regatos e ribeiros Pedras dos caminhos E ervas do chão, Calai Calai Pássaros do ar E ondas do mar Ventos que sopram Nas praias que sobram De terras de ninguém, Calai Calai Canas e bambus Árvores e "ai-rús" Palmeiras e capim Na verdura sem fim Do pequeno Timor, Calai Calai Calai-vos e calemo-nos POR UM MINUTO É tempo de silêncio No silêncio do tempo Ao tempo de vida Dos que perderam a vida Pela Pátria Pela Nação Pelo Povo Pela Nossa Libertação Calai- um minuto de silêncio…

16 Yakiw Chtchoghóliw (Ucrânia)

Ai, eu tinha um bom cavalo... Ai, eu tinha um bom cavalo, Um cavalo endiabrado, Tinha um sabre e um fuzil E uma moça-feiticeira. Mata o turco, o meu cavalo, O polaco cega o sabre, Ai, quebrou-se o meu fuzil, Minha amada desprezou-me. Pela estepe de Budjak, Passa a tropa dos cossacos; Vou guiando arado e grade Sobre o campo ressequido. Eia! Eia! meu boi negro ! Quantos colmos nesse campo... Sopra o vento levemente, Ferve, alegre, a caldeirinha. Quem na selva está — me chame! Quem no campo — me responda! Tudo dorme na neblina, Venha a ceia partilhar! ... O eco morre atrás do arado, Bóia a lua, atrás da nuvem, Sopra o vento levemente, Arrefece a caldeirinha.

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