Entrevista Sobre Bento Xvi

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J4 ALIÁS

DOMINGO, 18 DE MARÇO DE 2007 O ESTADO DE S. PAULO

DOMINGO, 18 DE MARÇO DE 2007 O ESTADO DE S.PAULO

ENTREVISTA

LUIZFELIPEPONDÉ Professor de Ciências da Religião na PUC-SP e de Filosofia na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP)

EXPLICAÇÃO

MISSA

CONFLITO

“Regressão,recuo, retrocesso,nenhum destestermos explicaoqueestá acontecendo”

“Acham o culto em hebraico lindo, os mantras em sânscrito idem. Por que não o latim?”

“Quando houve a confusão com o Islã, falaram que o papa se desculpou. Entenderam mal”

ALIÁS J5

0 Vaticano retorna ao sagrado

Um papa na contracorrente Segundo Pondé, Bento XVI acha que ultrapassados somos nós, os modernos. E equivocados, os religiosos que misturam fé e política, Jesus Cristo e Che Guevara

Documento papal pode ser visto apressadamente como retrocesso. Mas reafirma valores nunca abolidos

MONALISA LINS/AE

institucional na América Latina. Para alguém como Bento XVI,éinconcebívelqueestateologia tenha desembocado na fundação de um partido político, o PT, mas não tenha conseguido criar as condições para enfrentar a expansão do neopentecostalismo.

Aureliano Biancarelli e Laura Greenhalgh

Quando a fumaça branca contou ao mundo que o cardeal JosephRatzingerseria onovochefe da Igreja católica, sob o nome de Bento XVI e substituindo João Paulo II, as primeiras reações ficaram por conta do impactonaturaldo anúncio. Oteólogo alemão linha dura, que em 1985 impôs o silêncio ao franciscano brasileiro Leonardo Boff, chegava ao topo da hierarquia católica. Meses depois, aqui e ali, registraram-se manifestaçõesdealtaspatenteseclesiásticas – inclusive no Brasil – sugerindo que o pontificado poderia abrandar o velho Ratzinger. E mais:que asólida formação teológicadoex-chefe daCongregação para a Doutrina da Fé, aliada ao “peso do manto”, poderia resultarnumsurpreendentepapado de renovação. Na semana passada, Bento XVI desnorteou quem fez essa aposta. Ao divulgar sua primeira exortação apostólica, um documentode131páginas intituladoSacramentumCaritatis(OSacramento do Amor), espécie de síntese do Sínodo de 2005, o papa mandou ver na caneta. Pregou o retorno do latim e do canto gregoriano na celebração da missa, desqualificou a confissão comunitária, criticou padres que se coloquem como “protagonistas da ação litúrgica”, fincou pé no veto ao aborto, à eutanásia, às uniões entre homossexuais,ecomparouadisseminação do segundo casamentoentre oscatólicosa uma“praga social”. Armou tal confusão no mundo católico que tradutores se embolaram para dizer que, no contexto, “praga” significaria“chaga”,“ferida”,“mácula”– mas,ao queparece, opontífice quis dizer “praga” mesmo. Retrocesso no catolicismo? Voltaremosasituaçõesanteriores ao Concílio Vaticano II, que deu novos ares à Igreja? É disso que trata a entrevista que se segue do filósofo Luiz Felipe Pondé, professor do Departamento de Teologia da PUC-SP e da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Álvares Penteado. Pondé há anos vem estudando a vereda teológica de onde saíram pelo menos dois papas, João Paulo II e Bento XVI – semelhantes nas concepções doutrinárias, embora com biografiastão distintas. “Nãose pode estranhar o conteúdo da exortação. É exatamente a continuidade do papado de João Paulo II”, garante o professor, autor de Crítica da Profecia – Filosofia da Religião em Dostoievski(Editora 34)eDo Pensamento no Deserto ( a sair pela Edusp). Com uma diferença nada desprezível: com a bagagem teórica do papa alemão, a modernidade que se cuide. Ganhou um crítico contumaz. Um demolidor da sociedade de consumo que, com suas conexões mediáticas e tecnológicas, joga o ser humano num vazio de pessimismo e desesperança. Para começar, o que é uma exortação apostólica?

É uma manifestação papal que nasce do sínodo. Deve orientar não só os bispos, mas todo o clero, sobre questões cotidianas. Como se fosse um documento construído a partir da reunião pedagógica de uma escola, feito para que o professor saiba os princípios que vão guiá-lo. Portanto, tende a tocar temas prementes, como de fato aconteceu no sínodo de 2005. Sendo assim, a exortação apostólica deBento XVI nada temde novo. É fruto desse processo. O sínodo já apontava tais diretrizes?

Sim. Tudo o que está sendo dito agora é o que Bento XVI pensa, o que o Ratzinger já pensava e o

A politização do clero vem da “opção preferencial pelos pobres”?

SEM PRESSA - “O papa entende que a Igreja é uma instituição que contempla a eternidade”, diz Luiz Felipe Pondé, estudioso de Ratzinger

queoJoãoPauloIItambémpensou. Faz parte de um movimento contínuo que a Igreja vem fazendo ao longo dos tempos. O encaminhamento das questões tratadasnosínodode2005teriasidodiferentefosseopapaJoãoPaulo II e não Bento XVI?

Dizem que, nos últimos anos de João Paulo II, já era Bento XVI que reinava. A relação de ambos era estreita, teologicamente falando. Do ponto de vista da personalidade, Bento XVI é um homemdeidéias,intelectual capaz de enfrentar um debate com Habermas (Jürgen Habermas, filósofo alemão, ligado à EscoladeFrankfurt). João Paulo II, em contrapartida, era um místico. Diferentes na personalidade, assemelhavam-se demais em termos teológicos. Isso explicaria o retorno às tradições e aos ritos católicos, expresso na exortação? Ou seja, os dois últimospapadossecolocamdeacordo numa posição mais regressiva?

Regressão, recuo, retrocesso, nenhum destes termos explica o que está acontecendo. João PauloIIe BentoXVIformaramse na tradição católica que busca a reforma interior do ser. Segundo essa tradição, é preciso investigar a fundo a natureza humana,comofezSantoAgostinho.Ora,BentoXVIéumagostiniano por excelência. Ele considera que a natureza humana é imperfeita e padece com uma desordemqueprecisasercontida. Isso soa de forma antipática aos ouvidos dos “modernos”, gente como nós. Mas, vejam bem: dentre as idéias que definem a modernidade está a de que o homem é auto-regulado. Que tem condições de tomar consciência de seus limites e aprimorar-se. A noção do “ser perfectível”, que pode melhorarcomotempo,surgiunoséculo 13. Porém, a visão de Agostinho, bem como a posição de um papa como Bento XVI, é a de que natureza humana tem dificuldades estruturais. Se você não a corrige, ela se degenera. EntãoBentoXVIéumcríticodamodernidade?

Sem dúvida. O que boa parte das pessoas tem dificuldade de entenderéqueopapanãoconsidera a modernidade como algo

“Ao mesmo tempo que faz o primeiro santo no País, o papa sinaliza: ‘Vou continuar dizendo que a Teologia da Libertação acabou.’ Mas, as melhores cabeças do nosso clero ainda são formadas sob uma visão sócioanálitica do mundo” que tem valor a priori. O que na nossa formação é estranho. Fomoscriados noscânonesda modernidade, crescemos acreditandoqueademocraciaresolveria tudo, e não é bem assim. O regime democrático não resolve os impasses da família, por exemplo. Nem funciona a contento em uma sala de aula. Porquesão estruturashierarquizadas. Por isso estranhamos este teólogo duro, capaz de quebrar protocolose queestápreocupado com a desordem do mundo. Numbeloperfilqueescreveusobre João XXIII, a cientista política alemã Hanna Arendt (1906-1975) lidou com a hipótese de que ele só conseguiuserograndereformador da Igreja católica porque acreditavapiamentequeDeuseraochefe.E que ele próprio, papa, seria mero executor de ordens superiores.

Não é estranho que um místico tenhaaberto portas e janelas da Igreja,no Concílio Vaticano II,como fez JoãoXXIII,equeumteólogodesólida base intelectual, como Bento XVI,proponhaoretornoàtradição?

O que diriam hoje João Paulo II e Bento XVI sobre o Vaticano II, hein? Diriam que houve excesso, houve enganos na leitura do que era a intenção primordial do Concílio, uma melhor compreensão da modernidade. Só que o cardeal Ratzinger foi um dos formuladores do Concílio...

Sim, mas em seguida ele diria quehouve máinterpretaçãodas decisõesconciliaresequefoium equívoco supor que a Igreja devesse se submeter às demandas da modernidade. Bento XVI entendequeaIgrejaéumainstituição que contempla a eternidade, enquanto a gente está mais preocupado com o que vai acontecer no mundo nos próximos dez anos. Sendo uma instituição de olho no eterno, para que ter pressa? Isso introduz a variável temporal, que para nós é estranha. Entre o Vaticano II, que autorizou a missa celebrada em idiomas vernaculares, e Bento XVI, que vai botar a moçadinha para estudar latim de novo, sentimos uma longa respiração, esse vai-e-volta que é o entendimentoqueaIgrejatemdesimesma. Quando um teólogo fala em retrocesso, ou quando alguém diz que é caretice rezar em latim,BentoXVIapenasdirá:“Você está mesmo contagiado pelo mundo secular”. Ele entende que a Igreja é uma instituição com uma temporalidade própria,determinadapelaintersecção entre o “mundo transcendente” e o “mundo mundano”. A missa voltará mesmo a ser rezada em latim?

Ou parte dela será rezada em latim, não sei. Seria simplista achar que isso é apenas retrocesso político. Não é, até porque o que guia a Igreja é a busca do homem para entender seu destino final, que é Deus. Agora, todo mundo sabe de cultos em línguas estranhas. Muita gente vai à sinagoga e se compraz ouvindo aquelas cerimônias em hebraico, sem entender palavra. Ou se delicia com os mantras, com a musicalidadedosânscritonumcultobudis-

ta. Tudo lindo... Então por que não podemos ter uma parte da missa rezada em latim? Por que temos de privar as pessoas do deleite de ouvir o canto gregoriano? Por que achamos compreensível o celibato do Dalai Lama, mas criticamos o celibato dos padres? Essa é a grande tragédiado cristianismo:eleengendrou a modernidade e ela o devora, o tempo todo. Bento XVI também começa a dizer a que veio no enquadramento de teologias que se afastem da “oficial”.É o caso da condenaçãoao silêncio do bispo Jon Sobrino, de El Salvador,ligadoàTeologiadaLibertação.Ratzinger,quepuniuLeonardo Boff no passado, não mudou de convicções?

Há um casamento entre tradição e mística, que não é lá muito fácil. Imagine o encontro de João XXIII com João Paulo II no céu. O italiano deve ter dito ao polonês: “As pessoas entenderam tudo errado, João Paulo. A Igrejaprecisavaseabrirparaescutar os fiéis, para entender suas angústias, e acharam que era preciso transformar Marx em profeta”. João Paulo II pode ter-lhedito:“Eeuquetivedeconsertar as coisas, especialmente lá na América Latina, quando os caras já estavam achando que Jesus e Che Guevara eram a mesma pessoa.” Mas João Paulo II chegou a dizer que a Teologia da Libertação era moralmente aceitável na América Latina...

E Bento XVI, também! Ele não condena a inspiração teológica deGustavoGutierrez (fradedominicano nascido no Peru, considerado o fundador da Teologia da Libertação). Tanto João Paulo II como Bento XVI entendem que a Teologia da Libertação é corretamente inspirada no carisma profético da Igreja, porsuavez herança do profetismo hebraico. E que, portanto, a Igreja tem a missão de combater a injustiça no mundo, assim como os profetas de Israel combatiam. O erro da Teologia da Libertação foi ter feito do marxismoahermenêutica pararealizar essa transformação. Ratzinger falou isso em 84, repetiu em 86.... E o que se viu? A Teologia da Libertação sucumbindo a um contexto de luta político-

Pois é, Bento XVI não entende assim. Jesus falou que os ricos não entrarão no reino dos céus, mas ele também falou “dai a Césaro que é de César”. A Teologia da Libertação escorrega ao achar que os pobres são uma espécie de classe messiânica, ou que a graça só está nos excluídos, quando na realidade está em todo mundo. Nós, os intelectuais, formamo-nos basicamente no universo marxista, de esquerda, entendendo a democraciacomo algumacoisa insuperável.Mas, insisto, para Bento XVI e João Paulo II as demandas modernasnãonecessariamenteimplicamemsucessonavidaoumelhoria das pessoas. Para eles, a modernidade não é um pilar, nemumpontodepartidaobrigatório,masum momento complexo na história da humanidade. Ummomentoquevemsedesgastando. Achamos que é melhor distribuir camisinha para nossosfilhosdoqueenfrentarafamília que está em desequilíbrio, ondeaspessoasjánãomaiscuidam das pessoas. Também continuamos a acreditar que a felicidade é a coisa mais importante da vida, a felicidade imediata, o gozo. Somos os fiéis da modernidade. Na exortação, o papa condenou o segundocasamento.Nãoécomplicado Bento XVI discriminar milhões de fiéis?

Importanteé perceberas nuances disso. Muitas pessoas, especialmente nas classes mais simples,estãosemantendonocasamento de origem, mesmo sofrendo,porqueaunião éindissolúvel. Digo sofrendo, porque casamento não é uma coisa fácil. SeaIgrejaabrisseaporteirapara a separação, o que aconteceria? Se eu já entro no casamento achando que posso sair dele emalgunsanos, vivereiumcotidiano sem solidez. E isso leva a um processo de degeneração. Quando a Igreja diz “não se separa, se não a gente manda embora”, ela já acena com a punição, que é, para muitos católicos, o sofrimento de quem não conseguiu manter o que deveriaser mantido.Isso nãosignifica perder espaço na Igreja. Como,seatéacomunhãolhesénegada?

Não significa perder a piedade da Igreja. Como não significa que o padre vá negar cuidados espirituais. A Igreja não odeia o pecador. Odeia o pecado.

cha o olho, porque sabe que tem muitagente sofrendo... A Igreja temessarespiração...Nãohaverá operação-desmanche. E nem uma caça aos descasados. Masaspessoasvãose sentirvivendo em pecado...

Eis uma frase perfeitamente possível em se tratando de um Bento XVI: “É normal que o ser humano se sinta em pecado. Porque ele está.” O Vaticano não se preocupa com a perda de fiéis?

Provavelmente, sim. Ao mesmotempo,busca-se ocristão no entendimento católico. O que a Igreja de Bento XVI está dizendo? Um discurso assim: “Nós não vamos mais fazer acordo com cristão meia-boca. Você quer ser católico? Você é separado? Tudo bem, você vai continuar a ser católico, mas vai saberquefracassounoestabelecimento da família. Nós não vamosdeixarvocêpensar quedescasar é legal porque, afinal, você partiu para outra”. O cristão católicoterá dealcançaraconsciência de que não conseguiu manter a família, que ela é sagrada porque os filhos não são seus, mas são de Deus. É necessário, como diz o papa, que os descasados cumpram penitências e façam obras de caridade?

Éoqueelerecomendariaaqualquer pecador. Quando diz que está interessado em qualidade, não em quantidade de fiéis, isso pressupõe uma seleção no rebanho. Por outro lado, o Brasil está se tornando o grande país pentecostal... E então?

Um católico como Bento XVI levaasérioofatodequeomalexistenomundo.Elenãoécomonós, modernos, que achamos que o mal é uma invenção psicológica, porque você apanhava muito na escola, por exemplo. O mal está posto no mundo, não é uma criaçãohumana. Eopapanãoéfreudiano, nem marxista. Segundo teologias ortodoxas, para as quais ele se volta, o mal é da ordem da decomposição do ser. Claro, há o risco de perder fiéis, mas Bento XVI entende que não deve ter medo do mal e nem fazeracordocomele.Quandohouve aquela confusão do papa com o mundo islâmico, acharam que ele tinha pedido desculpas. No meu entender, não pediu. Foi e continuou sendo mal entendido. Ele queria dizer que, toda vez que se rompe o diálogo entre razão e fé, as vocações religiosas tornam-se sombrias. Naexortação, trata como questões inegociáveis o aborto, a eutanásia, odivórcio,uniõeshomossexuaiseo ensino da religião católica.

É um pacote clássico. E um ato de enorme coragem. E diz isso logo no início do papado.

Hámilhõesde“descasados”católicos que estabelecem uma espécie de “linha direta” com Deus, sem passar pelo padre, pelo bispo, pelo papa. E comungam. A condenação deBentoXVIaosegundocasamento não aumenta o fosso entre Igreja e sociedade?

Bento XVI deixa patente que não está tão preocupado com a quantidade, mas com a qualidade dos fiéis que povoam seu rebanho. A lógica dele é a seguinte:aotornarclaroqueessemontão de descasados “sofre”, passarei para os jovens o exemplo do que não deve ser feito. Baseia-senumaconvicçãoinabalável: o ser humano tem problemas, cabe a mim cuidar deles. Dentrodapastoraldafamília,hácasais em segunda união que a Igreja acolhe... Tudo isso se desmorona agora?

A Igreja tem uma temporalidade. De repente, existe um padre lá na Zona Leste que trabalha com esses casais, daí o bispo fe-

Ratzinger tornou-se papa já com idade. Portanto, ele pode imprimir uma certa velocidade ao pontificado. Mesmo assim, jamais devemos perder de vista que a Igreja tem 2 mil anos e uma tradição girando dentro de si mesma. Trata-se de um campodeexperiência muitoantigo,aopasso quenossasensibilidade é voltada para o futuro. Quando (o pensador político francês) Aléxis de Tocqueville vai para os EUA, em 1831, ele já percebe a desconexão entre passadoefuturonajovemsociedade democrática. E tendemos a esquecer que a Igreja católica atravessou guerras, pragas, pestes, cismas, rupturas, atravessou o nazismo, o comunismo...Issocontémumaexperiência humana incrível. Na última quarta-feira, o Vaticano divulgou notificação impondo o silêncioparaopadreespanholJonSobrino, ligado à Teologia da Libertação. Como se sabe, Sobrino foi as-

sessordedomOscarRomero,arcebispo de San Salvador, assassinado em 1980. Teria Bento XVI escolhido o alvo a dedo?

Não causa estranheza alguma esta notificação. O desafio do ConselhoEpiscopalLatinoamerino (Celam), no encontro do mês de maio, em Aparecida, será duplo: ao mesmo tempo não subestimar o problema social na América Latina, mas também relembrar aos bispos que a salvação passa por Cristo e pela reforma interior. Nem tudo depende da transformação sóciopolítica do mundo. IssonãovaiabalaroencontrodoCelam e irritar o clero daqui?

Bento XVI vem canonizar em solo brasileiro. Ao mesmo tempo que faz o primeiro santo no País,sinalizaà Igreja:“Vou continuar dizendo que a Teologia da Libertação acabou. Ela não vai formar ninguém, vocês vão ter que abandonar esse negócio”. Claro, haverá a indignação dos bispos, como haverá silêncio de outra parte. Depois, tudo se acalma e o mundo segue em frente.Ele age no planosimbólico. Com o gesto em relação ao Sobrino, com a exortação apostólica, com a vinda ao Brasil, enfim, com tudo isso, Bento XVI está dizendo “você, deputado católico, honre o sentido de ser católico”. Ou: “Casamento homossexual, não me venha com essahistória.”“Paradagay?Desencane.”Ouentão:“JesusCristo não é Che Guevara.” Ele investe contra a Teologia da Libertaçãonummomentoemque,pelo menos no Brasil, seus melhores defensores saíram de cena: dom HelderCâmaraedomIvoLorscheiter, que morreram, dom Pedro Casaldáliga e dom Paulo Evaristo Arns,maisidososemenosativos....

De fato, os expoentes saíram de cena. E não se fez uma geração brilhante. O problema atual é de outra ordem: não existe, no Brasil,nenhumcanaldeinterlocução entre Igreja e Bento XVI. Não há no mundo teológico brasileiro um interlocutor para encararestepapa.Asmelhorescabeças continuam sendo formadas na Teologia da Libertação, ou seja, nosso clero ainda vive sob o impacto de uma visão sócio-analítica do mundo. Logo, o Bento XVI não tem com quem conversar... É preciso conhecer muito da obra de Von Baltazar (teólogo suíço alemão morto em 1988) ou de Henri de Lubac (teólogo francês), decisivos na formação do Bento XVI, mas quase desconhecidos por grande parte da formação teológica brasileira. Logo, falta recurso para entender de onde veio o pensamento deste papa. É raso dizer que ele é um conservador. O filósofo italiano Gianni Vattimo diz que a pós-modernidade trouxe consigo o pessimismo e que a religiãopodeajudaraspessoasaresistiremaostempostristes.Nessesentido,asidéiasdoBentoXVIganham ressonância?

Podemos pensar como Pascal, apostar que Deus não existe. Mas, se Ele existir e a gente não tiver feito nada do que Ele queria, vamos encarar uma eternidadedeproblemas.Contudo,independentemente das nossas apostas, talvez Deus exista. No fundo, é essa a variável que paira o tempo inteiro sobre nossas cabeças. Deus é uma variável sem controle epistemológico. A única teoria que ousa enfrentar issoé odarwinismo,masnãoexplicacomo surgiua matéria que acabou depois evoluindo. Dito isso,chegamosao seguinteponto: o ser humano está em constantepânicocomrelaçãoaosentido da vida. Não sabe de onde veio, nem para onde vai. A gente está morrendo aos poucos, a gente vai se frustrando, e no final,vamosvirarpó.Eisoproblema. Você pode ser marxista, ca-

pitalista, moderno, antigo, heterossexual, homossexual, corintiano, não faz diferença, é um problema. É claro que, com bons médicos, hospitais e postos de saúde, poderemos viver mais. Mas issonãoresolve, porqueoser humano é um animal cuja consciênciadetermina opróprio sofrimento. E aqui entra o Vattimo: a religião parece ser o sistema de sentido mais poderoso que já existiu na face da Terra. E não é à toa que muitaspessoas religiosasencontram maior sentido na vida. A religião é um perigo? A espécie humana, esta sim, é perigosa. Nós, que nos adaptamos a tudo, que resistimos aos piores, aos mais agressivos, aos mais devoradores, nósquehoje integramos aespécie, somos perigosos. Não somos carneirinhos. O Vaticano reconhece Estados laicos. Quando Bento XVI vem com uma exortação apostólica na qual fala do segundo casamentocomoumapragaentreos católicos, pode desnortear muita gente. Afinal, no Estado laico, o casamento é um contrato civil e tem suas regras.

Para o papa, o casamento é umobjetodeDeus,nãodoEstado. É um sacramento. MasoEstadoexiste,asleisexistem.

O próprio Bento XVI repisou em um dos seus livros que “o reino de Deus não é desse mundo”, como diz Jesus no Evangelho. O Estado rege o tempo, a conduta dos cidadãos, os contratos, controla a violência,organizaotrânsito, mas,dopontodevistadadoutrina católica, o Estado não temo direito de legislar sobre osvaloresdafamília.Nãotem o direito de estabelecer que o seufilhopeguecamisinhasno banheiro da escola para transar com segurança. Quandoumgovernodistribuicamisinhas para evitar a aids e quando se dispõe a incentivar o planejamento familiar...

...do ponto de vista da Igreja Católica, está agindo fora do seu território. Essa é a respostaqueoBentoXVI provavelmente daria. A solução não é usar o preservativo, mas evitar a promiscuidade. Promiscuidade,segundo a Igreja, seria qualquer forma de sexo que não tenha a finalidade da procriação. É isso?

Não. A doutrina fala que o sexo deve ser feito num horizonte onde a procriação não é a priori excluída. Outra coisa é dizer que o sexo só pode ser feito quando a procriação é possível. Então, os jovens transam o tempo inteiro com camisinha, fazem sexo com o sentido de não procriar. Isso é errado do ponto de vista da igreja... Por isso aborto é crime e não há negociação possível.

José de Souza Martins

No correr da semana, o papa Bento XVI divulgou ao episcopado,aoclero,àspessoas consagradas e aos fiéis leigos a sua Exortação Apostólica “Sacramentum Caritatis” sobre a Eucaristia. A Exortação retoma a riqueza de reflexões e propostas surgidas na recente Assembléia Geral Ordinária do Sínodo dosBispos,no intuitodeexplicitar algumas linhas fundamentais de atuação para despertar na Igreja novo impulso e fervor eucarístico. O longo documento tem todas as características de uma aula magistral, em que SuaSantidadeconvidaseusdiscípulos, com firmeza, ao aprendizado e revalorização de regrasfundantes da Igreja Católica, centrando todo o edifício eclesial no constitutivo sacramentodaEucaristia. Essencialmente,odocumentoéumelaborado manifesto em favor de uma volta ao sagrado. É um documento pedagogicamente claro, atraente e interessante.Interessante,sobretudo, porque Joseph Ratzinger é o único filósofo contemporâneo cujo magistério encerra a conversão das idéias em regras de conduta, como é próprio de uma monarquia absoluta. No entanto, a combinação de refle-

ELE APONTA SINAIS DE BANALIZAÇÃO DOS RITUAIS E ABANDONO DA ARTE RELIGIOSA xão aberta e de exortação tem maisointuitodecorreçãoderumos do que de ordem impositiva que, sem dúvida, Bento XVI estava em condições de adotar. Em vários pontos da Exortação, o papa “pede” ou “sugere” abispos e padresqueprocedam deste modo ou daquele. Mas, mesmo que não queira, suas reflexões serão lidas e interpretadas como regras absolutas. Não vamos nos iludir. O papa personifica a multiplicidade de vontades que na Igreja se inquietamcomacomplicadarelaçãoentre ocatolicismoea sociedade contemporânea, “em um mundoem queaonomedeDeus vem,àsvezes,relacionadaavingança ou até mesmo o dever do ódio e da violência”. O convite à volta ao sagrado é, portanto, uma recusa da mescla de religião e política e suas tensões. O território do sagrado fica precisamente marcado no documento, em todos os detalhes, sem margem a qualquer interpretaçãoalternativa. Nãoé,pois, surpresa que na mesma semana o Vaticanotenha proibidoojesuíta Jon Sobrino, teólogo da liber-

TERÇA,13 DE MARÇO

Polêmica no texto do papa ●●●Documento reafirmacondenaçãoaosegundocasamento, àsrelaçõeshomossexuais, aoaborto, e defendeavoltado sagradoaosugeriro retornodo latim edo canto gregoriano.Texto não surpreendeu, mas no Brasil vem dividindo opiniões entre o clero e fiéis católicos.

tação hispano-salvadorenho, de ensinar em seminários e escolas católicas, justamente por suas idéias a respeito da humanidade de Cristo. É evidente que o papa reafirma valores e orientações que nunca foram abolidos nem suspensos, como é o caso do veto à comunhão dos divorciados que estejam em segundo casamento. Mas não deixa de haver sugestões de compaixão em relação aos que se afastam do padrão de família que a Igreja reconhece e aceita. E é mesmo interessante, e até intrigante, que o papa insista na importância devalorizare ampliar onúmero dos tribunais eclesiásticos que possamexaminare decidiranulações de casamentos. Os detalhados cuidados com a ordem e o decoro na liturgia podem parecer reacionários aos olhosdos quevão ocasionalmente à Igreja, sobretudo por uma obrigação social, muito mais ao que entendem ser um espetáculo,doque propriamente ao rito sacramental, como nos casos de casamentos, batizados e funerais. Isso atinge não só os fiéis, mas também os celebrantes. Não há como não concordar com Sua Santidade quando humilde e divertidamente fala na “necessidade de melhorar a qualidade da homilia”, não sem antes ter chamado reiteradamente a atenção para o fato de que o celebrante não está ali para mostrar sua pessoa, mas como sacerdote, como personificação do sagrado. Todo o texto está claramente orientado no sentido de uma exortação pelo reconhecimento e reafirmação do espaço e dos ritos do sagrado. E esse é, sem dúvida, o seu sentido mais importante.AExortaçãopós-sinodal do papa é motivada pelo reconhecimento da banalização do sagrado e orientada inequivocamente em favor da precisa demarcação da distinção

entre sagrado e profano. Ela apontaváriossinaisdebanalização nos próprios rituais, na música,naarquitetura, no abandono da arte religiosa. As extensas referências em favor da arte, desde a arquitetura do templo até o canto litúrgico, constituem um dos mais belos e surpreendentesaspectosdessedocumento. Bento XVI pensa a arte como sendo ela própria um dos momentos do sagrado, o sagrado contido na obra de arte, como referência integrante dos elementos do culto. Énoâmbitodo retornoao sagrado que o papa pede que se distinga a hierarquia dos participantes do culto e revaloriza o carisma do sacerdote, justamente em função do caráter sacrificial da celebração da missa e da investidura sacerdotal na função de agente desse sagrado. Espaços do sagrado restritosaoacessodoscelebrantesordenados reafirmam algo muito difícil de entender no mundo contemporâneoqueéofatosimples de que no sagrado não há nem pode haver democracia. As resistências gratuitas ao documento papal, divulgadas apressadamente, tentaram sugerir que se trata de manifestação de arcaico conservadorismo. Sequer levaram em conta os porta-vozes da banalização

É DIFÍCIL DE ENTENDER QUE NO SAGRADO NÃO HÁ, NEM PODE HAVER, DEMOCRACIA que o papa não recomendou a obrigatoriedade do retorno ao latim e ao canto gregoriano comolinguagensdamissa.Aocontrário, Bento XVI apenas recomendou que, nas grandes celebrações próprias de encontros internacionais, cada vez mais comuns, seja usado o latim, como língua de comunicação universal, e o canto gregoriano como opção litúrgica universal em situações de culto que reúnem celebrantes de distintas origens. Recomenda mesmo, no fundo, às novas gerações de sacerdotesquesepreparem para o sacerdócio no mundo moderno,cadavezmaisinternacionalizado (e globalizado), aprendendoolatimeocantogregoriano.São reiteradasasmanifestações de reconhecimento da diversidade cultural e até mesmo de culto e as sugestões para que os bispos se esmerem em ter em conta a centralidade do sagrado e da tradição nas inculturações, sem desconsiderá-las. A manifestação do papa, longe deserconservadora,énaverdade uma espantosa manifestação de pós-modernidade. ● DOMENICO STINELLIS/AP - 30/09/2003

O fim das utopias pode promover o retorno às religiões?

Sim. Bento XVI entende que a experiência religiosa deve dialogar com a razão. A razão, sozinha, se degenera em ceticismo e niilismo. Talvez isso seja o grande beco sem saída das utopias: a crença de que a razão, apenas ela, não consegue administrar a vida. Talvez uma das grandes coisas que a gente terá de enfrentar nos próximos anos seja a percepção de que o Estado moderno, em si, é uma utopia. Bento XVI acha que a razão, sem a angústia religiosa, acaba se transformandoem algo risível, banal, niilista. E que o ser humano sempre foi um bicho que caminha pelo chão e pelo céu. ●

CONTINUIDADE - O então cardeal Ratzinger (à direita) saúda João Paulo II: preparando a passagem

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