Docgo.net-oliveira, Francisdo De. Os Direitos Do Antivalor.pdf

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A ECONOMIA POLÍTICA DA SOCIAL-DEMOCRACIA

ÇÕes sociais que, por essa razão, vê-se metamorfoseada em esfera pública. A dialética do processo resulta em que ele é urdido para assegurar os interesses privados, mas só o pode fazer, somente se torna eficaz, se éles se transformam em in teresses gerais, públicos. Não há, portanto, ao contrário do que afirma a denúncia liberal e neoliberal, interesse do Estado senão na medida em que este aparece como uma instância necessária da publicização. Por outro lado, a crítica de esquerda, particularmente a crítica marxista ortodoxa, tampouco foi muito feliz ao inter pretar a nova relação entre o Estado e a economia no capita lismo contemporâneo, A esquerda não-marxista não logrou sequer pensar a questão; sobretudo a sodal-democracia, na verdade a grande parteira prática da nova relação, não a ela borou teoricamente. Mais recentemente os trabalhos na linha de Przerworski, Wallerstein, GostaeEsping-Andersen, vezOffe, Habermas, para citar um pequeno brilhante conjuntotal de tóricos que se têm debruçado sobre o State (apenas Welfare exemplares de uma vasta bibliografia, e discordantes entre si), voltaram-se decididamente para preencher a lacuna que o va zio social-democrata estava deixando quase irreparável. Mas a maioria deles, como Offe e Habermas, talvez demasiada mente tarde, assinala mais os limites do e anuncia uma Welfare sociabilidade não estruturada sobre o trabalho, a morte do trabalho, do que teoriza, propriamente, sobre a social-democracia. Przerworski, Wallerstein e Esping-Andersen, por outro lado, pertencem a outra linhagem. Dedícam-se a uma cuida dosa análise do Welfare e da social-democracia, estabelecem tipologias, vêem seus limites, mas não os teorizam como for masdiferentes do capitalismo; é isto que diz até o título do conhecido livro de Przerworski. Voltando à crítica do marxismo ortodoxo, este cometeu equívocos mais ou menos simétricos aos da crítica liberal à nova relação entre o Estado e o capitalismo. A mais articulada foi proposta na forma da teoria do capitalismo monopolista de Estado, que é um desdobramento, uma atualização e um avanço sobre a teoria do imperialismo de Lênin. ResumidaS1

A ECONOMIA POLÍTICA DA SOCIAL-DEMOCRACIA

O conceito de fundo público tenta trabalhar essa nova relação na sua contraditoriedade. Ele não é, portanto, a ex pressão apenas de recursos estatais destinados a sustentar ou financiar a acumulação de capital; ele é ummix que se forma dialetícamente e representa na mesma unidade, contém na mesma unidade, no mesmo movimento, a razão do Estado, que é sociopolítica, ou pública, se quisermos, e a razão dos capitais, que é privada. O fundo público, portanto, busca ex plicar a constituição, a formação de uma nova sustentação da produção e da reprodução do valor, introduzindo, mixando, na mesma unidade, a forma valor e o antivalor, isto é, um valor que busca a mais-valia e o lucro, e uma outra fração, que chamo antivalor, que por não buscar valorizar-seper se, pois não é capital, ao juntar-se ao capital, sustenta o processo de valori zação do valor. Mas só pode fazer isso com a condição de que ele mesmo não seja capital, para eescapar, por sua vez, às de terminações da forma mercadoria às insuficiências do lucro enquanto sustentação da reprodução ampliada. A metáfora que usaria vem da física: o antivalor é uma partícula de carga oposta que, no movimento de colisão com a outra partícula, o valor, produz o átomo, isto é, o novo' excedente social. O processo de produção desse movimento, que busco con ceituar no fundo público, é o processo da luta de classes. Mas é também o de seu deslocamento da esfera das relações priva das para uma esfera pública ou, dizendo de outra forma, o da transformação das classes sociais de privadas para classes so ciais O deslocamento que se quer dizer com Seria dizer públicas. que há um da luta deisso? classes da mais esferafácil da produção, do chão da fábrica ou das oficinas ou ainda dos escritórios, para o orçamento do Estado. Mas, não apenas de fato, mas teoricamente, não é isso que se passa, pois tanto para que exista o fundo público quanto para que o processo de publicização das classes sociais se dê, é absolutamente neces sário que também continue a luta de classe na esfera da pro dução ou, se quisermos dizer, no confronto imediato e direto entre empregado e patrão, O fundo público só existe e somente se sustenta como conseqüência da publicização das classes so 53

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ciais, do deslocamento da luta de classes da esfera das relações privadas para a das relações públicas: ele é uma espécie de suma de todas essas transformações, as quais têm que ser re novadas quotidianamente, sob pena de ele perder sua eficácia. Evidentemente, a publicização, ou o eprocesso mento, não é aleatória, conjuntural, construiudesse suas desloca institui ções, as quais são, na maior parte dos casos, as instituições do Estado de bem-estar. Entretanto, as classes sociais, seus contornos, parecem de saparecer. Offe, Habermas ou Giannotti (para citar os mais rigorosos de uma vasta bibliografia, que incluiria também os que deram “adeus”ao proletariado) anunciam o fim da socie dade do trabalho, o que quer dizer o fim da sociedade de classes. Ou, fukuianamente, embora os desagrade, o fim da história, Minha interpretação é que ocorre, de fato, que, pa rodiando Habermas, o máximo de publicização possível pa rece privatizar tudo. Mas esta é uma ilusão da aparência, posto que as classes sociais saíram de seus invólucros anteriores, pri vados, e não são percebidas como públicas. Mas, quanto mais parecem desaparecer do campo da visibilidade do confronto privado, tanto mais são requeridas como atores da regulação publica. Isto não é um paradoxo, mas a contradição das classes sociais hodiernas, que é, também, a mesma do fundo público. As conseqüências ou, dizendo de outro modo, as transfor mações na mesmo esfera pública e nosão Estado, ao mesmo tempo causa e efeito do processo, extremamente relevantes. A esfera pública aqui não é mais uma esfera pública burguesa: mas, da mesma forma como a entrada da classe trabalhadora na disputa eleitoral redefiniu a democracia, com o que as an tigas desconfianças marxistas em relação à democracia perde ram todo o sentido, também uma esfera pública burguesa, penetrada por um fundo público que é o espaço do desloca mento das relações privadas, deixa de ser apenas uma esfera pública burguesa. Assim, de novo parafraseando Habermas, no máximo de intransparência é possível distinguir, nitidapri mente, a esfera pública, redefinida dessa forma, da esfera vada. E isso, por exemplo, que torna possível uma campanha 54

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pela ética na política, pela moralidade pública, que terminou na aceitabilidade do impeachment do presidente, sem que se corra o risco de cair no moralismo conservador. E da distinção entre uma esfera pública não-burguesa e uma esfera privada que nasce a possibilidade de uma nova política. A grande transformação no Estado, que a revolução teórica keynesiana formalizou, é, em primeiro lugar, a de sua autonomizaçao fiscal. Que significou o abandono da posição de subalternidade fiscal, situação real do Estado até os dias da Grande Depressão, à qual correspondia a teoria fiscal do Es tado, do gosto liberal, e de formulação neoclássica. O Estado doméstico, dono-de-casa, que gastava apenas o que arrecadava e tão-só depois de arrecadar. Um Estado sempre ex-post. A revolução teórica keynesiana formaliza o que já era o movi mento tateador, tattonnant> do Estado ex-ante. Um Estado que antecipa o que gasta, que é mais do que arrecada; mais que essa contabilidade, o que há, aí, é uma transformação impressionante, no sentido já assinalado do deslocamento das relações privadas para relações públicas. Na maioria das so ciedades do capitalismo hoje avançado, e até porque o Estado foi utilizado instrumentalmente, a forma desse deslocamento ganhou, sobretudo, um rosto, uma forma estatal. Daí, que à ampliação do espaço público correspondeu, na totalidade dos casos, praticamente, uma ampliação do Estado, entendido nos termos em que os liberais o entendem. E até nos termos postos pela luta de classes: para publicizar, operar esse deslocamento, a forma estatalE em muitos casos revelou-se imprescindível insubstituível. o caso mesmo dos países periféricos como eo Brasil. Essa revolução no Estado tem enormes conseqüências. Para citar uma teorização que depende inteiramente dela, aliás reconhecida por Furtado e Prebisch - e este foi um dos pri meiros keynesianos da América La tina-, relembremos a teoria do subdesenvolvimento da CEPAL, a qual partia, precisamen te, da possibilidade de uma demanda autônoma derivada das funções do Estado. Ora, a rigor não se trata de “funções” do Estado, mas de uma revolução posta nas formas do Estado por ss

A ECONOMIA POLÍTICA DA SOCLAL-DEMOCRACIA

uma dificuldade da teorização empreendida sobre o fundo público. O fundo público desmercantiliza parcíalmente a força de trabalho, isto é, seu caráter de mercadoria. Ao fazê-lo, põe a nu uma espécie de desnecessidade da exploração ou a virtualidade dessa desnecessidade e, também, simultaneamente, a finitude de uma das formas mercantis mais importantes; a forma mercadoria mais importante do capitalismo, sua espe cífica mercadoria, a única criada realmente pelo capitalismo. Ao fazê-lo - uma operação que é de difícil descrição, pois a rigor o fundo público consiste precisamente nessa operação que substitui, teoricamente, a auto-regulação do valor - ele desbloqueia as virtualidades do progresso técnico, pois a mer cadoria força de trabalho não é maís um limite nem o suporte da acumulação. Isto é, na formulação de Luiz Gonzaga Beluzzo, ele autonomiza o capital constante. Reaparece, pois, o problema proposto pela literatura in dicada sumariamente nos nomes de Offe, Habermas e Giannotti, no sentido de que a sociabilidade que tem no trabalho seu núcleo estruturador estaria em veloz transformação para desaparecer. E a sociedade de classes do capitalismo fatalmente seria afetada. N ão há uma resposta fácil nem estruturada para essas questões. Tal como Reginaldo Prandi notou, pode-se co meçar a dizer num nível mais modesto que, tal como a própria sociologia dos processos de trabalho vem insinuando, o esta tuto sociológico do trabalho sem dúvida sairá fundamental mente modificado, dando lugar, pelo menos, a nova concepção de trabalhador. Mas uma resposta mais estruturada exigiría muito mais do que simples repercussões no âmbito do traba lhador e do estatuto sociológico do trabalho, por importante que este seja. A menos que uma simples boa intenção seja suficiente, e já não o é, não há o mínimo de experiência social capaz de indicar ou sugerir linhas de força sobre o futuro lon gínquo. Mesmo porque, convém relembrar, o esforço concei tuai aqui desenvolvido não diz respeito à construção de uma utopia, mas de um sistema que tem, pelo menos, setenta anos c cuja capacidade não se esgotou.

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Mas a mesma operação expõe, também, os limites da for ma mercadoria, no sentido de que o lucro passa a ser insufi ciente como forma social, para financiar a continuidade do processo de expansão do produto social. Esses limites apare cem pela retração social de exploração, viareferido. desmercantilização da FT,da e base pelo desbloqueio operado já Isto vai se expressar em formas aparentes: na concentração da renda, no encarecimento do capital constante - em lugar de seu barateamento constante - e numa volúpia de apropriação de toda e qualquer forma de riqueza pública, que deve ser posta a serviço da acumulação de capital, sem o que ela não pode continuar, pois que a simples forma mercantil, via forma lucro, é insuficiente. Apesar de que todas as aparências são contrárias. A pista de algumas outras transformações poderia ser se guida no rastro desse paroxismo. Elas podem tomar a forma da constituição dos grandes blocos, por exemplo. Que não passa de uma forma de pôr, em escala supranacional, todas as formas da riqueza pública a serviço do processo de acumula ção, que aparece sob a forma da expansão e integração dos mercados. Mas isso nos levaria muito longe e exigiría muito tempo. Mas mesmo essa pista é da mesma natureza teórica da que examinaremos mais profundamente. Isto é, paroxismos dos limites leva ao que parece ser uma politização da economia, uma economia administrada, preços políticos administrados, enfim, toda uma corte de adjetivos para uma insuficiência teó rica, que faz parte do repertório da direita e para a qual a esquerda não logrou resposta. De fato, o que aconteceu, ou o resultado maior de todo o processo, pode ser sintetizado, com algum pedantismo no título, pelo nome de modo social-demo crata de produção. Um modo social-democrata teria sua srcem histórica, evi dentemente, nos países com história social-democrata. Mas os EUA não são social-democratastout court , o que desqualifi caria pelo menos a denominação. Convém pensar, entretanto, numa social-democracia fraca, isto é, sem partido social-de mocrata; desde o New Deal, o processo de regulação que subs 58

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que tentei ensaiar, é de que o socialismo coloca-se, uma vez mais, na tradição clássica, como um desdobramento do pró prio sistema capitalista. Há, neste sentido, uma certa dose de necessidade. Mas não é uma necessidade histórica abstrata, como se desde dos tempos ele estivesse inscrito. Nem é tampouco o os fiminícios da história. O socialismo aparece como necessidade enquanto um sistema que possa resolver as con tradições do que chamei o modo social-democrata de produ ção. Nessa medida, ele não é independente da história dos homens, pois como tratei de expor, a constituição desse modo social-democrata de produção é, afirmativamente, um produ to da história dos homens, da luta de classes, travada não ce gamente, não enquanto as classes são uma espécie de autômatos robitizados do capital, mas enquanto as classes são personaede sua própria história. De fato, o modo social-de mocrata de produção mostrou, pela primeira vez, a virtualidade da desnecessidade da exploração, e isso ainda vai longe. E está mostrando também que a contradição em que se cons truiu a forma de superar um capitalismo não auto-regulado desbloqueou as imensas potencialidades da produção, mas blo queia as possibilidades da realização. Por isso, seu voraz apetite por todas as formas de riqueza pública, entre as quais espaços supra-nacionais aparecem como uma das mais notáveis; mas, assim mesmo, bloqueado pela forma mercantil, ele concentra renda, o que aparece como encaredmento do capital constante - quando na verdade há um barateamento e condena vastas parcelas da humanidade a serem apenas simulacros de consu midores. O socialismo aparece nessa fronteira para, por sua vez, desbloquear esse caminho. BIBLIOGRAFIA SUMARIA INDICATIVA AGLIETA, Michel.

Régulation et crises auxÉtats Unis .

ALTVATER, Elmar. “A Teoria do Capit alismo Monopolis ta de Estado ” .

In : História do Marxis mo. 60

A ECONOMIA POLÍTICA DA SOCIAL-DEMOCRACIA

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Ol

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dos Cebrap.

PRZERWORSKI,Adam. Capitalismo e social-democracia.

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I

àm

POLÍTICAS DO ANTIVALOR, E OUTRAS POLÍTICAS

quer dizer que o que Marx teoriza seja algo que se possa reduzir à pura experiência empírica, senão não teria ganho o estatuto e a força explicativa que ganhou a relação entre as classes tinha muito a aparência de um conflito privado* A partir dos anos 30, o conflito extrapola os marcos daquilo que se poderia dizer que ficava restrito ao espaço da esfera burguesa, segundo uma abordagem habermasiana ou mesmo weberiana. O pró prio conflito interburguês assumiu proporções tais que acar retaram o seu deslocamento do terreno do privado para o público. Portanto, não é propriamente uma transformação das classes, mas um fenômeno devido ao próprio conflito entre elas. A crise de 30 foi a evidência mais eloqüente desse deslo camento do terreno do privado para o público. Naquele mo mento, a esfera do privado revelou-se insuficiente para de alguma maneira processar o conflito na sociedade burguesa. E por isso que, de certa forma, as ciasses aparecem como se nãodetivessem recortes, como que a sociologia americana disse forma fácil e banal - se- oooperariado americano fosse classe média, medido pelos índices de consumo. Na verdade, é possível continuar a pensar que o conceito de classe é válido, à condição de fazer esse novo percurso que tentei fazer. Com o a tecnolo gia entra nesse esquema ? A ciência como fator de produç ão tem algum estatuto?

Tem um estatuto, mas não autônomo. Na verdade, bene ficiei-me de uma reflexão do Luís Gonzaga Belluzo. Na sua tese, ele fez uma reflexão sobre a autonomização do capital constante. O queaquer dizer isso? Segundo uma posição antiga e forte em Marx, burguesia, tentando superar continuamente os limites da exploração da força de trabalho, usa a ciência e tecnologia para baratear o custo da sua reprodução. Contudo, a partir dos anos 30, tomando-se em conta os países líderes do sistema, onde havia uma relativa homogeneização da pre vidência social, de seguro social, de outros antivalores em ge ral, o que se viu foi que esse processo, com o fundo público, havia ganho outra forma, tinha passado a ser relativamente 65

OS DIREITOS DO ANTIVALOR

indiferenciado no sentido de que não era mais o custo da força de trabalho que provocava a reação dialética da ciência e tec nologia a serviço do capital. Isso deu lugar àquilo que Belluzo chama de autonomização do capital constante. Se o motor do processo de inovação tecnológica não era o esforço para baratear o custo da mercadoria força de trabalho, o que veio a ser então? A mola propulsora desse processo continua a ser uma busca de valorização, o que de alguma maneira é sempre a mesma coisa. Mas o processo de extração de mais-valia e a sua relação com os impulsos para os saltos tecnológicos e para a aplicação da ciência e tecnologia passaram a ser mediados pelo fundo público. De alguma maneira, não havia mais uma relação di reta. Essa mediação liberou cada capitalista em particular de olhar a relação com o custo da sua mercadoria força de traba lho e provocou a autonomização. Na verdade, uma pletora de inovações que encontram seu limite outra vez na forma mer cadoria. No fundo, o sistema volta a bater no mesmo proble ma, mas de uma maneira em que a dialética entre o custo da força de trabalho e o progresso tecnológico passou a ser me diada pelo fundo público. Isso deslocou e, de alguma maneira, liberou as formas técnicas do capital constante. Essamediação seriam, por exemplo, os gastos militares com tecnologia, os gastos públicos com as universidades,em pesquisa edesenvolvimento etc.? . Exato. Se pesquisarmos, não encontraremos uma relação direta disso com o custo da força de trabalho. Ela se perde, mas não desaparece. O orçamento de uma grande universidade não está ligado diretamente a salário nenhum. Provém do con junto da sociedade, do imposto que cada um paga. Portanto, a relação passa a ser mediada exatamente pelos fundos públi cos, e isso é uma enorme apropriação. E nesse sentido que eu falo de uma espécie de autonomização. Por exemplo, os Esta dos Unidos jogam força em pesquisa bélica e isso tem impacto 66

POLÍTICAS DO ANTIVALOR, E OUTRAS POLÍTICAS

na produção de bens de consumo, mas não pode ser ligado diretamente ao custo de reprodução da força de trabalho dos setores industriais. Sem essa mediação fica difícil entender. Que papel você atribui à emergência do sistema soviético na confi guração desse modo de produção soc ial-dem oata cr ?

Na própria sociai-democracia há uma enorme influência soviética. Há todo um grupo de planejadores social-democratas que tenta apreender dos soviéticos a possibilidade de fazer a passagem para o socialismo através de uma desmercantilização. E uma discussão bastante interessante. A sociai-democra cia aprendeu muito com a experiência soviética. Mas as instituições capitalistas se remodelaram mais em função de constrangimentos internos ou devido à ameaça externa que repre sentava a União Soviética?

um eu balanço, essas coisas medidas em Fazendo proporções, daria se 60% de peso àspudessem condiçõesser internas dos países que hoje chamamos de desenvolvidos. Acredito mui to mais num tipo de interpretação marxista que concede muito valor ao movimento das lutas de classes. Até porque sabemos historicamente que antecipações desse processo existiram na Alemanha e na Itália até como tentativa da burguesia de dis putar a posse dos corações e das mentes da nova classe social. Tratando dessa forma esquemática, os outros 40% são devidos à revolução soviética, à medida que havia uma forte sedução das massas trabalhadoras pela URSS. A Grande Depressão, que desempregou 30% da força de trabalho, é outro fator que mobilizava e atualizava a ameaça soviética no interior dos paí ses ocidentais. Antes mesmo de Keynes tentar teorizar qual quer coisa, a maioria dos países estava tateando e buscando formas de sair do nó, por intermédio do que depois veio a ser sistematizado como medidas de bem-estar social. Em alguns casos, de forma já bastante sistemática - como foi a Suécia nos anos 20 - e em outros já premidos pelas circunstâncias, como foi o caso da França já na grande crise, correndo para descontar 67

OS DIREITOS DO ANTIVALOR

o prejuízo. A Revoluç ão Russa estava presente por intermédio das grandes massas desempregadas. Não acho, como muitas interpretações, que foram apenas concessões das classes do minantes. Estou mais numa linha de que o curso da luta de classes já anunciava um desenvolvimento nesse sentido. E, so bretudo, po rque - evidentemente sem nenhum eurocentrismo - isso surgiu nas relações de luta de classes mais avançadas, e não do tipo de luta de classes que se tratava em relações ainda coloniais. Isto desagrada certos setores da esquerda que gos tariam de pensar que toda revolução, toda transformação nos países capitalistas centrais foram feitas a partir da periferia. Em que medida a débâcle soviética torna inviável, do ponto de vista político, a apresentação de propostas de transformação mais radical da sociedade f

Durante boa parte da minha juventude e mesmo na matu ridade, eu vivi a experiê ncia so viética - como quase todo mun do da esquerda como uma grande referência. Nunca fui membro do Partido Comunista, sempre tive bastante reservas a respeito da sua forma de militância, mas sempre os encarei como companheiros de luta, principalmente na minha cidade, Recife, onde o partido tinha notável presença nas classes po pulares. Só vim a tomar conhecimento dos problemas mais graves da experiência soviética a partir da invasão da Tchecoslováquia, em 68. Nem mesmo quando do aparecimento do relatório Krutchev, ainda em 56, a URSS era posta em dúvida. Ninguém sabia muito bem o que era aquilo e a economia so viética parecia que ainda funcionava bem, ia ganhando a com petição com os EUA e nós não sabíamos dos horrores dos campos de concentração. A partir da invasão da Tchecoslováquia minhas reservas em relação à União Soviética aumenta ram muito,Quanto a ponto de eu não mais incondicio nalmente. a experiências como apoiá-la a de Cuba, por exem plo, sempre fui francamente favorável, ainda que deteste a forma ditatorial que lá se exerce. A débâcle soviética é um golpe muito forte na moral socialista e é uma derrota de pro68

OS DIREITOS DO ANTIVALOR

perar. Parte do seu ocaso é devido também a uma transforma ção ocorrida nos sujeitos que o construíram. E muito evidente que mudou a constituição das classes sociais. Se antes havíamos assistido a um deslocamento das classes, eu diria de privadas para classes sociais públicas, no sentido da Por sua que reprodução, hoje estão ocorrendo fortes transformações. se sur preender com o fato da taxa de sindicalização cair nos países mais desenvolvidos? Exatamente porque o Estado do bem-es tar universalizou-se, aquilo que dependia da sua filiação ao sindicato, de um certo partido que chegava ao poder, não de pende mais disso. Qual o incentivo para ser sindicalizado hoje? Há uma erosão pela base naqueles sujeitos que construíram o próprio Estado do bem-estar, e daí vem parte do seu ocaso. Mas, em grandes linhas, eu diria que esse ocaso é mais apa rência do que realidade.

N o que diz respeito à disputa pelos fundos públicos, a classe traba lhadora está perdendo terreno em relação aos direitos que havia as segurado antes?

Não. Essa derrota não é tão grande como a gente pensa. Exatamente pelo fato de que essas coisas se universalizaram. O que está havendo de fato - e daí a erosão das bases sociais do Estado do bem-estar - é a desregulamentação do trabalho, a destituição de direitos sociais e trabalhistas. Aí sim vai afetar essas bases sociais. O que voc ê está dizendo é que, do po nto de vista dos fund os públicos, os direitos de saúde, educação etc . perm anecem , mas no pla no priva do da prod uçã o a li sim est ão sendo destruídas as bases sociais do Esta do de bem-estar?

Sim. Mas, evidentemente, essa destruição no plano das relações privadas vai atingir o público... Ainda não atingiu?

Ainda não. Os gastos sociais continuam até a crescer como parte do PIB nos principais países desenvolvidos, e a direita e o capital tentam dar solução a isto através do corte desses 70

OS DIREITOS DO ANTIVALOR

meio caipira e mão-de-vaca, vai para casa. Se não, tem obri gações sociais nas quais se encontra sempre com gente seme lhante. Quando se trata de um tipo mais à última fase do Oíacyr de Moraes, vai gastar o dinheiro nos grandes salões da alta burguesia. De público e comum com o resto da sociedade, esse cidadão não tem nenhuma experiência. Esse é o sentido radical da privatização. Esta é a ameaça mais radical à esfera pública. Daí entender, evidentemente discordando, essa fúria privatizante. Essa privatização não é só ideológica, é uma experiência radical de vida. O fato de o transporte ser ruim em nada co move um empresário desses. Antes, eles tinham que contrace nar diariamente com experiências de subjetividade porque os operários iam reivindicar diretamente. Hoje, ele vive num mundo virtual, privado.

Do ponto de vista das relações internacionais, que tipo de transfor mações você vê?

Do ponto de vista das relações intercapitalistas, não vejo nada de bom. De tanto desrégulamentar, os países capitalistas vão se enfrentar brevemente com uma competição mortal e vão se preparar para isso. A China já acabou com a indústria de brinquedos no mundo inteiro, está acabando com a têxtil e acabará com a indústria eletrônica de pequenos aparelhos. Quando somar-se a isso a Rússia - com mão-de-obra barata que tem - e o Brasil e a índia se juntarem, chegará a hora da barbárie no comércio internacional. Eles desregulamentaram e osdesregulamentados vão cobrar a fatura! Os países desenvolvidos estão tentando se cercar das maio res garantias e constituir nas nações subdesenvolvidas - para usar um termo forte - uma espécie de sátrapas que governem em nome deles. Mas isso não vai resolver por muito tempo. Dentro dessa lógica, não seria irracional por parte dos países avançados estar praticando essa desregulamentação , uma vez que eles próprios estariam promovendo algo que brevemente irá preju dic á-lo s?

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POLÍTICAS DO ANTÍVALOR, E OUTRAS POLÍTICAS

A tendência é de queda do salário real a p art ir de agora?

A tendência do salário real é de cair ou crescer numa taxa muito pequena. Num país como este, com as enormes desi gualdades, a taxa de crescimento que a Salomon Brothers que é uma corretora e um banco de investimentos que segue de perto a economia brasileira porque tem altos interesses aqui - está projetando é de 2,2% para o ano de 97. Nã o é nada promissor. Um país como este tem de crescer, no mínimo, 5% a 6% ao ano com melhor distribuição de renda. O que seria uma política de integração que contemplasse as suas preoc upações?

E difícil precisar, mas creio no entanto que vigorosas políticas sociais ainda são a melhor forma de distribuição de renda. Evidentemente, se combinadas com uma boa taxa de crescimento econômico de 5% 6%aao ano. Nós sabemos que melhorsocial educação não édepende do mercado. Portanto, uma apolítica vigorosa insubstituível como elemento de distribuição de renda, mesmo quando o salário real está crescendo. O mercado só realiza muito parcialmente a me lhoria na distribuição de renda. Nos anos gloriosos mi-do lagre, quando se pensava que só o crescimento do salário real era suficiente para redistribuir renda, a classe média abandonou o ensino público. Quando os salários da classe média se deterioraram, ela quis voltar para a escola pública, mas esta estava liquidada. Por isso, eu advogaria uma boa taxa de crescimento e vigorosas políticas sociais porque é por aí que passam educação, saúde, lazer e cultura de qua lidade. Falando nos seus próprios termos, o salário direto está mais sujeito ao ciclo dos negócio s enquanto osalário indireto tem uma estabilidade que se sustenta no tempo e que serve de garantia inclusive para a cidadania?

Exatamente. 7S

OS DIREITOS DO ANTIVALOR

Qual o papel da esquerda hoje no Brasil e no mundo? Qual o papel do intelectual, do militante, dentro desse cenário?

Eu sou um PT light. Acho que o PT não tem do que se envergonhar nesse curto período de existência, em que con tribuiu enormemente para a democratização da vida brasileira. De imediato, a tarefa do PT é lutar bravamente para que a hegemonia de FH C - que é virtual - não se consolide, isto é, lutar para que este credo não se transforme em senso comum, o que é o mais perigoso. Tentar construir uma alternativa sig nifica combater em todas as frentes possíveis essa virtualidade hegemônica muito forte que está se desenhando no Brasil. Evidentemente, enfrentar o governo e todas as formações ad versas em todas as frentes possíveis - prefeituras, eleições, sin dicatos - é um trabalho que não é de curto prazo. O que o PT não deve nunca tentar fazer é parecer bonzinho. Não no sentido de uma velha discussão bizantina que houve no PT, se nós vamos administrar o capitalismo ou não. Para mudar o capitalismo é preciso primeiro saber administrá-lo. Não é essa a questão. O PT não deve ser bonzinho no sentido de tentar melhorar ess e progr ama aqui, aquele program a acolá. Essa foi a tônica de certos discursos nas últimas eleições municipais. O que está aí é muito forte e o PT se assustou. Mas ele tem que continuar a dizer a esse país que ele precisa de reformas vigorosas, profundas. Não como a vanguarda iluminada que sabe mais do que o povo, mas como aquele que é na essência diferente do senso comum. O partido deve continuar essa batalha, a curto e médio prazos, para criar a possibilidade de que a hegemonia virtual que se desenha não se instaure. O projeto hegemônico que temos que combater é talvez o mais consistente que os grupos, classes e blocos dominantes no Brasil jamais tiveram. E esse é um desafio que não pode ser subestimado.

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PARTE II

A Q U A S E -H E G E M O N IA Bases materiais e sociais da dominação burguesa no brasil

A Metamorfose da Arribaçã Fundo público e regulação autoritária na expansão econômica do Nordeste*

O processo de integração sob a “regulação autoritária ” Desde a criação da Sudene, em 1959, e mais especifica mente, desde a entrada em ação dos mecanismos de dedução fiscal para investimentos no Nordeste, conhecidos anterior mente como dispositivo 34/18 e hoje como Finor, a região nordestina vem sofrendo importantíssimas transformações econômicas e sociais. A inteligibilidade desses processos é aces sível nos quadros de sua progressiva integração à dinâmica da economia nacional, e por conseqüência, do processo de acuN ovo s E studos, ,l Publicado em São Paulo, Cebrap, n. 27, julho de 1990, p. 67-91. Este texto sintetiza oelatóri r o da pesquisa Estrutura “ dePoder no Nordeste Pós-Sudene”, encomendada pela diretoria de Programação Global-DPG, da Superintendên cia do Desenvolvimento do Nordeste-Sudene, ao Centro Brasileiro de Análise e

Planejamento - Cebrap. Participaram da pe squisa, além do autor doetexto nador), os seguintes auxiliares de pesquisa: Carlos Alberto Beijo Silva,(coorde Elson Luciano Silva Pires, Hélio Francisco Corrêa Lino e Marcelo César Gouvêa. O principal objetivo da pesquisa foi oferecer um quadro de referências atualizado para marcar as possibi lidades e os limites do planejamento regional. Neste sentido, o estudo das estruturas de poder engendradas e/ou reforçadas pelas transformações econômico-sociais em curso desde a criação da Sudene passa a ser o ponto focal para avaliação daquelas possibilidades. As fontesestatísticas ut ilizadas na pesq uisa foram publicações de órgãos públicos (BNDES, FIBGE, Sudene etc.), de entidades sindicais de trabalhadores (DIEE(Visão, SE) ou patronais (FIESl^ Febraban) e publicações econômicas especializadas G uia Interinvest).

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mulação de capitais, da ação do Estado, da internacionalização produtiva e financeira, da anulação da presença política de algumas classes e setores sociais, da repressão e centralização políticas operadas pelo Esta do autoritário, entre outros muitos fatores. Um resultado talvez não esperado é, de certa forma, a desregionalização da economia regional, que se coloca como par num ambíguo processo que, do outro lado, reifica a região,. já agora do ponto de vista da ação dos mecanismos financeiros que o presidem.

Para verificar as transformações da base econômica nordestina, procedeu-se ao levantamento das informações sobre o PIB regional, determinando sua magni tude e composição e sua repercussão no emprego. O estudo do setor industrial possibilitou a análise desagregada em nível de gêneros: é o único setor da eco nomia para a qual se procedeu a uma análise a este nível. Os capitais envolvidos nas modificações da base econômica do Nordeste foram determinados através da identificação das 1.300 maiores empresas da região, segundo o faturamento e o patrimônio. Em seguida, procurou-se determinar a articulação e o grau de concentração destes capitais obtendo-se, desta forma, uma relação dos principais grupos econômicos que atuam na região e o impacto provocado pela sua atuação na economia regional. A determinação dos principais agentes financiadores da acumulação fez-se através do estudo do setor financeiro, das instituições pú blicas de financiamento e do principal incentivo fiscal aplicável à região, a saber, o Fundo de Investimentos do Nordeste - Finor. A força de trabalho e as associações de classe foram estudadas com a intenção de perserutar sua influência na economia e nas relações sociais da região. Desta forma, procurou-se determinar o grau de organização dos trabalha dores e empresários, os níveis de rendimentos, a participação relativa dos trabalhadores com e sem carteira assinada no mercado de trabalho etc.; os resultados obtidos sobre a força de trabalho, salários, estrutura das ocupa ções e relações de trabalho são limitados, dngindo-se a informações das PNADS; quanto aos demais objetivos, a rigor são indicações para futuros aprofundamentos. Na ótica de privilegiar a ação concreta dos sujeitos e atores da transformação regional, procurou-se abrir uma via de investigação sobre a formação e circulação das elites empresariais, públicas, estatais privadas. O entrelaçamento dos interesses, sua representação política, o graue de aderência entre esta e as novas estruturas de poder na região resultaram apenas sugeridos, necessitando-se, pois, de desdobramentos futuros para conhecerem-se, com maior veracidade, numa palavra, as relações entre eco nomia e política na região. HO

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estatais é privada. No outro lado da suposta fronteira, no setor privado, a propriedade é privada, mas a argamassa, os fundos para capitalização, são estatais. Na definição de Rangeon, ha vería uma privatização do público, mas não há uma publícização do privado1. Essa ausência de uma esfera pública reproduz, no Nord es te, o vasto processo posto em marcha no Brasil desde a segunda metade dos anos 50 e levado às últimas conseqüências pelo Estado autoritário. Os efeitos concentracionistas da expansão econômica não são,prima fade, pura derivação do crescimen to econômico; poderíam sê-lo no século XIX, mas não hoje. A má distribuição de renda, a aberrante estrutura de salários ver-se-á como, no Nordeste, depois de trinta anos quase ininter ruptosaté de 1crescimento econômico, dos empregados biam salário mínimo* 2 - são 57% inequívocos resultadosrece da ausência de uma esfera pública, e exatamente ao contrário do que apregoam os neoliberais, da ausência do poder regulador do Estado sobre os mecanismos do mercado; ou, especificando me lhor, o público se privatiza apenas numa direção, na direção da substituição dos fundos da acumulação privada pelos estatais, mas não há contrapartida no sentido de corrigir o mercado em termos de salários, distribuição de renda etc. Os mecanismos financeiros que presidem à expansão ca pitalista no Nordeste configuram o novo papel dos fundos públicos nos processos de constituição do capitalismo contem porâneo. Poderíam ser listados como estando na vanguarda, precoce, deum capita l financeiro em geral, que se arma a partir dos fundos públicos, se concretiza e se torna capital privado na órbita da produção, se traveja na mordernidade de uma nova relação capital-trabalho, irriga o bem-estar na forma dos gastos sociais públicos, escanteia o acaso e o aleatório dos processos da reprodução econômica e social até o limite do possível em contextos históricos determinados, e potência, de Rangeon, F., Lidéologie de Vinterêt général.Paris, 1986. 2 Vide “Estruturas de poder no Nordeste pós-Sudene” , Tabela BII: le e ld. 82

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forma inimaginável para o século XIX, a própria capacidade de expansão e renovação do sistema. Mas, no meio desse processo, algo ocorre: a contribuição financeira do Finor (que é uma dedução do imposto de renda) às empresas toma a forma de certificados de investimento de propriedade dos investidores/dedutores (empresas e pessoas físicas). Nos leilões do Finor, os certificados são transformados em ações das empresas nas quais se fizeram aplicações. Essa transformação, a rigor, interessa apenas às próprias empresas que utilizaram o Finor, pois tais ações são inegociáveis durante quatro anos. Além disso, compõem o capital de empresas de pouca visibilidade à percepção dos investidores de Bolsas de Valores. Nestas condições, as próprias empresas beneficiadas pelo Finor recompram suas ações (derivadas dos certificados), transformando o mercado acionário do Finor em um mercado cativo, na verdade uma ficção de mercado de capitais. A prática tem sido a de as empresas recomprarem suas próprias ações a preços que sequer atingem 10% de seu valor real'1; percebe-se a intransparência do sistema e a não-publicização do privado, na medida em que o Finor pagou pelas ações um valor 10 vezes maior do que o valor de venda. Neste percurso, perde-se in teiramente o controle dos apartes públicos à formação de ca pital das empresas; privatizam-se os fundos públicos e não se publiciza o privado. Eis o Estado do mal-estar. Os congressistas do Nordeste foram uma das bases mais fortes de sustentação parlamentar do Estado autoritário. Não foram os únicos, nem os principais. A ação do Estado po dería parecer, à primeira vista, uma troca entre apoio polí tico e investimentos estatais. Mas, exatamente núcleo da relação fundos públicos/acumulaçao privada, onoCongresso castrado do regime autoritário não atuava, impedido de le gislar sobre orçamento e de interferir nas empresas estatais.

1Dc acordo com Tabela G.l, p. 141, do relatório “Avaliação dos Incentivos Fiscais Regidos pelo Decreto-Lei 1376”, IPEA, 1986. 83

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e) recursos na forma de participação acionária através do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e/ou do Banco do Nordeste do Brasil (BNB); f) financiamentos do BNDES e do BNB, a taxas favorecidas; g) financiamentos doBancoNadonal de Habitação (BNH)/Banco Mundial, para infra-estrutura industrial e saneamento. Essa nutrida lista é a mesma para o Brasil como um todo, revelando, pois, que o padrão de fínanciamentoAitilização de recursos públicos que preside à expansão da economia nor destina é o mesmo que foi utilizado pelo Estado autoritário para a economia nacional, levando à exaustão e aos impasses atuais de déficit e dívidas públicas interna e externa, à erosão da carga tributária bruta, à incapacidade de investimento do Estado e à inflação. Os incentivos fiscais do tipo dedução do imposto de renda foram exclusividade do Nord este; logo após foram estendidos à Amazônia, às atividades de turismo e reflorestamento, aos investimentos na Embraer e, através de legislação especial, ao Estado do Espírito Santo. O que explica a tendência histórica de baixa dos recursos do Finor. Vale dizer ainda, de passagem, que os empréstimos concedidos pelo BNB e pelo BNDES às empresas que investem no Nordeste são considerados, para efeitos de aferição montante de recursos Finor a ope que podem aspirar, comodorecursos próprios; desta “do inocente” ração de ajuste e medição decorre a já mencionada desvalori zação dos certificados de investimento do Finor, que dá lugar ao “mercado de capitais cativo” dos investidores do Finor. Em 1985, os recursos financeiros via Finor e BNDES re presentaram 2 ,8 1% do PIB regional6, enquanto a formação bruta de capital fixo (FBCF) total alcançou em 1983 (último ano para o qual há dados disponíveis) 2 1,9 9 % 7 . A primeira 6Idem, p. 62. 7 VideProduto e formação bruta de capital - Nordeste do BrasiLRecife, Sudene, 1987. 86

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porcentagem pode parecer insignificante, mas deve-se relem brar que na FBCF se incluemtodos os investimentos, mesmo os não diretamente produtivos, do Estado (como estradas, es colas, hospitais, portos etc.). Além disso, pelas vias do Finor e do BNDES não correram fundamentalmente os investimen tos dasouestatais produtivas, que se ou financiam autonomamente por empréstimos externos, ainda viaou subscrições acionarias do BNDES, que não se incluem nos empréstimos. O Finor financiou apenas 1 0 % do capital total dos grupos estatais que atuam no Nordeste. A face mais impactante do Finor se revela pelo lado de sua participação no capital total das 1.300 maiores empresas do Nordeste, que alcançou em 1985 a porcentagem de 35% para o setor industrial, e da ordem de 65% para o setor agropecuá rio8. A distribuição setorial dos recursos do Finor confirma sua importância como mecanismo financeiro da acumulação de que capitais, pois sãoaos seis parte gêneros mais dinâmicos os absorveram maior dosindustriais recursos daquele fundo (excetuando-se as empresas estatais de serviços públicos, que se financiam diretamente junto aos tesouros, federal e esta duais, e em parte junto ao BNH). O sistema Finor não funciona como instrumento financei ro ao alcance de médios e pequenos capitais, senão de maneira marginal. Ele se revela como financiador e potenciador de uma acumulação concentrada, quase oligopolista, pois os cinqüenta grupos econômicos mais importantes do Nordeste repre sentam cerca da metade do capital total das 1.300 maiores empresas e absorveram também a metade dos recursos totais do Finor em 19859. Se desglosadas as empresas e seus grupos por srcem/propriedade dos capitais, a análise revela que os grupos estatais absorveram recursos do Finor da ordem de 10% de seus patrimônios totais (uma vez mais, com exceção KSobre os recursos do Finor, vide “Estruturas de op.cit., poder...”, tabelas AII: 3a e 3e. ySobre as relações entre Finor e grupos econômicos, vide Aíí: idem, tabelas 3b e 3i. 87

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I% do lucro das empresas atribuído aos trabalhadores e por alíquotas da remuneração dos funcionários públicos federais, enquanto o FGTS é calculado sobre a folha de salários e atri buído a cada assalariado. Os fundos do Banco Central são de natureza diversa, não se podendo identificar claramente suas fontes, mas em de todoinstituições caso dependentes do governo federal. E os empréstimos internacionais são avalizados pelo governo federal, que, assim fazendo, assume o risco de câmbio implícito na operação, quando de sua quitação. Todas essas fontes têm em comum seu caráter altamente subsidiado, e, nos casos especiais do PIS/Pasep e FGTS, cons tituem uma verdadeira expropriação sobre seus proprietários nominais, os assalariados em geral e os funcionários públicos. O BNDES e o BNFI remuneravam esses fundos historicamente a taxas de 3% ao ano, mais correção monetária. Ora, essas taxas não alcançam sequer a remuneração das cadernetas de poupança, que é de 6% ao ano mais correção monetária. O BNDES empresta a taxas maiores, apropriando-se da diferen ça entre o que paga e o que cobra, que reverte para seus próprios fundos. Este é um dos aspectos da “regulação autoritária”. Os proprietários desses fundos não têm qualquer ingerência nas suas aplicações. Ademais, a ação do BNDES e dos bancos es tatais de fomento, BN B e aqueles de propriedade dos governos estaduais, nãoé especificamente nordestina. Tanto a forma das aplicações quanto a natureza das fontes são fenômeno geral na atuação do principal banco de investimento nacional em todo o país; e os bancos estaduais de Estados fora da região Nordeste também atuam da mesma maneira e socorrem-se das mesmas fontes. A soma de aplicações do Finor e do BNDES, que já se indicou, alcançou quase 3% do PIB regional em 19 85 e trouxe uma qualidade nova ao processo de expansão econômica nos quadros da “ regulação autoritária” . Genericamente, eles são parte da crescente interação entre Estado e economia, carac terística do capitalismo contemporâneo, em que os fundos públicos constituem um pressuposto de processo de acumula89

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,çãoJ1 A função do fundo público nesse processo consiste, em geral, em potenciar a acumulação para além dos limites impostos pela geração do lucro,utilizando uma riqueza pública que não ê capital e que, portanto, na equação geral não é remunerada. O fato de que os recursos do Finor são de custo de oportunidade igual a zero, somado à alta taxa de subsídio implícita nas aplicações dos bancos estatais, adapta-se a esse paradigma. Funcionando como um substituto do capital financeiro, os fundos públicos concretizados no Finor e nos bancos estatais cumprem vários requisitos. O primeiro deles é o de promover uma centralização de capitais imediatamente desligados da base produtiva, o que é clássico para o capital financeiro. De fato, produtiva as deduções momentaneamente da base que fiscais gerou odesligam-se imposto de renda, para só se liga rem outra vez à mesma no interior de cada capital em parti cular. A essa função própria do capital financeiro junta-se outra que é peculiar aos fundos públicos, e que somente eles podem cumprir: não estão sujeitos aos movimentos da taxa de lucro de qualquer setor em particular,amarração esta que ainda pre side o capital financeiro stricto sensu. Esta última condição revelou-se absolutamente necessária para romper a inércia da economia regional anteriormente regulada pela sua própria produção de excedente: a taxa de investimento do geração Nordestede não dependeu de sua base produtiva, isto é, da lucros interna, pois se verifica que o coeficiente de inversão regional sobre o produto é bem superior ao da economia bra sileira, tendo alcançado cerca de 22 % em 19 8132.1 A primeira razão é a já indicada: elevar o coeficiente de inversões acima da capacidade gerada pela própria economia, A segunda razão é romper com a inércia de capitais que se movimentavam em torno das taxas de lucro existentes nos

11 Ver Francisco de Oiiveria. “ O surgimento do antivalor” N , ovos Estudos. Cebrap, n. 22, Sâo Paulo, out. 1988. 12 VideProduto e formação bruta de capital,.., op. cit. 90

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Setorialmente, o predomínio dos capitais estatais se dá nos dois maiores segmentos da economia do Nordeste - Química e Serviços Públicos cujas empresas respondem por 46% do patrimônio líquido total das 1.300 maiores empresas17. A qualidade da função das estatais na expansão econômica recente do Nordeste insubstituível e forma o outro da equação cujo primeiroétermo são os fundos públicos do par Finor e do BNDES. Esta qualidade vai muito além de seu significado quantitativo, cuja importância foi demonstrada nos parágrafos anteriores, e pode-se dizer que, sem a somatória Finor/BNDES mais estatais, não teria ocorrido a expansão recente, nem se quer como mera decorrênciaespacial do forte crescimento nacional desde o pós-guerra. Em primeiro lugar, as empresas estatais no Nordeste de sempenham o mesmo papel que tiveram na industrialização nacional desde o segundo pós-guerra. Um papel paradigmático de proto-indústria, não no :ésentido de pré-indústria, mas no sentido de prévia e pio ne ira um desempenho afirmado quase trinta anos depois da arrancada industrial t^ue se deu nos anos 50, com Siderúrgica Nacional, Petrobrás, Alcalis, Vale do Rio Doce, em escala nacional. As grandesholdings federais sãocapital financeiro po r ex celência, pois no seu interior elas fundem a função produtiva c a função creditícia (quase bancária). Financiadas basicamente por fundos públicos de extração fiscal, seus recursos desligamsc momentaneamente do movimento da taxa de lucro (ou de juros), e, aplicados produtivamente, perfazem uma equação inteiramente meio ao privados, primitivo circuito regio ori nal. Quando inovadora associadasem a capitais de qualquer gem e natureza, exponenciam sua qualidade de capital financeiro sui generis, pois os capitais que se lhes associam passam, também, a gozar da prerrogativa de escapar às deter minações da taxa de lucro, em que viviam circunscritos en quanto permanecessem em suas formas srcinárias.1 1 Idem, tabela BI-2b 93

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É por essa qualidade que estas holdings formam uma es pécie deargamassa de todos os capitais,quando se associam. Ancoradas nessa especificidade, elas orientam o movimento de capitais: seus investimentos são altos comparativamente aos demais; são simultâneos, uma possibilidade de complementaçao que, em oferecendo meio ao movimento errático dos capitais privados, aparece imediatamente como a melhor das associações; pela sua elevada composição orgânica, puxam para cima, radicalmente, a produtividade dos setores que li deram. Em síntese, na ausência de uma tendência à equalização das taxas de lucro, que dirigíria o movimento dos capitais no modelo srcinal de Marx, são os capitais estatais que realizam uma função análoga de orientação da taxa de lucro e, por conseqüência, da taxa de acumulação: não pela equalização, mas quase-contrário: a des-equalização tada.pelo Estaseu é sua principal função teórica, tanto nocompartimenmovimento geral da industrialização brasileira, quanto no específico, re cente, do Nordeste, recortado no interior do quadro brasileiro pela presença de fundos públicos tais como o Finor, cujo custo de oportunidade é zero. A transformação das bases materiais da produção

A dinâmica promovida pela nova armaçãodeci de fundos públicoseconômica e fundos privados inscreve o Nordeste, sivamente, no processo mais geral de acumulação de capital no país. Disso dão testemunho as inusitadas taxas de cresci mento do PIB regional entre 1970 e 198318. Neste sentido, apesar da pequena descentralização regional do PIB (Nordeste x Brasil)19, é inegável a ampla incorporação do Nordeste à lógica dos processos econômicos de âmbito nacional. O em prego nos setores da indústria e de serviços cresceu ao ponto 18 Idem, tabela AI: Id. 19 Idem, tabela AI: la. 94

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de que a população ocupada de base urbana saltou de 37% em 1970 para 53% da população ocupada total em 1985, íiinda distante da média nacional (72% em 1985). Isto se deve, sobretudo, ao “calcanhar de aquiles” nordestino: 46% da po pulação ocupada total ainda estavam no campo em 1985, o que representa o elemento de continuidade de relações arcai cas de emprego, num conjunto em que os avanços são bem notáveis, apesar de tudo20. No período 1970-1983, a economia nordestina cresceu, sistematicamente, acima da média nacional: 7,8% ao ano con tra 6,7%, segundo os dados da FIBGE e do Grupo de Contas Regionais da Sudene21. Mais ainda: esse crescimento se deve às taxas da indústria e dos serviços, anotando-se apenas para a agropecuária uma taxa inferior à nacional. Observados os períodos curtos dentro do longo período de treze anos, o com portamento é o mesmo, notando-se, marcadamente para o subperíodo 80-83 (de crise e recessão), que a economia do Nordeste mantém um comportamento positivo, enquanto a média nacional acusou taxas negativas de crescimento indus trial e total. A agropecuária, como “calcanhar de aquiles”, cresce sempre abaixo da média nacional, e no período reces sivo já sinalizado, que coincide com um pesado ciclo de secas no Nordeste, a agropecuária regional mostrou taxas negativas tlc -8,2 % ao ano. Para esse comportamento em geral superior às médias nacionais contribui, sem dúvida, a forma de finan ciamento público já analisada, o que reafirma o caráter excep cional do financiamento público e das empresas estatais na expansão econômica nordestina. Trata-se de um caráter anticíclico swi generis. Do ponto de vista da srcem setorial do Produto Interno Bruto regional, há uma marcada diferença entre os anos ex tremos do período, 1970 e 1983. A mais notável mudança se dá no peso relativo da agropecuária que, de 22 %, em 1970, ’(1idem, tabela AI: lg. '' idem, tabela AI: ld. 95

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decresce para 1 3 ,1 % do PIB em 19 83. O comp ortamento da série longa mostra que aqui se trata de uma tendência, e não apenas de um dado conjuntural. De outro lado, os serviços, que em 19 70 já compareciam com 5 1,5 % do PIB, chegam a 59,3% em 1983. O peso da indústria muda pouco se considerado em si mesmo: 26,5% do PIB em 1970 para 27,6% em 198322. Essas modificações parecem de pequena monta, a julgar pelos pontos percentuais. Quando analisadas em malha fina, elas revelam mais que à primeira vista. De fato, o aumento da participação da indústria no PIB é atenuado pelo efeito destrutivo que a nova industrialização provoca23. O aumento da produtividade do trabalho ditado pelos novos padrões de acumulação reduziu a participação relativa da população ocupada do Nordeste em relação ao Brasil em 5,5 pontos percentuais, ao longo do período24. Isto quer dizer que o aumento da produtividade se deu paralelamente ou movido por um poderoso movimento de concentração do capital, ao qual sucumbiram inúmeras indústrias regionais, nas quais a importância da força de trabalho na geração do produto era bem maior. E na conta do produto industrial o efeito líquido positivo teve que lutar contra o efeito destrutivo; de modo que, tanto em nível do produto quanto em nívelodo emprego, a aparência é de quase modificação, que consta, aliás, reiteradamente, dasnenhuma queixas regionais sobre o recente desenvolvimento. Mas é na análise em nível desglosado dos serviços que se observa, de forma peremptória, o caráter capitalista das novas atividades e da nova dinâmica econômica. De fato, a intermediação financeira, componente dos serviços, passou de 5% do PIB em 1970 para

22 Idem,tabela AI-lc 23 Ver Francisco de Oliveira. Elegia para uma re(li)gião.Rio de Janeiro, Paz e Terra, 3.ed., 1981. ....”, 24 De 33,0% em 1950 para 27,5 % em 1985. Ver “Estruturas de poder. op.cit., tabela AI:le. 96

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õ,6% em 19 8 32\ Ora, intermediação financeira nas contas nacionais é, sobretudo, uma medida do lucro das instituições linanceiras. Ou seja, o caráter capitalista das novas atividades tio Nordeste requer, como em qualquer economia, não apenas uma monetização da atividade econômica, mas é ainda forte mente exigente pontobancário. de vista da circulação de mercado rias, através do do crédito Adicione-se a isso o crescimento das rendas e salários e dos lucros industriais, e ter-se-á uma resposta parcial para um incremento da intermediação financeira, a qual se relaciona com o mercado de poupanças, um incipiente mercado de ca pitais e mesmo com a circulação dos recursos públicos do Fi no r, BNDES, Banco do Nordeste e estatais. É evidente também que o subperíodo 1980-83 é aquele no qual as taxas de juros começaram a crescer, sistematicamente, na economia brasilei ra, coincidindo com a chamada “crise das dívidas externa e interna” , ono que poderia contribuir para inflar a intermediação financeira PIB nordestino. Entretanto, os estudos nacionais a respeito anotaram que apenas em breves períodos conjun turais a taxa de juros foi real e positiva, tendo sido, na maior parte do longo período analisado, negativa. Essa anotação re força a possibilidade de que o crescimento da intermediação crescimento financeira no PIB nordestino reflita, de fato, real, devido às modificações da base produtiva e em geral ao caráter nssumidamente capitalista da nova dinâmica regional. O crescimento dos serviços poderia, de outro lado, ser atribuído ao crescimento do chamado setor informal da eco nomia. é, aliás, uma constante nasaparelhadas análises sobre o cres cimentoIsto do Nordeste, mesmo nas mais conceituai e estatisticamente. Impressionisticamente, a paisagem das principais cidades do Nordeste reforça essa interpretação: qualquer grande cidade do Nordeste parece-se, hoje, mais com um mercado persa do que com uma cidade ocidental. As es tatísticas daP NAD reforçam essa impressão: em 19 85, * do total ■’A Vide nota 7.

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de empregados, 60,1% eram trabalhadores sem carteira assi nada - o que é a melhor aproximação estatística do trabalho informal - e, destes, apenas 25% ganhavam acima de 1 salário mínimo20. Embora a paisagem das cidades-bazares seja confir mada do ponto de vista do emprego, pelas estatísticas da PNAD, o mesmo não ocorre no quadro das contas nacionais. Em outras palavras, o sistema de contas nacionais não mensura o setor informal, quase por definição, pois suas atividades são clandestinas, não do ponto de vista da visibilidade mas do ponto de vista jurídico-fiscal e econômico. No máximo, as estatísticas das contas nacionais conseguem registrar a produ ção de bens industrializados comercializados pelo setor infor mal, e assim mesmo de forma subestimada. Assim, pode-se afirmar que o crescimento econômico dos serviços, tal como aparece, captado e medido pelas contas nacionais, correspon de à realidade. As estruturas do poder econômico na transformação da base material

A integração do Nordeste à dinâmica global da economia brasileira produziu importantes deslocamentos na estrutura da propriedade burguesa. Esses deslocamentos são verso e re verso dos mecanismos da expansão lado, o fundo público atuando como argamassaregional: principalde dosum capitais; de outro, uma mobilidade de capitais permitida apenas pela alta concentração econômica em escala nacional, vale dizer, pelo poder oligopólico dos principais grupos. O processo pode ser sintetizado como o de uma des-regionalizaçao burguesa que se completa ou se perfaz por uma perequação da própria burguesia como classe social nacional, não apenas do ponto de vista de uma hegemonia abstrata, mas concretamente, isto é, seus capitais, seus interesses, seus investimentos, seus lucros 6 2

26 Vide “Estruturas de poder...”,op.cit., tabelas BII: lc e le. 98

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estão fincados hoje na equação regional, também como formas iliferenciadas de seu poder nacional. O primeiro e notável deslocamento se dá do ponto de vista da participação da agropecuária na formação do PIB regional. A queda da presença das atividades rurais quer dizerperda de poder econômico por parte dos grupos proprietários agrários; a participação de 13 % no PIB regional dá uma dimensão dessa perda27. Não se trata, no caso, de grupos burgueses, mas da velha forma latifúndio-minifúndío, tão característica do Nor deste, e sobretudo dos grandes proprietários rurais. Essa perda não é, totalmente, transformação, metamorfose, no rumo do perda mes empresariamento das atividades rurais. Ela é mais mo, no sentido já indicado também na Elegia de que a inte gração dos mercados nacionais iria solapar as velhas produções e suas estruturas correspondentes. Daí que na amostra utiliza da pelo estudo que fornece a base para este ensaio, apenas 175 empresas agropecuárias comparecem, respondendo por tãosomente 0,8% do faturamento total das 1.300 maiores em presas, em flagrante contradição com o peso da agropecuária na formação do PIB regional28. Eppur se muove. A soma dos saldos dos financiamentos pelo Sistema Nacional de Crédito Rural para o Nordeste mais as aplicações do Finor agropecuário já alcançava, em 1985, 52% do Produto Agropecuário regional, o que significa dizer que a reprodução do capital já se dá, crescentemente, pela via do capital-dinheiro, substituindo as formas clássicas da relação

latifúndio-minifúndio. Entretanto, percebe-se o peso ainda grandemente deter minante do setor agropecuário no Nordeste - se não do ponto de vista da antiga expressão do latifúndio, do poder econômico tio coronelato - mas de outro ângulo: na feitura do mercado de força de trabalho, na estrutura da distribuição de renda e, o que talvez seja ainda seu grande triunfo e ao mesmo tempo ' Idem, tabela AI: le. "NSobre agropecuária, videidem, tabelas BI: 4a a 4d. 99

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o handicap do Nordeste, na sociabilidade geral e nas estruturas mais localizadas do poder. Embora produzam apenas 13 % do PIB regional, as atividades agropecuárias ainda retêm 46% da população ocupada total em 198529. Essa contradição entre base material do poder econômico e controle de uma parcela expressiva da população ocupada e de seus dependentes pro duz, no Nordeste, alguns fenômenos que, à primeira vista, parecem paradoxais. O primeiro deles é uma certa imperceptibilídade das mudanças, permanecendo os proprietários ru rais, e sobretudo algumas de suas mais especiais categorias, como referências sociais e políticas de primeiro plano, quando economicamente já não o são. E o caso dos usineiros de Per nambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas, por exem plo. A última eleição para governador de Pernambuco - talvez o Estado arquetípico desse conflito - opôs Miguel Arraes a José Múcio, usineiro, filho de usineiros, neto de usineiros, bisneto de senhor-de-engenho, tataraneto de senhor-de-engenho, cujas raízes mergulham longe, no Pernambuco colonial do século XVI. De outro ângulo, a escassa renovação das bancadas de con gressistas do Nordeste pode ser explicada em parte por essa permanência deformada. Em eleições majoritárias, o velho curral não funciona, mas em eleições proporcionais é fato que as velhas oligarquias continuam nos produzindo deputados, os quais renovam-se longevamente mandatos, quase à seme lhança da açucarocracia pernambucana, de longe a mais longeva classe dominante do Brasil, que sem dúvida pode disputar esse duvidoso labéu em concurso mundial. E no setor industrial que os deslocamentos e a metamor fose se mostram mais importantes e decisivos. Como já foi salientado, o pequeno aumento da participação da indústria de transformação no PIB regional esconde, mais do que mos tra, as mudanças que se quer assinalar. Sem nenhuma dúvida, a indústria foi, na expansão recente do Nordeste, como de 2y Idem, tabela AI: Ig. 10 0

A METAMORFOSE DA ARRIBAÇÃ

resto no Brasil, a chave e o motor das maiores mudanças. Em primeiro lugar, deve-se anotar a mudança no peso dos gêneros industriais mais importantes. O par clássico da indústria nor destina, produtos alimentares mais indústria têxtil, foi substi tuído pelo par indústria química/produtos alimentares (nessa ordem de importância), e o último gênero querodizer tudo açúcar e.álcool30. Essa mudança desloca eixo sobre principal da economia, da produção de mercadorias componentes do custo imediato de reprodução da força de trabalho local para a produção de insumos intermediários (meios de produção), destinados ao mercado nacional e internacional. Mesmo o álcool deve ser entendido como insumo na ca deia puxada e comandada pela indústria automobilística. A indústria sucro-alcooleira pôde reciclar sua produção, em acentuada decadência nos anos 70, através do Programa Na cional do Álcool - Proálcool, cujo manejo consistiu na fixação cotas regionalmente de garantidas, independentemente da produtividade. Essa reciclagem, de um lado, criou um segmen to de alta produtividade - as novas refinarias de álcool mas de outro lado, pelo mecanismo da fixação de cotas regionais, permitiu que o novo segmento continuasse amarrado ao velho segmentoagrícola da produção da cana-de-açúcar, levando à diminuição da produtividade do complexo agro-sucro-alcooleiro, com a manutenção das velhas estruturas agrárias das usinas. Isto se reflete, por sua vez, na manutenção de uma alta porcentagem da população nas atividades agrícolas, baixa pro dutividade e baixos salários.

A importância indústria para dinâmica in os dustrial da região édaainda mais química acentuada seaconsiderarmos gêneros que dela dependem diretamente - como matérias plási icas, borracha, produtos farmacêuticos e veterinários -, que apresentaram taxas de crescimento reais superiores à média do Nordeste. Juntamente com o setor mineral, representam 47% do faturamento total da industria. De outro lado, os gêl(í Sobre composição industrial,idem vide, tabelas Aí: 2a a 2t. 101

OS DIREITOS DO ANTIVALOR

neros industriais mais ligados ao consumo (têxtil e vestuário, alimentação, incluindo bebidas, e outros - madeira, móveis) somam 37 % do total. Os outros 1 6% da indústria estão dis tribuídos em gêneros de grande importância estratégica em nível nacionát, como metalurgia e mecânica (juntos, iguais a 9% do total), e os segmentos mais modernos (material elétrico, de transporte, papel e diversos), que fazem 7% do total. O deslocamento do eixo da acumulação industrial revela, visto de outro ângulo, a ruptura da inércia ou do círculo vicioso da acumulação de capital nordestinaintramuros. De fato, ape sar da grita regional de que a industrialização não se está fa zendo para a produção de mercadorias de consumo popular, o que teoricamente quer dizer mercadorias ligadas ao custo imediato de reprodução da força de trabalho local, o grande problema da anterior inércia residia precisamente nesse cir cuito viciado e vícios. Pois sendo baixos os salários, a produção de mercadorias componentes do custo de reprodução esbar rava nestes, ou na falta de mercado ou de demanda dinâmica. Por outro lado, a produção de mercadorias componentes do custo direto e imediato da reprodução da força de trabalho dificilmente induz a melhorias da produtividade do trabalho. Do que, o deslocamento do eixo para a produção de insumos intermediários é quase uma condição para romper-se a inércia ou círculo vicioso da acumulação. De fato, é pelo aumento da produtividade do trabalho na produção de bens intermediários e de capital que, pela cadeia interindustrial, o aumento da produtividade atinge a produção de mercadorias ligadas ao custo direto e imediato da reprodução da força de trabalho. Do ponto de vista da estrutura de poder intraburguesa na região, esses deslocamentos constituem uma espécie de terre moto, abalando velhos e indisputados domínios. E certo que do par antigo produtos alimentares + têxtil, os produtos ali mentares formam um novo par, agora com a química, em po sição subordinada. Isto responde pelo fato de que grupos e categorias sociais, como os usineiros (produtos alimentares — açúcar e álcool) continuem, se não no primeiro degrau da estrutura de poder intraburguesa, pelo menos no segundo. 10 2

A METAMORFOSE DA ARRIBAÇÃ

Mas os grupos que assumem a química são uma inovação na referida estrutura. De qualquer modo, feitas as contas da perda tio poder econômico dos grupos agrários não-burgueses, do avanço da indústria e da intermediação financeira na formação tio PIB regional, a expansão econômica revela-se, nitidamente, como um avanço do poder econômico burguês. Esta afirmação deve ser atenuada cum grano salis, posto que são as empresas estatais os novos e principais atores. Mas do ponto de vista macroeconômico e macrossocial, a presença das estatais não nega a expansão burguesa, senão que é sua condição sine qua non. Trata-se de uma situação radicalmente distinta da dos primeiros anos da década de 60, que precedem o golpe de 1964, quando o definhamento do poder dos proprietários ru rais combinado com o definhamento da indústria regional pôs cm xeque o poder burguês na região, do que se salvaram pela adesão ao movimento militar na conjuntura. Vale a pena re lembrar que o definhamento referido foi uma espécie de mo vimento de pinças, que tinha uma ponta no solapamento econômico do Nordeste produzido pelo avanço capitalista no Sudeste e a outra nos fortes movimentos sociais e políticos contestadores. Puro renascimento à maneira da fênix mitoló gica ou o produto do novo amálgama em que os fundos pú blicos e as empresas estatais são a argamassa insubstituível? Para a mitologia burguesa, renascimento; o real, entretanto, vai muito mais para a segunda hipótese. No magma dos capitais, a estrutura da propriedade se di versifica notavelmente, se reportada aos padrões antigos da propriedade burguesa no Nordeste31. Já se salientou que a parcela detida pelas empresas estatais é de 44% do patrimônio total das 1.300 maiores empresas; a segunda grande parcela cabe, talvez surpreendentemente, aos capitais de srcem estri tamente regional: 40% do patrimônio líquido-total na indús tria (no conjunto das 1.300 maiores empresas da amostra); idem , vide u Sobre a participação das diversas srcens de capital, tabelas AI: da c AII: 3b.

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OS DIREITOS DO ANTIVALOR

entre esses vinte gêneros estão três dos cinco maiores gêneros industriais regionais - produtos alimentares, têxtil e metalur gia. Eles, os capitais regionais, se associam pouco, repre sentando apenas (outro 1,6 % recorte do patrimônio dassrcinal, empresas capital associado feito no total estudo des de tinado a verificar a formação de grupos econômicos e a asso ciação de capitais). Já os capitais privados de srcem nacional, do resto do Brasil, representam 1 0 % do patrimônio líquido total das 1. 300 maiores empresas, uma importância menor do que parece pela presença de grandes grupos privados nacionais no Nordeste. Mas, por outro lado, associam-se muito mais do que os capitais de srcem estritamente regional, pois 1associado. 1 3 dos nacionais estão presentes em empresas de capital Revela-se, por esse lado, que os capitais de srcem nacional estão mais aptos a participações também financeiras, enquanto seus congêneres regionais se caracterizam, sobretudo, pelo controle exclusivo das empresas. Quando se analisa a presença dos capitais na cionais em outros empreendimentos nos quais não são exclu sivos, então a presença deles se eleva para 2 1% do patrimônio total das 1.300 maiores empresas, pois estão, majoritária ou minoritariamente, em 57% dos capitais de empresas associa das. O porte financeiro, a posição noranking em seus setores, a familiaridade com os processos de mercado financeiro e de capitais, conferem-lhes maior viabilidade às estratégias, que, como salientado, não se restringem à presença em empresas sob seu absoluto controle. Aliás, retomando a questão das es tatais, vê-se que o capital privado nacional coloca-se, quando não em empresas de seu controle exclusivo, preferencialmente sob o guarda-chuva protetor das estatais: as estatais possuem 80% do patrimônio total das empresas onde capitalprivados privado nacional é minoritário. Resta salientar que os ocapitais nacionais predominam absolutamente na indústria mecânica e na de produtos de matéria plástica, de importância mediana na cadeia interindustrial da economia do Nordeste. A participação das empresas de capital estrangeiro é, sob os ângulos do patrimônio e do faturamento, mais do que mo104

A METAMORFOSE DA ARRIBAÇA

desta na expansão econômica recente. Elas controlam, quando exclusivas, 3,7% e, quando em associação, mais 2,3% do total das 1.3 00 maiores empresas da amostra. Os gêneros industriais que controlam são os de perfumaria e material elétrico, e nos outros setores em que participam associadamente não alcan çam nem 25% do patrimônio e do faturamento respectivos. Mas é possível que essas participações estejam subestimadas, embora não haja indícios de um grande desvio, e que uma via privilegiada para o capital estrangeiro seja a conhecida cessão de direitos, marcas e patentes. No trabalho que serve de base para este artigo não foi possível passar do nível de suspeita, uma vez que a própria indústria de capital nacional utiliza de maneira intensa e abrangente esses tipos de relações técnicocomerciais com empresas de capital estrangeiro, mas não há nada que possa confirmar essa sugestão. O que é novo na composição da estrutura de propriedade das empresas, sobretudo industriais, é a quebra do “exclusivo regional”, a marcapraticamente da antiga industrialização do Nor deste, istoque é, aera presença exclusiva de empresas de capital estritamente regional. A esse respeito, não fazia parte da história industrial regional a presença de empresas de ca pitais do resto do Brasil na propriedade industrial, salvo um ou outro caso muito raro. Quanto ao capital estrangeiro, este participou da estrutura econômica do Nordeste ao modo e à semelhança de sua participação na estrutura econômica nacio nal antes da industrialização, isto é, com empresas e proprie dades nos gêneros de energia elétrica, transportes urbanos (bondes) e ferroviários, telefonia e gás (neste caso, Pernambuco sendo o único, ao que consta); o setor bancário assinalou tam bém, antes da II Guerra Mundial, a presença de clássicos ban cos estrangeiros: ingleses, franco-italianos, holandeses, portugueses e norte-americanos. Depois da II Guerra, a intensa nacionalização dos bancos comerciais privados (nada a ver com estatização) reduziu a presença dos bancos estrangeiros no Nordeste, e mesmo os bancos de países aliados na II Guerra Mundial reduziram sua presença na região a quase nada. Somente agora, tal como

OS DIREITOS DO ANTIVALOR

acontece no Brasil como um todo, os bancos estrangeiros vol tam a crescer no Nordeste. Mesmo assim, em escala compa rativa à sua presença pré-guerra, suas atividades são modestas e a rigor são uma ex tensã o de suas atividades p rincipalm ente no Sudeste industrializado. Isto é fácil de compreender quando se tem em vista que os bancos estrangeiros opera vam, sobretudo, nos negócios de exportação e importação, numa época em que a contribuição do Nordeste às expor tações brasileiras era da ordem de 30%. Com a queda do índice de abertura da economia brasileira para o exterior, a política industrial de substituição de importações e os con troles cambiais, a área externa do Nordeste deixou de ser interessante para os bancos estrangeiros. composição da estrutura de capitais portanto, umaAnovidade: os capitais nacionais estão mostra, na atividade indus trial, o mesmo acontecendo com os capitais estrangeiros, atra vés de filiais ou de empresas novas que, às vezes, nada têm a ver com os perfis das matrizes. Essa nova matriz é, em si mesma, um resultado dos processos de integração, e demonstra, por seu lado, uma descentralização que é simultaneamente nacio nalização territorialmente concreta dos amplos interesses de classe. A formação de empresas associadas oferece, por outro lado, um novo ângulo para se pensar a gênese dos novos in teresses burgueses: trata-se de interesses articulados, que, não excluindo a competição, formam, entretanto, um novo e com pacto bloco de interesses privados. Velhas e novas classes

Do ponto de vista do domínio de classe, as velhas classes burguesas nordestinas, revitalizadas ao ponto de deterem 40% do patrimônio e faturamento das 1.300 maiores empresas, não são maisexclusivas: o "ex clusiv o regional” foi rompido, e mes mo aquela porcentagem não significa hegemonia, pois ela só se perfaz mediante o impulso dinâmico que é dado pelo vínculo com a economia nacional e, em casos mais concretos, pela 1 06

OS DIREITOS DO ANTIVALOR

As fortes mudanças ocorridas na base material seguem, ipsis litteris, as pautas do capitalismo contemporâneo, do pon to de vista da concentração de capitais. O que, já de si, reforça o poder deéclasse daspelos novaspróprios estruturas econômicas. Essa con centração pautada mecanismos financeiros que presidiram a acumulação: em primeiro lugar, as empresas estatais são, em si mesmas, poderosas expressões da concen tração de capitais. Em segundo lugar, o tipo de mecanismo Finor, uma dedução do imposto de renda, desde que a opção de investimento é das próprias empresas que praticam a de dução, é concentracionista: deduz mais quem paga mais im posto de renda. Em terceiro lugar, como os mecanismos têm vigência devido à dinâmica das regiões ricas, a expansão de empresas deeconômica fora do Nordeste faz-se,mais na região, sob os mesmos moldes concentrados e organizacionais das re giões líderes. Dessa forma, simultaneamente os maiores grupos têm mais acesso aos recursos do Finor e os menores grupos ou empresas desfrutam menos o benefício fiscal32. Não há per versidadeout , maquiavélica, ou discriminaçãoadhoc (embora a corrupção também funcione, não alterando, entretanto, sig nificativamente, os dados da questão); a perversidade é m, disso, os pequenos necessária ao sistema capitais estruturante têm uma dos enorme fundos defasagem públicos.técnica Além e financeira - referente à concentração e à centralização de capitais - com respeito aos grandes capitais. Isto, em presença de um sistema de custo de oportunidade igual a zero, leva necessariamente à escolha de métodos capital-intensivos, des locando ainda mais a capacidade de competição dos pequenos e médios capitais. Mas o sistema não tende, nunca, para uma concentração absoluta, uma espécie de tendência assintótica inexorável. Como acontece, âdemais, em todo o sistema capi talista, a própria concentração de capitais freqüentemente ba rateia o capital constante, dando lugar a toda uma trama onde têm lugar os pequenos e médios capitais. 32 Vide idem, tabelas AIÍ: 3h e 3í. 10 8

OS DIREITOS DO ANTIVALOR

da força de trabalho ou mais diretamente os salários, cuja efi cácia é quase nula. Estudos já realizados, entre os quais o de Tania Bacelar3j, haviam posto em séria dúvida o papel dos baixos salários como fator de atração. Na prática, as novas atividades do ciclo da recente expansão pagam baixos salários, o que só aumenta a lucratividade das empresas e deprime os salários, piorando a distribuição da renda, sem que tenha efeito na atração locacional. De fato, a variável sobredeterminante é o custo de oportunidade zero dos incentivos fiscais. Dentro desse marco, é a estratégia das empresas e dos grupos que decide pela localização. O fator mão-de-obra não foi determi nante mesmo em casos em que a existência de recursos naturais jogou um forte papel na decisão de empresas estatais, tais como o petróleo na Bahia, os depósitos de sal-gema em Alagoas e recursos minerais em Sergipe e no Maranhão, os recursos ferríferos de Carajás. A estratégia do nortbeastern tvay of life, muito sol, praias, suco de caju e mão-de-obra barata, não é nada sem a dedução fiscal e a ação das estatais. Mas constitui um agradável incentivo e um refrescante paraíso fiscal... Uma simulação realizada sobre a participação das dez maiores empresas no ICM total de cada Estado fornece outra indicação do grau de concentração e do poderio das novas atividades geradas pela expansão recente. Tomando-se o ICM realmente e calculando-se ICM que cada empre sa pagaria arrecadado (na base de uma alíquota osobre o faturamento), chega-se à conclusão de que as referidas dez maiores empresas de cada Estadoseriam responsáveis por 40% da arrecadação de ICM na Bahia, até o máximo de 86% no Piauí, sendo que, na média regional, as dez maiores empresas seriam responsá3j Araújo, Tania Bacelar de.“Crescimento industrial no Nordeste: Para quem e para quê” ,Revista Pernambucana de Desenvolvimento,Recife, 1981.Idem. La division Interregionale du travail au Brésil et Vexemple du Nord-Est, Paris, 1979. (Thèse le Doctorat en Economie Publique, Planification et do Amenagement du pour Territoire - Université de Paris). Idem. “Industrialização Nordeste - Intenções e resultados”,m: Seminário Internacional sobre Dis paridade Regional, Recife, 1981 - Anais, Recife, Fórum Nordeste/Sudeste, 1982, p. 292-301. 110

A MET AMOR FOSE DA ARRIBAÇA

veis por 46% do IC M regional36 . Trata-se de uma simulação, em vista de que não se obtiveram os dados reais do pagamento das empresas. Estes podem estar por cima (se a alíquota real for mais alta) ou por baixo (se a alíquota real for mais baixa), à parte os problemas de isenção e de evasão fiscal, também desconhecidos pela pesquisa base deste artigo. De qualquer modo, convém assinalar a extremada concentração fiscal que, se de um lado poderia facilitar a fiscalização por parte dos Estados, de outro revela que, de fato, os mesmos Estados são fortemente dependentes de um número muito pequeno de fortíssimos contribuintes, o que, em suma, desmistifica o ca ráter pretensamente “sufocante” do Estado sobre a iniciativa privada: de fato trata-se de Estados (e de Estado) prisioneiros. A questão regional hoje

A clássica “ questão nordestina” , que é nossa “ questão re gional” por excelência, constituiu-se a partir da segunda me tade do século XIX. E na confluência de processos que definiram as questões do mercado de trabalho e do Estado brasileiro, simultâneas e recíprocas - conforme as ricas indi cações de Luiz Felipe de Alencastro em sua tese de doutorado Le comm erce des vwa nts: Traité d ’esclave$ et “Pax Lusitan ” a . Uníversité de Paris dans TAtlantique Sud - XVle e XIXe siècles X, Paris, 1986, 3 vols. -, que o Nordeste se constitui simulta neamente como região e como região mais atrasada. Antes, ajudadas pela moderna historiografia, em que ressalta Evaldo Cabral de Mello em seu ONorte agrário e o império, as refe rências “regionais” se davam em relação a um vasto Norte e um vasto Sul, e as outras regiões (de hoje) simplesmente não faziam sentido. Além disso, as posições eram invertidas em relação ao sentido que têm hoje: era o vasto Norte (em que contava principalmente o Nordeste de hoje) a região rica, en quanto o vasto Sul era a região pobre. % (>Vide “Estruturas de poder...”, op.cit., tabela BI: e e f.

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Não interessa, aqui, reconstituir o largo processo em que as regiões se cristalizaram no Brasil, mediante o aguçamento das diferenças de níveis de desenvolvimento que, aliás, são os próprios fatores determinantes da regionalização. partir da criação da Sudene, a regionalização do Nordeste éAnão apenas reconhecida, mas, sobretudo, tornada a substância de uma es tratégia visando sua anulação. Não sem antes proceder-se, tal vez, à última am pliação da região, fincada desta vez no parâmetro do subdesenvolvimento em relação ao Sul/Sudeste: incorporam-se o Maranhão e a Bahia e, para efeitos fiscais, o Nordeste de Minas. A partir da efetiva entrada em funcionamento dos me canismos a égide da Sudene, e da im plantação fiscais-financeiros dos projetos das sob grandes empresas estatais, no período que vai de 1959 a 1985, e, para efeitos deste artigo, de 1970 a 1985, os programas de desenvolvimento regional baseados nos mecanismos e nos projetos já assinalados an teriormente estão produzindo resultados que redefinem a “questão nordestina” . Em primeiro lugar, pela força dos processos analisados, e sobretudo pela sua ligação aos processos de acumulação de capital em do escala nacional, o Nordeste à do resto Brasil. A tal ponto que, a integrou rigor, nãosua se economia pode falar em “economia do Nordeste”, mas numa divisão regional do trabalho no Brasil com atividades regionalmente localizadas. As taxas de desenvolvimento nordestino não dependem da taxa de acumulação (ou de poupança e investimento) do Nor deste; se assim fosse, o ritmo e os níveis da expansão econômica alcançados teriam sido inviáveis. O rompimento da inércia e do ensimesmamento regional já foram suficientemente descri tos e analisados. constituição doso novos interesses, a parti cipação de capitaisA de fora da área, deslocamento radical de ancilares interesses fincados no complexo latifúndio-minifúndio, são parte e sujeitos desses processos. Tudo isso se resume no resultado de que a política de de senvolvimento regional levou à desregionalização da econo 11 2

OS DIREITOS DO ANTIVALOR

e pelos estudos já realizados - seria um equívoco de fundas conseqüências para as classes trabalhadoras regionais. Esse efeito centrífugo manifesta-se, também, no nível da homogeneidade regional, das semelhanças entre os Estados da região. Tal homogeneidade sempre foi muito relativa, mas de qualquer modo, a inércia e o “círculo vicioso e viciado” em que se movia a economia regionalvis-à-vis outras regiões tor nava os Estados mais semelhantes entre si. Os resultados da expansão recente não foram capazes, ainda, de preencher as sensíveis diferenças, do ponto de vista dos principais indica dores econômicos, entre os Estados da região e os outros, mais ricos. Entretanto, modificações de ritmo de desenvolvimento, localizações estratégicas de empresas estatais, capacidade de industriaisburguesias algumas aliando-semetamorfosearem-se a outros poderosos grupos em empreendedores estatais e bur gueses extra-regionais, indicam um movimento centrífugo no sentido de desfazer a relativa homogeneidade e a unanimidade em que se reconheciam “ nordestinos” . Tal é o caso mais flagrante da Bahia, onde antigos e pode rosos grupos financeiros deram o passo no sentido de se trans formarem em empresários, como o grupo do antigo Banco da Bahia (os Mariani Bittencourt) e o grupo do Banco Econômico (Calmon de Sá). Ao lado deles e capitaneada por eles, uma nova safra de empresários, articulados basicamente no Pólo Petroquímico de Camaçari, joga sua estratégia com o olho voltado para a Petroquisa, enlaçando-se através da holding Norquisa, por exemplo, com os mais variados capitais, inclu sive estrangeiros, e projetando-se para além de seus ramos de negócios tradicionais. Daí surgiram grupos co mo o Odebrecht - hoje entre os maiores da construção civil pesada em termos nacionais-, com estratégia de dominação para além da simples extração do excedente: este grupo possui uma fundação, que financia estudos, monografias sobre o próprio Nordeste, dis tribui prêmios culturais, entra em relação com os grupos ne gros; o grupo Paes Mendonça, nos supermercados, é também um grupo baiano de projeção nacional. Em suma, estes grupos destacam-se nitidamente do empresariado de outros Estados, 114

A METAMORFOSE DA ARRIBAÇA

pelas suas articulações nacionais e concepções do papel de sua classe social. O Ceará também apresenta modificações que, paradoxal mente no Estado talvez mais simbolicamente nordestino, afasta-se, sob certos aspectos, do estigma; é certo que os indicadores econômicos cearenses continuam entre os mais baixos. Mas lideranças empresariais do tipo Jereissatti conse guiram fazer a ponte com a política, derrotaram os velhos “ coronéis” , estabeleceram relações com a Universidade - raríssimo comportamento entre empresários e políticos do Nor deste - e, pelos empreendimentos que conduzem, colocam-se em segmentos de atividades dinâmicas em escala nacional. Os exemplos de grupos empresariais em vigorosa meta morfose quase se esgotam nesses dois Estados. Decerto grupos empresariais do Nordeste estão entre os maiores de seus seto res, nacionalmente falando. Caso do grupo Pernambucanas, do grupo Othon no ramo hoteleiro, do grupo João Santos no cimento, para citar uns poucos mais. Entretanto, estes grupos não se destacam armando articulações mais amplas no cenário nacional. Aqueles capitais estritamente regionais que possuem 40% do patrimônio das maiores empresas do Nordeste in cluem os grupos e exemplos já citados, e mais uma miríade de outras empresas que não têm expressão nacional. Em outros Estados, como Maranhão, Sergipe, Alagoas e secundariamente Rio Grande do Norte, a presença de fortes empreendimentos de empresas estatais responde pela nova di nâmica econômica. O efeito centrífugo em oposição à homo geneidade dos regional manifesta-se aí das no sentido forte com gravitação interesses em torno estatais,da fazendo que reivindicações “nordestinas” passem, no limite, a segundo plano se colidirem com as articulações e demandas junto às estatais. Mas também revelam a fraqueza desses Estados, cujas burguesias não têm o porte sequer para aliarem-se com as empresas estatais e seus sócios nacionais e estrangeiros. Há um movimento em sentido contrário ao da desregionalização da economia, um movimento centrípeto que é, dialeticamente, o fautor da desregionalização. Trata-se do “ capital 115

OS DIREITOS DO ANTIVALOR

financeiro em geral”, nas formadas isenções fiscais, dos subsí dios e do papel das estatais, que teoricamente exercem uma função de antivalor para pôr em marcha o processo de valo rização. Este movimento reifíca constantemente a hoje ficcio nal “ economia do Nord este” ; é pela reificação das diferenças de desenvolvimento, pelo conceito de região mais atrasada em que, subliminarmente às vezes e explicitamente na maior parte dos casos, o Nordeste foi utilizado como ameaça de con vulsão social e, no limite, de revolução camponesa operária de sentido socialista de “ prioridade” nacional, que os me canismos fiscais-financeiros foram erigidos, mantidos, refor çados e ampliados. Esse movimento centrípeto reconstrói recorrentemente a homogeneidade subdesenvolvida do Nor deste, obscurece as diferenças entre ose Estados, os ritmos de expansão, as clivagens de interesses de classes, buscando manter os referidos mecanismos fiscais-financeiros. E certo que os empreendimentos estatais escapam, pela fonte de seus recursos e pela amplitude de suas articulações, a essas deter minações, mas no interior das alianças ou do magma argamassado pelos empreendimentos estatais, os mecanismos fiscais-financeiros continuam a valer para os processos parti culares de empresas e grupos. No interior e como resultado desses processos, a “ questão nordestina” se recoloca e se refaz, em primeiro lugar, do ponto de vista daquela reificação. E especificamente, por algumas peculiaridades a mais. A primei ra delas é que persiste, como marca registrada do Nordeste, uma questão agrária irresoluta. Os dados já apresentados mos tram uma acentuada perda de poder econômico dos grupos latifundiários, na queda da participação das atividades agro pecuárias na formação do produto regional. Mas uma grande parcela da população e da força de trabalho continua amarrada às atividades rurais, o que distingue o Nordeste, notavelmente, de outras regiões brasileiras. Em segundo lugar, o Nordeste se diferencia também sen sivelmente das outras regiões pelas características de seu mer cado de força de trabalho, composição da população ocupada, níveis de renda e de salários, existência de um marcante exér 1 16

A METAMORFOSE DA ARRIBAÇA

cito industrial de reserva ou setor informal. Os dados a esse respeito são dramáticos, e não constituem herança do passado, senão que são produto da dinâmica da expansão recente. Como outro resultado, o Nordeste deve se caracterizar - em bora os dados da pesquisa sejam insuficientes para isso - por uma concentração renda ainda mais desigual a bra sileira, o que não édasurpreendente, se se levam do os que dados em consideração. Do ponto de vista do mercado de trabalho, a expansão recente também integrou o Nordeste ao padrão dominante no Centro-Sul, pois os empregados já são (1985) mais de metade da população ocupada, enquanto os trabalhadores por conta própria perfazem apenas um terço, invertendo as proporções prevalecentes no início dos anos 7 038 *. Mas os empregados urbanos saltaram apenas de 65% em 19 70 para 69% em 19853í> (apesar de a população ocupada de base urbana como um todo ter crescido de relação 37% para 53% do total), dos devido, provavelmen te, à elevada capital-trabalho capitais altamente concentrados que passaram a operar na região, implicando um pequeno aumento líquido do emprego; e, em segundo lugar e principalmente, devido à escassa mudança nas formas técnicas da produção no campo, apesar da expansão do assalariamento na agricultura. A estrutura de salários reflete esses processos: em 19 85, 85% da média dos empregados ganhavam menos do que três salários mínimos e 52 %, até um salário mínimo. Parece haver uma acentuada relação entre esses níveis salariais e a formalização das relações de trabalho, pois os trabalhadores sem carteira assinada representavam 60% do total de em pregados em 1985, e nestes apenas 24% ganhavam acima de um salário mínimo40.

,if Vide “Estruturas de poder...”, op.cit ., tabela BII: la. Idem, tabela BII: lb. Idem , tabelas VII: le e If. 117

OS DIREITOS DO ANTIVALOR

O impacto das 1.300 maiores empresas sobre o mercado de trabalho é desproporcional à sua importância na formação do produto regional: elas eram responsáveis por 2 1% do PIB regional em 1985, e empregavam apenas 7% da população ocupada41. Desde os anos 20 a migração do Nordeste para o Sudeste foi, talvez, a marca principal da “questão nordestina”, ao lado da questão agrária regional. A participação do et pour cause Nordeste na divisão regional do trabalho no Brasil poderia ser resumida em fornecimento de mão-de-obra e de algumas ma térias-primas industriais importantes, tais como algodão e si sal; além disso, a região produzia um excedente de divisas cujo peso na balança comercial e no balanço de pagamentos brasi leiro era importante, provavelmente 1/3 do total. Ao longo dos processos descritos neste artigo, e até antes, como resul tado da integração dos mercados nacionais - ainda não da população nacional -, o papel de fornecedo ra de matérias-pri mas industriais enfraqueceu-se sensivelmente; a forte expan são das exportações brasileiras fora do Nordeste relegou a exportação nordestina para quotas não muito relevantes (ape nas cacau, conjunturalmente açúcar e melaço, e outros itens de menor importância na pauta brasileira). Uma importante redivisão regional de trabalho gestou-se no Brasil. De forma que o Nordeste ampliou consideravelmente a pauta de suas trocas comerciais com o resto do Brasil, e aparece hoje na divisão regional do trabalho industrial como importante produtor de insumos e bens inter mediários. Esta é sua marca principal, hoje, do ponto de vista da produção. A antiga autarquia regional de bens de consumo, sobretudo alimen tares, foi rompida, quase em todos os itens; principalmente no capítulo relativo a bens de consumo industrializados, sua balança comercial é provavelmente deficitária (devido, en tre outras coisas, ao melhoramento de rendas e salários das classes médias). 41 Idem, tabelas do Anexo 3 e BII: lg . 11 8

A METAMORFOSE DA ARRIBAÇA

No capítulo da migração e da força de trabalho, embora continue a haver uma forte migração, esta, calculada em relação à população residente, já não atinge mais as propor ções de décadas como as de 50 e 60; isto é, o mais importante mercado de força de trabalho para a população regional é, dinamicamente, a própria região. A migração que continua a haver provavelmente tem papel marginal na determinação do nível de salários reais nas regiões, Estados e cidades onde ela aporta. Estes níveis agora têm muito mais a ver com a organização das classes trabalhadoras, de um lado, e, de outro, com a própria produção de populações excedentes nas regiões mais ricas. Basta ver que na última década censitária - entre 19 70 e 19B 0 - o Estado que mais perdeu população absoluta e relativamente foi o Paraná, devido à forte mudança técnica e nas relações de produção na rica agricultura paranaense. O que resta é uma mudança importante, do ponto de vista da clássica caracterização da “ questão nordestina” : a arr ibaç ã já não migra mais, e se continu a a fazê -lo - e continua -, sua fecundidade nos lugares onde arriba é decíinan te, em todos os termos. A moral é qu e a “ questão nordestina” que resta, e ainda é grave, dramática e imen sa, exatamente porque ela é dinâmica, deve ser resolvida no próprio Nordeste. A antiga válvula de escape já não funciona. O próprio movimento de tentativa de anulação das disparidades regionais no Brasil, não com pleto, ainda largamentee insuficiente, as cartas das velhas re ferências das velhas baralhou estratégias. Para todos os lados, para todas as classes. A novidade agora é que a “questão nordestina” é a de níveis de miséria produzidos pela pró pria expansão econômica. Bela e feia novidade. A rápida expansão econômica destruiu todos os mitos e todas as saídas fáceis, muitas das quais repousaram, na maior parte dos casos, sobre a própria tragédia dos que migravam, ao custo de poderosos processos de desenraizamento, perdas pessoais, angústia da grande cidade, discriminação antibaiana, guetos nordestinos. Um rico processo social deu a volta por 119

OS DIREITOS DO ANTIVALOR

cima, de tal modo que dos guetos nordestinos do ABC paulista saiu o mais importante movimento sindical e político do Brasil nos últimos quarenta anos. O réquiem da velha questão nordestina paraotodos, Sem forçar ostocou termos, novo éexecutantes, a “ questão maestro, brasileira”ouvintes. .

120

Crise e concentração Quem é quem na indústria paulista

Apresentação

Este artigo apresenta alguns dos principais resultados e conclusões a que se chegou na linha de pesquisa sobre o poder econômico que o Cebrap realiza desde 1987. Em particular, este texto procura que tornar públicas de algumas idéias e em descobertas empíricas aparecem formadas minuciosa um relatório de pesquisa elaborado pela equipe1. Além de bastante sintético, o artigo tenta também aliviar o leitor, sempre que possível, dos transtornos comuns à maioria dos relatórios, em geral maçantes pelo jargão característico e pela profusão de tabelas e dados. *1 * Publicado em co-autoria com Alexandre Comin, Flávio Mesquita Saraiva e Hélio Francisco Corrêa Lino,Novos em Estudos Cebrap,n. 39, julho de 1994, p. 149-171. 1Cebrap. Estruturas de poder econômico na indústria de São Paido (Relatório Final de Pesquisa).São Paulo, Cebrap, 1992. A equipe de pesquisa é coorde nada por Francisco de Oliveira; os pesquisadores responsáveis pela organi zação e análise dos dados, em diversos momentos do tempo, foram Alexandre Comin, Flávio M. Saraiva, Hélio Francisco Corrêa Lino e Carlos Alberto Bello e Silva; colaboraram decisivamente os estagiários Rogério C. de Souza, José Celso Cardoso Jr., Osvaldo Godoi, Marcos Q. Barreto e Lilian M. Lambert. Os autores agradecem também aos vários pesquisadores do Cebrap que participaram das discussões deste texto: Adalberto M. Cardoso, Álvaro A. Comin, Elson L. S. Pires e Eugênio Diniz. Como de praxe, os autores assumem toda a responsabilidade pelo resultado final. 121

OS DIREITOS DO ANTIVALOR

O curso presente dos estudos dessa equipe do Cebrap pode ser resumido no esforço de fornecer à análise econômica um conjunto de instrumentos teóricos e empíricos que, de um modo geral, passam ao largo dos estudos que habitualmente se fazem. E comum dividir-se a economia em dois âmbitos; um agregado, que trata de fenômenos globais, tais como cres cimento, inflação e desequilíbrios no balanço de pagamentos; outro, microscópico, que enfoca os agentes individuais, famí lias e empresas. A lacuna entre os dois níveis constitui aquilo que poderiamos chamar de mesoeconomia: um espaço con ceituai no qual os agentes econômicos - em particular as em presas, públicas e privadas, bem como os grupos econômicos que as controlam - aparecem propriamente como sujeitos do processo econômico, posto que não estão nem subsumidos ao movimento macro - mensurado sempre a partir de agregados e médias globais - nem tampouco diluídos na abordagem in dividualista, maximizadora, simplificadora, da análise microeconômica. A tarefa posta aqui portanto é a de estabelecer uma topo logia empresarial, mapear os altos e baixos de uma configura ção complexa de entidades que comumente aparecem de modo plano, isom órfico, sob a denominação de “ setor privad o” . Tra ta-se de estabelecer clivagens, entre grandes e pequenos, na cionais e estrangeiros, dinâmicos e tradicionais, entre outras. Em alguma medida, uma parte da microeconomia, sob a denominação de Organização Industrial (OI), e outras disci plinas correlatas vêm há décadas buscando captar e explicar estas distinções dentro do setor empresarial. Boa parte do tra balho que aqui se vai expor tem aí suas srcens; em particular, as análises de concentração setorial da produção não são mais do que velhas análises baseadas em novas informações, abaixo explicitadas. Mas a pretensão deste trabalho vai além: ao con trário dos estudos convencionais de OI, não tomamos a em presa como objeto de análise por excelência. Aqui, ela aparece subordinada a condicionantes mais amplos: de um lado, as clivagens acima referidas encaixam cada caso individual em tipologias várias que - é a hipótese - ajudam a explicar o com 1 22

CRISE E CONCENTRAÇÃO

A concentração em processo

Uma primeira análise, agregada, da concentração do poder econômico foi realizada estabelecendo-se uma divagem, pelo critério de tamanho do patrimônio líquido, entre as 10, 100 e 500 maiores empresas da amostra, que, apenas para dar uma noção de grandeza, tinham em média cerca de 17 mil, 6-7 mil e mil empregados, respectivamente. As indicações, mostradas nosgráficos 1 (10 maiores), 2 (100 maiores) 3e (500 maiores), são de que existe uma elevada concentração econômica na indústria paulista6. No tocante ao patrimônio líquido e ao faturamento, a ampliação desta concentração não foi muito expressiva, mantendo-se de forma estável a “correlação de forças” entre os gigantes empresariais. No que diz respeito ao lucro líquido, ao contrário, verificou-se uma substancial concentração da apropriação do excedente, sobretudo no estrato das 100 maiores empresas, que, partindo de um pa tamar de em pouco mais 40% dovalor total de da amostra chegam 1989 ao de fabuloso 60% do em total1980, dos lucros, muito acima de sua contribuição na produção, men surada por sua participação no faturamento (em torno de 40%). Seguramente foi este estrato que conseguiu melhor se “ajustar” às turbulentas oscilações da economia brasileira do período . Para estas maiores empresas, a expressã o “ dé cada perdida” deve soar estranha.

O que estes gráficos não mostram é a importância econômica desses sub conjuntos da amostra. Apenas para se ter uma idéia da importância dessas empresas no conjunto da economia paulista basta dizer que as 500 maiores empresas, no ano de 19 85, detinham 73 ,5 7% do faturamento total da amos tra {RFP 1 17 ) que, por sua vez, representava 47,6 % do VBP do Estad o (RFP 1 13 ) . Fazendo o cálculo, tem-s e que estas 50 0 empresas detinham pouco mais de 35 % de todas as vendas da indústria de São Paulo. Dado que esta cifra representava neste ano 43,92% do total da indústria brasileira, tem-se que as 50 0 maiores foram responsáveis po r 15 ,4 % de toda a produção in dustrial nacional, ou quase um sexto do total. 127

OS DIREITOS DO ANTIVALOR

Gráfico 1

Dez maiores empresas como proporção total da amostra (%)

Gráfico 2

Cem maiores empresas como proporção total da amostra (%)

128

OS DIREITOS DO ANTIVALOR

Ao examinar mais de perto o subconjunto das 100 grandes empresas, podemos constatar que elas operam em alguns dos setores mais oligopolizados da economia brasileira. Em pri meiro lugar, vem o setor de química e petroquímica, com 15 empresas, em seguida papel e papelão, com 7, construção civil (pesada), metalurgia dos não-ferrosos (alumínio, níquel etc.) e produtos alimentares diversos com 5 empresas cada. Ade mais, podemos encontrar nesta lista (RFP 114 ) as montadoras de automóveis, cervejarias, pneumáticos e outros repre sentantes da grande indústria brasileira em setores como ele trodomésticos, bens de capital e bens intermediários para construção civil e indústria. Este quadro se completa com a presença de grandes estatais nos serviços industriais de telefonia, eletricidade, básico e transportes. Aparecem também algumas saneamento empresas es tatais ligadas diretamente à indústria, como Ultrafértil, Mafersa (privatizadas no governo Collor) e Embraer. Esta seção das 100 maiores da pirâmide industrial revela muito a respeito da hierarquia dos capitais na indústria brasi leira. Nela encontramos 43 empresas nacionais privadas (33 de São Paulo e 10 de outros Estados da federação), 39 empresas multinacionais e 15 empresas públicas* 7. Por fim, existem 4 empresas que designamos como sendo de controle comparti lhado, isto é, cujo controle acionário é exercido por dois ou mais sócios (sempre de elevada estatura econômica) de forma conjunta. Estas empresas não são nem públicas nem privadas, nacionais ou estrangeiras, mas resultam da confluência destas tríplice alianças. forças naquilo que Peter Evans chamou de Mais do que isto, é possível constatar uma certa divisão de funções no interior da estrutura produtiva. As empresas estatais certamente predominam nos setores de serviços pú 7 Sobre estas convém frisar que ocupam o topo da pirâmide: das 10 maiores, 7 são públicas, em geral ligadas aos serviços públicos, K Evans, Peter.A tríplice aliança (As multinacionais, as estatais e o capital nacional no desenvolvimento dependente brasileiro). 2a ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982. 13 0

OS DIREITOS DO ANTIVALOR

alianças mento da estrutura industrial mediante a formação de nos setores de insumos intermediários através da associação entre capitais nacionais, públicos e privados, e estrangeiros.

Esta topografia complexa, que mapeia altitude do econômico concentrado juntamente com asa latitudes dapoder estru tura industrial, se completa com uma análise mais detida no plano setorial. Para não sobrecarregar o leitor com cifras e nomes, nos limitaremos a alguns setores-chave, sem reproduzir a análise mais detalhada já realizada (RFP 72) para os 56 setores da Quem é quem. Seguindo a tradição dos estudos de OI, calculamos a evo lução ao longo da década de 1980 da participação no total do faturamento dos 4mostra maiores integrantes cada um destes se tores. Este índice que não só a de concentração nos mer cados é espantosamente alta, mas que ela cresce vertigino samente ao longo do período. Apenas para se ter uma idéia, em 19 80, 40 setores apre sentavam mais de 50% de seu faturamento concentrado em suas quatro maiores empresas (RFP 118 / 119 ). Esses dados tor nam-se mais expressivos quando se verifica que, para esse mes mo ano, em 19 setores as 4 maiores empresas abocanhavam mais de 80% do faturamento e, em 15, mais de 90%! Em 1989, esses números aumentam sensivelmente em relação a 19 80, com 44 setores acima dos 50 % , 24 acima dos 80% e 18 acima dos 90%. Nos estratos superiores do tecido industrial, isto é, nos oligopólios concentrados de bens de consumo durável, bens de capital e bens intermediários, a imagem de uma economia de muito poucos concorrentes aparece nitidamente. Em certos segmentos, a ampliação da concentração é insignificante, pos to que o ponto de partida já estava, em 1980, colocado em níveis extremamente elevados. Os melhores exemplos provêm do segmento de material de transporte (veículos automotores, construção naval, material ferroviário e aviões), ápice da evo lução do complexo metalmecânico, todos oscilando entre 90% 13 2

CRISE E CONCENTRAÇÃO

e 100% de concentração nos 4 maiores produtores em cada setor (quando não há menos de 4 participantes)9. No segmento de bens intermediários, o quadro difere ape nas em grau. Patamares superiores ou próximos a 70% de concentração nos 4 maiores (borracha, cal e cimento, não-ferse rosos), mantém ou mesmo ou até sofre 80%, alguma são comuns. ampliação. Nestes, ou bem o nível A estes se poderiam agregar os “ monopólios institucio nais” representados pelas empresas estatais em setores indus triais básicos: siderurgia (concentração em torno de 65% , com tendência de alta), refino de petróleo (80%, em alta) e gás natural (cerca de 95%, estável). Juntamente com os “mono pólios naturais”, nos serviços públicos, todos com concentra ção próxima de 100%, compõem o segmento público do grande capital oligopolizado da indústria brasileira. Os dados destes setores refletem, para o conjunto, uma relativa estabilidade da concentração. No entanto, outros oli gopólios mostram que houve, setorialmente, uma ampliação considerável do poder de poucas empresas sobre importantes mercados. Talvez o exemplo mais impressionante seja do setor de produtos farmacêuticos, medicinais e veterinários, onde em 1980 as 4 maiores empresas detiveram 32,36% do faturamen to e, em 1989, aumentaram esta participação para 63,53%. A especificidade brasileira, de um desenvolvimento fecha do, dominado por um punhado de grandes conglomerados, se evidencia também em outros setores, fora do circuito pri vilegiado dos oligopólios diferenciados, voltados para o con sumo durável, ou dos oligopólios homogêneos, de bens intermediários, nos quais a concentração crescente é uma regra geral. Mesmo em setores tradicionais, ligados à agricultura, não necessariamente intensivos em tecnologia e/ou escala, a

9Dentro do segmento de material de transporte, somente no setor de tratores e implementos agrícolas, mais diversificado e com maior número de parti cipantes, é que o nível da concentração dos 4 maiores está abaixo dos 90%; foi de 64% em 1980 c de79% em 1989. 133

OS DIREITOS DO ANTIVALOR

elevada oligopolização aparece como um aspecto distintivo do hipercentraíizado capitalismo brasileiro. Grandes redes empresariais, sob o controle centralizado de gru pos econômicos solidamente estruturados do ponto de vista finan ceiro, fazem do agribusiness brasileiro mais um espaço privilegiado, concentrado, crescentemente excludente, big dobusiness10. Isto é particularmente evidente em ramos do complexo agroindustríal que foram moldados pelas diversas políticas, agrícolas e industriais, do regime ditatorial, como açúcar e álcool (leia-se Proálcool) e óleos vegetais (leia-se soja), onde a concentração dos 4 maiores, em termos médios, passa de um patamar de 50% no início da década de 1980 para cerca de 70% no final. Em outros ramos, cuja base agrícola é bastante antiga e não foi fortemente afetada pelas políticas governa mentais dos anos 70 e 80, como café, moinhos e carnes frigorificadas e industrializadas, as cifras não destoam do movimento geral: elas apontam para um crescimento contínuo (exceto moinhos após 1985) da concentração, que chega a patamares próximos a 70% e 80%. Devido a certas limitações intrínsecas do material empírico utilizado até agora (basicamente a restrição em termos espaciais e o elevado grau de agregação setorial), seria conveniente mostrar algumas poucas informações adicionais com o intuito de dimen sionar melhor o elevado grau de concentração da indústria bra sileira. São informações que não fazem parte da pesquisa e serão aqui rapidamente apresentadas apenas como um complemento, sem a menor pretensão de estender o escopo srcinal do projeto. Em primeiro lugar, procura-se comparar o grau de con centração industrial do Brasil com o de outros países, em par ticular, EUA, ex-Alemanha Ocidental e França. Para isto foi

10 A respeito do desenvolvimento rápido deste complexo agroindustríal sob o comando financeiro do Estado brasileiro no tempo da ditadura militar, ver Comin, Alexandre & Muíler, Geraldo.Crédito, modernização e atraso (O crédito rural na modernização e no atraso da agricultura brasileira no período 1965-84). Cadernos Cebrap, Nova Série. São Paulo: Cebrap, 1985. 134

CRISE E CONCENTRAÇÃO

montado o gráfico 4, com base nos dados de Holanda Filho11, que mostra a concentração das 4 maioresempresas em diversos gêneros industriais nestes 4 países. A primeira constatação que salta aos olhos é a razoável similaridade nos níveis de concentração, para os diversos paí ses, em cada gênero. Isto sugere que cada um destes sofre processos de concentração que são específicos às condições tecnológicas e comerciais do setor. Deste modo, em pratica mente todos os países, são os mesmos gêneros que aparecem como os mais concentrados (material elétrico, material de transporte, borracha e fumo) e menos oligopolizados (madeira e mobiliário, seguidos de couros e peles, têxtil e vestuário). A segunda evidência que se pode extrair deste gráfico, malgrado suas deficiências12, é que, numa comparação com países mais desenvolvidos, a indústria brasileira é significati vamente mais concentrada. Apenas em um terço dos gêneros (mecânica, mobiliário, couros e peles, têxtil e fumo) o Brasil não figura como o mais concentrado; nestes 5 casos, é o se gundo colocado. Em outros gêneros (borracha, alimentos, be bidas e editorial e gráfica) apresenta níveis de concentração bastante superiores aos dos demais países. O segundo conjunto de informações, que também não pos suem um caráter sistemático, apenas ilustrativo, diz respeito à concentração de mercado em alguns produtos básicos de tabela 2, estes dados re consumo no Brasil. Apresentados na presentam o mais baixo grau possível de agregação e fornecem uma pequena noção dos níveis extremos de oligopolização a que chegou a economia brasileira.

11 Holanda Filho, Sérgio Buarque de. Estrutura industrial no Brasil: concentração e diversificação. Rio de Janeiro, IPEA/INPES, 1983, p. 100. 12 Em termos de tempo; abrangência do tecido industrial; de diversidade do grau de desenvolvimento econômico e de grau de abertura comercial dos diversos países; nao-homogeneidade da variável utilizada para cada país. Dados mais recentes para os EUA (não diretamente comparáveis aos do gráfico 4) podem ser encontrados em Brozen, Yale. Concentration, mergers and public policy. Nova Iorque: MacMiílan Publishing Inc., 1982. 135

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OS DIREITOS DO ANTIVALOR

Tabela 1 Participação dos principais grupos na produção de bens de consu mo selecionados, Brasil, 1993, (%) n. de grupos 1 2 2 3 2

% de vendas 74 68 51 88 92

caldo de galinha refrigerante

2

92

3

78

cerveja creme dental

3 3

94 100

margarina sabonete cigarros leite (só grande S. Paulo)

4 1 2 3

80 62 98 85

óleo de soja sorvete

3 2

48 96

produto sabão empó presunto salame leite em pó detergentes

FONTE:Folha de S. Paulo,

grupos (marcas/empresas) Gessy Lever Sadia, Perdigão Nestlé, Itambé, Fleischman Royal Cragnotti & Partners (Bombril e Orniex), Gessy Lever Nestlé (Maggi), Refinações de Milho Brasil (Knorr) Brahma, Antárctica, Coca Brahma, Antárctica, Coca (Kaiser) Anakol (Kolynos) Colgate-Palmolive, Gessy Lever (Signal e Aim) Gessy Lever, Sanbra, Sadia, Cevai Gessy Lever Souza Cruz, Phillip Morris Parmalat, Mansur (Leco, Vigor, Flor da Nata), Paulista Cevai (Soya), Cargill (Liza), Sadia Phillip Morris (Kibon), Nestlé (Gelato, Yopa)

20.3.94, p. 1-8, Veja, e 9.3.94, p. 30-7.

Tais recorrências de nomes, que poderiam se multiplicar às dezenas num estudo mais abrangente da indústria brasileira, apontam para a forma grupo como um fenômeno específico, não redutível às dimensões convencionais da microeconomia, tais como mercado, produto, firma. Somente sob este ângulo novo é que a conformação do poder econômico pode ser cap tada em toda sua extensão. Voltaremos a este ponto na seção “ OsPor 50 ora, maiores grupos econômicos” . gostaríamos apenas de frisar o seguinte: a intensa concentração econômica verificada no âmbito das variáveis 138

CRISE E CONCENTRAÇÃO

resultado (patrimônio, lucros e faturamento) acima evidenciada, ainda que esteja condicionada por múltiplas determinações, encontra na esfera da produção uma sólida base explicativa14. Em outras palavras, o poder de mercado é a base sobre a qual se ergue a estrutura do poder econômico. Como conclusão geral do que foi examinado até agora sobre a economia paulista, podemos afirmar que se trata de uma estrutura altamente concentrada e em forte processo de concentração, devido a uma crise que, de tão longa e poderosa, deixou de ser conjuntural para ter efeitos estruturais de longo prazo. Se de um lado a crise restringe o investimento produtivo e engessa os grandes contornos da estrutura industrial, de outro lado ela também é responsável por um reforço do poder econômico do grande capital, cujos detalhes ainda podemos examinar sob outros ângulos. As distintas reações à crise segundo a srcem de capital Vejamos mais de perto quem são esses sócios bilionários do poder. Se, de um lado, eles são solidários financeira e politicamente no intento de preservar sua posição privilegiada no organograma econômico da nação, de outro, estão divididos internamente, dada a heterogeneidade de sua composição setorial, tecnológica e de srcem de capital. Em particular, os dados da pesquisa permitem perceber uma importante divagem: o comportamento e o desempenho dos grandes capitais foi diverso entre empresas públicas e privadas, nacionais e estrangeiras. O primeiro destaque cabe aos donos da casa. Os indicadores financeiros analisados (RFP 125/127) mostram o amplo domínio das empresas de srcem de capital paulista em todos os indicadores para os três anos considerados. Em 1989 estas 14 Importante acrescentar que tabela a 1, montada apenas com intuito ilustrativo, muito provavelmente expressa uma condição generalizada. Basta dizer que apenas 200 fornecedores são responsáveis por mais de 70% de tudo que é vendido em um grande supermercado(Veja, 9.3.94, p. 33). 13 9

CRISE E CONCENTRAÇÃO

o contrário, e é justamente isso que deve ser enfatizado. Seria ocioso citar aqui depoimentos que comprovam a “choradeira” generalizada das empresas multinacionais: a economia brasi leira seria hostil ao capital estrangeiro, ele estaria indo embora daqui, estaria perdendo dinheiro etc. Os dados da pesquisa mostram que estas empresas avançaram na economia paulista, apropriando-se de parcelas crescentes do excedente econômi co. Seu mecanismo básico de ajuste é o mesmo - ganhar mais sobre uma produção menor - porém seu poder de barganha com as demais frações do capital, bem como com o Estado, trabalhadores e consumidores, é seguramente maior. Esta diferença entre empresas paulistas e estrangeiras é fundamental e evidencia o fato de que, entre as primeiras, estão incluídas empresas pertencentes a grandes grupos eco nômicos e possuidoras de grande poder de mercado, e empre sas de tamanho mais reduzido, que na maioria das vezes não são pertencentes a grupos econômicos (doravante chamadas de empresas individuais) e participam de mercados menos oligopolizados. Esta diversidade explica em parte a perda de po sição relativa das empresas paulistas, pois o comportamento oligopólico das grandes acaba sendo diluído (em termos do resultado agregado) pelo das empresas individuais. Já no caso das firmas estrangeiras, estão incluídas empresas que são em sua totalidade partes constitutivas de poderosos grupos econômicos internacionais que normalmente se en contram numa posição oligopólica e, portanto, num mo mento de retração da economia conseguem manter ou ampliar sua rentabilidade com maior facilidade, lançando mão, em graus diversos, de várias práticas, a saber: corte de empregos, manutenção de capacidade ociosa, remarcação de preço s num ritmo superior ao da inflação Desta forma, pode-se dizer que houve um deslocamento dos lucros líqui51

15 Some-se a isto uma política de incremento de lucros não-operacionais, via desendividamento e aplicações no mercado financeiro (Almeida eNovais , op. cit.s p. 11). 14 1

OS DIREITOS DO ANTIVALOR

dos da amostra, do capital de srcem paulista para o capital de origem in ternacional. Quanto a este, cabe ainda uma análise mais detida, cen trada nos três principais blocos de capital: o norte-americano, o alemão e o japonês. Essa escolha deve-se ao fato de que estes três blocos de capital, somados, representaram mais da metade do subgrupo de empresas estrangeiras em termos de todos os indicadores analisados (RFP 128/131). Em 1989, as empresas japonesas eram responsáveis por 2 4 ,1% do total de empregos oferecidos pelo capital interna cional em contraposição a 4,8% em 1980. No que diz respeito ao lucro liquido, o salto é mais espantoso, de 4,8% em 1980 para 35,5 % em 198 9. No caso das empresas cuja srcem de capital é norte-americana, nota-se o declínio de 45,4% no patrimônio líquido ao longo de nove anos. Em termos de par ticipação percentual no total da amostra, nota-se também uma diminuição em todos os indicadores. No caso das empresas alemãs (na época, pertencentes à República Federal da Alema nha), nota-se uma razoável estabilidade da participação em todos os indicadores, em torno de 20% do total do capital internacional, embora elas sejam apenas cerca de 15 % do nú mero de empresas deste tipo. Em resumo, pode-se afirmar que, durante a década de 1980, ocorreu na economia sediada em São Paulo uma ascen são da participação do capital japonês e um declínio da parti cipação do capital norte-americano, mantendo-se o capital alemão num honroso segundo posto. Em outras palavras, a economia paulista e, por extensão, a brasileira, dados seus elevados níveis de integração produtiva com as principais po tências capitalistas16, refletem, a seu modo, as mudanças na correlação de forças que ocorrem no âmbito mundial. 16 Novamente a comparação internacional parece adequada. Num levanta mento feito por Reinaldo G onçalves (“ Investimento externo direto e em presas transnacionais no Brasil; uma vi são estratégica e pro spec tíva” . Ciências Sociais Hoje, Anpocs/Vértíce, 1991, p. 235), o Brasil é um dos países em desenvolvimento com ma ior penetração estrangeir a. M edido pela participação de empresas multinacionais na produção no final dos anos 70, 14 2

CRISE E CONCENTRAÇÃO

Adicionalmente, um cruzamento das informações setoriais (24 gêneros do IBGE) com as de srcem de capital permitiría descrever padrões de especialização produtiva que podem ser claramente visualizados para os diversos tipos de capital (RFP 132/13 7). A falta de espaço impede a reprodução integral desta ricaEanálise. possívelMencionaremos perceber uma razoável alguns traços permanência essenciais. do padrão de distribuição do capital segundo sua srcem entre os gêneros industriais. No caso das empresas estatais, como era de se esperar, sua atuação se dá basicamente nos serviços públicos, onde seu predomínio é quase absoluto17. Para o capital estrangeiro, temos um padrão de especiali zação bastante definido, como também seria de se esperar, e que se mantém praticamente inalterado em todo o período. o Brasil (32% ) só perde para a Venezuela (35 ,9% ) entre os 8 principais países latino-americanos. Confrontado com outros 7 países em desenvolvimento da Ásia, o Brasil só perde pa ra Cin gapura (6 2,9%) e Malás ia (44%). A Coréia, tida e havida como modelo de desenvolvimento aberto, possuía apenas 19,3% de sua produção controlada por empresas estrangeiras. 17 Há que se observar, no entanto, que este padrão extremamente especia lizado de atuação não existia em 1980. Ele foi sendo gestado ao longo da década mediante a redução da participação propriamente industrial do setor público. Em 1980, as estatais, refletindo a estratégia de desenvolvimento do II Plano Nacional de Desenvolvimento, obtinham quase 40% de suas receitas nos gêneros de química e metalúrgica, em proporções iguais entre os dois. Em 1985, o patamar em cada um dos 2 ramos cai para menos de 15%, e para menos de 10 % em 19 89 . Há que acrescentar que, a partir do governo Collor (1990), este padrão de especialização se acentua, com a privatização de segmentos quase inteiros do setor público, na siderurgia, petroquímica e fertilizantes, entre outros. Dado que a pesquisa sc encerra em 1989, este assunto está além dos limites deste trabalho. N o entanto, pode-se acrescentar, de passagem, que o processo de privatização, do modo como está sendo executado, está ensejando a formação de poderosos oligopólios privados nas áreas críticas de insumos intermediários. Um estudo mais detalhado sobre isto é necessário para que a sociedade brasileira possa, no mínimo, repensar o modelo de desestatização, agora que ele ameaça avançar para segmentos ainda mais sensíveis da economia, como telecomunicações e energia. Para Indicadores uma sinopse do Programa Nacio nal de Desestatização, ver IESP, n. 26, março de 1994, p. 8-10. 14 3

OS DIREITOS DO ANTIVALOR

Nos três anos, as empresas estrangeiras de São Paulo concen traram suas atividades, numa proporção que oscila entre 60% e 70% de todo o faturamento, em 4 gêneros, a saber: produtos alimentares, mecânica, química e material de transporte. A ampla predominância do capital paulista na industria do Estado é confirmada pelo fato de ele deter mais de 50% do faturamento em 14 dos 24 gêneros analisados, voltados basicamente para o consumo não-durável, característicos da quilo que se costuma chamar de indústria leve. Como contrapartida da poderosa ocupação de espaços dos demais tipos de capital, pode-se observar a escassa penetração do capital srcinário de outros Estados na indústria paulista: ele não é predominante em nenhum dos 24 gêneros. Realizou pequenas incursões (com para o setor de construção civil), em que,São no Paulo entanto, nãodestaque alteram essencial mente a fraca posição destes capitais no pólo mais dinâmico da economia brasileira. De forma bastante sintética, foi possível constatar na pes quisa algumas mudanças nas relações de força e no padrão de ocupação de espaços econômicos na economia sediada em São Paulo. A predominância dos capitais locais se manteve, tendo inclusive se ampliado em alguns setores antes dominados pelo capital estrangeiro. Este, ainda que cedendo terreno em alguns ramos, permanece soberano em vários dos principais mercados oligopolizados da economia: a economia interna espelha um padrão altamente concentrado de controle econômico que se formou e se reproduz continuamente no âmbito do capitalismo global. Espelha também as alterações entre capitalismos na cionais que ocorrem neste âmbito, a saber, a ascensão do ca pital japonês. Os S0 maiores grupos econômicos

Até agora, o objeto de análise foram as empresas - unidades jurídicas autônomas, publicamente reconhecidas enquanto tal. Mas é preciso superar esta base teórica tradicional: há muito 144

CRISE E CONCENTRAÇÃO

nomiadominadanãoporgrandesempresas, mas por grandes coalizões de firmas estruturadas como grupos. Nosso objetivo primordial é localizar e dimensionar o po der econômico justamente nolocus onde ele efetivamente se materializa, os grupos, a entidade que reúne o patrimônio financeiro, disperso de penetração de mercado, tecnológico etc. - forin malmente entre diversas empresas juridicamente dependentes. No curso da pesquisa, procuramos agregar as empresas da amostra nestas unidades mais amplas, procurando enxer gar não mais o movimento das partes, mas sim do conjunto. Numa tentativa prel iminar, criamos vários grupos p ela agre gação simples de empresas a eles pertencentes (maioria do controle acionário), isolamos os 50 maiores dentre eles e comparamos suaperformance com o restante da amostra20. Seguem-se algumas das principais conclusões daí derivadas, tendo como foco as variáveis com as quaislucro vimos operando até aqui (patrimônio líquido, faturamento, líquido), acrescidas do indicador número de empregados, para os 50 maiores grupos, discriminados tão-somente segundo sua srcem de capital. Um primeiro nível de análise, ainda sem individualizar os grupos, diz respeito à relação entre os maiores grupos listados e o conjunto da amostra. Ela nos dá uma outra radiografia do grau de concentração da economia sediada em São Paulo. Pode-se observar que o patrimônio líquido dos maiores grupos como percentagem do total da amostra passa de 63,5% em

2(1 Algumas complicações metodológicas implicaram um quadro um pouco mais complexo do que aquele aqui descrito. Dificuldades na apuração das intricadas ligações de propriedade em algumas empresas descaracterizam alguns agrupamentos econômicos enquanto tal. Felizmente são de menor importância no conjunto da amostra, e aqui passaremos por cima destes detalhes. O leitor mais interessado é remetido à discussão sobre estes pro blemas, no RFIJ p. 94 e s.

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OS DIREITOS DO ANTIVALOR

1980 para 69% em 1989 (RFP 138/143). Para as demais va riáveis os cálculos revelariam proporções um pouco menores, mas ainda assim bastante elevadas21, evidenciando a existência de uma distribuição bastante concentrada do poder econômico na indústria de São Paulo. Tomemos inicialmente, com o objetivo de estabelecer um contraste, a empresa individual (isto é, a agregação de todas as empresas que não pertencem a grupos) como foco de análise. E possível perceber nitidamente um perfil econômico-financeiro que caracteriza estas empresas de menor porte e que não estão integradas ao circuito de acumulação dos grupos em termos de propriedade do capital. Em 1980, as 1.126 empresas não per tencentes a grupos detinham, como proporção dos 50 grupos, pouco de 130% 5% do do emprego. patrimônioEm líquido, do fatura se mento mais e quase 1989,2 2 a ,1% desproporção acentua figeiramente, com o patrimônio líquido subindo um pou co e o percentual do emprego atingindo praticamente o patamar de um terço22. Estas cifras, por oposição àquelas dos maiores grupos, indicam claramente um padrão de organização da pro dução intensivo em mão-de-obra e de baixa capitalização. Outro aspecto importante quanto ao papel ocupado por esta miríade de empresas de menor porte diz respeito à parcela dos lucros por elas obtida em relação aos grupos. Calculando a proporção dos lucros desta empresas no conjunto dos maio res grupos, percebe-se que esta relação, que era de 25% em 1980, passa para cerca de 20% em 1989. Ou seja, um dos efeitos da crise econômica foi o de deslocar parcelas expres 21 No caso do iucro líquido, o percentual passa de 49% para 65,7% ao longo do período. Em suma, os grandes grupos detêm entre 60% e 70% do patri mônio líquido e entre metade e dois terços dos lucros de toda a amostra. 22 Este aumento na proporção do emprego não foi obtido pela geração de novos postos de trabalho, mas, ao contrário, por uma redução menor do que o conjunto dos 50 grupos na oferta de empregos. A crise implicou tam bém para estas empresas de menor tamanho um corte em pessoal, da ordem de quase 20 mil pessoas, dado que o contingente de trabalhadores passa de 574 ,2 mil em 198 0 para 55 4, 4 mil em 19 89 . Para o conjunto dos 50, a perda de empregos foi de 33,3 mil. 14 8

CRISE E CONCENTRAÇÃO

sivas do excedente global das empresas que não pertencem a grupos para os grandes agrupamentos de empresas. Isto sugere ao menos duas observações, ainda que não permita uma de monstração cabal. Primeiro, falando-se de grupos econômicos, a referência não é a de uma simples multiplicação da empresadeindividual em novas unidades. Os grupos são a centralização entidades já caracterizadas pelo grande porte, pela penetração em setores mais oligopolizados e pelo poder financeiro; não são a soma de quaisquer empresas. Neste sentido, o deslocamento de lu cros das empresas individuais para os grupos é mais uma di mensão da concentração de excedente nos estratos superiores da hierarquia empresarial. Segundo, os grupos econômicos representam mais do que agregação de unidades entre si homogêneas. Ao combinar fra ções diferentes do capital - comercial, produtivo e financeiro -centrar passam a se movimentar uma lógica diferente. Aoem con recursos líquidos de por várias unidades diferentes, se tores diversos, asholdings que controlam os grupos passam a desempenhar funções financeiras que estão muito além das possibilidades econômicas dos empreendimentos isolados; os grupos podem assim se dirigir ao mercado financeiro de modo privilegiado e compor uma equação capital produtivo/capitaldinheiro muito mais eficaz. Dado o peso da acumulação fi nanceira no conjunto da reprodução do capital que carac terizou os anos 80, isto faz toda a diferença. Ademais, os grupos econômicos, em muitos casos, são eles próprios parte do àmercado financeiro, através de seusebancos (freqüentemente frente de todo grupo), corretoras outras instituições financeiras; nestes casos, são os grupos uma en grenagem central da ciranda financeira, alavancando fictícia mente sua acumulação numa magnitude impensável para o capital individual. Partindo para uma análise individual dos grupos, o pri meiro tipo de informação relevante é quanto à continuidade de alguns grupos, ao longo de toda a década, ranking no dos 50 maiores. Ao todo, foram identificados 29 grupos que apa 149

OS DIREITOS DO ANTIVALOR

recem nos três anos; eles formam o núcleo duro do poder econômico na indústria de São Paulo. Ao contrário de outros grupos, que saem do conjunto dos 50, ou nele entram em algum momento do período 1980-89, estes 29, devido a sua permanência, constituem um subconjunto à parte, o daqueles blocos de capital que resistiram à crise e lograram manter-se no topo do ranking. Não é possível oferecer uma explicação única para esta distinção: haveria que examinar cada grupo em particular para saber por que razão saíram, entraram ou permaneceram nesta lista específica que é, desde logo, arbi trária. Apenas com as informações de que dispomos, a perma nência destes 29 grupos é, em si, uma distinção importante. Os 29 grupos estão divididos, segundo a srcem do capital, da seguinte 2 são que estatais, 10 são estrangeiros e 15 paulistas. Há forma: que ressaltar os grupos brasileiros não figu ram neste rol seleto, o que sugere, por um novo ângulo, a pequena integração dos grupos de outros Estados à economia paulista23. Convém mencionar cada um destes grupos. Comecemos pelos grupos não-privados. Sob o comando do Executivo federal encontram-se 3 grandes estatais: Petrobrás, Siderbrás e Telebrás, elas próprias 3 grandes holdings , que, neste sentido, poderiam, numa análise mais detida, ser enfocadas como 3 grupos independentes, devido à relativa autonomia operacional e financeira de que dispõem. A pre sença destas empresas gigantes indica o peso do setor público estatal nas atividades de apoio industrial (energia e telecomu nicações) e na indústria de base (siderurgia) no Estado mais industrializado do país. O outro grupo do setor público é o Estado de São Paulo, que aparece em todos os anos como o primeiro do ranking. Sua participação no patrimônio líquido do conjunto dos 50 grupos não é nunca inferior a 20%. Isto significa, efetuando os cálculos, que este grupo representa algo em torno de 15% 23 Na verdade, para os três anos de análise da década, aparecem 10 grupos brasileiros, sendo que nenhum deles consegue se manter ao longo de todo o período. IS O

CRISE E CONCENTRAÇÃO

do total geral da amostra. Em outras palavras, entre os grandes de São Paulo, figuram no topo as empresas do próprio governo do Estado. Entre as 13 empresas deste grupo (para o ano de 1989), figuram algumas das principais concessionárias do sistema Eletrobrás CPFL e do Eletropaulo), das maiores presas (CESI? de transportes país (Cia. algumas do Metropolitano de em São Paulo e Fepasa) e outros serviços públicos (Sabesp e Comgás). A composição setorial do grupo explica seu peso na economia sediada em São Paulo: reproduz no plano estadual a comple mentaridade entre indústria e serviços industriais; e as con centrações regionais de ambos se condicionam mutuamente. O peso das empresas do governo paulista no faturamento e no número de empregados, por outro lado, não atinge nunca o patamar de 7% do total dos 50 grupos em ambos os indica dores. Para completar o quadro, resta dizer que o setor pro dutivo deficitário em todos os público anos. Estas ilustrampaulista o papelédeste segmento do setor para acifras acu mulação industrial no Estado: alta intensidade de capital (tanto em relação ao fator trabalho quanto ao produto) e rentabili dade negativa. A primeira característica se explica pela con centração em setores onde prevalecem grandes aportes de capital e longos prazos de maturação do investimento. A pés sima rentabilidade, para além das questões vinculadas à efi ciência operacional, está fortemente associada às injunções da política econômica e à eterna “vocação” do setor público de subsidiar o setor privado, sobretudo pela contenção de preços/tarifas. Em resumo, percebe-se uma peculiar inserção do capital público na economia paulista. Em seu estrato superior, figura uma holding pública que, em seu conjunto, transfere recursos para o resto da economia; somada às três holdings federais acima mencionadas (no conjunto lucrativas, mas numa pro porção irrisória para seu patrimônio e faturamento) compõe um quadro que diz muito a respeito da importância e da fun cionalidade do capital público no capitalismo brasileiro. Quase sempre impedidas de exercer seu poder oligopóhco (ou mo15 1

OS DIREITOS DO ANTIVALOR

nopólico) na formação de seus preços, e impossibilitadas de fazer o ajuste financeiro devido a uma dívida anterior - con traída menos em função de suas próprias necessidades e muito mais devido às estratégias de captação de crédito externo dos últimos governos militares as empresas estatais são gigantes acorrentados, divididos entre o objetivo de acumulação para si e os desígnios das políticas macroeconômicas24. Entre os 10 grupos estrangeiros, encontram-se nomes bem conhecidos do público brasileiro, quase todos de países capita listas avançados. Três destes são alemães2\ França, Itália, Suíça, Canadá e Bélgica comparecem com um grupo cada26. Por último, aparece um grupo de um país em desenvolvimento27. Ao contrário do que se podería esperar, não figura nenhum grupo americano entre que o subconjunto 29 figuram grupos6 ora estu dado. Vale mencionar em alguns de anos grupos dos EUA28. Ainda mais curiosa é a quase completa ausência de grupos japoneses. O único a aparecer, e apenas em 1989, é o Fuji Bank Ltd., braço brasileiro de um dos maiores conglome rados japoneses.

24 A respeito das ver contradições queEmpresa envolvem a acumulação de capital das empresas estatais Dain, Sulamis. estatal e capitalismo contemporâneo. Tese de doutoramento. Campinas, Unicamp, 1980. Sobre a vinculação entre dívida externa e desajuste das empresas estatais, ver Cruz, Paulo Davidoff. Dívida externa e política econômica (A experiência brasileira nos anos setenta).São Paulo, Brasiliense, 1984, especialmente p. 173-4. 25 A saber, Daimler Benz, Hoechst c Siemens. 2(l Respectivamente, Saint Gobain, Pirelli, Nestlé, Alcan e Solvay. Aparece também o grupo Uniiever, que resulta de uma associação entre o capital inglês e o holandês. 17Trata-se do grupo Bunge y Born (mais conhecido pelo nome de Santista), de nacionalidade argentina, há muito tempo instalado no Brasil e atuando nos setores de alimentos e têxtil. 28A saber, D ow Química, C argill, Caterpillar, C hampio n Inth, Ford e General Mo tors. Esta última, maior “ empresa” do mundo, saiu da amostra em 19 89 . Motivo: deixou de ser uma empresa de capital aberto e parou de divulgar seus dados contábeis. 15 2

CRISE E CONCENTRAÇÃO

Entre os 15 grupos nacionais privados, todos eles do Es tado de São Paulo, figuram alguns dos maiores e mais conhe cidos grupos privados do país, como Votorantim, Matarazzo, Antárctica, Villares, Vidigal e Alpargatas. Outros, menos co nhecidos, podem ser citados: Termomecânica, Suzano Feffer, Severino Pereira (com da Silva. Há outrospara comosforte participação na agroindústria diversificação setores de bens de capital conexos ou não), como Cutrale, Dedini, Biagi e Ometto. Completam a lista uma grande construtora, a Camar go Corrêa, e um grande conglomerado financeiro, o Grupo Itaú. Estes grupos, atuando nos mais diversos setores da econo mia - com destaque para os conglomerados altamente diver sificados: Votorantim, o maior grupo privado nacional, e Matarazzo, que já ocupou este posto no passado29 repre sentam metade do núcleo duro de grupos da economia paulista e espelham a pujança do capital local, em contraste com a parca penetração do capital de outros Estados, e mantendo uma posição de liderança mesmo frente aos enormes grupos estrangeiros citados que, em boa medida, permanecem encas telados nos oligopólios que dominam no plano mundial. Quem é quem na crise brasileira

A discussão que vimos fazendo procurou basicamente re sumir os resultados empíricos que nossa equipe foi capaz de sistematizar até agora. Nesta última seção, mais abaixo, fare mos uma síntese final dos grandes movimentos da economia paulista. Antes, porém, gostaríamos de alinhavar alguns co mentários de natureza conceituai, sugeridos pela pesquisa.

2y O grupo Matarazzo é um caso à parte: a decadência (relativa) que já era visível nos anos 80, converteu-se na década atual em um verdadeiro processo de desestruturação industrial. Atualmente, as atividades industriais do grupo se resumem basicamente à metalurgia (Ruiz, R. M., op. cit., p. 20). 153

OS DIREITOS DO ANTIVALOR

A noção de um espaço teórico mesoeconômico, que bus caria integrar análises já existentes num corpo conceituai úni co, ao qual seriam acrescentadas dimensões novas, vive ainda sua infância. Muita reflexão e trabalho empírico são ainda necessários para que se prove sua necessidade e pertinácia ao estudo das economias contemporâneas. Desde já, no entanto, é possível delinear seus traços bási cos, reconhecer seu objeto, sugerir algumas hipóteses prelimi nares. Como ponto de partida, é possível afirmar que a mesoeconomia deveria se ocupar de duas ordens de fenômenos fortemente associados. De um lado, é preciso estudar as interrelações produtivas entre os setores econômicos que estão na base do desenvolvimento econômico, particularmente na in dústria e na confluência desta com a agricultura (agroindús tria). O objeto aqui são a matriz de relações intersetoriais, as sinergias comerciais e tecnológicas entre setores correlatos, as condições enfim que nos permitiriam identificar clusters in dustriais, isto é, construir as mediações necessárias entre os mercados (nível micro) e a estrutura produtiva (nível macro). De outro lado, a mesoeconomia precisa identificar os agen tes econômicos que operam - isto é, que comandam - este complexo mosaico que é a divisão do trabalho numa economia que já atingiu um certo grau de desenvolvimento interno. O objeto eaqui são as relações (acionária e finan ceira) apropriação (privadadeoupropriedade estatal, individual ou grupai) que, variantes ao longo do tempo e variáveis segundo os di versos contextos nacionais, regulam, constrangem, possibili tam o desenvolvimento daquela divisão técnica do trabalho acima referida. A montagem de ramos da produção (petróleo, automóveis, petroquímica) é simultaneamente a construção de agentes econômicos e sociais (grupo estatal, grupo multi nacional), tripé que os tornam possíveis30. 30 A questão não c nova: ela aparece desde o princípio da industrialização brasileira. Fernando H. Cardoso é explícito sobre este ponto, adicionando as dimensões sociais e políticas de que não estamos tratando aqui: “ o desen volvimento econômico do Brasil como processo político-econômico-social 1 54

CRISE E CONCENTRAÇÃO

Se a primeira dimensão da mesoeconomia se inscreve na longa e viva tradição da Organização Industrial, a segunda procura recuperar alguns aspectos da economia política que, ao contrário, parecem perdidos no tempo: é bastante reduzida a atenção que os processos de concentração e centralização dos capitais têm recebido de uma ciência econômica hegemonizada pelo paradigma neocíássico. A concorrência intercapitalista, ao perpassar estas duas dimensões, é a chave para entender as relações de causa e efeito que entre elas se estabe lecem. Mas não é a concorrência isomorfa e reducionista da microeconomia neoclássica: não isolamos os agentes em fir mas e mercados abstratos. Ao contrário, os atores aqui se dis tinguem pelo tamanho, pela srcem de capital, por suas articulações internas e externas, pelo poder econômico e po lítico de que dispõem; os mercados são determinados forte mente pelo desenvolvimento de outros mercados, com os quais mantêm relações, e se distinguem também pela dinâmica da concorrência neles prevalecente (inclusive em termos da pre dominância deste ou daquele tipo de capital, da presença de grupos etc.). Em resumo, a proposta de um espaço mesoeconômico, mais do que uma ruptura com a teoria econômica, é uma ten tativa de aglutinar dentro de um corpo teórico coerente um conjunto de análises que, amiúde, aparecem dissociadas. Nossa aposta é a de que, particularmente no caso do Brasil, o enfoque mesoeconômico pode contribuir decisivamente para a com preensão da presente crise de desenvolvimento. A luz destas considerações, nos parece oportuno sintetizar algumas das principais conclusões a que chegamos até o mo mento. São elas a prova dos nove de um espaço conceituai ainda em construção. implica não apenas a formação de uma indústria de bens de capital e o automatismo do crescimento econômico, como a formação e dinamização de novas classes capazes de redefinir o equilíbrio tradicional de poder e de romper a estagnação econômica” (Cardoso, Fernando Henrique. Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil. São Paulo, Difusão Euro péia do Livro, 1972, p. 84). 155

A quase-hegemonia*

Por que a reeleição surge no atuaL

quadro político ?

A reeleição é parte da estratégia política de um grupo que tem pretensões hegemônicas. O projeto desse grupo, liderado por FHC, é manter-se por muito tempo no poder, como deu sinal, desajeitadamente, o ministro Sérgio Motta, que diz o que o presidente não pode dizer ao falar de 20 anos no poder. Que grupo é ess e?

Do ponto de vista político não é expressivo. O único real mente expressivo é Fernando Henrique. Ele articulou os gru pos políticos dominantes no Brasil que não se combinavam: PFL, PMDB quase inteiro, PSDB, PPB, uma boa parcela do PTB. Desde a Revolução de 30 não surgia um grupo hegemô nico. Ao longo desses anos, extremamente violentos, os con flitos significaram a impossibilidade de hegemonia de um grupo que soldasse as diferenças sociais e as traduzisse politi camente. Fernando Collor já não foi um sinal de novos tempos?

Collor foi o primeiro sintoma de um novo momento, um cheiro de possibilidade de hegemonia. Mas ele era muito mal * Entrevista realizada por Ana Maria Mandim e publicada na Folha de 5.

Paulo, 10de fevereiro de 1998, p. 1-4.

1 59

A QUASE-HEGEMONIA

O grupo hegemônico representa algo novo?

Sim, o grupo de FHC soube capitalizar muito bem a burguesia de São Paulo, que é de uma inépcia política extraordinária. Eles se colocaram no lugar dela, realizaram o sonho do PCB. A famosa vanguarda sobre a qual o PCB tanto teorizou são eles.

O PF L impede FH C de real izar seu projeto?

De jeito nenhum. Antônio Carlos Magalhães é que é prisioneiro do FHC. ACM sem Fernando Henrique não é nada, sabe que jamais poderá aspirar a ser presidente. O que FHC fez foi juntar São Paulo e as oligarquias. Há possibilidades eleitorais para propostas alternativas?

No momento, muito remotas para um desafio global no sentido de postular a Presidência. Não que não se deva tentar, é tentando se constrói, história aberta, felizmente nos preparaque surpresas todoseosa dias. O é projeto hegemônico pode ser desafiado em terrenos circunscritos, derrotado em eleições para prefeituras e até Estados. O grupo que ganha trata de destruir os recursos políticos do outro. E o que Fernando Henrique está fazendo. Ele vai salgar a terra para que nenhum grupo alternativo tenha chance tão cedo. Como?

Por meio, das reformas constitucionais, da flexibilização do contrato de trabalho, da desregulamentação, da mudança na Previdência, tirando o chão social das entidades que um dia desafiaram as elites. Nenhum grupo está aí para contemplar o outro crescer. As forças alternativas têm de lutar em todos os foros e tentar traduzir isso para o campo político. Como a âncora da credibilidade do projeto hegemônico é a estabilidade monetária, será muito difícil lutar contra ela por causa da dura pedagogia da inflação: a subjetividade popular foi castigada por 30 anos de inflação. 161

OS DIREITOS DO ANTIVALOR

Existe alguém boje que expresse tão bem esse projeto hegemônico quanto E H C f

No momento, não. Demora muito para uma classe ou conjunto de classes uma liderança porte. Não essencialmente pelas criar qualidades de FHC,desse mas porque um longo processo foi forjado e FHC saltou à cabeça dele no momento certo. Além disso, ele faz o trabalho cotidiano da aranha, tecendo articulações e destruindo outras. Não é à toa que a presidência do Senado é do PFL, e a da Câmara, do PMDB. Isso ajuda porque demarca terrenos, corta am bições, circunscreve capacidades. E um método político de mestre. Como o grupo de FH C assum iu a hegemoniaf

Existe dominação e hegemonia. Pode-se dominar poli ticamente, economicamente, mas só há hegemonia quando você faz o dominado pensar como você. Tivemos, no Brasil, 30 anos de transformação que significaram dominação, mas não hegemonia, porque os grupos dominantes estavam di vididos. FHC os juntou. Com a estabilização surge a possi bilidade de hegemonia: o povão começa a pensar como o mais rico. Isso ocorre raramente, e por isso a estabilidade é ferozmente perseguida. O grupo hegemônico pagará qual quer preço para mantê-la. M alu f poderia ser o intérprete desse gru po f

Maluf ainda não tem a capacidade de articulação necessá ria. Ele não é trouxa e já percebeu a força do grupo hegemô nico. Pode escrever: ele não se candidatará à Presidência. Receberá avisos para não se meter, não terá dinheiro para a campanha. Os grupos mandantes esperaram desde Vargas pelo surgimento de um condottière como Fernando Henrique. Var gas não era amado pela burguesia, Fernando Henrique, é.

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III PARTE

SUAVE É O TERROR O Neoliberalismo Termidoriano no Brasil

Quem tem medo da governabilidade?*

Conservadorismo e mudança social

A eleição de Fernando Henrique Cardoso processou-se numa equação contraditória entre urgências de mudança so cial por e ambiência social conservadora. primeiras são evidenno tes si mesmas, para economizar As uma longa descrição: campo social, a depredação do Estado, em conjunção com uma crise que se arrasta, com oscilações, desde o começo dos oitenta, produziu uma devastação nos principais serviços pú blicos que se expressa nos indicadores sociais. O já precário Estado do bem-estar nacional foi atingido em cheio: as refor mas do “caçador de marajás” terminaram por dar-lhe o golpe de misericórdia. A incapacidade do Estado de exercer o con trole, ainda que mínimo, da situação social, se necessitasse de maior explicitação, encontra, no recurso - uma “última ins la Marx - da tância” utilização das Forças bate ao ànarcotráfico dos morros cariocas, suaArmadas definitivanoe com cabal demonstração. Não é que, no percurso, vários recursos não fossem utili zados e experimentados para melhorar a assistência social es tatal. Reformas descentralizadoras, como a do Sistema Unificado de Saúde, foram tentadas: de novo, em “última ins tância” , a descentralização não funcionou porque a diíapidaPubiicado em Novos Estudos Cebrap , n. 41, março 1995, p. 61-77. 165

OS DIREITOS DO ANTIVALOR

ção do Estado - que é sempre confundida com desorganização governamental - traduziu-se em sua incapacidade, nos níveis estaduais e municipais, de articular e implementar qualquer política. Essa incapacidade revela-se tanto em não poder ofe recer salários razoáveis às categorias médica e paramédica resultado não inteiramente casual da crise financeira do Estado quanto em não controlar o sistema privado de saúde, que é a saúva que devasta a roça pública das políticas governamentais para o setor. Essa dialética cruel de um lado sofistica desne cessariamente a aplicação de uma simples aspirina e “aspira” a montar hospitais de primeiro mundo. Produz-se, então, o paradoxo, ou a dualidade: milhares de médicos rebaixados a simples força de trabalho, aplicadores de aspirina que se “viram”públicos em meia dúzia de empregos sobreviver, hos , pitais depredados, cenas d epara “ pátio dos milagres” onde são os parentes dos pacientes que literalmente tentam ajudar a precária estrutura a funcionar, filas de doentes cujos semblantes nada ficam a dever aos dos milhares que acorrem aos milagres do Padre Cícero: mas eles não estão no Nor deste, senão que nos corredores do Hospital de Clínicas da USI? do Hospital Universitário da USP e do Hospital-Escola da Paulista de Medicina, os de caráter público que, em São Paulo, ainda resistem ao naufrágio geral; nos demais, não faltam apenas médicos: o simples esparadrapo já é artigo de boutique. Os hospitais privados são boutiques mesmo : ali a sofisticação atinge as raias do impensável, para aplicar as pirinas e “ asp ira r” os recursos es tatais, Weberianamente, o Estado perdeu o monopólio exclusivo da violência; marxisticamente, o Estado foi privatizado numa escala impensável em qualquer país radicalmente liberal. Essa tendência já vinha desde o autoritarismo, mas, perversamente, o Estado democrático a agravou. Depois de Sarney, que pra ticou o “é dando queCollor se recebe” uma modalidade de desregulamentaçao, levou acomo tendência ao paroxismo: já que o Estado não funciona, o melhor é suprimi-lo. (Quase escrevi “suprimamô-lo”, mas aí o fantasma de Jânio ectoplasmou-se, para salvar-me e aos leitores). 166

OS DIREITOS DO ANTIVALOR

sua reforma destrambelhada, acabando por reduzir a capa cidade operaciona l do Estado brasileiro a quase zero. Atacou as centrais sindicais como fo nte de corpo rativis mo - o novo termo panexplicativo de tudo que ocorre no Brasil, abusi vamenteum utilizado porformidáveis uma ciênciaarrochos política impotente -, que pra ticando dos mais salariais de se tem notícia: diz-se “um dos mais”, porque outros piores ainda poderão acontecer. Centrais sindicais, sindicatos, mo vimentos trabalhistas foram identificados como os inimigos públicos por excelência, que conspiravam contra toda a na ção e contra todo o povo, por se postarem contra o Plano Collor. Criava -se, assim, um ambiente social antiprogressista, medroso, anti-reformista. A estratégia dos grupos dominantes viu-se frustrada com o impeachment de Collor de Mello. Mas ressurgiu por inteiro com a eleição de Fernando Henrique Cardoso. Nesta, o pro cesso foi outro, já antecipado neste ensaio: no lugar de um messianismo salvacionista, fora do alcance de um político que não se distingue por nenhum dote carismático (salvo entre seus pares acadêmicos), a empreitada, coroada de sucesso ao menos temporariamente, de lograr a estabilidade antes da elei ção, que assim o catapultava nas preferências populares, sem fazê-lo popular. É um ganho, dizem, a entrada do cálculo ra cional no comportamento dos eleitores, e uma mudança nas regras da política no Brasil. Há, aqui, indefectivelmente, um elemento modernizador: apenas não se pode afirmar se esse comportamento não passou de um momento conjuntural, ha bilmente explorado pelo vencedor. As burguesias se jogaram todas na candidatura Fernando Henrique Cardoso. Tanto as contribuições de empresas, quan to as milhares de declarações de empresários e o posiciona mento do poderoso Roberto Marinho, da Globo, em favor do candidato, dispensam maiores elaborações. Seu programa é retirada transformou-se na bíblia dos empresários, ou o mais que sintomático: a bíblia, composta por privatização, do Estado da economia, desregulamentação de alto a baixo, ata que aos direitos sociais e humanos, desregulamentação do mer-

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cado de força de trabalho, “desconstitucionalização” da Const ituição -cidadã de Ulysses Guim arães, que criou a “ ingovernabilidade” (a esmagadora maioria dos tucanos, inclu sive o presidente eleito, votou, na Constituinte, a favor do que hoje apontam como elementos de “ ingo verna bilidade ” ), passou ea do sercandidato. o livro comum, transcendental, da grande bur guesia Tudo isto não se passa apenas num plano simbólico, de discursos, planos e apoios ostensivos; ainda se fosse pouco, o episódio num clube paulista em que empresários promoviam um evento para “alavancar” a candidatura Fernando Henrique Cardoso revelaria o processo por inteiro: ali distribuiu-se uma “ficha de inscrição” no PT, quando Luiz Ignácio Lula da Silva ainda pairava em altas estratosferas nas pesquisas, que resumia todo o ódio de classe contra largas parcelas das classes domi nadas que haviam criado um movimento político que há mais de uma década a grande burguesia e os partidos políticos-garrafa, queacuava se amoldam a cada governante de plantão. As condições para pedir inscrição no PT eram: ser nordestino, analfabeto, preto, mulher, prostituta, homossexual, catador de lixo etc. Isto é, os estigmas da própria discriminação de classe, de cor, de etnia, de preferência sexual, que habitam o inconsciente coletivo da sociedade, manejados pela própria classe dominante! O partido do presidente apenas declarou que não era responsável pela “ficha”, sem condená-la; tam pouco se ouviu ou se leu nenhuma declaração da intelectuali dade tucana, incluindo-se aí o próprio candidato, contra semelhante à democracia. Os sinaisatentado da intolerância da grande burguesia contra or ganizações sociais do assalariado, e mais especificamente de certas categorias operárias, já não se dão a público travestidos em apelos à cooperação; agora, eles ganharam em desinibição e hostilidade agressiva. O presidente da GM, em entrevista recente àFolha de S. Paulo , declarou em alto e bom som que a empresa pensava em localizar a terceira fábrica fora do eixo sob influência dos sindicatos, e em seguida ameaçou o governo quando este baixou a alíquota de importação de automóveis, 1 75

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declarando que a decisão sobre a famosa terceira fábrica havia sido suspensa, entrando as localizações na Argentina, Uruguai e Paraguai como concorrentes com o Brasil. O recado estava claro: tanto o movimento sindical quanto a autonomia do go verno em tomar decisões de política econômica não são bem vistos no mundo globalizado pelas grandes corporações transnacionais. A desinibiçao que se transforma em hostilidade ativa contra movimentos sociais e organizações das classes domina das é um dos primeiros resultados da legitimação que a aura de intelectual de Fernando Henrique Cardoso conferiu às po sições antiprogressistas, que pautaram o cenário e o movimen to dos sujeitos e atores sócio-político-econômicos nos últimos quinze anos. E a primeira tempestade que o semeador de ven tos pode colher: a ameaça governabilidade provém,pode contraditoriamente, de sua própriaàvitória. O futuro governo vir a ser o refém da implosao das tendências progressistas que dominaram a cena brasileira, que ele mesmo comandou como condição para sua eleição. É claro que existem contradições entre o movimento que Fernando Henrique Cardoso lidera e o grande empresariado. O próprio Plano Real não foi aceito sem reservas nem resis tências: a formidável aceleração dos preços na última rodada da URV antes da entrada da nova moeda, em junho/julho de 94, mostraviram-se até que grandemente ponto elas existem. Entretanto, tradições atenuadas porque,essas maiscon do que Collor, Fernando Henrique Cardoso mostrou-se a melhor alternativa contra Lula. Mas, há uma diferença essencial entre Collor e Fernando Henrique Cardoso do ponto de vista do apoio das classes dominantes (de outros pontos de vista, que a imprensa não se cansa de ressaltar, as diferenças são enormes e a favor de FHC: preparo intelectual, real cosmopolitismo que lhe propicia uma visão do mundo menos simplista do que a de Collor, carreira política impoluta, pertencimento real às elites nacionais e internacionais): Fernando Henrique Cardoso é um “intelectual orgânico” das reformas burguesas, enquanto Collor era apenas um aventureiro. 176

QUEM TEM MEDO DA GOVERNABILIDADE?

Tanto a aura intelectual de Cardoso quanto sua própria contribuição à formulação das “reformas” fazem-no o porta dor da hegemonia burguesa contemporânea no Brasil. De ou tro lado, seu partido, o PSDB, é um forte núcleoyuppie das novas classes médias constituídas de um novo tipo social: os intelectuais-empresários-altos executivos (Bresser Pereira é seu emblema por excelência) produzidos pelas grandes transfor mações do regime autoritário. Em poucas palavras, embora contradições existam, Fernando Henrique Cardoso e seu PSDB não são “estranhos no ninho” das grandes corporações. Mais rigorosamente , a tecnoburocracia qu e o próprio Bresser Pereira teorizou no primeiro período de sua produção acadê mica (nas pistas do John Kenneth Galbraith, de O novo Estado industrial ), essas novas classes médias são estruturais no capi talismo contemporâneo, e por isso são herdeiras diretas das transformações econômicas e na estrutura social promovidas pelo autoritarismo8. Por essas razões, o projeto conduzido por FHC é duradouro: não se está em presença de um estouro KBeneficio~me do anúncio do ministério de FHC para essa tese: o próprio Bresser Pereira, misto de intelectual (com mais de 20 livros publicados) e empresário, tendo atuado por mais de 30 anos no Grupo Pão de Açúcar, um dos maiores do ramo da alimentação no Brasil; Sérgio Motta, dono de uma consultoria de engenharia, um tipo de empresa que foi “alavancada” pelo autoritarismo como forma de destruir os quadros profissionais do serviço público e que temavir tualid ade de transformar saber técnico em propried ade do capital; Pedro Malan, notável economista dos anos setenta, que desde o começo dos oitenta detém altos cargos no BID e no Banco Mundial; Pérsio Arida, economista teórico da inflação inerciaí do grupo da PUC-Rio, ante riormente Vieira fogeligado um pouco ao grupo ao figurino: Unibanco este e hoje é banqueiro ele mesmo mesmo, banqueiro; e ao que Andrade se saiba, não perpetrou, até agora, nenhuma obra intelectual; Paulo Renato Souza converteu-se de especialista em emprego a reitor da Unicamp, passando pelo secretariado de Montoro até encaixar-se na gerência geral de operações do BID, o segundo cargo mais importante na estrutura de decisões do Banco, tradicionalmente ocupada por um brasileiro desde os tempos de Ewaldo Correia Lima; Dorothéa Werneck, economista dos quadros do IPEA que, depois de passagem pelo Ministério do Trabalho de Sarney e Secretaria de Política Econômica de Collor (onde, aliás, teve profícua atuação), transitou também pela iniciativa privada no ramo da consultoria; Clóvis Carvalho, egresso do grupo Villares. Em oito sobre quinze ministros civis revelam-se 177 *

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subaíternidade, pela via da moeda. Para resumir, a teoria da inflação inercial substantivamente não difere em nada da teoria monetária da moeda, e seus efeitos serão provavelmente os mesmos, com a agravante da perda da autonomia monetária no caso de um país dependente. processos de concentração e centralização dos Frente, capitaispois, que aos a globalização expressa, o Estado nacional no Brasil e na América Latina em geral perdeu a capacidade de arbitrar o conflito interburguês. O neoliberalismo aparece pois, não como uma exigência frente ao intervencionismo estatal, que não permite o funcionamento dos mercados: o neoliberalismo é, antes, a confissão da impotência do Estado burguês frente a esses processos. E a dolarização direta, via conversibilidade, ou disfarçada, via âncora cambial, é sim plesmente a confissão de que o Estado nacional da periferia do capitalismo não tem mais a capacidade de possu ir moeda. Nos termos de Aglietta e Orléans, que redefinem Weber, o Estado nacional não tem mais o monopólio exclusivo da violência, já que a moeda é o conversor público de todas violências privadas18. No caso brasileiro, onde um grande setor estatal produtivo tomou a própria forma do Estado, substituiu o Estado ou re presenta o Estado, com empresas do porte da Petrobrás ou da Vale do Rio Doce, com a privatização que se processa, quem representará o Estado ali, em Carajás, no complexo mineiroferroviário-portuário entre Minas e Espírito Santo, no orde namento do conflito entre indígenas e companhias de mineração? A moeda brasileira, que deixará de existir? As so ciedades que estão se entregando tão totalmente, tão estupi damente e tão ilusoriamente a essa utopia perversa, já estão pagando caro: transformaram-se em bazares persas comanda dos por máfias como nem a Itália, seu berço, nem os EUA da década de trinta, sua “modernizadora” , conheceram. Tal ilusãoIS

IS Ver Aglietta, M. e Orléans, A.La ulolence de la monnaie.

Paris, PUF. 195

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perversa leva à desintegração social que é quase sempre apenas o prelúdio da desintegração nacional. As repúblicas da exURSS, da ex-Iug osláv ia, e mesmo as consideradas exemplares, como Polônia, República Tcheca, Eslováquia, Hungria, Romê nia e Bulgária, com gradações, estão aí como advertência. O Brasil está fazendo um enorme esforço para juntar-se a elas.

196

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sem liquidação das classes ou frações perdedoras... Seria uma espécie de “eterno retorno” da própria Revolução de Trinta. De fato, a dominação de classe expandiu-se notavelmente. Observada pelo ângulo das contas nacionais, a dominação bur guesa ampliou-se notavelmente: a ampliação do setor indus trial no PIB, hoje por volt a dos 34 % , a própria industrialização das atividades primárias (agricultura, pecuária, silvicultura etc.) hoje fundamentalmente de reprodução ampliada, a igual industrialização dos serviços, revela uma economia fundamen talmente capitalista, cuja produção e reprodução é conduzida pela burguesia como proprietária e cuja relação social básica é o assalariamento. O fato de que conviva com a extensão do assalariamento uma enorme parcela do que a literatura chama “setor nega o caráter capitalista: ao contrário, o “setorinformal”, informal”não é uma “forma” específica das próprias con tradições da acumulação de capital, particularmente da simul tânea e contraditória concentração de renda e liquidação das formas arcaicas de emprego, renda e acesso ao consumo de mercadorias. E mais: o processo em curso da flexibilização das relações de trabalho tende a reduzir o espaço e o tamanho das relações formalizadas, inaugurando o que pode vir a ser a for ma específica do “setor informal” no capitalismo global. A ampliação da dominação de classe do ponto de vista da acumulação de capital e da divisão social do trabalho implicou na fundação de classes sociais nacionais. Isto é, do antigo ar quipélago de dominações regionais, o processo da expansão integrou as diversas regiões, não apenas a uma dinâmica de conjunto, mas o que é mais importante, a propriedade do ca pital concentrou-se sob o comando dos mesmos proprietários. E a isto que corresponde a expansão das empresas nacionais e internacionais desde o núcleo dinâmico do Sudeste, e parti cularmente de São Paulo, para o Nordeste e o Norte, através dos incentivos fiscais, para o Oeste, através de mecanismos mistos de mercado e incentivos fiscais (implícitos na política de juros para a agricultura e a pecuária), e mesmo para regiões como o Sul, que se caracterizava pela existência de sólidas empresas regionais. Em suma, há uma burguesia, hoje nacio 198

ALÉM DA HEGEMONIA, AQUÉM DA DEMOCRACIA

nal. O contrário também se produziu: as classes dominadas são nacionais, pela mesma dinâmica: esta é a raiz estrutural sobre a qual se levantou o moderno movimento de trabalha dores no Brasil a partir de São Bernardo. Esse vasto, amplo e profundo processo requereu, por duas vezes no curso de sessenta anos, duas ditaduras cujos períodos somam trinta e cinco anos. Fazendo-se uma simples operação de proporção, significa que 60% do período em que se con sumou a radical transformação da economia e da sociedade ocorreram em regimes de exceção, claramente antidemocrá ticos, em que um pesado ajuste de contas no interior do bloco dominante requereu o braço armado não apenas para reprimir a nova classe dominada, o operariado, mas para operar, pela força, uma acumulação, uma integração, uma concentração de capitais, com mudanças drásticas no controle de patrimô nios crescentes. Exigiu, mesmo quando o regime de exceção era claramente antíestatizante - o caso da ditadura militar de 64 a 84 - a utilização do aparato estatal, o simulacro da social-democratizaçao do capital, tanto na forma das empresas estatais quanto na regulação do mercado de força de trabalho para discriminar - não para arbitrar - em favor de uns grupos contra outros. Dizer que as ditaduras não favoreceram o cres cimento, como defenderam Cardoso e Serra na polêmica com Ruy Mauro Marini sobre a existência ou não de um subimperialismo tendo o Brasil como eixo na expansão para a América Latina, significou não terem apreendido as formas concretas dessa relação, desclassificando a posição de Marini como se este tivesse postulado uma “lei” a-histórica das relações entre regimes de exceção e acumulação de capital. Estaríamos em presença de um típico processo de “revo lução pelo alto”, “passiva” nos termos gramscianos, “prussia na” segundo uma outra tradição também marxista. O deslocamento no interior do bloco dominante, o pesado ajuste de contas, não teve nada de harmônico; talvez tenha se passado sempre sob o signo da “cordialidade” tematizada por Sérgio Buarque de Holanda. De fato, entre 30 e 84, anota-se um golpe de Estado, ou tentativas de golpe, numa proporção 199

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de 1 para 3, isto é, um golpe/tentativa a cada 3 anos.. Isto refletia, de algum modo, a radicalidade da transformação e a contradição entre as formas políticas em que ela se operava, o clássico problema da relação entre economia e política. De outro lado, a emergência e consolidação do movimento ope rário, a emergência do campesinato como classe, magnificado pelas Ligas Camponesas no período imediatamente anterior ao Golpe de 64, implodia com as relações no interior do pró prio bloco dominante, impedindo que a burguesia fizesse a sociedade à sua “imagem e semelhança” . A poderosa reativa ção do movimento operário e sindical desde os anos 70 exa cerbou a crise no bloco dominante, levando à liquidação da ditadura, pela sua incapacidade de continuar a reprimir os trabalhadores, e por isso, “prever” os desdobramentos da re produção ampliada. Com a redemocratização formal em 84, as contradições no interior do bloco dominante se aguçaram, já que a repressão não mais funcionava, a iniciativa das classes dominadas - gre ves, criação das centrais sindicais, movimentos sociais e da cidadania - dificultava, enormemente, a resolução de certas questões centrais para uma nova fase de expansão. A questão do lugar do Estado era, talvez, a mais central deixada irresoluta, sobretudo numa quadra de globalização. Não resultava funcional para a burguesia a apropriação do espaço democrá tico. A formalização dessa “irresolução”, com o avanço dos direitos da cidadania, em geral, na Constituição de 1988, dra matizou o impasse. Desde antes, a contradição entre as formas da política e as exigências da acumulação de capital havia ca minhado no sentido da dilapidação financeira do Estado, com o que a “previsão”, própria do Estado moderno, entrava em colapso, e com ela, a própria ditadura. Em 1989, todo o arcabouço da “revolução passiva” e das contradições não resolvidas quase foi abaixo: um devastador terremoto, quase 7 na escala Ríchter, que é de 8, aparecia na expressão dos 45% de votos conquistados por Luís Ignácio Lula da Silva na eleição de 89. Um susto quase fatal, quase infarto, percorreu o bloco dominante de alto a baixo e operou 200

A VANGUARDA DO ATRASO E O ATRASO DA VANGUARDA

de que, assim, se deslegitima a democracia. A primeira tarefa in telectual e prática do campo democrático é probíematizar o con ceito e a prática dessa democracia “consensual e hegemônica”. A característica central da contradição latino-americana, explicitada e posta em marcha pelas políticas econômicas cha madas neoliberais, a exclusão, Essa exclusão tem éque qualificada: pois oleit émotiv dos argumentos neoliberais que ser as políticas dos simulacros de Welfare, entre nós, mais excluí ram do que incluíram. Nisso, copiam os argumentos conser vadores, desde Hayek e Friedman. A inflação, por exemplo, resultado - na fórmula reducionista neoliberal - de expansão dos gastos sociais sem receita que os avalizasse, exclui, pela permanente corrosão dos salários, os grupos sociais pobres do consumo moderno. Além disso, a inflação penaliza fortemente os mais pobres pelo chamado “ imposto inflacionário” . Em suma, o Welfare exclui exatamente pela prática de políticas supostamente integradoras. A neoliberais, evidência fornecida aténão agora pelos resultados das políticas entretanto, são muito favoráveis aos seus argumentos: o México já é hoje um caso clássico de rigidez excludente; ninguém seriamente apos ta que qualquer revitalização da economia mexicana possa repor a imensa massa de subempregados que em qualquer cal çada mexicana estão vendendo - suprema ironia - garrafinhas da água mineral de elite, a Perrier francesa. Na Argentina, cinco anos de estrondoso sucesso do Cavallo que caiu do cavalo (isto é, Menem) produziu uma massa de desemprego que teima em permanecer em irredutíveis 1 7/18 % , fenômeno único na história argentina, que sempre se caracterizou por pleno em prego, desde os dias da grande entrada do país austral como fornecedor de alimentos no mercado mundial. Em todos os outros, o registro é do mesmo tipo. O Brasil apresenta a sau dável taxa de desemprego de 6% da PEA, com um incremento de 1,5 2% entre maio de 96 e maio de 97 (Carta IBGE, ano III, n.37, ago/97), mas os resultados para sua capital econô mica, toda a Grande São Paulo, medidos pelo convênio SEADE/D IEESE elevam-se ao patamar de 15 ,7 % , em julho de 97 21 1

OS DIREITOS DO ANTIVALOR

(Folha de S, Paulo,28/8/97) muito próximo do argentino. Es timativas que levam em conta o desemprego disfarçado nos milhares de pontos de venda do imenso bazar persa em que se transformaram, praticamente, todas as grandes cidades da América Latina, autorizam a supor que desemprego aberto mais desemprego disfaçado alcançam níveis de 30 a 50% da PEA, dependendo do país. Depois dos primeiros resultados do Plano Real, de aboli ção do “imposto inflacionário”, da seignorage,em linguagem mais elegante, proclamou-se uma formidável redistribuição de renda, responsável pelo exponenciaí crescimento do consumo de... frangos. Para os brasileiros, não resisto à piada: foi a forma de FHC ajudar Maluf... Fim do parêntese. Desde mea

dos de 96, entretanto, anota-se o fim dessa redistribuição de renda e a estagnação do crescimento do salário médio real. A mesma publicação do IBGE já anotava recuo de 0,20% do salário real médio na indústria, de março para abril de 97, enquanto no comércio varejista o recuo somava 0,59% entre maio 96 e maio 97. A pesquisa SEADE/DIEESE, já referida, acusava uma queda acumulada de 1 5,6 % dos rendimentos dos 10 % mais pobres da Grande São Paulo, entre janeiro/97 e julho/97, justamente o estrato mais “beneficiado” pela redis tribuição de renda promovida pelo Plano Real! Categorias in teiras, como as do funcionalismo público, amargam uma erosão salarial que já vai pela casa dos 64%, igual à inflação desde a implantação do Real, período no qual não houve ne nhum reajuste salarial, exceto para os militares... A sensação de marasmo invade todos os setores. Noutras palavras, a vanguarda do atraso aqui também co pia o atraso da vanguarda. O sucesso da política antiinfíacionária - paradoxal mente, diria Rangel - impede qualqu er política social, mesmo aquelas que copiam o velho assistencialismo do Estado desenvolvimentista, a confracção latinoamericana do Estado do bem-estar. Precisamente porque a política monetária, permanentemente amarrada - e ancorada no dólar, perdeu toda sua autonomia, que é o oposto do que dizem tanto o governo quanto a mídia; a ancoragem exige que 212

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cas. O estigma do “ marajá” , que simbolizava a ira e o ressen timento popular contra as longas filas do INSS, foi utilizado então para esfarelar o pouco de políticas públicas que havia e para atacar as organizações populares, sobretudo as organiza ções sindicais que, sem louvações indevidas, estavam no núcleo da construção de uma esfera pública não-burguesa no Brasil e do rompimento da sociabilidade da “casa grande” e do “ho mem cordial”. Collor era apenas o sintoma inicial, ainda balbuciante, mal articulado porque apenas saído do forno longo de hesitações e violentas acomodações de lutas internas à bur guesia, da mudança de paradigma do sentido mais geral da sociabilidade, do Iluminismo para o Conservadorismo, É com Fernando Henrique Cardoso, entretanto, que a in versão se completa, se radicaliza, amadurece e ganha foros de projeto de hegemonia. Amadurece porque ganha uma lideran ça intelectual, cujo sentido não é apenas o da antiga condição de seu titular, mas o de “organizador” das articulações; se radicaliza porque ganha a adesão de um antigo adversário - o próprio presidente - e com isso se desinibe, mostra suas griffes, luta num terreno em que praticamente somente seu adversário nacional ainda tenta uma alternativa, enquanto no plano in ternacional derrocada do “socialismo desmoraliza as perspectivasa anticapitalistas; ganha forosreal” de projeto de hege monia porque unifica praticamente todo o espectro político que vai do centro à extrema direita, e no plano dos interesses de classe burgueses unifica os que vão do campo à cidade, passam pela nova complexidade dada por uma divisão social do trabalho, em que a própria agricultura já é inteiramente capitalista, a indústria é 34% do PIB nacional, os serviços já são mais de 50% do PIB e não são mais serviços de garotos lavando carros na rua, ealcançou a intermediação (bancos finanças não-bancárias) a marca,financeira recorde para o mune do capitalista, de uns 13 % do PIB nacional; além disso, o que não é desimportante, as antigas fraturas regionais, que no pas sado deram lugar às revoltas e revoluções, a última das quais foi a própria Revolução de 30, foram substituídas por uma burguesia (com todos os seus ramos e frações) unificada na 226

DOMINANTES E DOMINADOS NA PERSPECTIVA DO MILÊNIO

cionalmente (que inclui, é claro, a burguesia internacional aqui presente), que é a mesma da Amazônia ao Rio Grande do Sul, passando pelo Nordeste, num movimento que teve nas em presas estatais um dos epicentros de sua aglutinação regional e nacional. Os-interesses dos dominantes tendem a transfor mar-se em “senso comum” para os este sempre foí, na interpretação gramsciana, umdominados, dos claros esintomas de hegemonia, de produção de consenso que substitui a pura vio lência como elemento da dominação de classes. É o que se passa na mitificaçao da estabilidade monetária pós-Plano Real: as classes populares, que só têm objetivamente a ganhar com reformas profundas no Brasil, dadas as desigualdades, que são crescentes, converteram-se nas maiores defensoras da estabi lidade, isto é, da não-reforma, devido a uma dolorosa expe riência subjetiva de convivência com a inflação. Quais são os sentidos fortes político-sociológicos do Con servadorismo e da Reação como orientadores gerais da socia bilidade? Que significa dizer que habitam no imaginário e portanto caucionam todas as políticas, não políticas e anti-po líticas públicas que justamente poderiam tentar, no sentido do Iluminismo, cumprir a velha promessa da igualdade? O primeiro sentido é o da substituição do “princípio da esperança” pelo “princípio da realidade”. No discurso políti co, essa mudança é claríssima. O “princípio da esperança” não era a transferência para o futuro das resoluções dos problemas; ao contrário, o “ princípio da esperança” queria dizer qu e todos os problemas eram históricos, podiam ser resolvidos, que eles constituíam desafios, ao contrário de constrangimentos. O “princípio da realidade”, ao contrário, diz que há limites, como os 40 milhões de brasileiros que o presidente Fernando Henrique Cardo so admitiu, em conferência interna cional, es tarem condenados a permanecer excluídos do novo Brasil “globalizado”. O “princípio da realidade”, ao contrário do realismo de que se autovangloria, é completamente anti-rea lista: ele é imediatísta, congela o futuro e o antecipa numa presentificaçao. Não há, portanto, mais futuro: há somente um presente, que se não for aproveitado agora, perdeu-se. Do 227

OS DIREITOS DO ANTIVALOR

ponto de vista sociológico, o “princípio da realidade” é con servador, pois tende a produzir o medo às reformas e mudan ças, embora o discurso de hoje no Brasil insista em dizer que as “reformas constitucionais” estão se fazendo justamente para propicia r mudanças. A aceitação do status quo é uma conseqüência das mais importantes do “princípio da realidade”. A intransponibilidade da situação social, da estrutura social de classes, aparece então como mostra de realismo, quando ele é um perigoso sintoma de conformismo. Numa sociedade como a brasileira, que ainda não se “desencantou” inteiramente, no sentido weberiano, em que assistimos cotidianamente desde familiares de vítimas de acidentes de avião até mães do Nordeste que já perderam 1 4 dos 18 filhos que tiveram, aceitarem, novamente, que se cumpriu a vontade de Deus, para além das crenças religiosas, o que está em jogo é uma mudança importante no sentido mais geral que presidia a sociedade. Até ontem, até médicos, uma espécie de substitutos de Deus na terra, já co meçavam a ser questionados por seus erros, perfeitamente hu manos, aliás; empresas de aviação estavam sendo levadas aos tribunais por se descuidarem da manutenção de aeronaves; e justamente no mundo do trabalho, que foi por onde entrou a cidadania brasileira, de há muito os acidentes de trabalho pas saram de uma falha humana a respon sabilização do interpretação capital e dos de empresários pelopara recorde de acidentes do qual o Brasil é detentor dessa iníqua taça desse maligno campeonato mundial. Com o “ princípio da realidade ” tudo isso tende a voltar a explicações ou transcendentais ou àquelas que procuram contemporizar apelando para condições especiais de competitividade da mão-de-obra. Tal como um conhecido ex-ministro do Planejamento da ditadura militar foi a Estocolmo, ainda no auge do “milagre brasileiro”, na primeira grande reunião mundial sobre meio ambiente, dizer que o Brasil recebería de braços abertos as indústrias poluidoras, pois o essencial era a geração de emprego e renda, e depois se podería combater a poluição! A devastação da Amazônia e 22 8

DOMINANTES E DOMINADOS NA PERSPECTIVA DO MILÊNIO

o estado de calamidade das cidades brasileiras não são resul tados ocasionais daquele “princípio de realidade” da ditadura. Correlata à substituição do “princípio da esperança” pelo “princípio da realidade” é a regressão de uma sociedade que, do plano dos direitos desliza em direção ao contrato mercantil. Este, queFrancesa está na base da racionalidade desdeé asua Re volução - a edição do Código burguesa de Napoleão marca por excelência, ele mesmo uma espécie de regressão da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão - foi gra dativamente revelando-se insuficiente até a complexidade da própria sociedade capitalista; sobretudo a “inventividade de mocrática” (Castoriadis) deslocou o contrato mercantil e co locou no seu lugar os direitos, civis, políticos, e por último os chamados direitos sociais. Contemporaneamente, o avanço dos direitos já está no plano dos chamados “direitos difusos”, isto é, sem sujeitos, que não é a prova da “implosão do sujeito” foucaultiana, mas contorna esse falso problema, situa-se para além dessa discussão, é uma espécie de estatuto transcendental do direito, que não precisa subjetivar-se. Isto é, não pode mais ser negado: é uma afirmação, no nível mais alto, das conquistas humanas, uma espécie de “cláusula pétrea” . O Conservadorismo e a Reação como princípios legitimadores e estruturadores das novas relações sociais, da sociabi lidade e do imaginário, na sociedade brasileira, regressam ao contrato mercantil como princípio regulador. Destroem direit tos, e não se detêm mesmo diante de uma interpretação tão consagrada mundialmente como a dos direitos adquiridos. Ela trabalha ao modo nazi-fascista e Stalinista de permanente presentificação do passado, isto é, o passado não existe, e portanto não existe história propriamente. E isto o que significa os stalinistas eliminando Trotsky da história russa e já soviética; é isto o que significava Hitler e Goebbels mandando queimar livros que nunca deveríam ter sido escritos: mas o tinham sido! E isto o que significam no Brasil as “reformas constitucionais” do Presidente Cardoso e de sua maioria parlamentar, quando desfazem os direitos de funcionários públicos, de trabalhado res, de aposentados, quando reabrem as demarcações das re 229

OS DIREITOS DO ANTIVALOR

servas indígenas. Não há história, eles não viveram; o que interessa é o presente, os interesses do presente, e para isso o passado deve ser presentificado. Como a força dessa presentificação é mercantil, o“flexíveis”, que resta desregulamentados, é um simples contrato mer cantil: trabalhadores funcionários públicos à mercê dos poderosos de cada dia, um aparelho de Estado que deve conformar-se à demanda e oferta, como uma empresa, terras indígenas e cuja posse deve ser aberta à contestação, para que se legitimem(P) No limite, a regressão ao contrato mercantil tende, por analogia, à mesma regressão do nazi-fascismo. Sendo impos sível, dada a complexidade da sociedade, voltar-se ao contrato mercantil, são. Assiste-se, a violência então, termina à violência por serexplícita a parteira como dessa moeda regresde troca nas relações sociais, até no cotidiano: a violência é o novo código da sociabilidade. Não à toa, o Instituto de Pes quisas Econômicas Aplicadas do Ministério do Planejamento e Orçamento divulgou, na última reunião anual da Associação Brasileira de Estudos Populacionais - ABEP - em outubro de 1996, em Caxambu, Minas Gerais, estudo que constatava a elevação proporcional dos assassinatos, suicídios e acidentes de trânsito, que hoje são 70% da mortalidade na faixa etária da população masculina de 15 a 29 anos, detendo a queda histórica da taxa naquela faixa. A violência “fria” e não explí cita passa~se no mundo do trabalho: o desemprego aumenta, apesar da descarada manipulação que o governo e o IBGE fazem da matéria, os trabalhadores e principalmente as mu lheres trabalhadoras “somem” das planilhas e das estatísticas através da terceirização, da flexibilização, do trabalho em tem po parcial e do trabalho a domicílio, agora também categori zado como “flexível”. Uma sociedade com tais desigualdades presidida por um consenso conservador, tendo como norte a Reação, nada tem de bom a esperar. O enigma imediato pode ser decifrado sem dificuldades: o mais imediato, que é a perspectiva para o pró ximo milênio, exige uma reflexão urgente, sobre o padrão civilizador que conduzirá a sociedade pelo menos na próxima 230

' DOMINANTES E DOMINADOS NA PERSPECTIVA DO MILÊNIO

década. Uma ciência social responsável não se permite ilusões cínicas a respeito da modernização em curso. Esta tem tudo para fazer-nos entrar no século XXI sob o signo da desespe rança, da violência e da barbárie. O papel da ciência social, reconhecendo seus próprios limites num século que fetichiza o poder da ciência, é o de insistir, contra todas as evidências “ realistas” , sobre as conseqüêndas de mudanças tão drásticas, sobretudo sobre a tragédia que constitui uma sociedade sem esperança.

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