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despojar 0 adolescente de sua rusticidade, ate de sua bestialidade primitiva. Zomba-se de seu odor de besta-fera, de seu olhar perdido, de suas longas orelhas, de seus dentes parecendo presas. Extraem-lhe supostos chifres e excresd~ncias. Banham-no e limam-lhe os dentes. Em uma par6dia da confissao, ele reconhece enfim enormes vkios. Assim, 0 fururo intelectual deixa sua condi~ao original, que se assemelha intensamente a representa~ao do campones, a do riistico da literatura satirica da epoca. Da bestialidade a humanidade, da rusticidade a urbanidade: estas sao as cerimonias onde 0 velho fundo primitivo aparece degradado e quase esvaziado de seu conteiido original, lembrando que 0 intelectual foi arrancado do clima rural, da civilizaao agraria, do mundo selvagem da terra. 0 antrop610go teria algo a di~ zer na psicanalise daqueles eruditos.
A piedade universitaria Os estatutos determinam, enfim, as obras piedosas, os atos de beneficencia que a corpora~ao universitaria deveria executar. Eles exigem de seus membros a assistencia a alguns oficios religiosos, a certas procissoes, a pratica de certas devooes. ~ Em primeiro lugar, sem diivida, a piedade em relaao aos santos pa~ droeiros, e antes de todos a Sao Nicolau, patrono dos estudantes, aos santos Cosme e Damiao, patronos dos medicos, e a muitos outros. Encontra-se com singular insistencia nas imagens criadas no meio universitirio a tendencia a misturar intimamente 0 mundo sagrado ao mundo profano dos oficios. Tais imagens gostam de lembrar Jesus entre os doutores, a representar os santos munidos de atributos de mestres, a vesti-los com as roupas deles. A piedade universitaria se inscreve nas grandes correntes da espiritualidade. Ye-se nos estatutos de urn colegio parisiense do seculo XIV, 0 da Ave Maria, a parte tomada pelos professores e pelos estudantes na devoao euca~ rlstica em pleno desenvolvimento, na procissao do Corpus Christi. Encontra-se na religiao dos intelectuais esta tendencia da espiritualidade desde 0 seculo XIII, de se inscrever nos quadros profissionais da sociedade que 0 mundo urbano definia. A moral profissional torna-se urn dos setOres privilegiados da religiao. Os manuais de confessores, preocupados em se adaptarem as atividades especificas dos grupos sociais, regulamentam a confissao e a penitencia conforme as categorias profissionais, classifica e define os pecados dos camponeses, dos mercadores, dos artesaos, dos jU1zes etc. Eles concedem uma atenao especial aos pecados dos intelectuais, dos universitarios. ~ Mas a religiao dos eruditos nao se contenta em seguir as correntes da
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devo~o. E!a I?rocura as vezes.orient-l 04 definir entre elas vm setor que ~ s~ lhe seJa propno. A. esse respelto, sena Instrutivo estudar a devo<,.aomariana e~tre os Intelectuals. Ela e muito forte entre eles. Nos meios universitarios Clfculav,am.'desde 0 inkio do s~culo XIII, poemas e preces dedicadas especialmente a Vl.r!?em, entre os quaIs a famosa cole~ao Stella Maris, realizada pelo mes~re pans.lense Joao de Garlande. Nada de surpreendente aesse culto a Mana, que lOtr<;>duzun;a presn~ ~a feminina em urn meio que, malgrado a her~a dos gohardos, e ssenClalmente urn ambiente de homens e de celi~ ba.tanos. 0 culto de Mana enre os intelectuais tern suas caracter1sticas pr6~ pnas. Ele permanece sempre Impregnado de teologia, e as discuss6es sobre a Ima~ul~da Concei~ao sao apaixonadas. Se nelas Duns Scot se torn a urn cameao lOf1aado, encontrara a oposiao, por motivos dogmaticos, de Sao ~ ~ ~ To~as .de AqUino; que neste ponto seguira alias a posiao do grande devo~ o~ a Vlrgm n~ seculo precedente, Sao Bernardo. Parece sobretudo que os ~ lOtelectuls estao preocupados em conservar ressonancias imelectuais no cul~ to a Mana. Parece.m desejos?s de evitar que ele recaia em uma piedade exagerada:n.ente afeuva e desejam manter a1 0 equil1brio emre as aspira6es ~ d~ eSplflto e os arre?~tamemos do cora~ao. No prefacio de Stella Maris, ~?ao d~ Garlande .tral lOgenuamente essa tendencia. "Eu reuni", diz ele, ~s mdagres .~a Vugem e~tra1ds~ de relatos que encomrei na biblioteca de SalOte-Genvleve, e~ Pans, a flm de lhes fornecer urn exemplo vivo... A ~ c~usa maten~l deste hvro sao os milagres da Virgem gloriosa. Mas eu a1 insen ~atos que In~eressam a Flsica, a Astronomia e a Teologia ... A causa final resIde com ~ e.felto na fe permnente no Cristo. Tam bem supoe a Teologia e ~ mesmo a FlSlca e a Astronomla". Como se ve, os universitarios pretendiam que esta Estrela do Mar fosse tambem luz da ciencia.
o instrumental Home;n de profissao, 0 mmbro da corporaao universitaria esta equi~ ~ pado, no seculo XIII, c?m urn lOstrumemal completo. Escritor, leitor, prof~s~or, e!e se cerca dos lOstrumentos exigidos por suas atividades. Lemos no dlclOnano do mestre parisiense Joao de Garlande: "Eis os instrumemos necessario~ aos eruditos: livros, uma escrivaninha, uma lamparina com sebo e Urn casu~al, ma lanterna e urn funil com tima, uma pluma, um fio de pru~ mo e uma regua, uma mesa e uma palmat6ria, uma escrivaninha, urn quadro-negro, uma pedra-pomes com um raspador, e giz. A escrivaninha (pulP~tum) e~ chama em frances lutrin (letrum); e preciso observar que a escrivanmha dlsp6e de uma gradua~ao que permite eleva-la a altura em que se Ie,
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po is 0 lutrin e onde se coloca 0 livro. Chama-se raspadeira (plana) urn instrumento de ferro com 0 qual os pergaminheiros preparam 0 pergaminho". Descobriram-se mesmo outros instrumentos que, se nao SaDesses que todo erudito emprega, fazem parte do equipamento de seus auxiliares, s~ copistas, por exemplo: notadamente uma tira de pergaminho <: ma carretl~ Iha que permitem encontrar 0 lugar onde se parou em ma copla .. ~ Especialista, 0 itelectUal se supre de ,to.do u eqUlpamento qe~ 0 dls~ ~ tingue bem do erudlto da Alta I.dade Media, CUJOenslO, essenClalmete ~ oral necessitava somente de urn lOstrumental bem reduZldo para a escflta de rros manuscritos, cuja tecnica revelava sobretUdo preocupa<;oes esteticas. ~ Se os exerdcios orais continuam essenciais na vida universitaria, 0 livro se torna a base do ensino. Compreende-se assim, ao ver a bagagem da qual se cerca des de entaO urn intelectUal, por que Sao Francisco de Assis, aposto10 do despojamento, foi, entre outras razoes, hostil a essa atividade, onde o equipamento material se torna necessario e cada vez mais invasor.
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tJ111V~I;,lddd,"", \.- lla.U;'[UIllJddu dL aIg-urn IIludo CIl! lLAlU V[;L~dJ". A publica<;ao do texto oficial dos cursos teve uma importancia capital nas universidades. Os estatUtos cia Universidade de Padua dedaram em 1264: "Sem exemplares, nao haveria Universidade". A intensifica<;ao do usa do livro pelos universitarios traz toda uma serie de conseqiiencias. Progressos realizados na confec<;ao do pergaminho permitern obter folhas menos espessas, mais flexiveis e menos amarelas que as dos manuscritos anteriores. Na Italia, onde a tecnica e mais avan<;ada, as foIhas SaDmuito finas e de uma alvura surpreendente. Transforma-se 0 formato do livro. Antes, era predominantemente 0 in-folios. "E uma dimensao que nao pode convir senao aos manuscritos feitos nas abadias e que devem ser ai conservados." Desde quando 0 livro se tornou freqiientemente consultado e transportado de um lugar a Outro, seu formato ficou menor, mais manejavel. A minuscula gotica, mais rapida, substirui a antiga letra. Ela varia segundo os centros universitarios; existe a parisiense, a ingJesa, a bolonhesa. Corresponde tambem a urn progresso tecnico: 0 abandono da cana pela pluma de ave, de ganso em gem!, que permite "maior facilidade e rapidez no trabalho" . Oiminui a ornamenta<;ao dos livros: iluminuras e miniaturas se fazem em serie. Embora os manuscritos de Direito continuem freqiientemente luxuosos - os juristas pertencem em geral a uma dasse rica -, os livros dos filosofos e dos teologos SaD os mais pobres, e so excepcionalmente trazem miniaturas. Freqiientemente 0 copista deixa em branco 0 lugar das iluminuras e das miniaturas para que urn comprador modesto possa adquirir 0 manuscrito, enquanto um diente mais rico mandaria pintar os espa<;osreservados. A esses detalhes significativos, acrescenta-se a abundancia crescente de abrevia<;oes - e preciso produzir rapidamente -, os progressos na pagina<;ao, na rubrica, nos indices de assuntos, a presen<;a as vezes de uma lista de abrevia<;oes, 0 usa, sempre que possivel, da ordem alfabetica. Tudo e fei-
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to para facilitar uma consulta rapida. a desenvolvimento do ofkio intelectual criou a era dos manuais, isro e, do livro manuseavel e manuseado. Testemunho forte da acelera<;ao na velocidade de circula<;ao da cultura escrita e de sua difusao. Vma primeira revolu<;ao acontece: 0 livro nao e mais urn objeto de luxo, mas se toma urn instrumento. E urn nascimento, mais que urn renascimento, esperando a imprensa .. De instrumento, 0 livro se rorna produto industrial e objeto comerClal. A sombra das universidades, desenvolve-se toda uma popula<;ao de copistas - sao com freqiiencia estudantes pobres que assim ganham sua subsistencia -, como tambem livrarias (stationarit). Indispensaveis ao mundo universitario, af eles se fazem admitir como trabalhadores de pleno direito. Conseguem se beneficiar dos privilegios dos universitarios e se subordinam.a jurisdi<;aoda Vniversidade. Engrossam os efetivos da corpora<;ao, amphando-a com to do urn grupo de artesaos auxiliares. A industria intelectual tern suas industrias anexas e derivadas. Alguns desses produtores e comerciantes ja saD grandes personagens. Ao lado "dos artesaos, cuja atividade se reduz a revenda de algumas obras de ocasiao" , outros "se expandem ate 0 papel de editores intemacionais".
o metodo:
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alias, ela caiu por vezes no seculo XIII e freqiientemente mais tarde. as pensadors~ e professores da Idade Media querem saber do que eles falam. A escolisuca esta na base da gramatica. as escolasticos saD os herdeiros de Bernardo de Chartres e de Abelardo.
Dialetica
, Em. sep':lida, as. leis da demonStra<;ao. a segundo estagio da escolastica e a dlaleuca, conJunto de opera<;oes que fazem do objeto do saber urn problema, que expoem, que defendem contra os atacantes, que solucionam e convencem 0 ouvinte ou leitor. a perigo aqui reside em se cair no raciocinio vazio: nao mais 0 verbalismo, mas a verborragia. A dialetica preciso dar urn conteudo nao so de palavras, mas de pensamento eficaz. as universtarios saD descendentes de J?O~ de Salisbury, que dizia: "A logica, por si ~ so, permanece exangue e estenl; ela nao produz nenhum fruro do pensamento, se ela nao concebe-lo por outros meios".
e
a escolastica Autoridade
Alem de seu instrumental, 0 intelectual tern 0 seu metodo: a escolastica. Ilustres sabios, entre os quais se conta, no primeiro nivel, monsenhor Grabmann, relataram sua constitui<;ao e historia. Padre Chenu, em sua Introduction I'Etude de Saint Thomas d'Aquin, oferece urn relato esclarecedor desse metodo. Tentemos extrair a forma e 0 alcance da escolastica, vitima de tantas calunias seculares e tao difkil de penetrar sem aprendizagem, tamanho 0 fastio de seu aspecto tecnico. A palavra de padre Chenu deve nos servirde fio condutor: "Pensar e urn offciocujas leissaDminuciosamente fixadas" .
a
Vocabulario Primeiramente, as leis da linguagem. Se as famosas controversias entre realistas e nominalistas dominaram 0 pensamento medieval, foi porque os intelectuais da epoca conferiam as palavras urn justo poder, e se preocup.ayam em definir-Ihes 0 conteudo. E essencial para eles saber que rela<;oeseXlStern entre a palavra, 0 conceito e 0 ser. Nada ha mais oposro a isso que a precocupa<;ao com 0 verbalismo, de que se acusou a escolastica e na qual,
A escolastica se nutre de textos. Ela e urn metodo baseado na auroridade e se apoia no duplo suporte das civiliza<;oes precedentes: 0 cristianismo S 0 pensamento antigo enriquecido, como vimos, pela contribui<;ao arabe. E frut~ de urn momento, de uma renascen<;a. E digere 0 passado da civiliza<;aooCldental. A Biblia, os padres da Igreja, Platao, Aristoteles, os arabes: esses saD os dad os de seu saber, os materiais de sua obra. Seu perigo e a repeti<;ao, 0 psitacismo, a imita<;ao servil. as escolasticos herdaram dos inrelectuais do seculo XII 0 senti do agudo do progresso necessario e inelutavel da historia do pensamento. Com esses materiais, eles constroem sua obra. As f~nda<;oes, acrescentaram andares e constru<;oes originais. Eles pertencem a hnhagem de Bernardo de Chartres, apoiados nos ombros dos antigos para ~ivisar mais longe. "Jamais", disse Gilberto de Tournai, "encontraremos a verdade, se nos contentarmos com 0 que ja foi encontrado ... as que escreveram antes de nos nao saD para nos como senhores, mas como guias. A verdade esta. aberta a todos, ela ainda nao foi possufda por inteiro". Admiravel entuslasmo pelo otimismo inteleCtual, ao conrrario do triste "tUdo ja foi diro e chegamos tarde demais ... '·.