Divina De Jesus Scarpim - Deus Não Existe E Eu Posso Provar.pdf

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2016

Deus não existe E eu posso provar Divina de Jesus Scarpim Produção Gráfica: Editora Essencial Capa: Dimitri Zeis Assistente Editorial: Marcia Villaça Obra revisada pelo próprio autor SC286d Scarpim, Divina de Jesus Deus não existe e eu posso provar / Divina Scarpim / São Paulo, 366 págs - Editora Essencial - 2016 ISBN: 978-85-68672-24-2 1.Título 2 . Filosofia CDD 190 CDU 141

Copyright © 2016 Divina de Jesus Scarpim Direitos da edição impressa adquiridos pela EDITORA ESSENCIAL CNPJ: 14.001.349/0001−52 Fone: (11) 98763.5313 / (11) 3459.5255 Dedico esse livro a todos os teístas que em algum momento aceitaram conversar comigo sobre deus. Respeitosamente ou não, apresentaram argumentos que me ajudaram a pensar novas questões e procurar mais informações. Sou muito grata por isso.

Deus Existe? Antes de cada ponto, entre cada vírgula, entre muitos parágrafos, a professora Divina questiona a existência de Deus, através de textos e questões polêmicas. Suas páginas são de indignação humana e com fortes razões. Quando a conheci na Feira de Livros da zona sul de São Paulo, Divina aparentemente não me parecia uma pessoa de grandes polêmicas. Simples, sorridente, de bem com a vida. Depois fui pesquisando suas ideias e textos. E só após ela me entregar este livro de mil vozes, é que pude perceber o quanto estava enganado. Sua convicta coragem alerta as pessoas mais incautas sobre o poder das religiões na mente. Como agem politicamente e praticam intolerância para manter “a palavra de deus”. Os textos muitas vezes históricos transpassam por filosofias e definições de intelectuais levantando grandes questões sobre a existência deste deus bíblico de muitas faces religiosas.

Pessoalmente não sou ateu. Mas também não sigo nenhuma religião. Costumo dizer que a arte é meu caminho religioso, meditação e coluna ereta. O resto são princípios e valores que não devemos esquecer. Em tempos de procura de uma “verdade religiosa”, liderando políticas nacionais e internacionais, partidos, povos e guerras, este livro é pura reflexão. Boa leitura Carlos A. Torres - Editor da Essencial

Sumário Prefácio - O crepúsculo de Deus Começando Quem é Deus? De que Deus eu falo? 15 A Presença do Mal 137 Biografia 359 Bibliografia 360

Prefácio O crepúsculo de Deus Se como quer Nietzsche “as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas”, a originalidade do trabalho de Scarpim está justamente na proposição de novas metáforas para explicar antigas questões. Mudar o valor nominal das moedas com as quais fazemos o “comércio” da divindade em um mundo cada vez mais carente de paradigmas que deem sentido a antigas questões éticas e morais é um desafio que poucos se propõem a enfrentar. Propositadamente, não faço nenhuma citação de passagens do livro neste prefácio, porque espero que o leitor experimente o mesmo sabor de novidade que experimentei desde a apresentação até a última linha de um trabalho que é no mínimo um desafioàs nossas certezas e incertezas. Ao estilo limpo e incisivo da autora alia-se um cuidadoso trabalho de pesquisa que não apenas dá suporte à sua argumentação, mas também abre perspectivas para outras abordagens a partir de suas reflexões. Os ecos e reverberações de outros textos e ideias em seu trabalho possibilitarão

diálogos intertextuais tão férteis quanto as provocações que faz. Impossível ficar indiferente. Avram Ascot (Abrahão) Primavera de 2016/hemisfério sul Abrahão Costa de Freitas, Escritor, é formado em Letras, com especialização em Jornalismo Internacional com larga experiência no magistério lecionando para o ensino fundamental, médio e superior. Além disso, atuou também como Tradutor de Língua Inglesa e espanhola e Produtor de Eventos Culturais. Sua trajetória literária inclui a participação em diversas antologias e concursos literários, tendo sido premiado em vários deles. Em julho de 2016, lançou a coletânea de contos “Acontecências”, pela Editora APMC. Coletânea esta que será relançada em breve pela Editora Essencial em edição revista e ampliada. “Senhor, dá-me a faculdade de jamais rezar, poupa-me a insanidade de toda adoração, afasta de mim essa tentação de amor que me entregaria para sempre a Ti. Que o vazio se estenda entre meu coração e o céu! Não desejo ver meus desertos povoados com Tua presença, minhas noites tiranizadas por Tua luz, minhas Sibérias fundidas sob Teu sol. Mais solitário do que Tu, quero minhas mãos puras, ao contrário das Tuas que sujaram-se para sempre ao modelar a terra e ao misturar-se nos assuntos do mundo. Só peço à Tua estúpida onipotência respeito para minha solidão e meus tormentos. Não tenho nada a fazer com Tuas palavras. Concede-me o milagre recolhido antes do primeiro instante, a paz que Tu não pudeste tolerar e que te incitou a abrir uma brecha no nada para inaugurar esta feira dos tempos e para condenar-me assim ao universo, à humilhação e à vergonha de existir.” Emil Cioran1 1 In: A arrogância da oração: http://ateus.net/artigos/filosofia/aarrogancia-da-oracao/ - Acesso em: 02 Nov. 2011

COMEÇANDO Antes de tudo quero falar de todas as pessoas religiosas que são decentes, boas, amigas de verdade e que procuram viver da melhor forma sempre respeitando o outro e as diferenças de opiniões e crenças. Não pretendo, em nenhum momento, ofender essas pessoas, tenho muitas delas entre meus amigos e em minha família; uma delas me cuidou e me deu esse nome que tenho como contradição. Gostaria que ficasse claro que não estou tentando ofender todos os religiosos do mundo quando coloco em dúvida a crença religiosa e, principalmente, quando coloco em dúvida o que algumas pessoas fazem em nome dessa crença. Sei que há muitos e muitos religiosos de várias correntes, de várias igrejas, de várias fés,

que não tomam posturas abomináveis e que, eles também, são contra o radicalismo e a intolerância. O cristianismo é o foco central de minhas observações e críticas apenas pela maior familiaridade que tenho com ele uma vez que – como a grande maioria dos brasileiros – fui criada em lar cristão; e meu nome comprova isto. Mas não quero me restringir apenas ao cristianismo porque acredito que muitos dos principais argumentos utilizados aqui são válidos também para o islamismo, o judaísmo ou qualquer religião, seita ou crença individual que defenda a existência de um deus criador onipresente, onipotente, onisciente justo e bom. Questiono até onde a crença em deus se justifica diante da realidade do mal. Uso aqui o termo teísta para me referir a todas as pessoas que acreditam na existência de um determinado deus criador do universo e o que definem como sendo onipotente, onisciente, onipresente, bom e justo, independente de que nome o chamem. O termo teísta vale para todos os religiosos praticantes e vale também para aqueles que não são adeptos de nenhuma religião. Tenho visto que muitos teístas convictos se sentem horrorizados com a possibilidade da existência do terrível deus do Antigo Testamento; é comum ouvir deles a frase: “Não é nesse deus que eu acredito”. Não importa em qual deus você acredita; se você acredita em um deus criador do universo, onipotente, onisciente, onipresente, bom e justo, eu o chamo teísta. Exceto em começo de frases, claro, utilizo a palavra deus grafada com letras minúsculas e essa foi uma decisão que demorei muito a tomar. Quando fiz meu TCC, o professor orientador disse que a grafia deveria ser com inicial maiúscula porque mesmo não acreditando em sua existência eu estava usando o nome de uma entidade, mas aqui não estou falando exatamente o nome de uma entidade (e não estava também no TCC) estou falando de uma ideia, ou do “fator deus” como disse Saramago2, uma ideia que provoca sentimentos e ações variados nas pessoas, uma ideia que, na maioria das vezes não equivale apenas a um conceito mas a três, ou mais. Portanto, concluí que a grafia respeitosa usada nas referências ao deus bíblico pelos que nele acreditam não seria a mais adequada. 2 “Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou, mas o “fator deus”, esse, está presente na vida como se efetivamente fosse o dono e o senhor dela”. - SARAMAGO, J. O fator Deus, texto publicado no jornal Folha de São Paulo, em 19/09/2001 Disponível em: http:// www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u29519.shtml. Acesso em: 13 dez. 2010.

Muitas pessoas, cultas e não cultas, são contra qualquer debate, conversa ou

tentativa de argumentação sobre o assunto religião, alegam que “religião não se discute”, dizem que não vale a pena falar sobre isso porque não chegaremos a nenhuma conclusão, dizem que o tema é demasiado complexo para ser analisado pela mente humana e, além disso, juram que é mais do que sabido por todos que não é possível provar a existência ou a inexistência de Deus. Mas, apesar de todas as discordâncias e certezas, resolvi não só tocar no assunto como também tentar mostrar que se pode sim provar a inexistência de deus. Não pretendo desrespeitar a fé de ninguém, apenas discutir a lógica e o sentido dessa fé, olhar para ela sem tê-la como verdade absoluta e intocável; e mais, pretendo, sempre que necessário, questionar a fé, questionar a religião e seus preceitos, questionar suas verdades e seus dogmas3. Não faço isso para ofender, apenas para apontar as incoerências que percebo, para mostrar as minhas dúvidas, para expor meus pensamentos e sentimentos; para conseguir, talvez, que algum teísta me dê uma explicação que faça sentido. Muitas vezes a discordância religiosa, para não dizer intolerância, acaba por produzir eventos desagradáveis e expor comportamentos antiéticos. São muitos os casos a se 3 Não seria ridículo alguém que tentasse rejeitar a explicação de Newton para o maravilhoso fenômeno do arco-íris alegando que essa explicação faz uma análise minuciosa dos raios de luz, um assunto, na verdade, demasiado refinado para a compreensão humana? E o que diria alguém que, nada tendo de particular a objetar aos argumentos de Copérnico e de Galileu a favor do movimento da terra, suspendeu o seu juízo em virtude do princípio geral segundo o qual esses assuntos são demasiado grandiosos e remotos para serem explicados pela estreita e falaciosa razão dos seres humanos? (HUME, D. Obras Sobre Religião 2005, p. 14-15)

lamentar: manifestações populares marcadas pela violência a propósito de qualquer lei de um estado laico que venha a contrariar preceitos e dogmas religiosos são comuns; as depredações a clínicas que fazem aborto e até o assassinatos de médicos chegaram a ser notícia várias vezes nos países em que o aborto não é criminalizado; menos conhecidas mas igualmente recorrentes são as proibições de palestras e as agressões a filósofos e cientistas de pensamentos mais liberais, e portanto mais polêmicos. Essas intolerâncias e tentativas de tornar lei o que é apenas preceito religioso têm também, e infelizmente, o potencial de causar sérios entraves a avanços significativos no campo da ciência; e causam até mesmo sérios atrasos e proibições absurdas – que em muitos casos custam vidas – às descobertas científicas que trazem melhorias para a saúde e qualidade de

vida das pessoas. Isso sem contar os diversos casos de preconceito e discriminação perpetrados e incentivados pelo excessivo apego religioso. Como exemplos – não únicos – de problemas graves causados pela intolerância religiosa para pensadores e cientistas, posso citar os casos de Baruch de Espinosa, excomungado e amaldiçoado pelo cristianismo e pelo judaísmo por ousar defender um deus-natureza que não seguia as descrições estipuladas pelos líderes da igreja e da sinagoga; e Hipátia, filósofa e estudiosa que foi torturada e assassinada pelo crime de ser mulher, culta, inteligente e não cristã. Um caso menos antigo é o de Bertrand Russell4, que, nos anos 40, foi vítima de uma série de críticas, ameaças e calúnias com o objetivo (alcançado) de impedilo de lecionar na faculdade municipal de Nova York e, como caso mais 4 Apêndice: Como Bertrand Russell foi impedido de lecionar na faculdade municipal de Nova York. In: RUSSELL, B. Por que não sou cristão, 2009. p. 176

recente, o filósofo Peter Singer5, cujos comportamento e discurso éticos não combinam com a tarja de nazista que lhe deram. Singer é um pensador obrigado a enfrentar a fúria de grupos religiosos que o atacam por sua postura não radical diante dos temas da eutanásia e do aborto. Penso que discutir o assunto é sempre uma maneira de colaborar para que os radicalismos sejam minimizados. Argumentos lógicos podem não levar ninguém a se tornar ateu – e nem é isso que pretendo – mas existe a chance de que eles consigam ajudar as pessoas a compreenderem que não temos obrigação de aceitar suas verdades como leis. É possível que falar sobre o assunto como estou falando ajude as pessoas a deixarem de pensar que somos vilões. Talvez elas não fechem os olhos com tanta força quando compreenderem melhor os motivos da nossa descrença; e, principalmente, pode ser que elas não se deixem tentar pelo desejo de levar sua religiosidade a extremos. Essa sim, além do puro, simples e humano desabafo, é minha intenção. Devo esclarecer logo de início para que ninguém use esse argumento para dizer que sou no final das contas uma teísta, como muitas vezes tentam fazer, que quando falo em deus como afirmação em expressões do tipo “deus criou”, “deus quis”, “deus é”, estou sempre – sempre mesmo! – me referindo a deus da forma que os teístas o veem e da forma que descrevem suas ações, ficaria muito

cansativo se em todos os momentos eu tivesse que escrever “se existisse” ou “de acordo com o que dizem os teístas”. Faço essa ressalva em muitos momentos, mas não em todos; por favor, que 5 [Peter Singer] Dá aulas com a polícia à porta, para os manifestantes não o impedirem de leccionar. É acusado de ser Nazi, mas é na verdade um filósofo de esquerda, que luta incansavelmente em prol da liberdade e da igualdade. Foi impedido de falar na Alemanha e na Áustria. É autor de uma vasta bibliografia filosófica na área da ética aplicada.ǁ (Disponível em: http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2001/11/10768. shtml. Acesso em: 12 abr. 2011)

ninguém pegue uma dessas omissões para dizer absurdos como “você mesma disse que deus existe quando...”. Peço desculpas antecipadas por me tornar muito repetitiva em vários momentos, mas não pude evitar (e confesso que nem tentei muito) porque muitas vezes um argumento, um fato, um exemplo acabam servindo em mais de um caso, em mais de uma situação e em mais de um ponto sobre o qual se analisa e se discute o tema em questão. Além disso, sem querer de forma alguma ofender a inteligência de quem porventura me leia, sinto a necessidade de ser o mais clara possível para que meus argumentos e minhas palavras não soem ou não pareçam diferentes do que eu quis que parecessem. O receio de não ser clara o suficiente, o receio de não saber me explicar de forma a não deixar margem a uma interpretação que ofenda as pessoas, o receio de que eu não consiga me fazer entender, o receio de que a pessoa leia um argumento importante e não o leve em consideração ou o esqueça completamente antes de discordar, muitas vezes a ponto de me mandar para o inferno ou querer de moto próprio me levar para lá é o que me faz detalhar mais de uma vez e o mais possível meus argumentos, repetindo e frisando a origem desses argumentos. Prefiro ser repetitiva a ser hermética. E por último: Sim, eu uso referências da Wikipédia! Esse livro é uma exposição de ideias e não um tratado científico, a Wikipédia é a enciclopédia mais à mão para qualquer pessoa que use computador. Se você quiser aprofundar mais o assunto ou confirmar os dados fornecidos, faça como eu quando me encontro nessa situação: procure outras fontes.

QUEM É DEUS? DE QUE DEUS EU FALO? I

É comum, diante de quaisquer textos com questionamentos que ousem ir contra religiões, religião ou deus, pessoas comentarem esses textos perguntando a que deus o autor do texto se refere; alguns perguntam: “Você está falando de Zeus, de Odin ou de Rá?”. Claro que quem faz essa pergunta quase nunca é um religioso fanático, embora muitas vezes seja um daqueles que são ou se acham muito cultos e por isso pensam que será muito fácil convencer essa ateia aqui de que o deus deles é muito diferente dos acima citados. Os teístas mais suaves e tolerantes me informam de que mesmo que eu não acredite em deus ele acredita em mim, e afirmam ainda que deus (ou Jesus) me ama. Outros, entre o fanatismo e a tolerância, afirmam que sou uma infeliz, sem amor, frustrada e egoísta, e dizem que odeio deus porque sofri alguma grande perda e, por ser fraca e egoísta, culpei deus por isso; juram que um dia vou “receber uma graça”, enxergar a verdade e me arrepender de tudo o que digo. Já os mais fanáticos lamentam minha ignorância, me ofendem com palavrões e “convites” não muito aceitáveis e, invariavelmente, me ameaçam com o fogo eterno; às vezes acrescentam que eles estarão, no paraíso e envoltos em delícias, me vendo queimar e rindo do meu sofrimento, que será, segundo alguns, um motivo a mais para o seu deleite. Quanto aos primeiros não tenho como não achar divertida essa ingenuidade contraditória – eles afirmam sempre que ninguém pode saber nada sobre deus, mas sabem que ele me ama e que acredita em mim; quanto ao segundo grupo não entendo como podem tirar tantas conclusões erradas sobre mim e sobre a minha vida com tanta convicção; e quanto aos últimos fico impressionada com a “piedade” deles e do seu deus-todo-bondade. Os que me perguntam sobre que deus eu falo em alguns casos comentam a existência de vários deuses, citam deuses de várias religiões, relacionam vários conceitos ligados a cultos, mitologias e cerimônias do passado e do presente de várias culturas e de vários povos ao longo da nossa história. São informações válidas, interessantes e muitas vezes trazem novidades que são bastante úteis. Mas basicamente todo ateu sabe que existem e existiram muitos deuses na história da humanidade e eu também sei, não poderia deixar de sabê-lo sendo essa apaixonada por mitologia que fui desde criança, uma paixão que me levou a

roubar do meu pai – nota a nota, moeda a moeda em malabarismos de aventuras e mentirinhas bem elaboradas – o dinheiro para completar a coleção Mitologia, publicada em fascículos nos anos 70, que li diversas vezes e que ainda hoje tenho, amarelada e envelhecida, em minha estante. Também sou apaixonada por literatura e tenho muito interesse por história, inclusive história das religiões. Além disso, eu e muitos ateus também nos interessamos por livros e filmes de ficção científica, do tipo Isaac Asimov e Star Trek, portanto, alguns de nós temos conhecimento até mesmo de algumas projeções de deuses para o futuro, projeções que, diga-se de passagem, pelo menos pelo que vi até agora – e vi muito – não conseguem ser muito diferentes dos deuses de que temos notícias lendo história e atualidades. Tudo bem que ninguém é obrigado a saber disso tudo a meu respeito apenas lendo um texto crítico de cunho religioso, mas um dos meus argumentos básicos sobre o ateísmo é que ser ateu não é uma ação, uma escolha, um desejo ou uma opção de vida; em geral não escolhemos o ateísmo como quem escolhe uma roupa para sair à noite. Ser ateu é antes de tudo uma reação, portanto, se um ateu tem que explicar de qual deus afinal está falando quando afirma que deus não existe e que as religiões são coleções bem guardadas de absurdos, o ateu, de qualquer lugar do mundo e de qualquer cultura, país oucomunidade – caso lhe seja permitido ser ateu sem que por isso seja punido severamente ou até mesmo morto – dirá ao religioso que fala de todo e qualquer deus, mas que fala especialmente de um deus. E qual seria esse deus? Respondo por mim e acho que por todos os ateus: De que deus eu falo? Ora, gente, falo do deus de que me falam! No meu caso específico falo principalmente do deus judaico-cristão, isso porque vivo em uma cultura predominantemente católica e predominantemente cristã e, portanto, é do deus judaico-cristão que estiveram me falando desde minha mais tenra infância e é da existência dele que sempre tentaram, e ainda tentam, me convencer. Se tivesse nascido na Arábia, no Iraque, no Egito ou em qualquer outro país muçulmano, e se porventura pudesse fazê-lo sem correr o risco de ser assassinada, estaria falando de Alá; e se tivesse nascido judia, estaria falando do deus judeu, aquele que está na torá e no talmude e que é o mesmo deus dos cristãos, e também o mesmo deus dos muçulmanos, no fim das contas. Esse é o deus, ou esses são os deuses, cuja existência os teístas tentam afirmar a qualquer custo e que, em alguns casos muito infelizes, tentam – e às vezes

conseguem – impor pela força e a custa de muito sofrimento e muitas mortes. É também o deus, ou são os deuses, que os ateus mais radicais tentam negar com veemência, quando podem fazê-lo sem perder a vida. Dizem – principalmente os teístas que aceitam debater com ateus – que a história mostra que ateus fanáticos podem impor sua não crença com atos de violência tão danosos quanto têm sido os crimes praticados pela intolerância religiosa. Fico sempre muito reticente quanto a isso porque os exemplos que dão não me parecem ser de imposição do ateísmo pura e simplesmente, mas sim de imposição de mais um sistema de governo autoritário e ditatorial que, nesses casos, incluem a proibição de todas as religiões; da mesma forma que outros casos de outros sistemas de governos autoritários incluem a proibição de todas as religiões exceto uma, aquela que esse ditador usa como justificativa para suas práticas. Quero crer que não estou me comportando como uma ateia radical, principalmente porque tento não ser intolerante e jamais aceitaria participar de qualquer tipo de ação que pudesse ser sequer parecida com uma imposição de crença, de falta de crença ou mesmo da imposição de uma determinada postura, com respeito à religião, à ausência de religião ou a qualquer outro assunto. Na verdade, mesmo os ateus mais radicais, pelo menos até onde eu vi, não tentam impor sua não crença a força como fazem os religiosos fundamentalistas, em geral toda a violência do radicalismo ateu se resume a duvidar, ironizar e negar, algumas vezes de forma equivocada e até muito desrespeitosa, a inteligência de todas as pessoas que acreditam em deus. Concordo que essas não são atitudes muito pacíficas e educadas, concordo que os teístas menos radicais e até mesmo os próprios ateus mais moderados não deixam de ter uma certa razão quando protestam contra esse “radicalismo ateu”, mas o fato é que os ateus não tentam usar força física para obrigar ninguém a deixar de acreditar. Eu nunca vi radicalismo ateu que fosse além de palavras, em geral escritas. Então, como disse, procuro não ser e nem parecer uma ateia radical, embora minhas experiências tenham mostrado que para muitos religiosos – principalmente os mais fundamentalistas – apenas dizer-se ateu já é radicalismo suficiente. E não, eles não percebem a contradição. Vejo-me apenas como uma pessoa que não compreende o que afirmam ser a

“verdade”, uma pessoa que pensa muito a respeito do que ouve e lê, uma pessoa que, à força deteimar em pensar sem as travas da fé, tira conclusões diferentes do que comumente percebe na maioria das outras pessoas. Sou alguém que sempre que pode coloca suas questões, fala sobre seus pensamentos e revela suas conclusões; mesmo correndo o risco de irritar muita gente. O deus defendido pelo teísta e negado por mim é, em geral, definido – pelo teísta, é claro – como um tipo de entidade suprema além e acima da matéria. Ele é o Criador do mundo6, do universo, da natureza, do homem. Ele é o criador de tudo que, curiosamente, não criou o mal; ou não é responsável pela existência do mal mesmo que o tenha criado. Esse argumento não convence quem não tem o privilégio de ter a inabalável fé de um teísta porque, se usamos apenas a lógica em lugar de apenas a fé e o medo, podemos ver que não é possível livrar a responsabilidade de deus pelo mal e pela existência do mal. A verdade racional é que só ateus 6 “Só tu és Senhor, tu fizeste o céu, o céu dos céus e todo o seu exército, a terra e tudo quanto nela há, os mares e tudo quanto há neles; e tu os preservas a todos com vida, e o exército dos céus te adora”. In: Neemias 9:6.

podem afirmar que deus não criou o mal, já que para o ateu deus não existe e o que não existe não cria nada. Os teístas, por mais que pensem o contrário, não podem dizer isso sem estarem quebrando uma lógica mais do que perceptível; e contrariando a bíblia, claro.7 Enfim, deus é o criador transcendente basicamente dotado de cinco características que lhe são próprias e essenciais: justiça, bondade, onipotência, onisciência e onipresença. Da mesma forma que quando definimos um quadrado como sendo uma figura geométrica com quatro lados de mesmo comprimento e quatro ângulos retos estamos automaticamente dizendo que qualquer coisa que não seja uma figura geométrica, que não tenha quatro lados iguais e que não tenha quatro ângulos retos não será um quadrado, quando definem deus como sendo o criador justo e bom, onipotente, onisciente e onipresente, estão automaticamente dizendo que qualquer ser, existente ou não, que não tenha essas características – sejam algumas delas ou mesmo uma única – não será O deus. Podemos, por exemplo, falar de outras figuras geométricas, mas se não tiverem quatro lados iguais e quatro ângulos retos, elas não serão quadrados, da mesma forma podemos falar de um deus que não tenha uma, ou mais de uma, das

características que os teístas usam para definir seu deus, esse ser assim, digamos, incompleto pode até ser um deus – como os da mitologia greco-romana – mas não será o deus de que me falam. Nunca bateram à minha porta para trazer a palavra de um deus que criou uma parte do universo; nunca armaram aparelhos de som na praça aqui do lado de casa para gritar e louvar um deus poderoso mas não muito; nunca entraram em 7 “Eu formo a luz e crio as trevas; faço a paz e crio o mal; eu, o Senhor, faço todas estas coisas”. In: Isaías 45:7

um ônibus em que eu estivesse para dizer que preciso amar e respeitar um deus que é bonzinho só de vez em quando; que eu saiba ninguém vai à igreja para rezar ou orar a um deus que pensa que pode não estar lá; eu nunca soube de alguém que estivesse pedindo uma graça a um deus achando que ele pode não saber como fazer esse milagre; e finalmente, nunca ouvi algum religioso dizer que devemos ser bons porque uma vez ou outra deus é justo. Enfim, odeus de que me falam tem todas as características que o definem, todas juntas e todas em grau máximo, não falta nenhuma, nenhuma é menos do que o máximo. Um deus que não seja assim será outro deus; será um personagem mitológico, será uma fantasia, será parte do folclore de um povo, será, como gostam de dizer os evangélicos, um falso deus. O pintor belga René Magritte tem um quadro famoso que nos mostra um desenho muito realista de um cachimbo e sob ele a inscrição “Ceci n’est pas une pipe” – isso não é um cachimbo – alguém que veja o quadro pela primeira vez pode estranhar, afinal, aos olhos de qualquer um, o objeto representado ali é sim um cachimbo. Quando disseram a Magritte que o que ele fez foi sim um cachimbo, ele respondeu: “OK, você deve tentar enchê-lo de tabaco então”. Se alguém me mostrar um dado colorido, piramidal, daqueles usados para jogar RPG e me disser que é um quadrado porque é uma figura geométrica que tem lados e ângulos, não poderei aceitar o argumento. Da mesma forma que a pintura de Magritte apresenta alguns aspectos de um cachimbo mas não o suficiente para SER um cachimbo, um dado de RPG piramidal apresenta algumas características de um quadrado mas não o suficiente para SER um quadrado. É mais ou menos isso que acontece quando tentam me dizer que não é possível provar a inexistência de deus. Se estivessem tentando me convencer da

existência de um deus que não criou tudo, apenas algumas coisas; que não é onipotente, apenas muito poderoso; que não é onisciente, apenas conhece muita coisa; que não é onipresente, apenas passeia muito e, se você der sorte, ele pode estar por perto quando você precisar; aí então eu precisaria de outros argumentos para explicar por que não acredito nele. Mas se o seu deus é o criador único de tudo que existe, se é onipotente, onipresente, onisciente, onibenevolente e justo então o fato mais do que comprovável logicamente é que esse deus não existe. E essa é a minha tese principal: não é verdade que não se pode provar a inexistência de deus, SE estivermos falando do deus das religiões monoteístas que predominam no mundo, do deus cuja existência é e foi defendida historicamente por muitos filósofos, cientistas e gênios nas mais diversas áreas do conhecimento, então sua inexistência pode ser provada sim. Dizer que não se pode provar a inexistência não é uma verdade completa. Você pode provar a não existência de um triângulo quadrado definindo essas figuras geométricas e dessa forma mostrando que elas são logicamente excludentes e que a existência de um triângulo quadrado é uma impossibilidade lógica. Alguém que insistisse em afirmar que existe um triângulo quadrado estaria sendo irracional. A simples definição do que é um quadrado exclui a possibilidade de que um triângulo seja quadrado ou um quadrado seja triangular, a inexistência dessas figuras paradoxais está provada pela definição de cada uma das figuras geométricas independentemente do que alguém possa dizer em favor delas. É claro que não existem pessoas afirmando a existência do triângulo quadrado e ninguém nega que, caso uma criança me perguntasse se isso existe, eu não estaria faltando com a verdade se dissesse que não. Outro exemplo: Digamos que vou à sua casa e digo que você deve se mudar imediatamente porque eu sou a nova proprietária e tenho um documento que prova isso. Você vai querer ver esse documento e quando eu disser que o documento é invisível e imaterial você pensará que estou louca ou que estou brincando com você. Documentos de propriedade são textos escritos em papel, reconhecidos em cartório e assinados por pessoas em determinadas funções e com determinada autoridade. Qualquer coisa diferente disso não poderá ser um documento de propriedade e não terá valor como tal.

Se eu digo que o meu documento de propriedade foi escrito com uma luz mágica em uma nuvem invisível e que foi assinado pelo extraterrestre que é o proprietário original do planeta, você pode até suspender o julgamento sobre o extraterrestre, mas não vai aceitar que qualquer coisa que ele escreva seja um documento de propriedade válido. Qualquer coisa que eu apresente e que não seja um papel, um papel de celulose, palpável e visível, registrado e assinado pelos órgãos e pessoas competentes simplesmente não será um documento de propriedade válido e não terá o poder de fazer com que você abandone sua casa legalmente. Você e qualquer pessoa dirá que não existem documentos de propriedade escritos com luz mágica em nuvens invisíveis porque documento de propriedade é definido como papel, reconhecido em cartório e assinado por pessoas em determinadas funções e com determinada autoridade. Você poderá recorrer ao dicionário e com isso provará que esse documento não existe e que eu não posso tirá-lo de sua casa. Portanto, você pode sim provar a inexistência de algo se o algo que for apresentado como sendo aquele ser ou aquela coisa não corresponder às definições do que seja esse algo. Se uma determinada coisa não possuir as características que definem determinado ser, essa coisa – existindo ou não – não poderá ser aceita como sendo o ser cujas características não possui; ou seja, não existirá como o ser cujas características não possui. Tentando ser ainda mais clara: se zulix é definido como um objeto octogonal macio e sonoro fabricado pela brinkedix, qualquer coisa que me apresentem e que não seja octogonal macio e sonoro e que não seja fabricado pela brinkedix não será um zulix porque não existe “zulix” octogonal macio e sonoro fabricado pela brinkedix que não seja octogonal macio e sonoro e que não seja fabricado pela brinkedix. Mesmo que eu não possa provar que o objeto que me foi apresentado como sendo um “zulix” não existe porque podem ter mostrado apenas uma foto ou filme, eu posso provar que “AQUELE zulix” que me apresentaram, porque não é octogonal macio e sonoro e não foi fabricado pela brinkedix não existe, aquele zulix não existe porque não existe zulix que não seja octogonal macio e sonoro e que não seja fabricado pela brinkedix uma vez que a definição de zulix é “um objeto octogonal macio e sonoro fabricado pela brinkedix”. O tal objeto apresentado pode existir ou não, mas não será um zulix, não existirá

como zulix. E se eu souber que não existe nenhum objeto com a definição que foi dada para definir um zulix, por exemplo, porque a brinkedix nunca fabricou um objeto octogonal macio e sonoro então posso concluir – e provar – que zulix não existem. Pronto! Apresentei provas de inexistência! O problema é que, lendo alguns filósofos com suas teodiceias e ouvindo alguns teístas com seus argumentos de fé, acabei por perceber que, para os que não abrem mão de acreditar e de tentar convencer, vale até mesmo tirar ou enfraquecer algumas das características básicas de deus; desde que isso não fique muito óbvio para o ouvinte ou leitor comum. É como dizer que um zulix octogonal macio e sonoro é um quadrado duro e silencioso; ou só levemente octogonal, um pouco macio e de vez em quando silencioso. Debati com um teísta que, durante a conversa e para não abrir mão da sua verdade, tirou não uma ou outra mas todas ascaracterísticasdefinidorasdodeusqueestavadefendendo. Esse teísta me disse que quando deus surgiu o universo já existia e já estava povoado por outros seres, portanto deus não pode ser culpado pela criação de nada; disse que deus é o Tudo e o Nada e que isso significa que deus pode ser bom oumau, justo ou injusto; disse que deus é onipotente mas não pode tudo “só porque você quer que ele faça isso”; disse que deus é onisciente mas só sabe das coisas depois que elas acontecem ou, nas palavras dele “depois que algo tem início”. Por essas características todas (ou falta delas), defendia ele, deus não é culpado por absolutamente nada do que acontece ou tenha acontecido, nós sim, por o termos desobedecido, somos culpados por tudo. Esse teísta ficou tremendamente ofendido quando eu disse que ele estava me descrevendo um deus bipolar e inútil e argumentou que deus não existe só para ser útil “como um kit da Kodak”. Ah, e ele usava a bíblia para cada uma de suas afirmações; mais uma prova de que a bíblia pode ser usada para justificar qualquer coisa. Fiquei pensando como pode a necessidade de acreditar levar a tão completa incoerência. Depois disso fica até possível compreender o fato de os outros teístas não conseguirem perceber a incoerência do deus em que creem. Talvez. Então fico pensando que, no final das contas, as pessoas chamam de deus simplesmente tudo aquilo que querem acreditar que existe e que interfere na vida delas, se importa com elas; querem chamar de deus aquele ser que ama, conhece, aceita e compreende incondicionalmente a maneira como elas são e se

comportam, e que as perdoa quando erram. Elas chamam deus a elas mesmas!! II Todos os que acreditam em deus, independente de serem adeptos de uma religião ou não, falam de um deus que tem como uma de suas características essenciais o fato de ser o criador “incriado” do mundo. Segundo os teístas, deus criou tudo, absolutamente tudo o que existe nesse mundo, a partir do nada, ou de si mesmo. Ainda segundo eles, ninguém além de deus tem o poder de criar. Nenhum outro ser, e menos ainda o ser humano, pode reivindicar para si a criação de qualquer coisa, a não ser que essa seja uma criação a partir de algo anteriormente criado por deus; como um artista que cria sua obra a partir de materiais, tinta e tela, argila ou mármore, que já existiam porque, segundo os teístas, foram criados por deus. Assim sendo, deus é definido como o criador onipotente, onisciente, onipresente, bom e justo. Essa é sua essência, essa é sua real definição no conceito dos que nele creem. Aliás, pensando um pouco melhor nessas três características – “oni”potência, “oni”(s)ciência, “oni”presença – percebo que os três “onis” poderiam ser reduzidos a um só, afinal, os dois últimos “onis” (ciência e presença) deveriam estar contidos no primeiro. Veja bem: não dá para ser onipotente sem saber tudo e não dá para saber tudo sem estar de alguma forma em todos os lugares; daí que bastaria definir deus como o criador onipotente que é todo bondade, isso porque bondade e justiça também são características que podem ser reduzidas a uma única, afinal, não parece possível ser bom sem ser justo. Então, seguindo o que dizem os teístas e respondendo a pergunta do título desse capítulo, posso dizer que falo do deus criador, onipotente e bom cuja existência eles, os teístas, muitas vezes vêm à minha porta afirmar. Será mesmo possível que exista esse ser tão poderoso e perfeito e, ainda assim, exista esse mundo da maneira que esse mundo é e com todos os horrores que esse mundo contém apesar das maravilhas tão insistentemente mostradas como prova dessa existência que não consigo perceber? Na minha visão essa coexistência – deus e este mundo – é tão impossível quanto a existência de um quadrado triangular; ou, talvez, ainda mais impossível. Como não podemos duvidar da existência desse mundo com muita facilidade

porque estamos nele e somos parte dele, como não podemos com muita facilidade duvidar da existência de todos os horrores porque somos testemunhas e muitas vezes vítimas diretas ou indiretas de tantas e tantas catástrofes inexplicáveis, parece bem mais lógico duvidar da existência de deus. Para evitar que seu raciocínio aceite essa lógica e para continuar acreditando, os teístas costumam se obrigar a dizer e acreditar também que “Deus nos deu a dor e o sofrimento apenas para que a gente aprenda, e deixa que a gente sofra apenas porque nos ama, como um pai que deixa seu filho caminhar por conta própria mesmo sabendo que ele vai levar alguns tombos antes de conseguir andar”. Perdi a conta de quantas vezes usaram esse argumento comigo. Quando meu filho começou a andar, eu tinha o maior prazer em estar com meus braços sempre a seu alcance para que ele tivesse onde se apoiar até ter mais firmeza. Eu, a mãe humana e imperfeita, colocava meu filho para ensaiar seus primeiros passos apenas sobre o tapete ou na grama do parque porque assim ele só cairia em lugar onde a chance de se machucar fosse mínima e eu nunca, nunca mesmo, em hipótese alguma, castigava meu filho pelas quedas que levava nesses ensaios de andar. Nenhuma vez me ocorreu, e nunca deve ter ocorrido a nenhuma mãeou pai, a ideia de soltar meu filho para aprender a andar no meio de uma avenida movimentada ou na jaula de um tigre. O mundo em que vivemos é muito mais perigoso do que uma avenida movimentada ou a jaula de um tigre e, no entanto, foi nesse mundo que, de acordo com os teístas, fomos colocados por deus para aprender. Como é possível que eu, uma mulher comum e limitada cheia de erros, falhas e imperfeições, tenha sido sempre muito mais decentes com meu filho como mãe do que deus é com o ser humano de quem dizem que ele também é pai? III Há muitas pessoas que nãopertencem a nenhuma religião institucionalizada, ou que pertencem mas se definem como “nãopraticante”;essaspessoasfrequentementeafirmamque acreditam em deus, mas ressaltam: “O meu deus é diferente”. Nem sei dizer quantas vezes já ouvi essa frase! Só que quando elas explicam esse seu deus “diferente”, o que percebo é que na

verdade ele não parece ser tão diferente assim do deus que os que seguem e praticam uma religião definem como sendo o deus dessa religião. Esse deus “diferente” é o criador de tudo o que existe, é onipotente, é bom e, em geral, é uma “presença” que aquela pessoa diz que pode sentir. O que fica bem claro para mim é que essas pessoas são lúcidas demais para acreditar no terrível deus bíblico, mas por alguma razão não têm forças para concluir que não existe deus nenhum, então elas “tiram” todas as características de ditador sádico, incoerente e megalomaníaco que sua capacidade de bondade e sua ética não puderam deixar de perceber no deus bíblico e “fabricam” um deus especial, mais “light” que não assusta, não horroriza e não enoja como o deus bíblico faz a qualquer pessoa que consiga ler a bíblia sem a venda da fé cega. Ou seja, a diferença se resume basicamente na crença de que esse deus “diferente” éum deus “pessoal e intransferível” como um cartão bancário; é deus apenas dessa pessoa e embora eventualmente interfira na vida dos que estão próximos a essa pessoa, sempre o faz a pedido dela ou para a felicidade dela. Um deus pessoal e único, que só atende uma pessoa. Eu tive um deus desses durante muitos anos, antes de conseguir reunir coragem para pensar melhor no meu deus “diferente” quando olhava para os lados. Esse deus cartão bancário só tem a capacidade de atender às necessidades de crer dessas pessoas porque depois de criá-lo, elas em geral suspendem qualquer pensamento crítico mais profundo a respeito dele – o que não é tão difícil, afinal, ele não é o deus tão obviamente terrível no qual “os outros” acreditam. Mas, na verdade, se pensassem melhor a lógica do deus que criaram, essas pessoas veriam que esse seu “deus diferente”, por mais confortável que seja, é um contrassenso total porque criou a humanidade toda mas, na prática, está a serviço de uma única pessoa. Em resumo o que acontece é que a pessoa que diz acreditar nesse deus “diferente” não se dá conta de queo que fez foi pegar as características que lhe agradam do deus de todos os teístas, muitas vezes acrescentando características de deuses diferentes do deus bíblico, como os deuses hindus, por exemplo, efabricar com elas o seu deus pessoal. A pessoa usou a imaginação e transformou deus em seu “bichinho poderoso de estimação”. Muitas dessas pessoas afirmam, inclusive, que não rezam nem oram como “os religiosos” fazem, mas que “conversam” com deus. E por que não o fariam?

Deus não é, no fim das contas, apenas o ser que está à disposição dessa pessoa e de mais ninguém? Não é sem razão que vemos deus ser comparado – pelos ateus – ao amigo imaginário que muitas crianças têm, a semelhança é muito óbvia para que não se faça tal comparação; deus seria então um amigo imaginário do adulto. Então, ouvindo as explicações e justificativas de todos aqueles que me dizem que “meu deus é diferente”, pensando sobre essas explicações e definições e lembrando minha própria experiência, não consigo perceber uma diferença real e fundamental que seja suficiente para separar esse “deus diferente” dos outros deuses de que me falam. Portanto, a possibilidade de existência desse deus “único-porque-é-sómeu” me parece tão nula quanto a possibilidade de existência de qualquer outro deus. IV Segundo os teístas deus é bom8, é a própria bondade, uma bondade tão completa e tão perfeita que está acima da compreensão humana. Mas, estranhamente, parece que não é sempre que essa bondade está mesmo acima dos padrões e conceitos humanos. Isso porque, mostrando que compreende claramente a tal “bondade divina”, é coisa das mais comuns que um teísta atribua à bondade de deus toda e qualquer coisa boa que lhe aconteça. É por causa dessas coisas boas – às vezes as mais banais possíveis – que eles estão sempre agradecendo, ou dando graças, a deus. Embora no cotidiano todo teísta mostre, com suas orações e agradecimentos, que a bondade que vê em deus é perfeitamente compreensível dentro dos padrões humanos, se um ateu atrevido ousa expor sua visão sobre o paradoxo de um deus bom que cria, mantém e promove o mal, o teísta contestará e tentará mostrar, contra todas as evidências, que não há paradoxo, que deus não criou e/ou não é responsável pelo mal porque o mal é apenas o resultado das ações dos homens, porque o mal é resultado da influência do diabo ou então porque o mal simplesmente não existe e é apenas a ausência do bem. E se não conseguir convencer com esses argumentos, como em geral não consegue, esse teísta dirá que a bondade de deus não é compreensível para os seres humanos. Até o momento em que precisou desse argumento, o teísta compreendeu bem a bondade de deus, mas quando precisou disso como um argumento contra o ateu herege e atrevido, essa bondade passou a ser incompreensível. E eles não veem nenhuma contradição aqui.

8 “Ninguém é bom, senão um, que é Deus”. In: Lucas 18:19.

O deus do teísta é tão bom que é quase sempre definido como o próprio e o máximo Bem. E como o Bem, para que seja Bem, é perfeito e justo, então deus é a própria Perfeição e a própria Justiça. Como e por que a perfeição pode precisar da adoração, dos louvores e das orações dos seres humanos, isso eu não entendo. Já li em muitos lugares – e concordo – que a ideia da total perfeição não faz sentido se não estiver associada à ideia da total falta de necessidades, desejos e vontades. Ter vontade é desejar ou precisar de algo que falta. Aquilo a que falta algo é um algo incompleto e, consequentemente, imperfeito. Acho que ser perfeito implicaria obrigatoriamente em não precisar de nada, em não desejar nada, em não querer nada, em não exigir nada. Não é assim o deus que os teístas descrevem se ele precisou nos criar, se precisa das nossas orações, da nossa obediência e dos nossos louvores. Somos o que faltava a deus antes da criação? Então deus não pode ser perfeito. Alguns podem argumentar que deus não precisava nos criar, que não somos o que faltava a ele porque, como perfeição, a ele nada faltava. Podem dizer, com toda convicção, que ele nos criou não por uma imperfeição – que ele não tem – mas por sua infinita bondade e pelo nosso bem. Sua bondade suprema e seu amor extremado deram a nós e para nosso próprio benefício, a existência. O problema é que dizer que a existência é um benefício é um argumento bastante discutível. A existência, com todos os males que ela contém e com todas as dores que implica, não parece, analisando fria e imparcialmente, ser algo que se sobreponha com muita vantagem sobre o não existir, o não ter existido nunca, o nada. Se nos atrevermos a falar em “nós” não como eu e você, mas como todos os seres vivos do planeta em todos os tempos. Se nos atrevermos a falar em “nós” como todos os seres que vivem, que viveram e que viverão. Se nos atrevermos a falar da Vida, assim, com letra maiúscula, como sendo a Vida ela mesma e não apenas a minha vida ou a sua vida. Se nos abstrairmos de nós mesmos um pouco. Se abandonarmos todo e qualquer egoísmo. Se deixarmos de olhar “apenas para nossos próprios umbigos”. Se conseguirmos fazer esse exercício de pensar no outro até as últimas consequências, me parece claro que, por mais que eu seja feliz e que você seja feliz, o que concluiremos é que – como um todo para todos – a vida não pode ser chamada de dádiva de amor e bondade de um

ser onipotente. Será mesmo que para todos aqueles de nós que conseguirem deixar o egoísmo natural e humano em segundo plano tempo suficiente para pensar nessa história – a história de todos os seres vivos desde os primeiros organismos unicelulares, até a última barata ou o último organismo unicelular que resistir à morte do Sol – a nossa história individual e coletiva poderá mesmo ser percebida como dádiva de amor e bondade de um ser onipotente? No que me diz respeito afirmo que não. Acho que muitos daqueles dentre nós que têm ou tiveram condições de conhecer um pouco que seja da nossa história como vida no planeta, se não se cobrirem com o véu da fé cega ou do egoísmo individualista, se depois de conhecer essa história conseguirem pensar nela mais do que superficialmente e mais do que apenas como indivíduo ou apenas como humanidade, por mais felizes que sejam em suas vidas pessoais, serão capazes de se sentir doer diante dessa “dádiva” que chamam Vida. Mas a maioria não se deixará “pegar” por esses pensamentos, afinal por que pensar tão profundamente se isso fará doer? É tão mais simples aceitar que tudo é maravilhoso porque estamos bem ou, se não estivermos tão bem assim, acreditar que tem um ser poderoso que nos ama, cuida de nós e que fará com que tudo fique bem logo. Por que pensar em todos os outros seres vivos do planeta se eu e minha família vamos muito bem, obrigado? Por que sentir dor pelo sofrimento de milhões de seres humanos que nunca foram felizes um dia na vida se eu não os conheço, se muitos deles estão em outros países e se muitos mais já morreram há séculos? Melhor acreditar que logo ficarão bem ou que agora estão bem – se foram bons – porque posso me forçar a crer que existe justiça depois da morte para compensar as muitas vezes que injustiças acontecem diante de mim desmentindo minha outra crença fácil de que todos colhemos apenas o que plantamos. A comodidade de não pensar o sofrimento do outro distante no tempo e no espaço é muito grande para que se abra mão dela assim à toa. A comodidade de não pensar no sofrimento de seres que sequer são da nossa mesma espécie chega a fazer com que pensar no sofrimento desses seres pareça absurdo. Afinal, para que se preocupar com isso? Não consta que uma barata ou uma lagartixa sofram por lembranças do passado e expectativa do futuro; até onde

sabemos apenas nós, humanos, e talvez um ou outro mamífero como o cachorro e o macaco, podemos sofrer pelo passado; no caso dos cachorros e macacos é melhor acreditar que sofrem mas esquecem logo; e provavelmente apenas nós, humanos, podemos sofrer pelo futuro. Mas, se pensarmos um pouco, veremos que a vida de seres não humanos também pode doer em nós, afinal por que outro motivo existiriam os vegetarianos? E quantas pessoas há que se entristecem ao lembrar-se de um gato ou cachorro que morreu há décadas? Eu não suporto ver aqueles programas de televisão sobre vida selvagem nos quais aparecem animais caçando e comendo outros animais, muitas vezes começando a refeição antes mesmo que a presa esteja morta. Não sei se é assim, mas não acho mesmo que eu seja a única pessoa a não suportar a visão dessas imagens. Milhões de animais são mortos todos os dias sem que a imensa maioria das pessoas leve seu pensamento a esse fato por um segundo que seja, não nos damos ao trabalho de perguntar quantos deles sofrem, quantos sentem medo. Somos assim. Mas, será que se pudesse opinar, um animal que, depois de uma vida inteira de medo e fuga, terá parte de suas entranhas devorada enquanto se debate no chão sob as garras de um predador dirá que a vida é um bem supremo acima de qualquer coisa e em muito superior à não existência? E a dor pelo passado da humanidade pode ser sentida folheando um livro de história ou ouvindo o relato da vovozinha sobre o antepassado que teve uma vida sofrida. Será mesmo que todas as crianças que foram mortas pela fome ou pelas inúmeras guerras que assolaram a humanidade ao longo de toda a nossa história, se pudessem expressar sua opinião, diriam mesmo que a vida é um bem supremo acima de qualquer coisa e em muito superior à não existência? Será que todos os pais e mães que viram seus filhos serem mortos ou levados para uma vida inteira de escravidão, se pudessem opinar, diriam que a vida é um bem supremo acima de qualquer coisa e em muito superior à não existência? Será que cada uma das pessoas que viveram e morreram sob a ameaça da peste, da inquisição, do nazismo, das invasões bárbaras e barbarizantes, das inúmeras guerras pequenas e grandes, da escravidão e dos sacrifícios religiosos, se pudessem opinar, diriam mesmo que a vida é um bem supremo acima de

qualquer coisa e em muito superior à não existência? Nosso presente, individual e coletivo, dói em nós muitas vezes e por muitas razões. Essa dor se manifesta na preocupação que muitos dos melhores de nós têm com os outros seres humanos; essa dor é visível no nosso medo de doenças, de catástrofes, de acidentes, da morte. Por essa preocupação e esses medos, muitos de nós se organizam e se engajam no combate à violência, em campanhas de saúde pública, em esforços comunitários que visam maiores cuidados com a alimentação. A dor está também na preocupação com outros seres vivos; e ela é muito visível nas comoções coletivas pelo sofrimento dos animais quando são maltratados em circos ou em captura e comércio ilegais, é visível na luta de muitas pessoas e grupos de pessoas contra os desmatamentos, contra o confinamento de animais para abate, contra o uso de animais em experiências de laboratório. Essa dor está presente e manifesta em todo vegetariano. Será que todas essas pessoas – todas mesmo! – se lhes fosse perguntado, diriam que a vida é um bem supremo acima de qualquer coisa e em muito superior à não existência? E nosso futuro, individual e coletivo, muitas vezes nos enche de apreensões, preocupações e dores. Muitos se aplicam demasiadamente no trabalho e nos estudos a fim de garantir para si e para sua família um futuro tranquilo, e muitos, em nome dessa preocupação, se angustiam no medo do desemprego, da crise, de uma doença. Muitas das ações de grupos e ongs são motivadas por essa preocupação com o futuro: os movimentos pela utilização racional da água, pelo desenvolvimento sustentável, pelo reflorestamento; todos esses exemplos são resultados de uma preocupação não exatamente com o futuro do planeta, como aparece escrito em muitos cartazes e ouvimos em muitos discursos de ambientalistas, mas com o futuro da vida no planeta, da nossa vida. E se pensarmos, como propus acima, na Vida ela mesma como um todo, é possível que muitos de nós, unindo passado, presente e futuro, sintamos também as dores do primeiro e do último ser vivo do planeta. Se todos fizéssemos esse exercício de não egoísmo será que poderíamos mesmo dizer em uníssono que a vida é um bem supremo acima de qualquer coisa e em muito superior à não existência?

A não existência não é a mesma coisa que a morte, porque a morte em geral nos apavora. Somos animais, o instinto de sobrevivência é parte integrante e constituinte de nossa essência e o medo da morte está em nossa genética e foi o que nos trouxe até aqui. Não teríamos sobrevivido como espécie se não preservássemos a própria vida; se não tivéssemos medo da morte. O deixar de existir depois de já ter existido nos inquieta sobremaneira mesmo nas poucas vezes que nos atrai. Mas a não existência não é morte. A não existência é o infinito anterior à primeira consciência, ou à primeira manifestação de vida, é aquele tempo indefinível em que fomos o nada, ou em que éramos poeira de estrelas, como dizem Carl Sagan e o astrofísico Neil deGrasse Tyson. Esse infinito – que não é morte – nunca nos faz doer. Nunca um sentimento de dor, de preocupação, ou mesmo de saudade pelo tempo em que fomos nada nos turva os pensamentos. No nada anterior à existência não existe a dor, a morte, o sofrimento. O nada que fomos, e de onde, de acordo com os teístas, deus nos tirou à nossa revelia, em oposição ao ser de dores e males que somos, parece levar uma vantagem considerável. Um teísta pode argumentar dizendo: “Eu não concordo! A vida é preciosa e vale mais do que o nada”. Tudo bem, acho mesmo que o teísta, ou qualquer pessoa que seja, tem todo o direito de pensar dessa forma, mas eu não penso assim e, que me conste, muitos dos suicidas – e os há aos montes – também não pensavam dessa forma. Até os suicidas “em nome de Deus”, embora por razões diferentes da minha, não parecem achar que a vida é um bem assim tão valioso, caso contrário não se deixariam convencer tão facilmente de que a fantasia da fé em outra vida é melhor do que a vida. Parece que para qualquer muçulmano fundamentalista que decide se amarrar a bombas e se explodir em nome de Alá, setenta e duas virgens valem mais do que a vida. Parece também que a proibição do suicídio, a determinação de que o suicida irá para o inferno sem direito a qualquer apelação e de que, por ser um pecador sem direito a perdão, o suicida não pode ser enterrado em solo sagrado foi um recurso criado para que não houvesse suicídios em massa, principalmente nos muitos tempos mais negros da história; afinal qualquer religioso medianamente inteligente concluiria que o paraíso prometido pelos padres e pastores é em

muito superior à vida que levavam, ou levam ainda em muitos casos e em muitos lugares. Quase todas as religiões têm seus mártires e o cristianismo é especialmente pródigo em nos oferecer exemplos. Na minha visão se oferecer ao martírio “em nome de deus” é sempre uma maneira muito esperta de cometer suicídio sem cometer suicídio e, em lugar de ser castigado como pegador imperdoável, ser premiado mais cedo com o paraíso prometido por deus. Só é possível, a meu ver, deixa-se convencer a deixar a vida, que é o certo, pelo duvidoso, que é a outra vida, e se forçar a acreditar que o duvidoso é real sem provas – ainda maisentregando-seamartíriosdolorososcomomuitossantos cristãos fizeram – se o duvidoso realmente valer a pena, ou seja, se for algo muito superior ao certo. Ainda hoje eu me arriscaria a dizer que o número de suicidas seria consideravelmente maior se os dogmas de quase todas as religiões não tivessem relacionado o suicídio como um dos grandes pecados e incutido essa crença em todos nós tão profundamente e de tal forma que continuamos com ela mesmo depois de nos afastar da religião e mesmo sem perceber que a temos por motivo religioso. Mesmo dentre os teístas que argumentam ser a vida um bem valioso dado por deus, há aqueles – e não devem ser poucos – que em algum momento dessa vida sentiram ou pensaram que ela não valia tanto assim. Afinal, poucos seres humanos nunca passaram por uma dor profunda, e dores profundas facilmente nos levam a sentir e perceber que a vida não é assim tão boa quanto afirmam, mesmo que essa sensação seja passageira e que depois a gente consiga continuar olhando apenas para o próprio umbigo e esqueça os milhões de seres cuja dor profunda não passa nunca e que não têm nenhuma razão para louvar essa “vida preciosa que vale mais do que o nada”. Não acho que alguém em algum lugar e em alguma época já tenha feito essa pesquisa, mas quase apostaria que se ela fosse feita, muitas pessoas, por mais que prefiram não morrer e por mais que se incomodem com a perspectiva da morte inevitável, concordando comigo, diriam que nunca ter existido parece melhor do que existir, principalmente quando estamos infelizes. Todos nós sabemos que algumas pessoas, em algumas situações extremas, só não cometem suicídio porque são impedidas pela religião, ou então porque têm medo da

morte, da dor ou do desconhecido. Além disso, penso que, por mais que um ou muitos milhões de teístas convictos afirmem que a vida é um presente valiosodado por deus, e por mais que esses teístas acreditem realmente nisso, se uma única pessoa em um único momento de sua existência não concordar com eles, a afirmação não pode ter valor de verdade. Então, diante de todos esses fatos, não há como não pensar que o argumento de que a vida é uma dádiva maravilhosa é na verdade um argumento muito frágil. Para justificar o argumento de que a nossa existência é uma dádiva, um bem supremo que supera todos os males e todas as dores, essa teria que ser a opinião e a certeza de todos os envolvidos, em todos os momentos; ou seja, para todas as pessoas que estão, estiveram ou estarão vivas, durante todo o tempo que estiveram ou estarão vivas. Caso contrário, pela lógica que posso perceber, o argumento, no mínimo, enfraquece bastante. Se somos todos seres vivos que foram tirados à nossa revelia da não-existência para a existência, se essa existência foi dada a você e a todos sem que nenhum de nós tivesse direito ou condição de manifestar qualquer opinião a respeito, se existimos, você e todos nós, apenas por decisão e ato de um ser todo-poder, então essa existência chamada vida só pode ser definida como dádiva de suprema bondade se for vista e sentida como dádiva de suprema bondade tanto por você quanto por todos os seres humanos da face da terra, e de todos os tempos. E eu nem estou falando dos animais! Estamos todos vivos, estamos todos em uma mesma situação, sua vida não veio a você de forma diferente do que a vida veio a todas as pessoas, nenhum de nós teve como opinar sobre a nossa existência ANTES de existirmos; pelo menos não que a gente se lembre; e mesmo que você seja espírita e acredite que essa não é nossa primeira vida e que nós escolhemos sim onde e como nasceríamos e viveríamos, mesmo assim tem que ter tido uma primeira vida, uma primeira vez que existimos e que não passamos a existir por nossa própria escolha mas porque deus, se existir, decidiu nos criar. Portanto, se estamos todos vivos, todos temos, agora, o mesmo direito de nomear, classificar ou adjetivar a vida. Esse direito não é só meu ou só seu, temos esse direito na mais completa situação de igualdade com todos os seres humanos do planeta e de todos os tempos, e a vida só poderá ser definida como

dádiva de suprema bondade com valor acima da não existência se for considerada como tal por todos os seres vivos. Só a unanimidade daria valor de verdade a essa afirmação. Então, sua adjetivação não vale mais do que a de ninguém. Quando você fala em vida dando a ela qualidades genéricas, você está falando da Vida ela mesma, você está falando não apenas da sua vida, mas também da minha e da de todos aqueles que estão, estiveram ou estarão vivos. Isso significa que em qualquer opinião que você dê sobre a vida estará obrigatoriamente se referindo tanto à vida de todos quanto à sua, por isso você não pode analisar a sua vida e simplesmente dar a sua opinião como uma definição para o todo com valor de verdade absoluta. Não esqueça: é a sua opinião e a sua opinião não vale mais do que a opinião de ninguém. Se você vê a vida como uma dádiva de deus, ótimo! Que bom pra você, fico feliz que pense e sinta dessa forma; mas se outra pessoa a vê como um castigo e outra ainda como um aprendizado, isso nãote dá o direito de desconsiderar todas as outras definições, definir a vida como uma dádiva de deus e achar que essa opinião é um argumento válido. E eu, sobre a vida, o que faço é me perguntar: Se foi em nosso benefício que um deus todo poderoso decidiu nos criar, então por que não nos criou melhores, menos imperfeitos e menos infelizes? Que raio de dádiva suprema é essa que tantos, inclusive eu, se tivessem sido consultados, teriam recusado sem precisar pensar duas vezes? Na minha visão, um presente que nos fosse dado por um ser perfeito, bom, justo e todo-poderoso; um presente que fosse uma dádiva de amor e de bondade desse ser tão perfeito e bom seria logo reconhecido como tal e nunca seria recusado pelo presenteado. Se um só dos presenteados (e eu levanto minha mão) teria, se pudesse, recusado tal dádiva, isso significa, no mínimo, que esse presente pode não ser assim tão valioso e, portanto, que esse ser “todo bondade” não é tão bom assim. V Deus é onipotente9, seu poder é tal que para ele nada é impossível, exceto, na opinião de alguns, contrariar a lógica mais básica como criar uma pedra tão pesada que nem mesmo ele possa levantar. E, na opinião dos teístas, isso não

significaria – contra toda a lógica – que a lógica é mais poderosa do que deus. Não deixa de ser engraçado pensar 9 “Eis que eu sou o Senhor, o Deus de todos os viventes; acaso, haveria cousa demasiadamente maravilhosa para mim?” In: Jeremias 32:27.

que muitas pessoas, muitas mesmo, conseguem contrariar a lógica para acreditar em deus, mas deus não pode contrariar a lógica apesar de toda a sua onipotência. Sim, estou sendo irônica. Deus também não pode criar algo conceitualmente contraditório, como um círculo quadrado, por exemplo, porque as definições, de quadrado e de círculo, são nomenclaturas naturalmente excludentes. No entanto deus pode ser um e ser três ao mesmo tempo, e consegue também ser seu próprio filho e seu próprio pai. Isso, para qualquer um que olhe de fora, parece pertencer igualmente à classe de nomenclaturas naturalmente excludentes. Um ser totalmente bondade que cria, mantém e permite a existência do mal é algo contraditório; um ser onisciente que não soubesse que sua criação daria errado é algo contraditório, um ser onipotente que não consegue criar nada melhor do que esse mundo é algo muito contraditório. Mas, de alguma forma que eu não consigo compreender, os teístas conseguem achar que não há nenhuma incoerência nisso tudo. Outra exceçãoao onipoder divino – que é uma inexplicável condescendência para com o homem – é que deus não pode violar o nosso livre arbítrio. Temos mais poder do que o ser onipotente que nos criou porque esse ser criou também um tipo de presente maldito que nos deu como prova de sua extrema bondade; um “presente” que serve para que possamos ser maus e que ele não pode nos tirar nem mesmo para que o mal não exista. Ele, o deus todo-poderoso é obrigado a suportar a existência do mal sem interferir porque nós não permitimos que ele acabe com o mal sem tirar nosso “presente” que ele não pode tirar de nós. Isso tudo porque ele, o extremo poder, quando decidiu criar o universo e seus habitantes “mais incrivelmente fantásticos” não pôde pensar em uma maneira de criar seres com livre arbítrio que não usassem esse livre arbítrio para o mal. Por que às vezes parece que só para mim isso soa como um total absurdo? Depois de nos ter criado e de nos ter dado esse poder sobre sua onipotência, esse deus todo poder e bondade, que não pode tirar o nosso “presente” de nós porque nós gostamos de cometer maldades e não queremos ser robozinhos bonzinhos,

tem que “nos engolir” e passar o resto da nossa eternidade sendo bom, mas aceitando o mal que nós fazemos, temos e somos. Mesmo sendo superpoderoso, Ele é impotente diante de nosso poder de usar seu “presentinho” para praticar o mal. Ah, e isso tudo acontece, claro, porque as únicas duas possibilidades de um deus que é todo poderoso nos criar seriam essas: ou com o livre arbítrio e o mal ou sem livre arbítrio e robozinhos. Ele, o deus todo poderoso, não pôde pensar em outras maneiras de criar seres sencientes além dessas duas. Nem uma única maneira além dessas duas! Por que será que esse onipoder não me impressiona? De qualquer forma o livre arbítrio é uma coisa que não vejo em mim, não vejo em qualquer ser vivo com quem tenha tido qualquer tipo de contato ou do qual tenha tido algum conhecimento, não vejo em nenhum personagem de fantasia e não vejo nem mesmo no próprio deus como esse deus é descrito e louvado pelos que nele acreditam. Por isso não compreendo como algo aparentemente inexistente ou cuja existência é, no mínimo, tão discutível quanto a existência do próprio deus pode ser uma restrição tão poderosa à onipotência. De qualquer forma, por mais improvável que pareça para mim, os teístas juram que o livre arbítrio existe, que é bom e que deus nos deu. Falaremos mais um pouco sobre ele mais adiante. VI Deus é onisciente10e por isso sabe tudo sobre o passado, o presente, o futuro e o que vai no mais profundo do coração e da mente de cada pessoa desde o início dos tempos até o Armageddon. Mas, inexplicavelmente, pelo que podemos ver nas igrejas, templos e sinagogas de todo o mundo, parece que deus não saberá que as pessoas o adoram a não ser que elas o demonstrem veementemente com palavras e posturas de humilhação e com orações e cânticos de louvor e submissão. Que me desculpem os religiosos que se ajoelham, que se denominam ovelhas ou servos, que usam roupas esquisitas e chapéus espalhafatosos, que gritam “me use” ou que levantam a bunda com a cabeça quase encostada na bunda do outro, a testa no chão e o cocuruto voltado para Meca, mas isso tudo me parece muito engraçado. Assim como a cada um deles essas mesmas posturas, roupas e modos dos outros certamente parecem engraçados, enquanto as suas não o são.

De acordo com o discurso de muitos teístas, parece que deus permite que o mal exista para que o ser humano seja tentado por ele e tenha a chance de resistir a essas tentações e com isso mostrar – porque deus é onisciente, mas não sabe – quem são seus servos fiéis e humildes. Mas se acaso alguns indivíduos, usando o tão precioso livre arbítrio, ousam contestar de alguma forma essa criação “perfeita” que inclui e permitea existência do mal, então deus tomará as necessárias providências para que os males sejam ainda maiores a fim de que essa ovelha desgarrada retorne ao rebanho. E se, por um acaso, esse infiel for tão teimoso a ponto de 10 “Acaso sou Deus apenas de perto, diz o Senhor, e não também de longe? Ocultar-se-ia alguém em esconderijos, de modo que eu não o veja? – diz o Senhor; porventura, não encho eu os céus e a terra? – diz o Senhor” In: Jeremias 23:23,24.

não virar cordeirinho nunca, então o deus; que é onisciente mas que não sabia que seus “bichinhos” poderiam ser tão rebeldes; seguindo uma determinação dele mesmo, se vê obrigado, mesmo sendo todo-poderoso e não podendo ser obrigado a nada, a castigar esse rebelde que ele não sabia que se rebelaria e que ele queria que seguisse as normas. Ele, que tudo pode e tudo sabe, não queria ter que seguir tais normas e não sabia que teria que segui-las, mas mesmo contrariado – sim, a onisciência pode ficar decepcionada! – permite, ou manda, que essa ovelha negra seja jogada eternamente em um lugar terrível que ele, o deus onisciente, criou para isso mas não queria que ninguém fosse para lá. Fácil de entender, não? “Deus quer que todos sejam salvos”11repetem e repetem os teístas – principalmente os evangélicos – mas como deus pode querer se deus sabe? Muitas e muitas vezes me disseram as frases “Deus quer que você se arrependa” ou “Deus fica triste quando você se nega a sentir sua presença”. Faz algum sentido dizer que deus tem o conhecimento de tudo e, depois, dizer que deus quer alguma coisa e que EU devo me esforçar para satisfazer esse desejo dele? Como um ser onisciente pode ficar triste por algo que acontece e contraria sua vontade? Sério que ele não sabia que isso aconteceria? Como então pode ser onisciente? Se elesabe,sempresoubeesaberáparasempre,absolutamente tudo o que penso e sinto em todos os momentos da minha vida, desde meu nascimento até a minha morte, como pode querer que eu pense e sinta uma coisa e ficar “decepcionado” porque pensei e senti outra coisa? Que sentido pode fazer isso?

11 “Exorto, pois, antes de tudo que se façam súplicas, orações, intercessões, e ações de graças por todos os homens, pelos reis, e por todos os que exercem autoridade, para que tenhamos uma vida tranquila e sossegada, em toda a piedade e honestidade. Pois isto é bom e agradável diante de Deus nosso Salvador, o qual deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade”. In: 1Timóteo 2:1-4

Mais um absurdo entre tantos absurdos. Uma enorme quantidade de vezes desde quando eu era criança e minha mãeme alertava do perigo, tenho ouvido de teístas o conselho para que não se diga em voz alta qualquer coisa que seja contráriaaoquedeussupostamenteaprovaria.Funcionamais ou menos assim; você diz algo como “Deus parece mesmo muito ruim por permitir que essa catástrofe aconteça” e um teísta se apressa a dizer, às vezes em tom sussurrante como se quisesse evitar que “alguém” o ouça “Não diga uma coisa dessas, deus pode castigá-lo!”. Aliás, a expressão “Deus castiga” é lembrança comum em muitas infâncias e na minha com certeza. Precisamos tomar muito cuidado com o que dizemos. Claro que precisamos tomar muito cuidado também com o que pensamos, mas parece que pensar é um pouquinho menos perigoso. A impressão que dá muitas vezes é que estão nos dizendo que deus, pelo menos algumas vezes, não sabe o que pensamos a não ser que o expressemos em voz alta. Deus também não sabia – mesmo sendo onisciente – que Adão e Eva o desobedeceriam. Não sabia que, em consequência da desobediência, ele “teria” que – mesmo não podendo ser obrigado a nada porque é onipotente – sacrificar seu próprio filho; que é ele mesmo, mas isso é outro paradoxo. Se for onisciente, então deus, no caso de Adão e Eva, além de ser um mau deus teria se mostrado também um péssimo pai. Mas deus não sabia disso tudo – mesmo sendo onisciente – e também não sabia que esse sacrifício – dele mesmo para ele mesmo – traria como consequência a criação e o desenvolvimento de uma religião que escreveria sua história com sangue. Isso – é claro – se eu compreendi bem que Cristo veio ao mundo para nos salvar do pecado original. Esse tema da razão da vinda de Cristo e do que foi mesmo que ele nos salvou é algoextremamente confuso para mim. Já pedi explicação para vários teístas, mas além de muita bondade, muito carinho e muito boa vontade, não obtive nenhuma resposta que me tirasse da confusão. O fato é que, para um ser onisciente, deus ignora muitas coisas.

VII E deus é também onipresente12, ou seja, está em todos os lugares ao mesmo tempo. Mas parece que nós, humanos, somos ignorantes demais para entender como é que ele consegue estar no lugar onde uma criança é torturada e morta e não fazer nada para evitar esse horror. Uma amiga me garantiu que deus faz sim! Segundo ela, deus esteve o tempo todo ao lado da criança torturada, segurando suas mãos e ajudando-a a suportar o tormento. Que me desculpem os teístas e que me desculpe minha amiga, mas um deus onipotente que faça algo assim me revira o estômago de nojo e, para mim, na escala entre o bom e o mau, está muitos graus abaixo do que eu chamaria de um sádico doente. O próprio torturador da criança do meu exemplo ficaria parecendo um santo se comparado com esse deus. E, lembrando, esse é apenas um exemplo dentre tantos outros exemplos que eu poderia dar do mistério da onipresença 12 “Para onde me ausentarei do teu Espírito? Para onde fugirei da tua face? Se subo aos céus, lá estás; se faço a minha cama no mais profundo abismo, lá estás também; se tomo as asas da alvorada e me detenho nos confins dos mares, ainda lá me haverá de guiar a tua mão, e a tua destra me susterá. Se eu digo: as trevas, com efeito, me encobrirão, e a luz ao redor de mim se fará noite, até as próprias trevas não te serão escuras: as trevas e a luz são a mesma cousa” In: Salmo 139:7–12.

do bem, inativo e indiferente, diante da cara terrível do mal. Os teístas aparentemente conseguem entender – mas não conseguem explicar – a presença e a não interferência do deus de bondade nos momentos e nos lugares em que ocorreram tantos males, em que ocorrem tantos crimes, em que ocorrerão tantos dos maiores horrores. O deus onipresente não evita, não interfere, não arrefece nenhum dos males que existiram ao longo da história plena de terror, não evita nenhum dos males que vemos nos noticiários do nosso dia a dia, e provavelmente não deixará de permitir todos os males que existirão em todos os tempos e em todos os lugares da Terra; como sempre, desde sempre e para sempre. Fica muito difícil, e até mesmo impossível eu diria, aceitar como verdade a existência de um deus onipresente, bom e todo poderoso que criou um mundo no qual, por exemplo, grandesterremotospodemacontecereque,emumterremoto de grandes proporções, permite que morram centenas de pessoas enquanto ele, presente e poderoso, mais se assemelhando ao acaso do que a um deus, se

abstém de mostrar sua bondade infinita exceto para uma meia dúzia de privilegiados nem mais nem menos merecedores do que os que morreram ou perderam seus entes queridos. Todas, absolutamente todas, as tentativas de justificar essa indiferença divina diante do mal me soaram como um alinhavar de falácias óbvias ou não tão óbvias, mas sempre falácias; sempre me parecem inexplicáveis ginásticas mentais ditadas pelo medo de duvidar. Acho terrível – e isso me deixa muito triste e muitas vezes chocada – quando ouço ou leio “explicações” para a presença e indiferença de deus diante dos males mais terríveis que são uma triste e maldosa conivência de quem não se importa nem um pouco com o que acontece com o outro, mesmo que esse outro seja uma criança inocente. Dizem que deus está certo em não interferir, dão desculpas das mais esfarrapadas e usam todos os seus preconceitos para que isso “faça sentido”. Todos podem sofrer, todos os horrores podem acontecer e isso está certo e é bom, desde que o teísta que usa esses argumentos seja e continue sendo o “eleito” queridinho e predileto do seu deus. Quando esse tipo de explicação egoísta e egocêntrica vem de alguma pessoa que amo e que considero, fico realmente muito triste, tento mudar de assunto o mais rápido possível, tento dizer a mim mesma que essa pessoa não sabe o que estava dizendo e tento com todas as minhas forças lutar contra meus sentimentos de aversão e nojo porque simplesmente não consigo entender como é que pessoas boas conseguem dizer, pensar e sentir coisas tão terríveis com o único objetivo de continuarem adorando a si mesmas. Ouvir esse tipo de argumento de uma pessoa amiga dói bem mais do que uma traição, juro. VIII Fala-se muito também em “Justiça Divina”. Não é fácil entender isso de justiça divina, onde está ela que não a vemos em canto nenhum desse mundo em que vivemos? Tudo bem que muitos teístas afirmam em várias ocasiões e a propósito de vários pontos que “A justiça de deus não falha”, mas o que acontece de fato é que essa tal justiça, caso existisse, falharia sim e muito. Os próprios teístas muitas vezes são vítimas de injustiças e, se não estão falando ou sendo questionados sobre deus, reconhecem isso.

É comum ouvir teístas dizendo que “Fulano não merecia isso” quando ninguém está falando em deus, apenas na catástrofe, acidente, doença ou qualquer outra desgraça que atingiu alguém. Mas, se alguém lembra deus, então mudam imediatamente o foco e começam a procurar justificativas; em geral a primeira providência é atribuir a injustiça aos próprios homens ou a qualquer outra coisa que não seja deus. Mas se, por exemplo, um pai amoroso, honesto, trabalhador e bom em todos os aspectos perde seu único filho em um terremoto e não há maneira de dizer que essa injustiça foi do ser humano e não de deus porque seres humanos – até onde sabemos – não causam terremotos nem escolhem suas vítimas, então, como sempre, os teístas defensores da tal “justiça” divina desencavarão novamente o argumento coringa do mistério: “Deus sabe o que faz”, “Quem somos nós para compreender os desígnios de deus?” e outras frases batidas, que não são capazes de explicar nada, que funcionam apenas como um “calaboca” para o cético e, principalmente, como um “calamente” para o próprio teísta, que não quer pensar porque sabe que se o fizer vai concluir que não existe justiça divina. E isso me faz lembrar novamente aquela minha amiga que me disse que prefere não pensar nisso porque não se sente capaz de viver sem acreditar em deus. Dizem alguns que a justiça está em termos todos a mesma capacidade. Mas isso não é verdade! Temos sim muitas capacidades e temos sim muitos casos notáveis de pessoas com deficiências das mais variadas que nos deram e dão lições de superação todos os dias, pessoas incríveis que conquistaram importantíssimas vitórias nos mais variados campos, desde a arte até o esporte, mostrando aos preconceituosos de plantão que deficiência física ou mental não é deficiência total nem falta de humanidade, e que o fato de uma pessoa ter uma deficiência não dá direito a ninguém de julgar essa pessoa como incapaz. Temos tudo isso, vemos tudo isso! Nos comovemos, nos enchemos de orgulho e até mesmo renovamos nossa fé na humanidade com essas histórias de superação, mas basta olhar para ver que um deficiente físico, um portador de síndrome de down, um deficiente visual não têm, para determinadas atividades, a mesma capacidade de uma pessoa sem essas deficiências. Algumas deficiências podem até, em alguns aspectos específicos, fazer com que seu portador leve vantagem sobre os tidos como normais, e isso efetivamente acontece – o mais conhecido exemplo é a superior sensibilidade auditiva e tátil

do deficiente visual – o que na verdade, nesse aspecto, reverteria os polos e tornaria os outros os menos capacitados; mas certamente nos aspectos mais cotidianos as capacidades acabam sendo diferenciadas em favor dos não portadores de deficiências porque é adaptado a essa maioria que está, digamos que, construído o mundo. Por exemplo, um cadeirante, embora muito progresso tenha sido feito nos últimos tempos, ainda não pode se movimentar por todos os lugares por onde um não cadeirante pode caminhar livremente;umdeficientevisualnãopode,logicamente,pormais que tenha acesso às universidades, escolher determinadas profissões, como medicina, arquitetura ou designer sem que para isso precise de um aparato tecnológico tremendamente complexo e caro; se é que já existe aparato tecnológico que consiga, por exemplo, compensar a impossibilidade do contato dessas pessoas com a cor. Claro que essas dificuldades muitas vezes podem ser – e são – superadas pela criatividade e pela ciência, e isso é notável, maravilhoso e nos faz sonhar com novos progressos que tornem ainda melhor a vida dessas pessoas; mas no geral as limitações existem, e nos tornam diferentes em nossas diferentes capacidades. Os tidos e chamados “normais” são os que, infelizmente, em muitos lugares e em muitos momentos da pavorosa e triste história da humanidade foram considerados os únicos com direito “divino” de sobrevivência. Não tenho dados estatísticos, mas duvido que o número de deficientes físicos e mentais que foram mortos e torturados ao longo da história esteja abaixo da casa dos milhões; sem contar os canhotos. Então, para não endossar retrocessos e para deixar muito clara minha suprema aversão ao preconceito, tenho que frisar mais esse aspecto e destacar, de novo e de novo, que deficientes físicos ou mentais não devem nunca deixar de ser considerados dentro do seu aspecto de humanidade e não devem nunca deixar de ser respeitados em todos os seus direitos de cidadãos e de indivíduos. É preciso dizer também que não devemos nunca deixar de reconhecer onde ela se apresenta – e que ninguém duvide de que ela se apresenta muitas vezes! – a superioridade dessas pessoas sobre nós, os ditos “normais”. Mas essa diferença de capacidades de que estou tentando falar não se resume às deficiências físicas e mentais. Mesmo entre os “normais” há diferenças de capacidade muito grandes e elas existem de diferentes formas e por diferentes

motivos, muitas vezes os motivos são sociais e são gerados pelo puro preconceito, outras vezes são de personalidade mesmo. Uma criança nascida na Somália, de pais miseráveis e famintos e ela mesma vivendo de fome, certamente terá, pelas circunstâncias, menos capacidade de se tornar um cientista ou um empresário de sucesso do que um filho de um professor universitário de um dos países chamados de “primeiro mundo”. Eu, que sempre tive enormes dificuldades com números tive também, desde sempre, menos capacidade para me tornar uma astrofísica de sucesso do que teria uma pessoa nas mesmas condições socioculturais e geográficas que tivesse muita afinidade com os números. São exemplos talvez até um tanto grosseiros, mas são reais. Claro que alguém pode argumentar que o que falta à criança da Somália não é capacidade e sim oportunidade e que o que faltou a mim não foi capacidade e sim esforço. Vão dizer que se a criança da Somália tivesse oportunidade poderia sim se tornar um cientista ou empresário de sucesso e que eu, se tivesse me esforçado e desejado muito, poderia ter superado minha aversão a números e me tornado uma astrofísica de sucesso. Até concordo que existe essa possibilidade, mas acho que nossa mente foi muito provavelmente afetada pela nossa situação, digamos “diferenciada”. A da criança mais do que a minhaporqueasubnutriçãoinfantil,principalmenteprolongada, seguramente afeta o intelecto. Daí que, provavelmente, temos sim menos capacidade nesses aspectos específicos do que outras pessoas que estão em situação diferente. Mas atenção que eu disse menos capacidade, não incapacidade; como acho que deixei claro lá em cima, pessoas superam e se superam o tempo todo. O que quero dizer com tudo isso no final das contas é que não é verdade que temos todos a mesma capacidade, não sou neurocientista, mas acho que o cérebro das pessoas é diferenciado de forma a torná-las mais capacitadas para determinadas coisas do que para outras, da mesma forma que acontece fisicamente, afinal todos sabemos que pessoas mais altas costumam se sair bem melhor no basquete. Melhor dizendo: acho que somos fisicamente diferentes sempre! O cérebro é fisicamente diferente da mesma forma que o resto do corpo, e da mesma forma que acontece com o resto do corpo, essas diferenças não costumam ter uma causa única, são determinadas por uma série de fatores físicos e sociais, como a formação, a genética, a alimentação, o grupo social, e toda a lista de influências

que temos, das mais diversas, durante nosso desenvolvimento, desde como são os gametas que nos formaram até o último lapso de compreensão antes do fim. Às vezes me pego pensando se não aconteceram muitos casos de pessoas nascerem, por exemplo, com o dom de Mozart para tocar piano antes de os pianos serem inventados; ou se não nasceram “mozarts” que nunca foram apresentados a um piano porque nasceram em lugares onde esse instrumento musical é um luxo impensável. Uma pessoa nessas condições, provavelmente, viveu e morreu como um incompetente sem nenhuma aptidão para nada, ou talvez tenha se tornado um tocador de flauta de bambu ou de tambor apenas razoável. E não nos esqueçamos de que a oportunidade de viver uma vida mais ou menos digna tendo nascido com alguma deficiência física ou mental séria só acontece agora e apenas nos lugares ditos “civilizados”, entre os animais e entre os humanos há não tanto tempo assim, essas diferenças de capacidade significam e significavam a morte. E elas sempre aconteceram. Então me parece que esse argumento de que a justiça está em termos todos a mesma capacidade, quando usado em favor da “justiça divina”, é uma falácia facilmente detectável por qualquer um que se dê ao trabalho de pensar um pouco sem deixar que a venda da fé lhe impeça a visão da realidade que se faz presente à sua volta e em si mesmo. Basta olhar para ver que um órfão jogado em orfanatosdepósitos ou nas ruas para comer cola e craque até que qualquer brilho de inteligência seja queimado no seu cérebro em formação não tem a mesma capacidade nem a mesma oportunidade de uma pessoa que nasce perfeita em um lar saudável; basta olhar para ver que uma borboleta de asas imperfeitas não terá a mesma capacidade de procriação que uma borboleta perfeita; basta olhar para ver que um leão albino não tem a mesma capacidade de sobrevivência que tem um leão normal. Não dá para falar em justiça se a gente for por aí. IX Uma das questões mais intrigantes com respeito à existência de deus é o fato de esse deus único ter se dividido em três deuses: Um, mais antigo, tem os judeus como povo escolhido e – no livro “sagrado” – dá a eles o direito de exterminar outros povos e castiga-os por qualquer desobediência com anos ou décadas de escravidão; o segundo teve um filho com uma virgem e salvará das chamas eternas do inferno apenas alguns cristãos que se prostrarem e o adorarem como ovelhinhas acéfalas; e o terceiro tem Maomé como seu único profeta e dará (sem perguntar a elas como se sentem a respeito) setenta e duas virgens a todos

aqueles que morrerem por ele, de preferência matando muitos “infiéis” no processo. Esses são os três principais, sem contar os milhares de deuses que são e foram cultuados por todos os povos ao longo da história. Acontece que, se existisse mesmo esse deus único que meus amigos cristãos afirmam; por ele ser único e por não existirem outros; o que se seguiria como logicamente consequente é que tanto os outros dois deuses principais cultuados hoje quanto os milhares de deuses anteriores e posteriores a eles, todos seriam nada mais do que outras divisões desse deus único e verdadeiro; ou então seriam, no mínimo, mentiras criadas pelos homens que o deus único e verdadeiro nunca achou que precisasse desmentir, nem mesmo para salvar vidas e evitar guerras. Por que deus, sendo bom e justo, permitiria essa divisão, ou essas mentiras que, desde sempre, têm causado tantas torturas, horrores e mortes? Por que esse deus de bondade e justiça, sendo o criador todo poderoso e único, permitiria que o cultuassem com muitos nomes que não o dele? Por que ele permitiria que homens, muitas vezes gananciosos e sedentos de poder, se proclamassem seus sacerdotes, profetas, enviados ou representantes e falassem em seu nome? Por que esse deus de poder, justiça e bondade permitiria que esses sacerdotes exigissem, em seu nome, o sacrifício de donzelas, de crianças, de guerreiros “inimigos”? Que bondade suprema permitiria todo o sangue derramado, por exemplo, pelos sacerdotes incas durante aproximadamente trezentos anos? Podem argumentar que “Deus fez com que parassem e a prova disso é que a civilização inca não existe mais”. Depois de um argumento como esse a única coisa que me ocorre dizer é: Mas eles não foram os únicos, e arrancaram os corações pulsantes de suas vítimas em honra do “Deus Sol” durante trezentos anos! Ou deus não existe ou foi muito, muito lento mesmo em tomar algum tipo de providência. E que tipo de providência tomou? Trouxe um povo sanguinário que exterminou toda uma cultura em nome do seu próprio deus sedento de sangue. Os incas não existem mais, um número muito grande de deuses que “exigiam” sacrifícios humanos não existem mais, e o deus do Antigo Testamento, que gostava tanto do cheiro de carne queimada, também se modernizou e não já não exige mais sacrifícios. Essa foi a providência tomada pelo “deus verdadeiro” para acabar com o horror dos “falsos deuses”? Mas se ainda existem, aqui e ali, alguns pontos do planeta onde deuses com outros nomes continuam a aceitar

sacrifícios de animais e mutilação de pessoas! E se mesmo esses três grandes deuses de que falamos, em algumas culturas, tribos ou grupos ainda aceitam sacrifícios e mutilações, reais ou metafóricos! Que “providências” afinal foram essas? Não vejo como não duvidar – e muito! – de que deus alguma vez tenha interferido de alguma forma porque, como todos sabem, os adeptos de cada um dos três deuses principais que disputam território cultivam a rivalidade e o ódio sem tréguas desde o seu surgimento até os dias de hoje em vários pontos do planeta. Há exemplos antigos e recentes muito convincentes desses absurdos de intolerância; como o atentado de 11 de setembro, as eternas guerras no Oriente Médio e os conflitos na Irlanda. E mesmo em países mais “civilizados”, onde essa rivalidade não chega a fazer vítimas, ainda se pode sentir nos partidários de um deus o desprezo, a indiferença ou um tratamento de tolerante superioridade com relação aos adeptos dos outros dois. E diante de tudo isso não se vê nenhuma reação que pareça, nem de longe, ter influência do que seria uma atitude digna de um deus que fosse realmente bom, justo e poderoso. O deus que os adeptos dos três deuses defendem é, para esses adeptos, único e verdadeiro, mas nem o deus do cristão nem o deus do judeu se chama Alá e Jesus não é uma pessoa do deus do muçulmano nem é uma pessoa do deus do judeu porque nem um desses dois deuses é uma trindade. Ou seja, odeusúnico,criadoronipotente,onipresente,onisciente,bom e justo – se existir – dividiu-se em três deuses diferentes, irreconciliáveis e quase sempre armados para a guerra. Para o deus dos judeus, na minha visão, caberia perguntar: Se esse deus criou a humanidade inteira, por que escolheria um único povo para proteger e guiar? Para o deus dos cristãos a pergunta seria: Por que deus se mostraria tão diferente de si mesmo nas duas partes do livro que deixou como sendo sua palavra imutável? Não pergunto nada a Alá porque não posso perguntar nada que seja diferente do que um muçulmano decente provavelmente perguntaria: Por que um deus de amor permite que se cultive tanto ódio? Mas a verdade é que essa pergunta seria válida para todos os três. Supondo que existisse um deus único e que esse fosse o deus raiz dos outros dois – o deus de Abraão

– por que ele permitiria que o dividissem em três e que em seu nome se criasse e alimentasse tanta rivalidade? Eu não posso crer em um deus tão incoerente, e não entendo como as pessoas conseguem. X Para os adeptos de cada uma das três religiões, seu deus não é o mesmo deus das outras duas, tanto que sua “palavra” é outra, embora os três livros tenham muitos pontos comuns e derivem da mesma raiz. Cada um desses três deuses; que é um único deus, mas que não é visto dessa forma por seguidoresdeumadesuasfacesquandojulgamosseguidores de suas outras faces; é descrito como bom. Essa divisão de um deus em três deuses, por todos os crimes que fomentou, é um dos maiores males da história da humanidade e não faz jus, portanto, ao que logicamente se esperaria de um deus bom. Por mais que se possa acusar os próprios homens pelas guerras, conflitos e opressões religiosas, se existisse esse deus único que apregoam com tanta ênfase, ele seria culpado por omissão porque, de forma totalmente incoerente com sua pretensa bondade, em existindo, o deus único só pode ter permitido, e até incentivado, tal divisão, tais crimes e tais conflitos, uma vez que, como argumentam seus seguidores, deus é onipotente e, portanto, poderia se dar a conhecer de forma menos conflituosa e fazer com que a discordância cessasse, ou nem sequer tivesse começado. Podemos ter todo tipo de ideia sobre deus, e temos respaldo para isso nos livros sagrados e nos dogmas de todas as religiões. Existem e existiram muitas religiões diferentes. Ao longo da história essas religiões vêm se rivalizando ao ponto de se poder contar – em números que estão, no mínimo, na casa dos milhões – as vítimas feitas pelos rituais e pelos conflitos religiosos. Tais fatos comprovam, se pensarmos bem, que deus não existe, ou pelo menos não existe como é definido pelos adeptos das três maiores religiões do mundo. Se deus existisse e fosse como o definem, o mundo e as pessoas (suas criações) não seriam nem sequer parecidos com o que são porque não conheceriam o mal, não seriam capazes de praticá-lo e, mais ainda, não haveria como duvidar de sua existência, não haveria como vê-lo de duas maneiras diferentes, menos ainda de diversas. Deus, se existisse e fosse como seus adeptos o definem, teria deixado sua existência e tudoo mais ligado a ele comocoisas claras e inequivocamente expressas, desde sempre e através de um veículo confiável, nunca de livros

velhos e multi-interpretativos. Que me perdoem aqueles que acreditam na bíblia como livro sagrado, mas basta lê-la sem a venda da fé para ver que ela não é de forma alguma coerente com o que um deus que realmente fosse bom e poderoso deixaria como prova de sua existência e como sua palavra13. Um deus que existisse, por amar as pessoas, como os teístas afirmam que ele ama, não teria sequer remotamente a ideia de deixar para essa criação amada um livro – ou três – que, pelas suas muitas possibilidades de interpretação, fosse capaz de gerar conflitos, guerras, chacinas. Um deus todo bondade e onipotente que existisse de fato não permitiria que sua existência fosse motivo de conflitos, não permitiria que uma pessoa matasse outra pessoa – ou muitas – porque acredita que ele, deus, mandou que assim o fizesse. Não faz absolutamente nenhum sentido um deus bom e poderoso; mais que isso, um deus todo bom e todo poderoso, permitir que se tenha mais de um livro “sagrado” em que estão escritas – de forma mais do que confusa, absurda e contraditória – suas leis e suas ordens. Um deus todo poderoso e bom teria criado o mundo de tal forma que não precisaria nunca ditar leis ou dar ordens. Esse deus, se existisse, deixaria a verdade de sua existência mais do que clara e mais do que evidente para toda e qualquer pessoa. Porque é um deus que tudo pode, poderia falar com cada um dos homens e não apenas com meia dúzia de “escolhidos”, e não permitiria que, por erro de interpretação, houvesse pessoas e grupos de religiosos 13 “A Bíblia contradiz a moral, contradiz a razão, contradiz a si mesma inúmeras vezes; mas ela é a palavra de Deus, a eterna verdade e a verdade não pode se contradizer. Como então o crente na revelação sai desta contradição entre a ideia da revelação como uma verdade divina, harmônica e a suposta revelação real? Somente através de autotapeações, somente através dos argumentos mais tolos e falsos, somente através dos piores e mais mentirosos sofismas”. (FEUERBACH, L. A Essência do Cristianismo 1988, p. 253-254)

radicais que, em seu nome, matam, ofendem, segregam e discriminam outras pessoas e outros grupos. Um deus todo poder e todo bondade não pediria a suas criaturas sacrifícios que vão além eaté contra sua própria natureza e não permitiria nunca, em hipótese alguma, sob nenhuma circunstância ou justificativa, que o mal pudesse fazer parte da natureza de qualquer uma de suas criações. Não faz nenhum sentido, por exemplo, um deus todo bom e todo poderoso criar o ser humano com desejos sexuais e órgãos genitais e, ao mesmo tempo, permitir que se acredite que ele mandou, ou ordenou, que não se sinta esses desejos e até

que se mutile esses órgãos porque eles são de alguma forma ruins, sujos, vergonhosos. Somente em nome da proibição do instinto sexual natural e sadio já se criou tantos absurdos em nome de deus – ou de um deus – que as histórias de muitos desses fatos chocam até mesmo os espíritos mais frios. O celibato dos padres, que ao longo da história tem levado a crimes como estupro e pedofilia; o tabu da virgindade, que arrasou a vida de muitas mulheres ao longo da história e que em muitos lugares causa dor e sofrimento ainda hoje; o horror da infibulação, que tem dolorosamente mutilado tantas crianças e matado tantas outras; a própria visão da mulher como representante de tudo que é mal; e até a circuncisão a que crianças judias são submetidas. De acordo com alguns, a circuncisão tem sua raiz na profilaxia da fimose e infecções consequentes. Esse argumento – além de ressaltar uma “falha de projeto” do criador que se diz perfeito – até poderia servir como justificativa em tempos remotos mas não faz nenhum sentido atualmente. Isso sem contar as aberrações e taras – como a pedofilia e o estupro já citados – que são sérios desvios de comportamento que parecem, a mim pelo menos, com o que se poderia chamar de “defeito de fabricação” desse tal “deus de bondade”, caso existisse. Isso porque somente um cérebro mal formado e consequentemente doente pode explicar o fato de existirem pessoas capazes de estuprarem outras pessoas, inclusive crianças e bebês. E eu diria ainda que só um cérebro mal formado e consequentemente doente pode explicar o fato de existirem pessoas – como o ex-papa Ratzinger14e outros religiosos – que para preservar uma instituição foram e ainda são capazes de acobertar esse tipo de criminoso. Não há como crer que um deus que realmente existisse, que realmente fosse bom e que realmente fosse o criador todo poderoso permitiria que em seu nome se fizesse tanta confusão e se praticasse tanta maldade. Mesmo que se argumente que deus não interfere porque deu ao homem o livre arbítrio, pode-se pensar que o ser humano faria melhor uso de seu livre arbítrio se não fosse deixado na ignorância. Não há justificativa lógica para que deus não se explicasse e definisse com palavras mais claras e com exemplos mais nobres. Essa obscuridade, essa gama tão mal explicada e tão pouco convincente de “revelações” faz pensar em apenas duas possibilidades: ou não existe nenhum deus, ou há apenas um deus sádico, que se diverte em criar armadilhas para que as pessoas se enganem sempre e

sejam sempre induzidas a procurar o caminho do inferno, onde parece que estaria a maior diversão para esse deus diabólico. 14 Entre outros, notícias sobre o envolvimento do ex-papa com a pedofilia podem sem encontradas em: http://noticias.terra.com.br/mundo/ europa/acusado-de-acobertar-pedofilia-bento-xvi-deixara-desafio-para sucessor,768ba268ab9cc310VgnVCM3000009acceb0aRCRD.html - Acesso em: 19 Ag. 2013 e http://www.dignow.org/post/v%C3%ADtimas-de-pedofilia-denunciam-papapara-tribunal-internacional2888537-52106.html - Acesso em: 19 Ag. 2013

XI Embora os teístas costumem eximir suas igrejas das acusações de intolerâncias, violências, crimes e desmandos, atribuindo esses males a membros isolados que, segundo dizem, não seriam verdadeiros fiéis, o fato é que basta uma pesquisa rápida no Google para ver que a história das religiões é escrita com muito sangue e que os alicerces de seus templos têm sido erguidos sobre os cadáveres de suas vítimas. Além dos recentes ataques às Torres Gêmeas e do terror dos homens-bomba, podemos lembrar que muita gente foi queimada, torturada e assassinada em nome de deus, e muitas vezes a mando de seus máximos representantes, ao longo da história e, infelizmente, não parece haver indícios fortes o suficiente para que alguém consiga afirmar que esse tipo de horror deixará de acontecer nas próximas décadas. Assim foi com as Cruzadas, de ambição mais econômica doque religiosa por parte dos líderes, mas totalmente religiosa em seu cerne; com a Inquisição, na Europa e nas Américas; com o assassinato de milhares de protestantes na França, em 24 de agosto de 1571, na Noite de são Bartolomeu; com os conflitos ditados pela intolerância religiosa na Irlanda em 2001. Isso para falar apenas do cristianismo. Matar em nome de deus, porém, nunca foi privilégio dos cristãos, e estão aí os fundamentalistas islâmicos para nos mostrar isso, além do exemplo dos já citados incas. E tanto na bíblia quanto nos livros de história, tanto hoje quanto no passado, tanto pelo deus cristão quanto por muitos outros deuses, ao longo de toda a história humana podemos ver que as religiões, desde sempre, vêm formando um colar de contas de sangue e horror. O que acho curioso é que muitos cristãos conseguem culpar a religião muçulmana pelos ataques de 11 de setembro e conseguem culpar a religião

muçulmana e o judaísmo pelos conflitos no Oriente Médio, mas não admitiriam em hipótese alguma a responsabilidade do cristianismo pela Inquisição. Felizmente não são todos os cristãos que fazem isso, mas é sempre um exemplo de como temos dificuldade em assumir nossas culpas e facilidade em demonizar o outro, como bem explica Michael Shermer em seu livro Cérebro e Crença. (SHERMER, 2012) E muitos cristãos, mesmo quando assumem que a igreja católica é responsável por muitos horrores, colocam tudo isso como sendo passado, esquecido e apagado e, sem nenhum tipo de constrangimento ou desconforto, conseguem pagar o dízimo, ir à missa todos os domingos e reverenciar o papa da vez. Eu não consigo entender como fazem isso. As “guerras santas” se veem desde a tomada da Terra Prometida descrita no Antigo Testamento. O livro conhecido como “Palavra de Deus” traz em suas páginas uma história de chacinas que me horrorizou quando li a bíblia pela primeira vez e que me horroriza ainda hoje, com a diferença de que hoje os horrores lá relatados não me horrorizam tanto quanto saber que milhões de pessoas conseguem aceitar tudo aquilo como exemplo “da grandeza, da bondade e da ‘maravilha’ do poder de deus”. Nos cultos e missas das igrejas evangélicas e católicas os fiéis continuam louvando o nome de Josué como um “escolhido de deus” enquanto se pode ler a relação de crianças, mulheres, velhos, animais e povos inteiros na lista de suas vítimas. Não entendo como as pessoas não conseguem perceber o que estão fazendo. E as tais guerras santas continuaram! Passando pelos Cavaleiros Templários e pelas Cruzadas podemos ver os pés cristãos marchando sobre o barro misturado ao sangue das vítimas e as mãos cristãs carregando suas espadas cada vez mais afiadas a fim de cortar também os ossos dos que cometiam o “pecado” de estarem no caminho por onde esses “bons homens” passavam. E chegamos às vítimas inocentes dos jihads muçulmanos, tão severamente criticados pelos mesmos cristãos que fazem questão de “esquecer” a própria história. Isso sem contar os casos “menores” como a constrangedora cena, transmitida ao mundo pela televisão, em que pessoas adultas fazem “corredores” de ofensas e demonstrações de ódio pela rua por onde passavam crianças a

caminho da escola15. Para os adoradores de um deus, é tragicamente comum que os outros deuses representem uma espécie de mal a ser combatido na pessoa de seus fieis; isso sem contar as inúmeras cismas que existem mesmo dentro das grandes religiões. Para confirmar esse fato, temos os conflitos entre protestantes e católicos; são exemplos mas não são casos únicos, a Noite de São Bartolomeu, os conflitos na Irlanda, além das lutas ocorridas entre maio de 1532 e junho de 1535 na cidade alemã de Münster e magistralmente retratadas por José Saramago em sua peça In Nomine Dei (1993). E há ainda a rivalidade dos evangélicos contra os espíritas e os adeptos das religiões afro, estas felizmente não 15 “Abaixo está transcrita uma reportagem, datada de 3 de setembro de 2001, do programa Irish Aires da emissora americana de rádio KPFT-FM. Meninas católicas enfrentaram protestos de unionistas quando tentavam entrar na Escola Primária para Meninas Santa Cruz, na Ardoyne Road, no norte de Belfast. Oficiais do Regimento Real do Ulster (Royal Ulster Constabulary — RUC) e soldados do Exército britânico tiveram de afastar os manifestantes que tentavam isolar a escola. Barreiras de contenção foram erguidas para permitir às crianças passar pelo protesto e chegar à escola. Os unionistas gritavam ofensas sectárias enquanto as crianças, algumas de quatro anos de idade, eram protegidas pelos pais ao entrar na instituição. Enquanto crianças e pais entravam pelo portão principal da escola, os unionistas lançavam garrafas e pedras”. (DAWKINS, R. Deus um Delírio 2007, p 431)

tão violentas – ainda! – mas mais próxima de nós. Todos são cristãos, mas cada um deles aparentemente cultua um deus diferente e antagônico. Não vejo como acreditar que um deus perfeito permita que os adeptos de cada uma de suas faces se hostilizem violentamente durante séculos. Esse deus seguramente não faz jus a todo o poder e toda a bondade que lhe atribuem porque nunca se manifesta, em nenhuma de suas formas, a nãoservia enigmáticos textos “sagrados”, multi-interpretativos e adaptáveis a qualquer tipo de preconceito e fobia. É muito difícil, se não impossível, quando se pensa no que seja justiça, bondade, tolerância, amor, imaginar que um deus com essas características, caso existisse, se esconderia por trás de palavras dúbias, contraditórias e arcaicas e permitiria essa rivalidade, esses conflitos, essas guerras e todos os horrores que foram, são e ainda serão praticados em seu nome. Para se justificar com respeito a esses fatos que é comum serem levantados pelos ateus quando debatem com um teísta, o que esse teísta costuma argumentar é que

a violência e a hostilidade ao outro é uma característica do ser humano e que o próprio ateísmo tem sua história de horror. Daí eles citam Stalin e Mao, entre outros exemplos que a história registra da violência perpetrada em nome da negação de deus; e, se o ateu permitir, o teísta vai mais longe e cita também inúmeros exemplos de violência comuns no passado e no presente e que nem sequer têm motivação religiosa, como as disputas por território e até mesmo as brigas de torcedores de times de futebol. E o teísta está certo! A violência e a hostilidade ao outro é uma característica do ser humano e não precisamos da religião para sair matando nossos irmãos com requintes de crueldade; tanto é que, ao contrário de alguns ateus mais radicais, eu não acredito que o mundo seria maravilhoso e que viveríamos em paz caso as religiões deixassem de existir. O fato de que o ser humano consegue agredir, humilhar e até matar outro ser humano não apenas sob o pretexto da religião mas também sob o pretexto do patriotismo, dos mitos de uma pretensa superioridade racial, dos mais variados e sempre insanos preconceitos e até mesmo da paixão irracional por um time de futebol parece comprovar que a presença do mal não é resultado de uma suposta liberdade que nos teria sido dada no ato da criação mas sim algo inato, existente sempre e para sempre como parte integrante da natureza humana. E aqui entra a minha incredulidade mais profunda: Como e por que um deus que existisse todo-poderoso e bom permitiria essa briga toda? Se penso que deus não existe, fica muito fácil entender, e até aceitar, a violência como parte da natureza humana. A violência se justifica pela própria essência do ser humano, pela necessidade de sobrevivência que permitiu aos nossos ancestrais a transmissão de seus genes, a saída das cavernas, a criação de ferramentas, a superioridade sobre os outros animais para os quais, se não fosse pela capacidade de raciocinar e pela capacidade de matar, os homens primitivos seriam apenas mais uma presa rapidamente extinta. Em lugar do extermínio que teria sido o fim lógico caso fôssemos pacíficos e incapazes de matar, nossos ancestrais progrediram e criaram a civilização. Pensando nossa história pela ótica da ciência evolutiva, fica muito fácil aceitar e compreender essa violência nata que no final das contas acabou sendo responsável por estarmos aqui, criticando a violência. Isso eu entendo! Mas, se pensar que existe um deus todo-poderoso e todo bom, aí então essa

nossa violência intrínseca não encontra justificativa nenhuma, e não encontra porque, em existindo e sendo esse ser todo poder e todo bondade que descrevem, deus não permitiria que essa violência acontecesse, ou mais ainda, como criador do homem, um deus todo poderoso e bom não teria determinado que a propensão à violência seria característica da sua criatura. Pelo menos é isso que eu imagino que faria sentido diante de um supremo poder aliado a uma suprema bondade. Por ser todo poderoso ele PODERIA fazer diferente, e por ser todo bom ele FARIA diferente! Então, novamente, deus, o deus que os teístas descrevem, não tem como existir porque a bondade, essa sua característica tão propagada, não convive logicamente com a violência existente no mundo. Deus não seria todo bondade porque por todo e qualquer ato de violência praticado pelo homem, seja em seu nome, seja em nome de um time de futebol, um deus criador e onipotente, se existisse, seria diretamente culpado. Afinal ele teria criado o homem e dado a ele essa violência e hostilidade que o próprio teísta afirma ser característica da nossa espécie, não teria? E, como não havia ninguém para decidir por ele ou para influenciá-lo, deus certamente teria que ter pensado e decidido criar dessa forma, teria que forçosamente ter criado e permitido todo tipo de violência e horror que existiria a partir daquele momento em que, por sua decisão e de acordo com sua vontade, tudo começou a existir. Que algum tipo de bondade pode ser possível em tal situação é algo que me parece totalmente impossível. XII Antes de começar a falar sobre a bíblia deixa esclarecer alguns pontos que julgo fundamentais: Não sou expert no assunto, não li a bíblia no original hebraico ou aramaico ou grego ou latino, não estudei os manuscritos mais antigos e nem sequer li os textos apócrifos; não tenho e certamente nunca terei conhecimento para isso. O que fiz foi apenas ler, quando era adolescente, de capa a capa, a bíblia em português, num volume que minha mãe, na época católica praticante, tinha em casa e, mais tarde, lê-la novamente, e novamente em português, num volume que ainda tenho em casa e que foi um presente que meu marido ganhou de um amigo evangélico. Fora essas duas leituras completas em duas fases de minha vida, li trechos,

capítulos e passagens em diversos contextos e por diversos motivos, desde confirmar uma impressão quando escrevia algo até procurar comprovar se aquilo que me disseram que a bíblia dizia em determinada passagem estava mesmo lá embora eu não me lembrasse disso. Não passei anos estudando a bíblia sob a ótica de uma determinada religião, como fizeram alguns dos teístas que me escrevem, não sei citar de cor passagens bíblicas e muitas vezes lembro de uma determinada passagem mas não tenho certeza de em qual livro da bíblia está aquele determinado trecho. Esse é todo meu conhecimento. A bíblia é o livro que a imensa maioria dos adeptos das religiões cristãs costuma usar para provar a existência de deus. As duas outras grandes religiões – o judaísmo e o islamismo – também têm seus livros e os três livros estão intimamente ligados porque historicamente derivam uns dos outros. Estou falando nas três principais religiões mas não são apenas elas que têm seus livros “sagrados”, há vário outros livros e mesmo a bíblia não é única e igual para todos os cristãos. Se você digitar “Livros sagrados” no Google, vai encontrar uma lista de nove religiões que têm seus livros, mas por falta de conhecimento de todas e por suspeitar fortemente de que não há tanta diferença assim na maneira com que cada religião define seu livro, vamos nos ater às três principais e à bíblia em particular. Cada uma das três religiões dá a seu livro o mesmo valor de Verdade, de “Palavra de Deus”, de Guia Moral, e cada uma das três religiões despreza os livros das outras duas como mentirosos ou, no mínimo, como incompletos. Os “ensinamentos” contidos na bíblia são tão complicados que várias igrejas cristãs mantêm os chamados grupos de estudos bíblicos nos quais algumas pessoas passam anos. Os judeus também têm algo semelhante pelo que sei, só que no caso deles os livros estudados são outros, um deles, me disseram, é o Pentateuco, que equivale aos cinco primeiros livros do antigo testamento da bíblia. Muitos dos cristãos que passaram anos em um dos grupos de estudos bíblicos já me escreveram para dizer que são profundos conhecedores da “palavra de deus” e para afirmar que, por não ter passado anos e anos estudando os textos bíblicos sob a ótica de determinada religião, sou uma ignorante e, portanto, não tenho o direito de falar a respeito dela. Isso quando não concluem, sem nenhuma razão aparente, que nunca li a bíblia e estou criticando algo que não conheço. Nos dois casos me chamam de ignorante e me mandam estudar antes de falar do que não sei.

Mesmo quando informo que sou professora de português e que mais de uma vez, embora por conta própria e sem grupo de estudo, li cada uma das páginas da bíblia, eles me respondem que não sou capaz de compreender os textos bíblicos, que não fui iluminada pelo espírito santo e por isso nãosei nada a respeito dessas verdades; dizem que não tenho capacidade nem conhecimento que me dê o direito de criticar a bíblia. Ao mesmo tempo vejo uma leva de pessoas que são semianalfabetas e que, como constato em minhas aulas, não conseguem compreender gibi da Mônica, mas que têm toda a autoridade para falar a todo mundo sobre as “verdades” da bíblia, e inclusive para tentar ensiná-las a mim. Já tive mais de um aluno que, nas aulas, mostravam que não tinham condições de compreender os textos mais simples, como os enunciados das questões dos exercícios e provas escolares de nível fundamental; mas esses alunos muitas vezes achavam que tinham autoridade não só para falar sobre a bíblia como para ensinar a outros, muitas vezes ainda mais analfabetos, o que significa – ou o que querem que signifique – o que nela está escrito. Tive alunos assim que eram professores de religião em suas igrejas e que lá ensinavam crianças a “entender” a bíblia. Devo dizer que nenhum deles fazia isso por maldade ou de má vontade, pelo contrário, eram aplicados, dedicados e realmente achavam que estavam fazendo um bem e que tinham condições de fazê-lo. Eu ouso discordar. Cristãos, islâmicos e judeus definem seu livro como sendo a “Palavra de Deus”, afirmam que ali estão todos os ensinamentos que deus quis transmitir. Para muitos religiosos discordar, ironizar ou contrariar o que quer que esteja escrito no seu livro, por mais contraditório, absurdo ou grotesco que seja, é ofensa seríssima. Para os católicos antigos e para os fundamentalistas islâmicos atuais a ofensa é passível depena de morte. Muitos teístas, cada um sobre o seu livro, afirmam veementemente que a bíblia, o alcorão ou o talmude (ou torá; nunca tenho muita certeza) nunca podem ser questionados porque aquele texto é a “palavra de deus”. E a “palavra de deus” é a Verdade. Uma vez uma colega me disse que, antes de abrir a bíblia, a gente deve fazer uma oração pedindo “iluminação” para que sejamos dignos de compreender o texto sagrado. Fiquei chocada porque essa moça era uma professora de história, não argumentei, apenas mudei de assunto, mas fiquei me perguntando como é que um professor de história consegue pensar dessa forma. Mais tarde conheci muitos outros como ela. Entre os cristãos – e não é diferente com os adeptos dos outros dois livros – a

bíblia é considerada tão importante que perdemos para sempre valiosíssimos e insubstituíveis livros, documentos, testemunhos e relatos históricos porque religiosos mais radicais argumentaram que “Toda a Verdade está na bíblia”, portanto, para eles, todos os outros livros eram mentirosos e deviam ser destruídos. E foram! A bíblia é extremamente confusa, ambígua e contraditória, mas, dizem os teístas, todos nós devemos compreendê-la e segui-la; por mais que se possa comprovar que seguir a bíblia mesmo, atualmente, daria cadeia. Na minha visão irônica o que percebo disso tudo é que deus ordenou que seus fiéis compreendam o incompreensível; e para resolver esse problema sem grandes trabalhos, muitos teístas se abstêm de ler a bíblia, exceto talvez o trecho que o pastor ou o padre usou no último sermão. Ou leem e, por não entenderem nada do que leram, continuam repetindo apenas as passagens que o pastor leu e dando a elas o significado que o pastor deu. Minha mãe faz mais ou menos isso. Não consigo perceber como nesse país onde a imensa maioria dos cristãos são pessoas analfabetas, semianalfabetas ou analfabetos funcionais seria possível que todas as pessoas compreendessem e seguissem a bíblia, mas parece que os teístas entendem essa possibilidade, por isso formam grupos de estudo que estão – nas três religiões – eternamente lendo, relendo e interpretando cada letra, cada vírgula, cada “entrelinha” e “entrepalavra”, sempre de forma a que esse símbolo e seu possível significado seja coincidente com o que o grupo que o estuda acredita que deve ser o símbolo e o significado da palavra de deus. Sei queparece muita ousadia da minha parte afirmar isso e muitos teístas que estudam a “palavra de deus” vão discordar e provavelmente citarão exemplos de passagens bíblicas que são contrárias ao que “nós gostaríamos de ler”, mas, mesmo assim ouso manter minha afirmação porque, infelizmente, ao longo da história e mesmo nos dias atuais, muitas vezes e ao preço de muito sofrimento, grupos de “estudiosos” dos textos sagrados têm conseguido fazer com que a “palavra de deus” coincida com seus preconceitos, apoie seus ódios e justifique seus crimes. Para alguém que está de fora, como é meu caso, o que parece mesmo é que o homem primeiro criou deus, depois escreveu seus próprios desejos e suas próprias ambições em pergaminhos e deu a esses escritos o título de “palavra de deus” e, depois disso e por todos os tempos, estão sempre se aplicando na arte de forçar deus a dizer o que eles querem que deus diga, seja para o bem, seja para o

mal. E quando alguém ousa, como venho tentando, externar essa impressão, em lugar de pensar nisso o que eles fazem é ficar ofendidos. Na bíblia e em cada um dos outros dois livros está descrito efalaomesmodeus onipotente, onisciente,onipresente, bom e justo criador de tudo o que existe, o mesmo deus que criou o homem e que de alguma forma convenceu esse homem de que ele – o homem com certeza e a mulher um pouco menos – é o ápice dessa criação, dileto e amado ser do qual deus espera sempre obediência e submissão; e da mulher deus espera, inclusive, obediência e submissão ao homem. Mas modernamente os estudiosos da bíblia vêm conseguindofazer com que deus diga que não é bem assim e que as mulheres são mais importantes e mais independentes do que ele vinha dizendo que elas eram nos últimos milênios. Deus também evolui; demora muito, mas evolui. Gostei muito da expressão “Teologia curupira” que uma amiga virtual disse que um teólogo que ela conhece define como sendo a tentativa de ler e seguir a bíblia como ela está escrita, sem levar em conta a passagem do tempo e as mudanças que a história impõe, ele diz que ler a bíblia dessa forma é colocar-se na posição de um curupira, a cabeça para a frente, mas os pés para trás, ou seja, esse teólogo, de uma forma até engraçadinha, defende que a bíblia deve ser interpretada e não seguida à risca. E ele faz parte de um grupo até bastante grande de teístas que, embora continuem tendo a bíblia como “palavra dedeus” estão cada vez mais conseguindo ver o mundo de forma não fundamentalista e ver o outro de forma não preconceituosa. Impossível não sentir uma enorme simpatia por esses teístas que conseguem contrariar sua religião e sua história para manter e sustentar sua decência, sua ética e sua bondade. Mas aí entra a minha lógica questionadora e teimosa: Se a pessoa é religiosa e pertence a uma religião que afirma que a bíblia é a palavra de deus, ela, pela lógica, teria que aceitar a bíblia literalmente sempre e para sempre sem nunca mudar nada, sem nunca dar mais do que uma e única interpretação ao que está escrito nela. Adoro que não façam isso, mas mesmo assim sou obrigada a afirmar que, pela lógica que consigo perceber, não faz sentido aceitar o texto como a palavra de deus mas supor que esse deus mudou de opinião ou não foi suficiente claro e por isso o fiel tem que ficar fazendo “interpretações” e adaptações para a realidade

atual. Se eles se perguntassem, será que seriam capazes de perceber algo como, por exemplo, deus dizendo daqui a dois milênios que não há restrições para o sexo, que casamento nãoé necessário e que a reprodução in vitro com planejamento genético é a maneira mais santa de procriação e perpetuação da espécie? Se deus existisse e fosse tão perfeito como dizem, ele não poderia ser mutável de acordo com o tempo e as circunstâncias, ele teria que, obrigatoriamente ser constante e único, portanto sua palavra teria que ser também obrigatoriamente única, permanente e imutável, daí que a bíblia ou é a palavra de deus ou não é a palavra de deus. Essa coisa de “interpretação de acordo com o tempo” não faz nenhum sentido quando se fala de um deus perfeito. Esse meio termo “É; mas depende” que inventaram só serve para que as pessoas deixem de ver o óbvio: que a bíblia não faz sentido nenhum como palavra de deus nenhum; e o mesmo vale para os outros dois livros “sagrados” das outras duas grandes religiões monoteístas do planeta. Um deus que se diz único e perfeito – já que a perfeição, justamente por ser perfeição, não admite mudanças – será também imutável. Se esse deus tiver uma palavra, é lógico que essa palavra também tem que ser única, perfeita e imutável. Daí que, para que a bíblia se sustente pelo menos na aparência como “palavra de deus” – o que claramente ela não é – inventou-se essa coisa de “interpretação”. Sei que alguns teístas argumentariam que “Não foi deus que mudou, foi o homem que interpretou errado”, ou seja, são os homens (sempre a culpa é dos homens!) e é por isso que a palavra de deus tem que ser interpretada de acordo com a época, porque os homens mudaram não porque deus mudou. Dito assim parece fazer sentido, não é? Mas não faz. Eu não sei como “interpretar errado” a maioria das aberrações, contradições e mentiras do texto bíblico. Deus manda que se mate o vizinho que usa roupas de dois tipos de tecidos diferentes, deus manda que se mate um povo inteiro para roubar suas terras, deus manda que se mate um filho que não obedece seu pai, deus manda matar, e manda matar uma enormidade de vezes, e depois dizem que não devemos matar porque deus disse “Não matarás”, e vão me convencer de que quem mudou foi o homem?

Quando converso com algum teísta e ele, pacientemente, tenta mostrar isso só consigo ver um malabarismo mental que não faz o menor sentido lógico. Essa mudança de acordo com o tempo de um deus perfeito e imutável pode convencer os teístas porque – como é próprio da raça humana – eles adoram ser convencidos daquilo em que querem mesmo acreditar, mas não tem nenhuma chance de convencer um ateu. O homem sempre foi um assassino e sempre procura razões para matar, antes deus dava essas razões ou semrazões e o homem matava sob suas ordens; “Não matarás” foi um dos dez mandamentos, mas tem tanta exceção na bíblia que sempre ficou muito fácil seguir as ordens de deus matando, principalmente matando o outro, o estrangeiro, o estranho, o que pertence a outro grupo, outra família, outra tribo, outra religião. Mas, coincidentemente depois que o homem começou a criar leis cada vez mais independentes dos dogmas da religião, aos poucos, tudo foi mudando e o que era uma ordem um tanto esporádica na prática passou a ser proibição mais efetiva – mesmo que essa proibição na realidade esteja sempre em vigor apenas para alguns casos e a pena quase nunca seja aplicável para todas as situações e nuances desses casos – e o mandamento “Não matarás” passou a ser um pouco mais abrangente. O homem continuou sendo um assassino, mas por força das necessidades trazidas pelo nascimento, crescimento e desenvolvimento das cidades surgiram as leis através das quais os próprios homens procuraram refrear seu instinto assassino colocando mais a polícia do que a bíblia como agente de controle. E então, provavelmente para estarem em conformidade com essas necessidades óbvias, os teístas colocaram em destaque a proibição do assassinato, agora como lei (quase) irrevogável de deus. O fato é que o homem mudou deus para que deus mudasse o homem. E as leis determinadas pela sociedade, porforçadessanecessidadedeconvivênciaentregruposcada vez maiores e cada vez mais heterogêneos, foram tornando a realidade tão distante da bíblia que, embora existam muitos religiosos que afirmam que o fazem, é lógico que nos dias de hoje não é possível seguir o “livro sagrado” literalmente; se é que um dia foi possível fazer isso já que ele tem ordens contraditórias e qualquer chefe ou comandante sabe que ordens contraditórias meio que dificultam a obediência de seus subordinados por mais boa vontade que eles tenham para acatá-las. Só para

ilustrar aqui vai um exemplo bem light: A mulher viúva tem que se casar com o cunhado ou não? Deuteronômio 25-5 “Quando irmãos morarem juntos, e um deles morrer, e não tiver filho, então a mulher do falecido não se casará com homem estranho, de fora; seu cunhado estará com ela, e a receberá por mulher, e fará a obrigação de cunhado para com ela”. Mas parece que essa ordem não é muito rigorosa, qual das duas atitudes será obediência afinal de contas? I coríntios 7- 39 “A mulher casada está ligada pela lei todo o tempo que o seu marido vive; mas, se falecer o seu marido fica livre para casar com quem quiser, contanto que seja no Senhor.” Parece que nesse caso um raciocínio possível é que a mulher só fica obrigada a se casar com o cunhado quando os irmãos morarem juntos, se cada irmão viver em uma casa diferente a obrigação deixa de existir. Ainda bem que meu marido não morreu no tempo em que tivemos uma dificuldade financeira séria e fomos obrigados a morar com minha sogra! Mas, espere um pouco, na segunda ordem não fala nada sobre morar junto ou não, então a mulher está na verdade desobrigada de se casar com o cunhado. Ufa, que alívio! Mas, espere um pouco de novo, então como é que fica a primeira ordem? Não vale? Não foi deus quem a deu? Deus mudou de ideia? Raios! Como obedecer uma ordem dessas? E essa é só uma das contradições! Como conseguem dizer que esse livro é a palavra de um deus perfeito? Basta ler a bíblia para ver que ela manda cometer crimes que certamente levariam o fiel de hoje – caso este resolvesse segui-la – à prisão. Muitos desses crimes incentivados, e até ordenados, pelo deus bíblico eu sei que as pessoas maravilhosas que existem e que são religiosas, mesmo em nome da sua religião, não os cometeriam. Mas basta ver os noticiários para saber que o instinto assassino do ser humano continua muito ativo e que livros ditos “palavra de deus” ainda dão respaldo para assassinatos. Ou seja, o homem urbano mudou deus para que deus mudasse o homem, mas o homem não pode mudar tanto assim; e para continuar sendo o que sempre foi pode se reunir em grupos e usar como justificativa o que foi escrito na Idade do Bronze, literalmente, sem fazer muito esforço de interpretação. Enfim, sei que existem muitos teístas que são maravilhosos, que não matariam nem mesmo por ordem de suas religiões porque interpretariam essa ordem como o pronunciamento de um líder que se corrompeu e que não está mais falando por

deus. Mas sou realista e leio jornal vezes suficientes para saber que, infelizmente, existem os teístas que, mesmo sendo bons em circunstâncias normais, são sugestionáveis a ponto de ver – se forem conduzidos a isso – essas ordens como algo que devem seguir à risca. Então, na verdade, acho que faz-se a chamada “interpretação” para escapar da arapuca que o texto coloca e não levar tantos religiosos à prisão ou ao assassinato. É como os oráculos da Grécia antiga: Cada templo tinha seus sacerdotes cuja função era “interpretar” o que a Pítia dizia sob efeito da fumaça aromática que ela cheirava. E os sacerdotes de então – como os de hoje – recebiam presentes e eram sustentados pelos fieis do templo. A bíblia pode ser, de certa forma comparada a uma Pítia dos nossos tempos; as pessoas não podem lê-la e segui-la à risca porque se o fizerem cometerão crimes e irão para a cadeia; ao mesmo tempo, é bom que – pelo menos a maioria – não possa lê-la e entendê-la sozinhos porque correrão o risco de entendê-la mesmo, e se o fizerem cometerão muitos crimes ou, se forem mais espertos, perceberão os absurdos e perderão a fé. Daí é preciso que os especialistas, os iniciados, os “escolhidos” a interpretem ea traduzam para o rebanho. Como pagamento por isso recebem o dízimo e aceitam doações; o fiel só precisa balançar a cabeça, concordar e nunca, em hipótese alguma relacionar uma parte com outra parte para não correr o risco de perceber as contradições, mas caso o façam os intérpretes são bons o suficiente para convencê-los; e eles estão suficientemente dispostos a aceitar; que deus na verdade não disse o que disse. Aí está e sempre esteve a necessidade e o ganha-pão – e também a oportunidade de roubo e exploração – dos líderes religiosos: traduzir “a palavra de deus” para os reles mortais. E isso acontece desde antes do cristianismo já que, pelo que parece, os judeus interpretavam a bíblia deles (que chamam de torah) antes mesmo de Jesus nascer, se é que Jesus existiu. Essa necessidade de interpretação seja da bíblia, da torah, do Alcorão ou de qualquer livro sagrado ou “revelação” é, para mim, uma prova bastante convincente de que deus não existe e, portanto, não deixou palavra nenhuma. Um deus que fosse tudo o que dizem dele não deixaria nunca palavras obscuras e duvidosas e muito menos ordens para que se matasse ou discriminasse pessoas. O que acontece é que os mesmos teístas que defendem a bíblia como um espelho de toda a Verdade, quando confrontados com algumas das muitas incoerências do livro respondem que aquilo está em “sentido figurado”, que aquele ensinamento, pedido, ordem, relato ou atitude é apenas algo que espelha a época em que o livro foi escrito. Alguns religiosos mais dedicados perdem as estribeiras e dizem que os não iniciados ou não crentes não têm capacidade de

compreender a palavra de deus. Um deus perfeito sim, mas seletivo: escreveu apenas para os “escolhidos”. Eu não saberia nunca respeitar um deus que tivesse “escolhidos”. Essa alegação claramente depõe, pela lógica, contra a crença de todos os teístas de que deus é justo, afinal, um deus que fosse realmente justo, teria que deixar sua palavra e seus desígnios, caso esses existissem mesmo, claros para todos e não apenas para os privilegiados, sejam eles poucos ou muitos. Sempre senti que, em quaisquer circunstâncias e em qualquer lugar, se existem privilegiados, existe injustiça. Tenho certeza de que mesmo os próprios teístas que se colocam entreos “escolhidos” quando o assunto é sua religião e seu deus, se mudarem o foco, se estão falando em outro ambiente, em outra circunstância e sobre outro tema que não seja a religião, a igreja ou deus, como, por exemplo, seu emprego ou sua escola, ficarão indignados caso percebam que há “escolhidos” e vão concordar com minha afirmação: Onde tem privilégio tem injustiça. Mas, enfim, por conta desses absurdos e incoerências, um leitor neutro fica sem compreender o que há mesmo de sagrado no livro e por que uma determinada passagem é válida e outra não ou uma mesma passagem é válida em um momento e em uma situação e em outra não. A impressão mais forte que fica é a de que muito poucos teístas que afirmam que a bíblia é sagrada, é a palavra de deus e só contém verdades e bons ensinamentos na verdade já leram o livro todo, e qualquer professor de português tem total certeza de que a grande maioria das pessoas não entenderia a bíblia se a lesse. O que acontece é que a maioria lê apenas passagens ou no máximo acompanha com os olhos a leitura que o padre ou pastor faz do trecho que ele escolheu para o sermão e com isso acha que é expert em “palavra de deus”. E por falar em incoerência, um bom exemplo da arapuca em que fica o leitor leigo e imparcial é a história de Adão e Eva e o pecado original aliada à história da vinda, vida e morte de Jesus. Os teístas mais esclarecidos, mais cultos e mais livres, embora muitas vezes digam coisas como “Vocês, mulheres, sofrem as dores do parto porque Eva desobedeceu a deus”, admitem que a história de Adão e Eva, da maçã e da serpente não deve ter ocorrido como narra a bíblia, vários religiosos definem essa narrativa como um exemplo do que, na bíblia, está colocado em “sentido figurado”. Daí que não houve um Éden, deus não amaldiçoou a mulher, não existe essa coisa de pecado original. Viram? não existe pecado original! Pois pensemos então: se aceitamos que Adão e Eva na verdade não existiram tal qual consta no gênesis, que os fatos não aconteceram exatamente da maneira como vêm relatados, apesar de a minha mãe ter me dito que me batizou na igreja

católica para me livrar do pecado original, aceitaremos que o pecado original – que é aquele cometido pelo casal primordial no momento em que, desobedecendo às orientações de deus, resolveram provar o gosto do fruto da árvore do bem e do mal – não existiu. É ótimo poder eliminar o pecado original da história porque o castigo por essas “dentadas impensadas” é um dos momentos em que, se prestarmos atenção, o significado do termo “justiça divina” sofre o maior abalo, afinal, uma falta que a maioria dos pais terrenos puniria com atitudes como fazer o filho dormir sem sobremesa, deus puniu com a expulsão do paraíso e uma praga que atinge, de acordo com a bíblia, toda a descendência do casal primordial. Seria como eu ter punido meu filho, que aos dois aninhos conseguiu subir na cadeira e pegar um pedaço de bolo que estava em cima da pia, com a expulsão de casa e uma praga terrível que atingiria toda a sua descendência para todo o sempre. Se eutivesse dado um tapa no meu filho nessedia, já sentiria que estava praticando uma injustiça enorme, imagina o que eu pensaria desse deus se ele tivesse feito mesmo o que diz no gênesis que ele fez. Na visão de qualquer pessoa que pense nisso de forma racional e que não esteja influenciada pela fé, esse castigo, pela sua desproporcionalidade, parece tremendamente injusto. Mas, tudo bem, não houve essa imensa injustiça quanto à proporção falta/castigo porque a história não aconteceu de fato. Maravilha! O homem está aliviado do pecado original e pode seguir em frente acreditando que o deus bíblico não cometeu na verdade essa gigantesca injustiça. Talvez com isso o teísta ache até que o ateu deixou de ter uma razão – bem forte diga-se de passagem – para não crer em deus, na sua bondade e na sua justiça. Mas aí chega o novo testamento e lá está um Jesus que veio ao mundo para sofrer de forma inimaginável com o objetivo de livrar a humanidade do pecado original. Pronto, deixou de fazer qualquer sentido: Se o pecado original não existiu porque toda a passagem de Adão, Eva, Éden, Árvore, Serpente, Fruto é “sentido figurado” então como pode Jesus ter sofrido para que a humanidade fosse redimida do pecado original? Ou foi por outro pecado que Jesus veio? Qual outro pecado se todo e qualquer pecado que a gente cometa pode nos levar ao inferno pela eternidade? E esse é apenas um exemplo de absurdo e incoerência; um dos tantos e um dos que não adianta tentar entender porque fazer isso sem ter a chamada fé é tarefa impossível. Faz-se necessário, nessa altura, parar um pouco sobre o termo “Sentido figurado” aqui colocado entre aspas porque não costuma ser explicado pelos que o usam para eliminar ou suspender a validade de partes da bíblia que geram conflitos racionais mais sérios. Em sala de aula já aconteceu de ouvir uma aluna

explicando que determinada passagem da bíblia era sentido figurado e, dias depois, quando, seguindo com a matéria, fui trabalhar sentido denotativo e sentido conotativo, percebi que ela absolutamente não sabia o que significa sentido figurado. Pois vamos lá então: Sentido figurado, qualquer professor de português pode ensinar, é o sentido conotativo ou não literal das palavras, é um outro sentido que se pode atribuir a essas palavras por analogia, é quando se usa alguma figura de linguagem, como a metáfora por exemplo. Mas se uma palavra ou um texto está colocado em sentido figurado, é possível e de se esperar que um leitor experiente consiga sem grandes dificuldades captar qual foi o verdadeiro sentido em que aquele texto foi escrito, em outras palavras, qual foi a intenção do autor do texto, que sentido real está “por trás” desse sentido literal que não é válido nesse caso e, principalmente, o sentido figurado tem que, obrigatoriamente, ter alguma relação com o sentido literal, afinal, como ensinam muitos bons professores de literatura: todo texto é uma obra aberta, mas não escancarada. Ou seja, um texto pode até, e isso é sinal de riqueza, admitir mais do que uma interpretação, mas o texto não admite QUALQUER interpretação. Perceber o sentido figurado nos textos poéticos ou literários em geral e até mesmo nos textos jornalísticos quando eles os têm é uma das grandes dificuldades que os alunos têm em sala de aula, e mostrar essas possibilidades de interpretação é uma das maiores e mais difíceis tarefas dos professores de português. E ouso dizer que muitos e muitos profissionais formados e pósgraduados têm as mesmas dificuldades em suas leituras. Outra dificuldade muito grande é conseguir que os alunos compreendam textos mais antigos, mesmo que muitíssimo menos antigos do que a bíblia; às vezes de apenas de algumas décadas atrás. Como então acreditar que os teístas, em sua maioria, conseguem entender a bíblia se e quando a leem? Como acreditar até mesmo que o pastor daquela igrejinha de fundo de quintal sabe o que está lendo para seus ouvintes? Acho bem mais crível que em sua imensa maioria os teístas afirmam e acreditam que a bíblia é a palavra de deus porque não sabem ler o suficiente para perceber as incongruências presentes em suas páginas. Na verdade, no caso da bíblia em muitos momentos, nem um leitor experiente vai captar o sentido oculto do texto; e caso tente não vai conseguir encontrar porque, aparentemente, o religioso não sabe qual é esse sentido ou então o que vai fazer é criar um “sentido”, muitas vezes incoerente, que possa servir como justificativa para o que ele quer que aquele texto signifique naquele momento. Qualquer coisa para defender seu deus dos ataques dos hereges feito eu! E mesmo quando a explicação do sentido figurado é dada de forma convincente, o fato de os textos, histórias e ensinamentos da bíblia estarem, no dizer do teísta,

no sentido figurado apenas em algumas situações e em alguns momentos, de acordo com a conveniência do argumentador, é algo que não dá para ser aceito por uma ateia teimosa e questionadora como eu. XIII Desde sempre, o ser humano tem curiosidade de saber onde e de que forma tudo começou. Para explicar tudo o que esse ser humano não conseguia explicar, de uma forma que o consolasse, surgiram as religiões, muitas das quais hoje chamamos de mitologia. Acho que as teogonias são mais antigas do que qualquer coisa que depois viemos a chamar de civilização. Para a religião da qual (ou das quais) estamos falando a teoria é essa: No princípio não existia nada, e com nada se diz nada mesmo, total zero, total ausência. Não existia o tempo, não existia a forma, não existia a física e nem as leis da física, não existia natureza, não existia lei da gravidade, não existia matéria. Só existia deus. Onde ele estava? Em lugar nenhum porque não existiam lugares. Pode alguma coisa estar em lugar nenhum? Isso é um problema (mais um problema) para os teístas resolverem. E aí vem o segundo problema: Muitos teístas não aceitam o evolucionismo como explicação científica para a existência do mundo e argumentam que para isso seria preciso aceitar que algo tão complexo como a natureza e tudo o que vemos à nossa volta teria surgido do nada, embora Darwin nunca tenha dito isso. E afirmam sorrindo “bondosamente” como se nos chamassem de burros, que isso é totalmente inaceitável. Mas é engraçado que eles conseguem aceitar sem problema que algo como deus – muito mais complexo que a natureza – surgiu do nada. Ou será que os teístas não acham que o deus deles é mais complexo do que a natureza ou o universo? Alguns dizem que deus não surgiu, ele apenas existe, é o “incriado”. E acham que essa teoria é mais simples do que a teoria da evolução. Não consigo perceber onde está essa simplicidade. Felizmente, para dar respostas sem fantasias e sem apelar para o conhecimento mais do que ultrapassado de homens que viveram na Idade do Bronze, existe a ciência. Se você quer respostas que realmente satisfaçam, embora aumentem ainda mais sua curiosidade e o número de perguntas que terá, estude ciência. A procura pelo conhecimento é essa busca incessante por algoque você sabe que

não vai encontrar. Essa é a inquietação de todo cientista e da própria ciência. Se pensar, se não optar por suspender o racional, você jamais terá as certezas que procura, mas mesmo não sabendo tudo, e mesmo sabendo que nunca saberá, verá que a procura por respostas é algo compensador. Por isso não é comum cientista abrir mão da ciência. “Posso jamais encontrar o jardim que procuro, mas é o perfume de suas flores que me ajuda a viver!”16. Teístas que tentam desacreditar a ciência dizem: “O que a Ciência faz é simplesmente deduzir; todas as “comprovações” são meras deduções”. Eu fico realmente espantada por ouvir, muitas vezes de pessoas inteligentes e cultas. Um argumento tão pobre! E o incrível é que muitas vezes argumentos desse tipo são colocados em uma conversa pela internet! “simplesmente deduzir”? “meras deduções”? Por favor senhor teísta, reveja o que você está dizendo. Você está usando uma “mera dedução” para conversar comigo! Quando fica doente você vai até a farmácia para tomar uma “mera dedução” e fica curado. Ao contrário da religião, a ciência pesquisa, estuda, testa, procura respostas, erra até, mas não empina o nariz para dizer que tem a resposta final. Por exemplo, em nenhum momento do seu livro Criação Imperfeita (GLEISER, 2010) o físico brasileiro Marcelo Gleiser afirma que a ciência sabe tudo, pelo contrário, sobre várias coisas ele chega a dizer que a ciência provavelmente nunca encontrará resposta. Para a ciência a verdade é provisória, tudo é considerado verdade apenas e tão somente até o momento em que alguém consiga provar que não é. Cientistas ganham fama e reconhecimento fazendo descobertas, aprofundando estudos ou falseando afirmações de outros cientistas, por isso é natural que estejam sempre testando as conclusões dos colegas. 16 Essa frase é minha mesmo, mas me pareceu tão óbvia que achei melhor colocar entre aspas porque não acho que fui a primeira pessoa a dizer isso.

Além disso, quando não se consegue provar a falsidade de uma teoria, esta pode ser usada em novos estudos e experimentos porque se pode confiar nela, embora essa confiança seja sempre provisória. É exatamente isso que vem acontecendo com a teoria da evolução desde que Darwin a publicou. Até agora ninguém conseguiu falseá-la, apenas adaptá-la e acrescentar mais detalhes e informações à medida que novas descobertas são feitas com o uso de tecnologias mais avançadas. Para a frustração dos criacionistas, a teoria da evolução é mais válida do que nunca.

“Sabe por que a ciência não consegue tal façanha? É porque só deus pode fazer isto!”. Essa é uma das frases preferidas dos teístas e foi dita várias vezes a respeito de várias coisas que hoje são corriqueiras. Houve um tempo em que se afirmava que a ciência não valia nada porque não se conseguia criar em laboratório nenhum dos compostos que estão presentes no e que são produzidos pelo corpo humano, mas Friedrich Wöhler (1800-1882) conseguiu processar a ureia17, que é empregada em muitos setores da indústria, e que recentemente foi usada por comerciantes desonestos para adulterar o leite “de caixinha”. Repetiram a frase para dizer que nunca seria possível voar com um objeto mais pesado do que o ar, falar em tempo real com alguém que está do outro lado do mundo, clonar tecido vivo. A moda agora é “desafiar” a ciência como totalmente inválida porqueela não consegue“criar a vida a partir donada”. 17 A ureia foi descoberta por Hilaire Rouelle em 1773. Foi o primeiro composto orgânico sintetizado artificialmente em 1828 por Friedrich Wöhler, obtido a partir do aquecimento do cianeto de amônio (sal inorgânico). Esta síntese derrubou a teoria de que os compostos orgânicos só poderiam ser sintetizados pelos organismos vivos (teoria da força vital). (Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ureia - Acesso em: 20/08/2013)

Eu não acredito em deus e, portanto, não acredito que deus tenha gerado a vida a partir do nada, e mesmo que os cientistas nunca consigam criar a vida – o que é muito provável que aconteça – nada prova que deus o tenha feito. Se não se pode provar que deus existe, por mais que os religiosos venham tentando isso há séculos, menos ainda se pode provar que ele tenha criado a vida a partir do nada, portanto, esse “desafio” chega a soar ridículo. Nenhum cientista sério diria que a ciência pode criar vida, mas éfazendoperguntas eprocurando respostas quea ciência avança e para quase todas as questões que a ciência levanta se pode dar como resposta a frase: “Quem sabe um dia...” Várias vezes as afirmações dos teístas se mostraram falsas, não está na hora de serem menos prepotentes? Nós, ateus, somos acusados com muita frequência de endeusar a ciência, dizem que não existem ateus de fato, que todos os que se dizem ateus são na verdade “cultuadores” de um deus chamado ciência. Algumas vezes “demonstram” essa “verdade” dizendo que nós sempre falamos em milagres da ciência e que usar a palavra milagre significa dizer que a ciência é um deus porque só deus faz milagres. Mas, como vimos acima, muitas coisas que a ciência fez eram, antes que a ciência o fizesse, coisas que “só deus poderia conseguir”, nesse sentido,

milagre bem poderia ser definido como aquilo que a ciência AINDA não conseguiu fazer ou explicar. Não acreditar na ciência é não acreditar na realidade. Não digo que não existam ateus que, quando falam na ciência, realmente dão a impressão de estarem cultuando a ciência como se fosse um deus, estão errados. A ciência, se fosse um deus, não seria um deus capaz de se prestar a muitos cultos; como disse Carl Sagan “Não faz muito sentido rezar para a lei da gravidade” e eu posso afirmar que nunca senti a mínima vontade de erguer um altar para o meu forno de microondas ou para Stephen William Hawking, o maior cientista vivo. Um deus não admite ser contrariado, não admite que suas verdades sejam postas à prova e derrubadas como falsas; a ciência vive disso. Quer um exemplo? Marcelo Gleiser, em seu livro já citado, fala de quando foi descoberto e se começou a produzir o gás CFC. Antes de iniciar a produção do gás, fez-se todas as pesquisas e se comprovou que o gás era inofensivo ao ser humano e que era estável a ponto de, ao ser lançado na atmosfera não reagir com nenhum outro gás e, portanto, não ajudar a formar nenhuma substância nociva à saúde. Isso era um fato, um fato comprovado em laboratório e, portanto, uma verdade científica. Mas, décadas depois, se descobriu que, embora seja inofensivo à saúde e embora realmente não se combine com nenhuma outra substância para formar algo danoso dentro da nossa atmosfera e na altura em que estão os gases que respiramos, esse gás CFC, justamente por ser estável, acaba por chegar intacto à camada de ozônio que está bem acima denós e que nos protege contra os raios ultravioletas do sol, e lá – só lá – onde o ozônio é abundante, se pode ver quanto de dano isso pode causar à nossa vida porque o CFC reage com o ozônio e o destrói quebrando suas moléculas. Marcelo Gleiser dá a explicação detalhada e coloca as fórmulas químicas para que o leitor consiga fazer uma ideia de como isso acontece, mesmo que seja – como é o meu caso – um leigo no assunto. O fato final é que esse gás CFC, que era comprovadamente inofensivo, mostrou-se tremendamente danoso para a vida humana. Uma verdade científica comprovada – e provisória como toda verdade científica – passou, depois de algumas décadas, a ser uma mentira. Isso, que é comum na ciência, não costuma acontecer na religião. Normalmente a religião se apega a seus conceitos ultrapassados e errados com tanto afinco que aceita sem problemas negar a realidade em nome de suas “verdades” inquestionáveis. Portanto, acusar os ateus de cultuarem a ciência como um deus é desconhecer o que seja ciência e o quanto ela é impermeável ao culto no sentido religioso da palavra. Outro argumento que com frequência tentam usar é dar exemplos de coisas ruins que a ciência fez – e não é difícil encontrar esses exemplos – para dizer que os

ateus cultuam um deus falível e nocivo. Acontece que um dos “milagres” da ciência foi conseguir reproduzir e tornar possível ao homem um ato que até então só deus tinha feito: Destruir pelo fogo uma cidade inteira. Veja então que, se for usar as coisas ruins e terríveis descobertas e colocadas em prática pela ciência, coisas que nenhum ateu nega, os crentes acabam por se deparar, em alguns casos, com essas mesmas coisas praticadas pelo seu deus e descritas no seu livro sagrado; a diferença é que nenhum ateu considera a ciência infalível e todo crente afirma e reafirma, contrariando qualquer lógica racional, a infalibilidade de seu deus. Sim, a ciência cria armas, bombas, estratégias de assassinato e tortura. Dizem que algumas vacinas criadas pela ciência servem para doenças que também foram criadas pela ciência e que estão nos quartéis para serem usadas em caso de guerra biológica. Não tenho provas sobre isso, mas não duvido. Acontece que embora ambas, ciência e religião, possam ser usadas para o mal – e são – a diferença básica é que mesmo as invenções mais terríveis da ciência FUNCIONAM. O fato é que muitos dos religiosos e muitos dos cientistas não passam de mercenários egoístas, preocupados apenas com a fama e com o dinheiroque vão tirar dos fieis acéfalos ou dos doentes e desesperados. Sei que nem todos são assim, nem de um lado nem de outro, felizmente, mas eles existem e são muitos. Isso porque o ser humano é mau e defeituoso. Digo novamente: Se existisse – por ter criado o homem como ele é – deus seria culpado tanto pelos horrores praticados pela religião quanto pelos horrores praticados pela ciência. Finalmente, se um dia – contrariando todas as minhas certezas – a ciência provar que deus existe, então não existirão mais ateus. Mas também não existirão mais crentes fanáticos dizendo que a ciência não sabe nada. É característica da religiãorejeitar a ciência no que ela contraria sua fé e abraçá-la de bom grado quando alguma descoberta científica concorda com qualquer história da bíblia, com qualquer mínima parte de toda a mitologia que compõe a religião. Muitas vezes os teístas chegam a distorcer a ciência com argumentos inconsistentes na tentativa de fazer com que provas científicas não entrem em choque com a religião, prova disso é a recente declaração do papa de que a teoria da evolução de Darwin não contraria a história da criação contada no gênese. Imagino quanta ginástica mental precisaram para dar uma aparência de verdade a essa afirmação. De qualquer forma, se a ciência provar que deus existe e que ele é exatamente aquele deus cristão do qual os teístas me falam, nem eu serei ateia nem você será crente, afinal crer, no sentido religioso, é não ter provas e você as terá. Nós nos dividiremos em dois grupos: o grupo dos que o adoram

– do qual você, teísta, certamente fará parte – e o grupo, muitíssimo menor, dos que o desprezam. Eu estarei com certeza nesse segundo grupo. XIV Pelo que se lê na bíblia e pelo que se ouve dos deístas, o que a lógica permite que se conclua é que, se existir um deus, ele deve ser megalomaníaco e deve ter optado por criar o mundo para ser adorado e venerado, para ter seres que se humilham diante dele, para ter servos e escravos, afinal não é como “servos de deus” que muitos dos que creem nele se definem? Pelo que podemos ver e ouvir, essa relação entre deus e os que acreditam nele parece se caracterizar mais como servos-senhor do que comofilhos-pai. E a existência de servos pressupõe um amo, um ditador e nunca um pai. Um filho comum nunca se sentiu servo do seu pai e provavelmente nunca conheceu alguém que se sentisse dessa forma com respeito a seu pai, digamos, terreno. No entanto, muitos dos religiosos, que se dizem filhos de deus, se dizem também servos de deus. Para quem está vendo de fora, essa relação não parece uma relação sadia, não parece uma relação pai e filho e, decididamente, não parece fundamentada no amor. Por que se dizem filhos e, ao mesmo tempo, servos de deus? Que raio de pai é esse que quer seus filhos como escravos? Em todo tipo de oração tem essa coisa do “me use”, “sou teu servo”, “sou a ovelha pronta para o sacrifício”, “Senhor, fazei de mim um instrumento”... Haja humilhação! Será que há possibilidade de existir realmente um deus que, mesmo sendo bom, se agrada apenas das pessoas que sabem se humilhar bastante? Onde é que estaria, escondida – e muito bem escondida – a suprema bondade desse deus com toda a aparência de um senhor escravagista de chibata na mão? Por que um deus todobondade iria querer esse tipo de relação degradante com suas criaturas se ele as ama, como tanto propagam os teístas? Para mim, que vejo meio de fora, essa relação homem-deus parece mais uma relação vítima-algoz, e as religiões parecem ser produtos da tão conhecida síndrome de Stocolmo. Só para lembrar: Síndrome de Estocolmo é um estado psicológico desenvolvido por pessoas que são vítimas de sequestro. A origem dessa síndrome é a tentativa da vítima de, por medo, se identificar com seu captor ou, na intenção de salvar-

se, a tentativa de agir de forma a conquistar a simpatia do sequestrador. Pela fragilidade emocional da vítima, esta acabaria por tornar real essa identificação e por assumir essa simpatia no sentido inverso, em lugar de despertar no sequestrador a simpatia por ela, de alguma forma que só a situação de tensão psicológica explica, a vítima desperta em si mesma a simpatia pelo sequestrador e de vítima passa a agir como cúmplice a ponto de defender seu algoz diante da polícia que vem libertá-la. Isso é tido e havido como uma patologia, uma doença, e que me perdoem os que acharem que estou pegando muito pesado, mas para uma ateia chata feito eu, esse apego que muitos teístas e que os preceitos das religiões mostram com respeito a deus lembra muito, muito mesmo, a síndrome de Stocolmo. Como teimosa questionadora que sou, em alguns momentos sinto pelas pessoas religiosas que conheço, que sei que existem, que sei que são boas, amigas e generosas o mesmo tipo de pena melancólica que se pode sentir por uma vítima da síndrome de Stocolmo porque, apesar de tudo o que comprovaria o contrário, fazendo questão de ignorar toda e qualquer contradição, por mais óbvia que esta seja, tem muita gente que não apenas admite a existência de deus, mas que a afirma com toda a certeza. O que parece totalmente incompreensível para mim, é que muitas dessas pessoas acreditam na existência de deus, segundo elas, com base na razão! Pelo menos é isso que afirmam, por mais difícil de compreender que essa afirmação seja. Pessoas como Tomás de Aquino, Agostinho e C.S. Lewis tiveram ao longo da história um trabalhão enorme para fornecer “provas” e os mais elaborados tipos de argumentos “racionais” que pudessem ajudar todas as pessoas que querem crer com base na razão. Mas aí está um problema grande para mim, uma ateia comum: por mais que leia Tomás de Aquino, minha razão não consegue admitir a existência de um deus criador. Não consigo pensar em um deus que, sendo todo poderoso e todo bom, fosse capaz, conscientemente, de criar o mundo e a vida como eles são. Chego a admirar, embora nunca compreenda, as pessoas que conseguem isso, elas se apoiam em conceitos lógicos que não me parecem lógicos mas que o são para elas, e acreditam. Eu não posso. Li com toda a atenção As Cinco Vias que Levam a Deus, de Tomás de Aquino e não tive como concordar com elas ou levá-las a sério de verdade, li também As

Vinte e Quatro Teses Tomistas e mesmo depois de voltar a Aristóteles e voltar novamente a Aristóteles para conseguir compreender bem do que Tomás de Aquino falava, saí da leitura tão ateia quanto antes. Enfim, sempre que leio a defesa da existência de deus de algum filósofo o que concluo é que ele na verdade não questionou a existência de deus, apenas tomou essa existência como fato inquestionável e daí, a partir desse alicerce etéreo, construiu toda a sua teoria. Recentemente, lendo o livro Cérebro e Crença, de Michael Shermer (2012), encontrei uma possível explicação para esse fenômeno. Nesse livro, Shermer defende a tese de que primeiro as crenças surgem e se instalam em nossos cérebros, depois conseguimos, via muitos “truques” e subterfúgios, encontrar as explicações “lógicas” para essas crenças. O autor demonstra essa tese apresentando inúmeros estudos feitos por neurocientistas; tais estudos envolvem pesquisas com instrumentos de altíssima precisão e tecnologia, pesquisas controladas e monitoradas com todo critério e com números expressivos de pesquisados e até mesmo experiências pessoais. Boa parte das explicações mais específicas e técnicas apresentadas no livro fogem à minha capacidade de compreensão por envolverem detalhes dos conhecimentos científicos a respeito do funcionamento do cérebro que, me pareceu, ficariam mais claros para pessoas que estivessem a par desses avanços. Não é o meu caso. Mas, mesmo sem poder levantar bandeira, os argumentos me pareceram bastante convincentes e bem embasados. O que quero dizer é que, na prática e pelas observações que tenho feito, a afirmação de Shermer parece totalmente condizente com o que penso a esse respeito. Em alguns casos me parece que pelo menos alguns desses teístas “racionais” na verdade não acreditam realmente em deus, mas – conscientemente ou não – se recusam a duvidar porcontadareligiosidadearraigadaemsuapersonalidadepor influência do meio ou até mesmo da época em que viveram. Esse me parece ser o caso, por exemplo, de Spinoza. Tais teístas me passam às vezes a impressão de que se recusaram – ou forçaram o próprio cérebro a se recusar – a afirmar sua descrença por medo das retaliações, que vão desde a inquisição que condenou Galileu Galilei até o fechamento das portas da vida acadêmica, que efetivamente se lacraram para David Hume. O resultado, para mim, seja da leitura de Tomás de Aquino, seja da leitura de descartes, de Leibniz, de Berkeley

ou mesmo de Kant, é quase sempre um belo gigante com pés de barro. É essa a impressão dessa ignorante que vos escreve. A simples razão não consegue, na minha cabeça, casar uma bondade suprema aliada a um poder supremo que crie, por exemplo, coisas que matam crianças. Essa coexistência é irracional independente do que sejam essas coisas: outros seres humanos, vírus, bactérias, catástrofes naturais, parasitas, não importa. Um deus bom seria incapaz de criar algo que mate crianças! Isso eu vejo como uma afirmação racional, por menos racional que possa parecer aos teístas “racionais” de plantão. E esse, como ficou explicado lá em cima, é só um dos motivos que levam minha razão – e acho que qualquer razão destituída da cegueira da fé religiosa – a rejeitar a possibilidade da existência de deus. Sei que muitos argumentarão que, ao citar a morte de crianças como razão para não crer, estou avaliando deus pela minha ótica humana e dando ao ser humano uma importância que ele não tem; mas quando o teísta diz que deus criou o homem à sua imagem e semelhança, quando afirma que deus é bom porque nos criou e “nos ama tanto que entregou o seu filho único em sacrifício”, eles não estão dando ao ser humano uma importância que ele não tem? Qual de nós dois está dando mais valor (indevido) ao ser humano? O ser humano como raça é o protótipo de tudo que é abominável. O ser humano adulto é muitas vezes tão asqueroso quefaz com que uma pessoa medianamentesadia sinta vergonha de pertencer a essa raça, mas uma criança? Uma criança é quase uma árvore no sentido de que a árvore é o ser vivo mais maravilhoso do planeta. Uma criança é toda uma promessa, toda uma descoberta, todo um milagre. Sim, não se espantem amigos, sou ateia, não creio em deus e se nele cresse o odiaria, mas creio em milagres no sentido de que é assim e só assim que consigo definir coisas maravilhosas que existem e de cuja causa não tenho explicação. Mas minha afirmação de milagre não é religiosa porque para mim, essa explicação que não tenho decididamente não pode ser esse deus doente de sadismo que os teístas cultuam. Tem algumas pessoas que não se ligam a nenhuma religião tradicional, em alguns casos são mesmo contrárias às religiões institucionalizadas, aceitam a ideia de um criador, mas acreditam que ele não interfere na criação. De acordo

com esses teístas, deus teria criado tudo, dado o “pontapé inicial” para o surgimento da vida através da teoria da evolução e não interfere mais, ou seja, depois de criar, ele cruzou os braços ou foi ler um livro. Dizem apenas que deus é bom porque a sua criação é boa. Como podem afirmar que essa criação, se criação for, é boa eu não sei; o que pergunto é: Boa comparando com o quê? Já abordei esse tema quando falei sobre as características fundamentais de deus, mas vou correr o risco de ser repetitiva e explanar novamente o mesmo assunto. Se pensar quediante de cada uma das maravilhas – que existem e que são muitas – podemos colocar um ou vários horrores, como podemos afirmar que “Deus é bom porque a sua criação é boa”? Muita gente, muitas músicas, muitas crenças afirmam que a vida é maravilhosa, é um milagre, é um presente de deus, é uma dádiva que não sabemos valorizar; já fui muito questionada pelo meu ateísmo com frases do tipo “Como é que você pode não acreditar em deus se ele te deu a vida e se a vida é a maior de todas as dádivas?”. Tudo isso é dito como verdade irrefutável. Será irrefutável mesmo? Tem tanto de ruim na vida de tanta gente e de tanto bicho que podemos perguntar: Será que se pode considerar maravilhosa essa coisa tão cheia de medo, dor, tristeza, fome, miséria, desastre... que chamamos de vida? Minha resposta é um sonoro NÃO. Aparentemente, quem fala da beleza e da maravilha da vida é porque está olhando apenas um lado da moeda, ou está olhando apenas para a sua própria vida e coincidiu de essa pessoa ser uma das poucas privilegiadas do planeta a ter uma vida que realmente se pode chamar de bela, de boa, de maravilhosa. Ou, o que é mais provável, a vida dessa pessoa é apenas medianamente boa – ou até mesmo ruim – mas somos fundamentalmente otimistas! Temos o medo natural e atávico da morte e, talvez como “estratégia” para nos “desviar” dessa morte que nos apavora, temos também uma forte tendência não apenas a esperar que tudo melhore como também a achar que tudo está melhor do que realmente está; pelo menos quando nosso objetivo é nos sentirmos privilegiados. Isso tudo graças ao fato de que somos animais dotados do instinto de autopreservação. E, acrescentado a esse medo, a lavagem cerebral dos conceitos a religiosos que foram arraigados em nós desde nossos ancestrais acaba fazendo com que muitos de nós – no momento de tachar a vida como algo maravilhoso – pensem apenas nas coisas boas e na esperança de coisas boas e se esqueçam de olhar para a vida como ela realmente é. É por isso, em minha opinião que mesmo entre pessoas

sem religião essa tendência a ver a vida como maravilha é muito forte. Mas essas pessoas, que são maioria e que afirmam a vida como inquestionavelmente perfeita, se pararem de olhar o particular e olharem o geral, se deixarem de ver a própria vida ou apenas a vida restrita do seu grupo, dos privilegiados que têm uma família, um teto e condições de ter objetivos e realizá-los e se procurarem enxergar a Vida mesma como um todo, e se conseguirem fazer isso sem a venda do medo religioso, será que conseguirão continuar a dizer que a vida é linda, que a vida e maravilhosa, que a vida “É bonita e é bonita”? Eu, quando fiz isso, não consegui. Quanto ao deus que cria e depois “sai para dar um passeio” deixando tudo “ao deus dará”, o deus “diferente” no qual muitos teístas dizem acreditar, talvez para evitarem o que consideram dois extremos indesejáveis: o ateísmo para o qual não estão prontos e a adesão irrestrita a uma das religiões institucionalizadas que não conseguem mais manter; para a minha razão leiga e ateia, o deus que afirmam ser todo bondade fica pior do que o já tão terrível deus que interfere de forma aleatória e injusta, se é que é possível ficar pior. Esse deus “diferente” cria todo o circo de horrores que é a vida – apesar do que dizem em contrário – usa seu onipoder para tirar da paz do nada absoluto os seres que não pediram a existência e que não puderam escolher se queriam ou não essa vida de medo, dor e pena, coloca suas criaturas nesse mundo hostil, inseridas numa corrente macabra de sangue e de morte, deixa que se virem como puderem, e depois sai de cena sem tomar conhecimento e sem se importar com o que acontece. Isso é mais que maldade, é irresponsabilidade no mais alto grau. Nesse caso, se deus criou e saiu de perto, não está nem olhando, não sabe nem quer saber o que se passa, ele é mau por omisso. Atémesmo na lei dos imperfeitos homens omissão é considerada crime: um motorista que, sem querer, atropela alguém e, apavorado, foge será processado por omissão de socorro, o que dizer de um deus que criou tudo isso e se afasta solenemente sem se interessar pelas consequências de sua criação? Eu condenaria sem apelação um ser que tivesse criado o mundo, se afastasse e nunca tomasse conhecimento das mortes e dos horrores por que passam muitas e muitas e tantas e tantas vezes as crianças. Depois o condenaria pelo sofrimento dos animais e, por último, pelo sofrimento do restante da humanidade. A pena seria máxima para todos os crimes.

Mas se, por outro lado, ele criou tudo e não se afastou, fica apenas olhando sem interferir, e não interfere porque nos deu sem que tivéssemos pedido, além da vida, um tal de muito mal acabado e mal explicado livre-arbítrio, então ele é mau por sadismo e sadismo é algo tido e havido como, no mínimo, uma doença; e já que não se pode falar em doença quando se fala de deus porque um deus que é perfeito e que é ao mesmo tempo doente é uma ideia contraditória e inadmissível, então teríamos que aceitar que nele o sadismo não é doença, é normal e é característica de sua personalidade. Eu não poderia, de maneira nenhuma, amar, ou mesmo respeitar, um deus sádico; e não entendo que o façam. Enfim, essas são, nas opções que os que creem em deus mas não em milagres admitem, as possibilidades do comportamento do deus criador: criar e se afastar, ou criar e ficar só olhando sem interferir. Ambas são horríveis e nenhuma delas combina em nada com o que se poderia definir como atitudes dignas de um deus todo poderoso e todo bondade. Quase não dá para decidir em qual dos dois casos deus seria pior. Se ele existisse claro. XV Quanto aos desejos e prescrições de deus, dizem muitos, ou todos os que professam o cristianismo, que estamos salvos de complicações porque Jesus simplificou tudo para nós. Jesus, o filho de deus por excelência, do qual inexplicavelmente não somos irmãos embora sejamos nós também filhos de deus, teria reduzido os mandamentos e facilitado para nós, não tão filhos de deus assim, o árduo trabalho de seguir o que deus mandou que seguíssemos. Isso se alguém puder compreender o que realmente deus mandou que seguíssemos a partir de um livro tão contraditório quanto a bíblia. Enfim, os cristão afirmam que Jesus, em sua infinita bondade e graças ao amor que tem por nós, o amor mais incompreensível que se possa imaginar, diga-se de passagem, simplificou toda a bíblia, toda aquela sequência de ordens e mandamentos contraditórios, e não apenas os dez que Moises trouxe de trás da sarsa ardente. Jesus transformou, como num passe de mágica, todo um livro, ou vários na verdade porque a bíblia é uma coleção de livros, em um preceito único: Amai ao próximo como a ti mesmo. Então vamos sonhar um pouquinho: dá para imaginar que mundo lindo teríamos se metade, só metade dos cristãos porque teríamos que contar fora desse

conjunto os cristão resistentes e os cristãos de fachada; se essa metade dos cristão desprezasse todo o restante da bíblia, boa parte da qual já desprezam porque caso contrário estariam na cadeia, e se só essa metade cumprisse somente o que eles chamam de principal mandamento do cristianismo e que já me disseram mais de uma vez ser o mandamento único a que Jesus reduziu os dez do velho testamento “simplificando” assim a maneira de seguir a bíblia, como se a bíblia fosse ou tivesse como ordens só os dez mandamentos. Repetindo: O que eles chamam de “simples” é o “Amai ao próximo como a ti mesmo”. Certo que, antes disso, ele diz para amar a deus (ou a ele mesmo) sobre todas as coisas e com dedicação total e irrestrita, mas deixemos essa parte – que denota insegurança e prepotência – de lado e paremos um pouco sobre o “Amai ao próximo como a ti mesmo”, esse mandamento chave. Amar é mais forte do que gostar, é mais forte do que querer bem e é mais forte do que se importar, e Jesus não manda que a gente goste ou que queira bem ou mesmo que a gente se importe com as pessoas, ele manda que a gente as ame! E por incrível que pareça existem cristão, e muitos, que afirmam e juram de pés juntos que realmente amam ao próximo como a si mesmos. Sobre o próximo, quem é esse próximo? Os teístas dirão que são as outras pessoas, todas as outras pessoas que conosco dividem esse planeta azul, todos os seres humanos do mundo; e há ainda os que tentam incluir nessa definição de “próximos” inclusive os animais que, segundo eles, são também nossos irmãos, embora Jesus não seja. Mas em nossa imaginação, em nossa fantasia de como seria o mundo se metade deles estivesse dizendo a verdade, nãosejamos assim tão otimistas, vamos admitir que a palavra se refere apenas aos seres humanos e não aos bichos porque se incluirmos os bichos nessa definição de próximo teremos que imaginar um mundo com uma quantidade muito maior de vegetarianos e muito menor de criadores, só para começar. Embora já se tenha dito que pela escrita original do texto bíblico a palavra que da língua original, o aramaico ou o Grego Koine, foi traduzida como “próximo” significaria apenas aquele que pertence ao povo hebreu e não a humanidade como um todo, o fato é que Paulo de Tarso, numa genial jogada de marketing, resolveu estender o cristianismo também para os não judeus – ou os gentios – e, ao assumir a bíblia como palavra do seu deus, o cristão se colocou também, à

revelia dos judeus que nunca concordaram com isso, como parte do povo escolhido, ou mais ainda, o cristão acusou o judeu de ter matado Jesus, colocou o judeu como raça maldita e se colocouasimesmocomooprópriopovoescolhido,eliminando os judeus da lista. E esse cristão – pode perguntar a eles se você duvidar – costuma dizer que “próximo” é a humanidade toda porque nós, seres humanos, somos todos irmãos. É o que afirmam, embora às vezes excluam dessa definição de irmãos pessoas como homossexuais, umbandistas e ateus. Pelo menos enquanto essas pessoas não “abjurarem seus pecados” e não “aceitarem Jesus”. Daí que quando chamam esse mandamento de simples certamente o fazem porquenão o entendem e não o praticam. Em defesa deles devemos notar que não o praticam por total impossibilidade de fazê-lo. Mentem, mas não é por má vontade, é por ignorância (no bom sentido) e impossibilidade física, psicológica, mental, de formação, atávica, humana, animal, de praticar o que afirmam praticar. Sim, porque se você pensar um pouco saberá que amor não é voluntário e a intensidade do amor é menos voluntária ainda. Não há como um ser humano amar da mesma forma todos os outros seres humanos; mais impossível ainda éamar todos os seres humanos como a si mesmo. Amar a si mesmo não é uma escolha, é a obediência a um instinto; e mesmo assim devem existir outros seres humanos como eu que, emboracontinuematendendoaoinstintodaautopreservação, não amam a si mesmos. Pelo menos não no sentido de se reconhecer como alguém com qualidades “amoráveis” e que valoriza o amor-próprio como condição sine qua non para a felicidade. Mas acho que não cabe muito entrar em mais detalhes aqui. Pense: o nosso próprio instinto de sobrevivência faz com que cada um de nós, em geral e salvando-se raríssimas exceções, ame a si mesmo acima de toda e qualquer outra pessoa, excetuando-se, em muitos casos mas não em todos, os próprios filhos. Na verdade acho que é mais correto dizer que o amor a si mesmo é o instinto de sobrevivência do que dizer que ele é causado pelo instinto de sobrevivência. Amar alguém, quem quer que seja, como a si mesmo é algo que vai contra a própria essência do ser humano como animal que ele é; e por mais que a gente goste de tentar pensar que somos melhores, pelo menos quanto aos instintos

básicos; por mais que tentemos colocar a razão como princípio, nós não nos diferenciamos tanto assim dos animais. Amor próprio em última análise não passa de instinto de sobrevivência e autopreservação. Portanto, amar alguém, que não seja um filho – e mesmo nesse caso não dá para generalizar – como a si próprio é algo que o ser humano simplesmente não pode fazer, por mais que Jesus tenha afirmado que deve ser assim e por mais que os cristãos continuem chamando isso de “simplificação”. Vamos pensar mais um pouco: Amar ao próximo como a si mesmo equivaleria a amar todas as pessoas do planeta da mesma forma e com a mesma intensidade. Imagine alguém que ama todas as crianças exatamente como ama a criança que um dia foi, ou como ama o próprio filho; como essa pessoa conseguiria não cuidar e não ter sob seu mesmo teto todas as crianças do mundo? Imagine alguém que em situação de pânico e estando os dois juntos se preocupa tanto em salvar o estranho completo quanto o próprio irmão de sangue; alguém que gastaria o último centavo e o último esforço para salvar a mulher da qual ouviu falar da mesmíssima forma e com o mesmíssimo desespero e preocupação que dedica naturalmente à sua mãe doente. Pela quantidade de desastres, doenças, sofrimentos e catástrofes que existem no mundo, é muito lógico supor que alguém que amasse ao próximo como a si mesmo não poderia sobreviver porque estaria preocupado, apreensivo, tenso e apavorado em tempo integral, e não acredito que alguém tenha coração capaz de resistir a tal pressão. Mesmo quando pensamos nas exceções, aquelas poucas pessoas que vivem em função do que comumente chamamos de “fazer o bem”, ainda assim cabe perguntar: Há ou houve no mundo alguma pessoa que amou o próximo como a si mesmo? O cético dirá que não, o mais crente e iludido Polyana daria uma dúzia de nomes, alguém menos Polyana, mas ainda assim crédulo, daria o exemplo de uma ou duas pessoas ao longo da história, Jesus e Gandhi talvez. Ainda que você tome a palavra “próximo” com o sentido de proximidade mais ou menos geográfica, ou seja, de nacionalidade, parentesco, vizinhança, amizade, companheirismo, ainda assim o “amai ao próximo como a ti mesmo” não se sustenta. Como ficariam as disputas dos esportes e as corridas pelo sucesso no trabalho com pessoas que amam ao próximo como a si mesmas?

Poderia existir o boxe? Poderia existir o funcionário subalterno? Mesmo assim vamos sonhar, afinal os cristãos afirmam que Jesus permite que amemos o próximo como a nós mesmos, então sejamos otimistas e vamos acreditar nos teístas que disseram que “próximo” é toda a humanidade. Pois bem, se metade daqueles cristãos que dizem praticar esse mandamento e tentam nos convencer de que isso é simples fizesse mesmo o que dizem fazer, nós, pobres mortais, ateus, agnósticos, descrentes e não-cristãos, certamente viveríamos em um mundo extremamente melhor, mais humano, mais bonito, mais justo e mais limpo. Olhando no Google podemos ver que no mundo existem aproximadamente 2,1 bilhões de cristãos, quanto é a metade disso? Arredondando para baixo teremos um bilhão de pessoas espalhadas pelo mundo, sendo a maioria no ocidente. No Brasil temos aproximadamente 26 milhões de cristãos, novamente dividindo ao meio teríamos, no Brasil, 13 milhões de pessoas amando ao próximo como a si mesmas. Esses 13 milhões de pessoas não permitiriam que elas mesmas passassem fome, sofressem maus tratos, vivessem jogadas pelas ruas, morressem abandonadas; portanto alimentariam e cuidariam de todos os mendigos e crianças abandonadas do país, já que, seguindo o mandamento único e simples, amam a cada uma dessas pessoas como a si mesmas. Parece que 13 milhões de pessoas, algumas certamente ricas, poderiam acabar com a fome no país sem dificuldade. Detalhando: 13 milhões de pessoas amando ao próximo como a si mesmas não permitiriam jamais que uma criança vivesse sem lar: Quantas crianças abandonadas temos? Numa pesquisa rápida podemos ver que existem no Brasil por volta de dois milhões de crianças abandonadas, se cada cristão que ama o próximo como a si mesmo adotasse uma criança ou duas certamente não teríamos mais crianças jogadas pelas ruas, na verdade não teríamos sequer crianças abandonadas em número suficiente para que todo cristão que ama ao próximo como a si mesmo adotasse uma. E porque, olhando os números, podemos perceber que se 13 milhões de cristãos que amam ao próximo como a si mesmos resolvessem adotar todos os menores abandonados do país não teria menor para todo mundo, acho que ocorreria aos que não adotassem crianças que poderiam acolher um mendigo ou um velho, sim porque existem também pessoas que não são menores mas que estão igualmente

abandonadas. Tendo 13 milhões de pessoas acolhendo um ser humano abandonado adulto ou criança, que eles amam como a si mesmos, não teríamos mais pessoas, menores ou maiores, jogadas pelas ruas e praças das cidades brasileiras. Um grande problema social estaria resolvido, uma das grandes razões por que sou ateia não existiria. Ainda temos o problema não menos grave das famílias que vivem em condições que os sociólogos chamam de “abaixo da linha de pobreza”. Então esses 13 milhões de cristãos que realmente seguem o principal mandamento, de repente poderiam pegar o dízimo, que nem sempre é usado de forma honesta pelos representantes das diversas igrejas, e fazer uma desviadazinha básica aplicando essa grana em recursos para ajudar as famílias, primeiro com o urgente e depois dando cursos, profissionalizando e colocando no mercado de trabalho toda essa gente que precisa alimentar, vestir e educar seus filhos mas não pode. E lembre-se de que, se for pensar mesmo, o dízimo é muito pouco para quem ama o próximo como a si mesmo, na verdade para ser coerente com o que dizem sentir, os cristãos que amam ao próximo como a si mesmos deveriam dar metade, não menos do que a metade do seu rendimento para ajudar seu próximo, que amam como a si mesmos. Muitos desses 13 milhões de cristãos que amam ao próximo como a si mesmos são empresários e, portanto, poderiam empregar e pagar salários dignos a essas e a todas as pessoas, que eles amam como a si mesmos. E nem vou dizer que os cristãos que afirmam amar ao próximo como a si mesmos administrariam melhor as cidades, os estados e os países, causando uma diminuição sensível nos números que representam a corrupção no Brasil e no mundo; não vou dizer isso porque sou pessimista demais para acreditar de verdade que entre os políticos existam cristãos que amam ao próximo como a si mesmos. Que me perdoem os políticos se eu estiver enganada, mas até hoje não consegui vislumbrar qualquer indício dessa existência. Políticos à parte, pensem agora nos outros países de maioria cristã; alguns desses países são ricos e podem, portanto, com sua metade de cristãos que realmente seguem o principal mandamento, não só acabar com esses mesmos flagelos que citei como possíveis de serem resolvidos aqui no Brasil e que em seus países existem em números geralmente bem menores, como ainda poderiam ajudar, e

muito, a metade de cristãos que amam ao próximo como a si mesmos que, em alguns países, não estejam em número suficiente para conseguirem sanar esses problemas. Isso aconteceria principalmente nos países mais pobres e nos países onde não há uma maioria de cristãos. Então, os cristãos dos países ricos poderiam ajudar a acabar com os mais graves problemas decorrentes da pobreza e do desamor não só nos seus próprios países como também nos demais países do mundo. Se metade dos cristãos dos Estados Unidos e dos países mais ricos da Europa fossem cristãos que seguem o mandamento principal, podemos dizer, e é difícil que estejamos errados, que não haveria mais crianças morrendo de fome na África, na China, na Índia. Parando por aí já temos o fim, ou algobem próximo disso, de três flagelos: o menor abandonado, o maior abandonado e a família abandonada. No Brasil isso certamente seria possível, já vimos os números, no resto do mundo quase com certeza seria possível também. Talvez até a exploração do outro como meio de enriquecimento e poder e a corrupção nos governos e órgãos públicos diminuíssem. Podemos ainda pensar na “contaminação” que essas providências radicais de metade dos cristãos do mundo teria no restante dos cristãos e até nos não cristãos. Religiosos de outras religiões e seitas e teístas sem religião instituída ficariam contaminados e sentiriam que seus deuses também querem deles uma atitude de verdadeiro amor ao próximo, então haveria budistas, xaonistas, wicas, e mais milhões de pessoas de todas as religiões do mundo contagiadas pelo “amai ao próximo como a ti mesmo” trabalhando em tempo integral para tornar o mundo melhor. Quantos cristãos ou religiosos de outras correntes, amando ao próximo como a si mesmos, conseguiriam pegar em armas e sair a campo matando gente? Os exércitos do mundo seriam muitíssimo menos violentos, menos letais e mais úteis porque em guerras nem se poderia pensar e ao invés de estarem os soldados de um país, armados até os dentes, distribuindo tiros e coronhadas para “pacificar” revoltas, estariam os soldados de um país, armados do amor ao próximo, distribuindo sorrisos, alimentos e esperanças para tornar belas as vidas dos habitantes do seu e dos outros países, pessoas que eles amariam como a si mesmos. Além disso, esses soldados estariam obrigatoriamente bem menos armados; sim

porque existem também, e deixariam de existir, pelo menos pela metade, cristãos que dizem amar ao próximo como a si mesmos e que são proprietários, instrutores de uso, engenheiros, inventores e vendedores de armas. Decididamente nenhum cristão que ama ao próximo como a si mesmo se envolveria de nenhuma maneira com qualquer tipo de arma que possa ter potencial de morte; desde o projeto até a compra desses artefatos não se poderia nunca encontrar um único cristão que ama ao próximo como a si mesmo envolvido. E olha que nem citamos os ateus, os agnósticos, os iconoclastas, os descrentes, que são vistos por muitos cristãos que dizem amar ao próximo como a si mesmos como seres daninhos, crias do mal e entes não humanos que devem ser eliminados da face da terra ou, no mínimo, perder o direito de serem considerados como cidadãos, mas que certamente teriam muitos de seus representantes (eu inclusive) de mãos dadas com esses cristãos, trabalhando por esse mundo utópico. Agora dá para se perguntar: Se metade dos cristãos realmente seguisse o mandamento que dizem seguir e que afirmam ser básico, resumo e simplificação da bíblia, viveríamos ou não em um mundo melhor? Será que estou sendo otimista demais ao dizer que se o principal mandamento fosse assim tão fácil de ser seguido e se metade dos cristãos que afirmam segui-lo realmente o fizessem logo logo os não cristãos nem sequer teriam como fazer caridade porque não existiriam mais pessoas pobres, famintas e necessitadas no mundo? É claro que há um exagero porque estamos ignorando tudo o que há de ruim e que continuaria a acontecer promovido pelos não cristãos, pelos não religiosos e até mesmo – não sejamos tão otimistas assim – por alguns dos cristãos que prefeririam manter a mentira e não aderir de verdade a esse espírito de amar ao próximo como a si mesmos. Eles estariam em maioria e, em muitos casos, reprimiriam, até com violência, as iniciativas dessa metade de cristãos que resolvessem realmente amar ao próximo como a si mesmos juntamente com todos os não cristãos que estariam aliados a esses. Mas também não sejamos tão pessimistas, essa metade de cristãos que resolvesse não aderir ao “amar ao próximo como a si mesmo” somado a todos os não cristãos do planeta que também não adeririam ao “amar ao próximo como a si mesmo” seria certamente composta, em sua maioria, de pessoas comuns e não de bandidos e assassinos, seriam pessoas que, embora preferissem não acolher um

estranho em sua casa, poderiam perfeitamente doar recursos para que os outros o fizessem, seriam pessoas que, embora não aceitassem levar um mendigo para comer em sua mesa, também não sairiam por aí botando fogo ou espancando pessoas menos favorecidas. Muitas, muitas mesmo, dentre essas que não aderiram ao “amar ao próximo como a si mesmo” continuariam sendo exatamente como são, pessoas comuns que ajudam quando podem e que não atrapalham se puderem não atrapalhar. Então, com metade dos cristãos amando ao próximo como a si mesmos, com muitos não cristãos que se aliariam a esses cristãos que seguem à risca o principal mandamento e com a grande maioria das demais pessoas continuando a ser as pessoas comuns que somos; ainda que meus números e descrições estejam muito otimistas, ainda que continuassem a existir exploradores, ladrões, assassinos, traficantes, fanáticos religiosos, preconceituosos e desviados mentais de toda espécie; ainda assim eu acho que só o acréscimo dessa parcela de pessoas capazes de cumprir mesmo o principal mandamento juntamente com aqueles que resolvessem se aliar aos que o fazem certamente conseguiriam tornar esse mundo muito melhor para todos. Como minha fantasia é só isso: uma fantasia; como vemos todos que isso não acontece e como meu pessimismo atávico me diz que essa utopia, como toda utopia, não acontecerá jamais, sou obrigada a afirmar que esses cristãos mentem quando afirmam que Jesus simplificou a bíblia deixando apenas um mandamento e que é esse que eles seguem. Por mais que respeite a todos e por mais que ame alguns deles porque são meus amigos e pessoas da minha família, sou obrigada a afirmar que os cristão que dizem amar ao próximo como a si mesmos, que afirmam seguir o principal mandamento, mesmo sem ter essa intenção, mentem. E afirmo ainda que eles, cegos pela venda da fé, nunca se deram ao trabalho de pensar no quanto é impossível seguir esse principal mandamento e em que arapuca deus os estaria colocando se realmente existisse e se realmente, através do seu filho que não é nosso irmão, exigisse isso deles. XVI O ateu em geral e eu em particular não levamos a teologia a sério como uma ciência à parte; mas eu adoro filosofia! A filosofia, que de certa forma inclui a

teologia, mas que está longe de parar por aí, é a ciência das perguntas, dos questionamentos. A filosofia é livre, é a ciência que não para de perguntar e que não tem medo de perguntar e de procurar respostas em todos os campos. Quando a filosofia encontra respostas lógicas e comprovadas em um determinado campo do conhecimento, vira ciência. Foi daí que surgiram muitas das ciências que temos hoje, como a física, a biologia e a química. E isso é maravilhoso! Mas quando a filosofia, aliada, aliciada ou até coagida pela religião para de perguntar porque “encontrou” as respostas não comprováveis e não embasadas na lógica; quando em lugar deperguntar sem travas ela se dedica apenas a procurar as explicações e justificativas para essas respostas prontas, ou seja, quando ela deixa de ser livre e se torna escrava da religião, ou se refugia na religião e por isso deixa de ser livre. Quando acontece isso, para muitos filósofos e para mim também, o que há é simplesmente a morte, o abandono da filosofia; ou pelo menos de uma parte importante dela. Isso é terrível e infelizmente já aconteceu muitas vezes ao longo da história e acontece ainda hoje. Se a filosofia é a ciência das perguntas, da investigação, da busca do conhecimento e se essa busca, esse questionarse é algo próprio do ser humano, é natural e até óbvio que a filosofia se encontre em toda e qualquer atividade ou criação humana, inclusive na religião porque a religião é uma criação humana. O encontro da filosofia com outras áreas do conhecimento em geral traz benefícios para ambos os lados, mas quando a religião deixa de ser vista como o objeto de estudo que é e passa a ser vista – de forma inadequada – como outra ciência ou outra área do conhecimento, o encontro da filosofia com a religião gera, fatalmente, a submissão da filosofia à religião e traz a morte da filosofia e o fortalecimento perigoso da ditadura da religião. A religião não admite questionamentos e posições antagônicas, ela cala ou limita a liberdade das perguntas e a possibilidade de debates e discussões abertas de pontos de vista e de posições contrárias. Uma vez que a total liberdade das perguntas, a possibilidade e o estímulo de debates e discussões abertas entre pontos de vista e posições contrárias é a alma, a essência e a própria vida da filosofia; quando se alia à religião, a filosofia comete suicídio. A bíblia é um livro de histórias, mitologias, usos e costumes de um povo, ou

seja, a bíblia é uma criação humana; e como criação humana ela tem, forçosamente, base filosófica, ou é base para estudos filosóficos; mas isso não tem absolutamente nada a ver com veracidade, principalmente porque muito do que nela está escrito não só foge à verdade como à lógica. Muitos teístas afirmam que o fato de se encontrar base filosófica na bíblia é prova inquestionável da veracidade e da credibilidade do livro, essas pessoas dizem “Tem filosofia na bíblia” exatamente com o mesmo sentido que teria a frase “A bíblia é expressão da verdade”, elas acreditam mesmo que o livro sagrado dos teístas se torna inquestionável pelo fato de ele conter questões filosóficas; dizer isso é saber muito pouco de filosofia. Lembre-se, afinal, de que a mitologia grega e os poemas de Camões – entre muitas outras mitologias e muitas outras obras de arte que poderíamos citar – também “têm filosofia”, e nem por isso são considerados como expressões da verdade. Eu mesma já encontrei profundas reflexões filosóficas até mesmo em gibi da Mônica. Outra coisa com que não consigo concordar, ainda nas malhas da teologia e que está muito na moda afirmar, é isso de que a ciência, a filosofia e a religião podem andar juntas. Podem andar juntas sim, mas não como querem os teístas; podem andar juntas com a religião sendo objeto de estudo da filosofia e da ciência, mas não podem andar juntas com a filosofia e com a ciência seguindo os preceitos, aceitando os dogmas e as ordens dos líderes religiosos ou dos livros sagrados de qualquer fé. Ciência e filosofia sim, sem dúvida podem e devem andar juntas, são irmãs, são mãe e filha, são consequência uma da outra. A ciência pesquisa e descobre que algo é assim, a filosofia pergunta por que é assim e de que forma podemos usar esse conhecimento; a ciência dá uma resposta e voltase para a próxima pergunta, a filosofia pensa o que fazer com essa resposta. Mas e a religião? A religião amarra a ciência e submete a filosofia; a religião tem respostas prontas onde a ciência tem teorias, pesquisas e experimentos e onde a filosofia tem perguntas; a religião não aceita os avanços científicos, distorce verdades, engessa pensamentos, persegue filósofos e nega provas na teima por suas “verdades” e seus dogmas. O casamento da filosofia e da ciência com a religião só serve para atrasar

qualquer avanço no pensamento humano, a história já mostrou isso diversas vezes. Religião não busca conhecimento, ela se julga dona dele. A mais atual prova do absurdo desse casamento é o fato de a religião estar querendo forçar o ensino do criacionismo junto com a teoria da evolução nas aulas de ciências. Em vários lugares dos Estados Unidos já estão fazendo isso, e há uma pressão para que o mesmo seja feito aqui no Brasil. Não faz sentido o casamento da liberdade de pensamento e pesquisa com a proibição da liberdade em qualquer sentido em que esta se manifeste. Sei que os teístas em geral se afirmam livres e por isso não concordam comigo quando digo que a religião tira a liberdade dos filósofos, dos cientistas e das pessoas em geral, mas eu afirmo que é exatamente isso o que acontece, afirmo que os teístas se consideram livres mas não são. Não têm nem mesmo essa pouca liberdade que a própria condição humana permite que se tenha e não permite que se vá além. Essa minha afirmação é sem dúvida apenas uma questão de opinião, mas eu diria que não é uma opinião destituída de sentido, afinal, o teísta não está livre, entre outras coisas, para questionar deus porque questionar deus é blasfêmia, é pecadoe pode, na visão de muitos deles, levar o questionador ao inferno; aliás, não é justamente por se atrever a questionar deus que os ateus são tão abominados? Daí que, pela lógica e pelo que entendo de liberdade, afirmo que o teísta não é livre. Quando a ciência tem, para continuar suas pesquisas e para dar destino a elas, que seguir as ordens da religião, ela pode estar sendo amarrada e estar inclusive desrespeitando a ética; e quando a filosofia tem que começar as questões a partir de um conceito alicerçado e inquestionável – embora tão ilógico – como a “verdade” da existência de deus, ela está se construindo sobre nada e perde muito de sua beleza. Ao contrário do que afirmam os teístas, a ciência se torna mais ética quando está aliada à filosofia e a filosofia se torna mais humana quando se alia à ciência; mas nenhuma das duas ganha nada quando se alia à religião. Sem falar dos radicalismos do oriente médio, um argumento que já seria apelação de tão óbvio; outra coisa que mostra bem a intransigência da religião e seu estranhamento quanto à ciência e até quanto à ética, é o número crescente de assassinatos de médicos que fazem aborto, e o exemplo que foi noticia há algum tempo da excomunhão, por parte da igreja católica, do médico e da mãe que, com a intenção de salvar a vida de uma menina de nove anos estuprada pelo

padrasto, optaram pelo aborto. Sei que muitos teístas não concordaram em absoluto com essa injustiça, mas ela foi praticada e o foi pela religião. Estas histórias, que dariam nojo a uma pessoa leiga e não “tocada” pela fé a ponto de se recusar a pensar, e que certamente dão nojo em muitos teístas mais éticos do que fanáticos, não conseguem tirar os fieis das igrejas; e eu simplesmente não consigo entender por quê. Talvez eu seja radical demais – ou esteja sendo radical demais – mas é que vejo as coisas acontecendo, ouço os argumentos dos teístas, leio seus textos na internet e nos livros, leio seu livro dito sagrado e sinto que quando a religião fala em liberdade ela mente, e eu vejo essa mentira e não gosto dela porque ela parece uma mentira deliberadamente construída com aparência de verdade para enganar e direcionar os pensamentos para onde a religião quer que eles se direcionem. Vejo a religião criando, fomentando ou mantendo mentalidades embotadas e comportamentos radicais, desumanos e antiéticos e por vezes tenho medo de que o número de pessoas maravilhosas dentro dessas instituições não seja suficiente para evitar mais horrores. Eu não consigo me imaginar livre sem poder, por exemplo, questionar a existência de deus a ponto de negá-lo e de questionar a bondade de deus a ponto de responsabilizálo se meus questionamentos me levarem a isso, como é de fato o caso; não consigo me imaginar livre se não puder olhar a vida e a história da mulher antes de condená-la e de condenar o aborto; e não consigo me imaginar livre se não puder, quando vejo crianças jogadas pela calçada das cidades grandes, perguntar e me perguntar que raio de deus é esse que permite algo assim em nome de uma abstração tão falsa quanto incoerente chamada livrearbítrio. Se a liberdade tem que ser montada sobre uma verdade construída e inquestionável ela deixa de ser liberdade. É assim que a filosofia fica quando se alia à religião. XVII Descartes dizia aceitar que o mundo tivesse sido criado por deus, dizia aceitar que, se deus existisse, ele seria garantia e suporte de todas as outras verdades. Mas, como saber se deus existe ou não? Como provar a sua existência se apenas

podia ter a certeza da existência do cogito? Descartes apresentou em seus escritos três provas da existência de deus. Vamos olhar cada uma delas: Na primeira, chamada de prova a priori, Descartes procura mostrar que, porque existe em nós a ideia de um ser perfeito e infinito, daí resulta obrigatoriamente que esse ser perfeito tem que existir uma vez que a existência seria ela mesma uma característica constituinte desse ser perfeito, ou, em outras palavras, que a existência seria parte integrante a priori e sine qua non do ser perfeito. Daí que, para Descartes, se eu tenho em mim a ideia do ser perfeito e se a existência é característica constituinte do ser perfeito, característica sem a qual o ser não seria perfeito, então o ser perfeito existe de fato e obrigatoriamente e o ser perfeito é deus, portanto deus existe. O argumento é bem convincente sem dúvida, só que quando analiso a MINHA ideia de ser perfeito descubro que ela é diferente da ideia de ser perfeito da maioria das outras pessoas; e se começo a investigar a ideia de perfeição que as pessoas à minha volta têm, descubro que a ideia da perfeição é única e pessoal, ou seja, parece que cada pessoa tem uma ideia de perfeição diferente, muito ou pouco, das demais pessoas. Disso posso concluir que a ideia de perfeição que tenho não é confiável a ponto de ser nomeada como A IDEIA DE PERFEIÇÃO única possível, então não posso confiar que minha ideia de perfeição seja mesmo a verdadeira ideia de perfeição e não apenas e simplesmente a ideia de algo que EU acredito ser a perfeição. Com base nesse fato ou se aceitaria que existem bilhões de seres perfeitos, um para cada ideia de perfeição que cada habitante do planeta tem – o que acabaria com a unicidade que é outra característica constituinte de deus de acordo com os que defendem sua existência – ou a ideia da existência de deus provada dessa forma enfraquece consideravelmente. Analisando mais de perto vejo que quanto à ideia de perfeição chamada deus acontece entre os teístas exatamente aquiloqueHumeafirma acontecercom as ideias das coisas em geral que são nomeadas e compreendidas e que chegaram até a ser por muitos filósofos chamadas de ideias a priori. Cada um de nós tem, formada ao longo da vida e pela experiência, uma ideia diferente do que seja homem, diferente mas semelhante o suficiente umas das outras para que, quando ouço a palavra homem, cuja ideia naquele que a pronunciou é diferente da que tenho em mim, essa minha ideia se adapte a ponto

de eu poder compreender o significado da palavra que o outro pronunciou e de podermos nos comunicar. A ideia de um ser perfeito – que seria deus – me parece algomuito adequado para ilustrar esse conceito de Hume; cada pessoa tem uma ideia, diferente mas semelhante em muitos aspectos do que seja um ser perfeito, e todas chamam deus a essa ideia, então essas ideias diferentes se tornam, quando alguém pronuncia a palavra deus, igualmente compreensíveis para todos. Mas não tão igualmente compreensível a ponto de evitar conflitos e guerras, pelo que parece. Acontece que alguns de nós temos uma ideia de ser perfeito que foge demais à ideia de ser perfeito da maioria dos teístas, daí que quando essas pessoas tentam, com palavras ditas ou escritas, descrever o ser perfeito que elas chamam deus, nós percebemos que esse ser perfeito que elas imaginam é um ser que para nós parece muitíssimo imperfeito. Em geral, para os meus sentidos, os teístas estão descrevendo um monstro terrível e chamando esse monstro de perfeição, então não consigo entender a adoração deles. O ser perfeito dos teístas é diferente demais do ser perfeito que imagino e por isso o ser perfeito da minha imaginação não é deus, não pode ter esse nome; não pode sequer existir porque é uma fantasia utópica impossível diante do mundo no qual me encontro e do ser que percebo que sou. E por essa diferença tão grande de conceito – até mesmo de oposição – o que acontece é que esses teístas passam a não me parecer confiáveis e quando eles afirmam que aquele ser perfeito da imaginação deles existe concluo racionalmente que não pode ser verdade, e não acredito na existência nem do ser perfeito da imaginação deles nem do ser perfeito da minha própria imaginação. E, finalizando, se eu imaginar uma fada perfeita, as fadas passarão a existir? É aí, e é por isso, que sou ateia. Na segunda prova, chamada de prova a posteriori, Descartes conclui que deus existe pelo fato de a sua ideia existir em nós, e diz que porque possuímos a ideia de deus como ser perfeito seremos levados a concluir que esse ser realmente existe, afinal, diz ele, não poderíamos ter em nós a ideia de perfeição sendo nós os seres imperfeitos que somos. Ele não aceita a possibilidade de que o menos perfeito (nós) possa ser causa do mais perfeito (a ideia de deus). Descartes conclui então que deve existir um ser perfeito que é a causa dessa nossa ideia de perfeição. E esse ser perfeito só pode ser deus.

Pois bem, com base no que eu disse anteriormente, não é confiável que nós tenhamos realmente a ideia de perfeição uma vez que essa ideia varia tanto de pessoa para pessoa; em função disso posso concluir que essa segunda prova só poderia ter possibilidade de ser considerada válida no caso de a primeira prova ter sido aceita. Como já afirmei que não aceito a primeira prova e expliquei o porquê dessa minha não aceitação, a segunda prova fica, então, sem efeito porque eu mesma – ser imperfeito – posso ter colocado em mim a MINHA ideia de perfeição que pode não ser na verdade uma ideia de perfeição condizente com algo que realmente fosse perfeito. Minha ideia de perfeição, como procurei demonstrar acima, não é confiável, portanto não tem condição de provar nenhuma perfeição e, portanto, não tem como provar também a existência de qualquer tipo de ser perfeito. Se o deus perfeito que as pessoas imaginam não me parece perfeito de forma nenhuma quando elas o descrevem, então não posso afirmar que elas tenham em si a ideia de perfeição. É a mesma coisa que acontece do meu lado; se a ideia de perfeição que o outro tem não se parece em nada com a minha ideia de perfeição, então não posso confiar que ele tenha em si realmente uma ideia de perfeição. A ideia de perfeição do outro pode ser apenas uma ideia a que esse outro deu o nome de perfeição mas que na verdade não é nem parecida com o que realmente seria a perfeição. Temos então, tanto eu quanto o teísta, mais motivos para desconfiar de nós mesmos e um do outro do que para acreditar que algum de nós tem uma ideia de perfeição que seja realmente válida. Enfim, não somos confiáveis; nem eu nem ninguém; e a verdadeira perfeição pode não existir nem mesmo como ideia ou pode ser diferente de tudo o que nós somos capazes de conceber. Ter uma ideia de perfeição decididamente não prova a existência de deus. Seguindo o que Descartes postulou; que o fato de existir em nós a ideia de um ser perfeito e infinito, resulta obrigatoriamente que esse ser perfeito tem que existir uma vez que a existência seria ela mesma uma característica constituinte desse ser perfeito, então, como Descartes não excluiu ninguém desse “nós” dotado da capacidade de ter essa “ideia de um ser perfeito”, a ideia que tenho de um ser perfeito teria que ser válida como prova tanto quanto a ideia que qualquer outra pessoa possa ter de um ser perfeito; na verdade teria que ser a mesmíssima

ideia. Daí queminha prova maior da não existência de deus seria essa: Tenho em mim uma ideia de ser perfeito e a minha ideia de ser perfeito seria um ser que por ser perfeito não criaria nada que fosse imperfeito, incluindo eu mesma. Se aceitar a existência de deus terei que aceitar que fui criada por ele; mas eu sou imperfeita, sou tremendamente imperfeita, e o ser perfeito do qual tenho a ideia não criaria nada imperfeito, portanto não criaria a mim. Daí que minha existência mesma é prova de que o ser perfeito não existe. Se, como afirma Descartes, o ser perfeito é deus, então minha existência é prova de que deus não existe. Eu e deus não coexistimos logicamente. A terceira prova, chamada também de prova a posteriori, é onde Descartes tenta demonstrar a existência de deus a partir do fato de que não podemos nos conservar, ou manter a vida e a existência de nós mesmos. Diz ele que se nós não podemos garantir a nossa própria existência, e no entanto existimos (pelo menos como cogito), é certo que alguém nos terá garantido essa existência e esse alguém só pode ser deus. Essa ideia me parece esbarrar no vazio quando afirma que “écerto” e que “só pode”, essas certezas não são condizentes com a filosofia – nenhuma certeza é – então quando Descartes diz que é certo que alguém nos terá garantido a existência, a afirmação soa apenas como uma opinião; não vejo, e acho que ninguém vê nenhuma comprovação de que isso seja verdade, afinal, esse “alguém” pode ser também uma força, uma energia, um algo não consciente. E ao afirmar que esse alguém “só pode” ser deus, novamente Descartes parece estar apenas afirmando uma opinião pessoal; está nomeando deus da mesma forma que poderia nomear fada ou gnomo um algo que ele acredita existir mas do qual não tem nenhuma comprovação. Quando leio essas afirmações e afirmações desse tipo, tanto de Descartes quanto de outros filósofos, a impressão que tenho é que eles eram inteligentes e racionais demais para realmente não pensar suas afirmativas da forma que estou pensando, portanto, parece mais que eles estão, de forma até irônica, afirmando a existência de deus canhestramente e só para convencer a ingenuidade daquelas pessoas que poderiam prejudicá-los no caso de saberem que eles na verdade não acreditavam em deus.

Não consigo de forma nenhuma acreditar que minha inteligência restrita, pequena e limitada conseguiu perceber detalhes que enfraquecem a afirmação deles e que eles, tão mais inteligentes do que eu e do que o comum dos mortais, não tenham percebido essas falhas no momento mesmo em que formularam os argumentos que não podem me convencer. Descartes afirma que só se pode dizer que existe aquiloque puder ser provado e, baseado nisso, busca provar a existência do próprio eu com seu famoso “ego cogito ergo sum”: penso logo existo. Mas se só reconheço minha existência como res cogito, ou seja, como coisa pensante, então não posso reconhecer como existente meu dedão do pé, minhas mãos, meu coração ou meu corpo como um (quase) todo. Além disso, se só posso me reconhecer como res cogito imagino que não tenha como saber o que constitui esse res cogito que sou. Qual é a matéria, qual é a substância que constitui o res cogito? Não posso determinar isso, então, consequentemente, não posso mesmo na verdade confirmar como realidade a existência do res cogito e muito menos a existência de algo que o tenha provocado. Pelo menos não da forma que me vejo e me sinto. Se, seguindo o raciocínio de Descartes, chego à conclusão de que nem mesmo a minha própria existência é algo comprovável, logicamente, a existência de deus ou de algo que tenha provocado minha existência também não pode, dentro desse raciocínio, ser comprovada. Como já disse ali em cima, não consigo evitar o pensamento de que há uma forte dose de ironia nas provas da existência de deus de Descartes, da mesma forma que sinto uma forte ironia na sua frase: “O bom senso é o que há de mais bem distribuído no mundo, pois cada um pensa estar bem provido dele.” Nessa frase fica claro que ele está afirmando a prepotência humana de se achar suficientemente provido de bom senso quando logicamente não está, e para comprovar isso basta que olhemos a nosso redor. Chego a pensar – numa “viagem” muito audaciosa, concordo – que essa frase mesma comprova que Descartes estava de certa forma brincando com o “bom senso” dos religiosos que condenaram Galileu Galilei e dando, de forma tão sutil que o senso limitado deles não perceberia, a informação de que tudo que disse sobre a existência de deus era brincadeira para “salvar a pele”.

Parece-me que, impedido que foi de negar deus, pela época, pela conjuntura em que viveu e até mesmo pela sua própria criação, Descartes encontrou essas “provas” claramente falsas para ele mesmo, mas, ao mesmo tempo, providas de raciocínio facilmente aceitável pelas instituições religiosas e, principalmente, pelo senso comum. Acho que ele pode bem ter articulado as tais “provas” com o fim de salvaguardar sua integridade física e não correr o risco que correu seu contemporâneo Galileu Galilei cuja trajetória Descartes acompanhou e cujo desfecho sabe-se que influenciou grandemente seu comportamento, e não tem por que não se acreditar que deve ter influenciado também seu pensamento; ou ao menos a forma de expô-lo. Enfim, para mim e na minha visão, as provas da existência de deus de Descartes carecem de fundamento lógico quando aplicamos a elas, inclusive, as próprias conclusões de Descartes, e não tenho como não pensar que o próprio Descartes sabia muito bem disso. Agora, se aplico minhas conclusões a respeito do cogito ergo sum de Descartes, chego à prova de que minha própria existência, caso eu me aceite como ser existente com base no cogito ergo sum de Descartes, pode ser usada como prova da não existência de deus. E pode ser usada porque – de acordo com o que expus acima – se não tenho como provar minha existência, ou no mínimoa existência das partes do meu corpo que não pensam, não tem sentido dizer que minha existência teve uma causa e que a existência dessa causa pode ser provada. Se minha existência e a causa dela não podem ser provadas e se essa causa, caso existisse, seria deus, então a existência de deus não pode ser provada também. XVIII O que se diz comumente é que o tomismo usa de argumentos de cunho empírico porque emprega a razão a serviço da fé cristã usando fatos que se demonstram por via da experiência, e que é a partir desses elementos que Tomás de Aquino prova a existência de Deus. Uma parte dessas chamadas provas empíricas são as que ficaram conhecidas como as Cinco Vias que Levam a Deus, de santo Tomás de Aquino. Mas, analisando de forma menos apaixonada, o que se nota é que esses argumentos não são realmente empíricos porque na verdade não se demonstram

por via da experiência. O que eles fazem é refletir explicações arduamente procuradas e trabalhadas para dar lógica – uma lógica discutível por sinal – a uma opinião formada: a afirmação de uma “verdade”, para a época e para o autor, inquestionável. Em Tomás de Aquino e nos demais filósofos religiosos, desde Santo Agostinho até Bereley, e antes de um e depois do outro, os argumentos e toda a construção da teoria filosófica não partem da dúvida, ponto fundamental de todo estudo que se possa chamar de imparcial; partem de uma certeza e usam de todos os subterfúgios de uma aparente racionalidade para confirmar essa certeza. Não há uma verdadeira pesquisa racional sobre se deus existe ou não, essa questão jamais é levantada, há uma construção de argumentos deliberada e cuidadosamente preparados para convencer qualquer um que ouse duvidar; apenas. E isso, para mim, é uma inversão de caminho. A filosofia que, nas demais investigações parte das perguntas para, na tentativa de respondê-las construir um arcabouço teórico, nesse caso inverte a ordem e parte de uma resposta inquestionável – o que em geral as respostas filosóficas não são – para construir toda uma gama de explicações que corroborem essa resposta prévia. Despreza-se qualquer argumento, por mais razoável que ele seja, se esse argumento trouxer algum perigo para a confirmação dessa “verdade” preestabelecida; isso, a meu ver, não é a verdadeira filosofia. A primeira via é a Via do Movimento: o argumento parteda constatação de que as coisas se movem. Todas as coisas se movem, desde as galáxias até as moléculas – não que Tomás de Aquino tivesse lá muito conhecimento sobre galáxias e moléculas, claro, mas Eppur si muove – tudo na natureza, homens animais, plantas rochas, planetas, tudo está em constante movimento e em constante transformação. Para Tomás de Aquino se existe movimento existe também a causa desse movimento, existe aquilo que provoca o movimento, o “primeiro motor”. Ele explica que um jogador que impulsiona uma bola, que um raio que cai na terra e incendeia uma árvore ou uma floresta, ou que a força da gravidade que nos mantém sobre a superfície e que mantém corpos celestes em órbita, são os motores desses movimentos relacionados – novamente, não consta que Tomás de

Aquino tivesse conhecimentos precisos sobre a lei da gravidade; ainda faltava muito tempo para que Isaac Newton fosse atingido por uma maça. E Tomás de Aquino constata que o agente do movimento é externo ao objeto movido, ou seja, nada pode mover-se a si próprio, nada pode ser motor e movido ao mesmo tempo; nenhum carro se locomove sem algum tipo de combustível. Porém, esse raciocínio conduz a um absurdo lógico e parece que Tomaz de Aquino não o percebe tão bem assim, o que ele conclui é simplesmente que se todo movido possui um motor, teria que obrigatoriamente haver uma sucessão quase infinita de motores e movidos. Pela necessidade de chegar a algum lugar e retrocedendo até um determinado ponto que ele julga necessário, Tomás de Aquino conclui que teria que haver um primeiro motor e que não havendo um primeiro motor, também não haveria um primeiro movido e um segundo motor e assim por diante. Resumindo, de acordo com esse raciocínio sem um primeiro motor o movimento seria impossível. Daí que, para ele a única forma de explicar o movimento é conceber um primeiro motor e para ele esse primeiro motor seria obrigatoriamente deus, portanto deus seria a causa primeira de todas as coisas, seria esse primeiro motor que não é movido por nenhum outro. Mas a própria lógica de Tomás de Aquino se embaraça e tropeça nessa teia de argumentação; se nada se move sem uma causa externa e se pode ter uma causa primeira, então temos um problema que pode ser insolúvel porque poderíamos perguntar qual é a causa primeira de deus uma vez que, logicamente e racionalmente, nada nos obrigaria a parar em deus o raciocínio que Tomás de Aquino construiu. Daí que podemos perguntar, com todo o direito lógico de fazêlo: Se nada se move sem uma causa externa não há razão para que deus seja exceção à regra, portanto, quem move deus? Outra hipótese possível, e que não foi considerada por Tomás de Aquino porque a existência de deus não era algo questionável para ele, é essa simples e lógica dúvida: Sepode ter uma causa primeira, essa causa primeira precisa mesmo ser deus? Aparentemente não, ela pode ser, por exemplo, a lei da gravidade, ou a força de atração; ou uma força outra qualquer que nem sequer conhecemos. A segunda via é chamada de Causalidade e é parecida com a primeira. Observase na natureza uma ordem segundo uma relação de causa e efeito. O jogador que

chuta é a causa, a bola que entra no gol é o efeito. Da mesma forma que é impossível algo mover a si próprio, é impossível algo ser causa e efeito ao mesmo tempo: a bola não entra no gol sozinha. Então, se toda causa tem um efeito, novamente haveria uma sequência infinita de causa e efeito até chegar a um determinado ponto, estipulado por Tomás de Aquino como sendo deus, mas que, da mesma forma e com os mesmos argumentos da teoria do primeiro motor, pode ser discutido e refutado. Ele diz novamente que a relação causa-efeito não seria possível a menos que admitamos uma causa primeira no universo, e que essa primeira causa é deus. E o que vemos é que o problema e a resposta são similares à teoria do primeiro motor: 1 – Se todo efeito tem que obrigatoriamente ter uma causa, deus é um PUTA efeito: Qual seria a causa? 2 – Se pode ter uma causa primeira para todos os efeitos, nada obriga logicamente a que essa causa primeira seja a que Tomás de Aquino estipulou que seria. Tomás de Aquino parou a corrente onde quis e onde era conveniente para ele; parou onde quis para tornar seus argumentos suficientes para o que ele queria. Na verdade, essa primeira causa, mesmo que precise existir não precisa ser obrigatoriamente deus, pode ser qualquer outra coisa mais simples como, por exemplo, a eletricidade. Ou uma outra força tão desconhecida para nós hoje como era a eletricidade para Tomás de Aquino. Na terceira via, chamada dePossível e Necessário, Tomás de Aquino fala que todas as coisas podem ser e podem não ser. Todas as pessoas que conhecemos, todas as coisas que vemos e nós mesmos não existimos para sempre. As coisas todas, animadas ou inanimadas, nascem, se transformam e morrem ou se acabam. Em outras palavras, seres vivos ou coisas, somos todos finitos e efêmeros. E isso nos leva a pensar que houve um momento ou um tempo infinito em que nada existia, um instante ou uma eternidade de puro nada, que os astrônomos, atualmente, localizam antes do “Big Bang”, se é que se pode falar em “antes” quando o tempo ainda não existia. De qualquer forma, de acordo com a ciência moderna, esse puro nada nem seria esse “puro nada” assim tão absoluto. Mas, para Tomás de Aquino, houve um puro nada, e nesse tempo de puro nada algo aconteceu e deu origem a tudo que há no universo.

Para que o universo saísse da mera possibilidade, a potência de que fala Aristóteles, para a existência, ou o ato aristotélico, é preciso imaginar que algo tenha provocado isso, caso contrário o nada continuaria sempre e para sempre sendo nada. Consequentemente, na visão de Tomás de Aquino, entre todos os seres possíveis, todos os seres em potência, ou, entre todos os seres que podem ser e podem não ser, é razoável acreditar que haja um que seja necessário, e que esse necessário seja puro ato. É necessário acreditar que nessa cadeia de potência-ato tem que existir algo que nunca tenha sido em potência, isto é, um ser não contingente, um ser que nunca foi possibilidade, foi sempre realidade. Daí, a menos que Deus exista como sendo esse ato puro, esse ser necessário por si mesmo, segundo Tomás de Aquino, retornaremos ao absurdo das cadeias causais infinitas dos dois argumentos anteriores. Mas Tomás de Aquino não atenta para o detalhe lógico de que se existia deus antes de tudo, então não existia o nada; nada é ausência de toda e qualquer coisa e deus é alguma coisa, portanto, se existe “apenas” não existe o nada. Repetindo: Uma vez que o nada é a ausência de toda e qualquer coisa e uma vez que deus é alguma coisa, mesmo com a ausência de tudo o mais que foi criado por deus, com a presença de deus existe apenas deus, que é alguma coisa, e essa presença única é mais do que suficiente para anular a presença do nada. O nada mesmo seria então antes de deus, daí que se existiu um nada existiu um momento ou um infinito de tempo em que deus não existia. E volta a questão: se nada cria a si mesmo e se nada move a si mesmo, o que criou deus? Se existiu um nada existiu um antes de deus que foi o nada, e não um nada antes de tudo que veio depois de deus porque esse não seria nada. Se existia um nada, o nada deixou de existir quando deus passou a existir e não quando deus criou o universo, daí temos que voltar à pergunta: quem criou deus? O quarto argumento, chamado de Graus de Perfeição, é mais fácil de entender. Diz Tomás de Aquino: “Encontramse nas coisas algo mais ou menos bom, mais ou menos verdadeiro, mais ou menos nobre, etc.” Por exemplo, Marisa é mais simpática que Luísa, o leão é mais feroz que o cachorro, o produto fabricado pela empresa X é mais confiável que o produto fabricado pela empresa Y, etc. “Ora, mais ou menos se dizem de coisas diversas conforme elas se aproximam diferentemente daquilo que é em si o máximo”.

Ou seja, a gente diz que uma coisa é mais ou menos algo aproximando ou afastando mais essa coisa da ideia de perfeição; é necessário, portanto que se tenha algo como parâmetro comparativo, esse algo seria a perfeição absoluta, como um belo absoluto que me permite afirmar que Marina é muito bela e Luzia é apenas bonita. Tomás de Aquino conclui a partir desse argumento que: “Existe algo que é, para todos os outros entes, causa de ser, de bondade e de toda a perfeição: nós o chamamos deus”. Mas esse argumento nos leva de volta às refutações que fiz no capítulo anterior das provas da existência de deus de Descartes; minha ideia de perfeição, sobre qualquer aspecto, não é igual à ideia de perfeição de outra pessoa e nenhuma das duas ideias de perfeição é confiável. Além disso, afirmar que alguma coisa existe não faz com que ela exista, posso afirmar que existe uma cobra perfeita de um perfeito azul abraçando o universo; o que essa afirmação acrescentaria aos conhecimentos que temos do universo? Absolutamente nada já que a minha afirmação da existência de uma cobra azul abraçando o universo não tem o poder de fazer com que efetivamente exista uma cobra azul abraçando o universo. Por mais perfeita que seja a cobra e seu azul. A mesma coisa vale para a perfeição: afirmar que deve existir um perfeito bem, uma perfeita beleza, etc., não obriga a que esses perfeitos existam nem obriga a que sejam absolutos e não relativos e particulares e variáveis de pessoa para pessoa como eles parecem efetivamente ser. Sei o que é quente, mas uma vez que o contato com um determinado grau de quente eliminaria minha existência é lógico que sei o que é quente sem nunca ter o conhecimento empírico do grau máximo de quente; e se não tenho e não posso ter esse contato empírico posso até concluir que esse grau máximo não precisa existir, a partir daí posso concluir que nenhum grau máximo precisa existir, e o mesmo posso dizer da perfeição que dizem ser deus. A quinta e última via, chamada Finalidade, trata dos seres que se movem em uma direção, dos seres que possuem uma finalidade, o que, de acordo com Tomás de Aquino, é facilmente verificável na vida na Terra, que, ainda de acordo com ele, progride rumo a maiores níveis de organização, desde simples bactérias até modernas sociedades humanas. Tomás de Aquino usa como exemplo o arqueiro: a flecha só parte em direção ao alvo porque existe o arqueiro que mira e dispara, isto é, porque há uma inteligência guiando a flecha. O “arqueiro” do universo, por assim dizer, é deus.

Acontece que não há nenhuma prova de que realmente todas as coisas e todos os seres possuam uma finalidade ou mesmo de que progridam. Na verdade, observando com mais cuidado a própria vida e existência das pessoas, o que parece é justamente o contrário; a vida da grande maioria das pessoas, olhadas de uma certa distância, em nada, absolutamente nada, parece ter mudado ou se transformado e, olhada de uma distância maior, a própria vida na terra e até a própria terra não parecem ter nenhuma importância. Essa afirmação de Tomás de Aquino está aparentemente baseada apenas em uma opinião e, como toda opinião, pode perfeitamente não ser aceita. Em especial, a afirmação de que as coisas progridem é inclusive refutável pela ciência; a Teoria da Evolução fala em mudança, em adaptação, não em progresso; e mesmo a sociologia e a antropologia podem contestar com argumentos bastante fortes esse conceito de que haja uma evolução, no sentido de progresso, do ser humano. Daí se conclui que não há como uma opinião discutível ser prova de nada. Se o que parece haver na verdade é uma sequência de acasos, azares e coincidências, não fica tão óbvio assim detectar uma “mão de arqueiro” dirigindo essa flecha que seria a existência; com tantas causalidades e relações aleatórias fica na verdade muito difícil perceber uma inteligência que seja conscientemente boa ou má e menos ainda perfeita, nos vários sentidos que o ser humano pode dar esse conceito. Parece mais lógico que não exista nada, ou que exista alguma coisa, mas alguma coisa totalmente diferente desse deus que os teístas vão às igrejas e aos templos cultuar, como uma outra coisa, sem juízo de valor, ou com juízos de valor totalmente diferentes e alheios à nossa existência. Uma coisa que deveria ser nomeada de outra forma, não como deus. Esse algo; que pode ser uma força inconsciente como o é a gravidade, que pode ser algo coletivo como uma nuvem de elétrons, ou que pode ser partes de nada constituintes de uma força como a eletricidade; não pode e não tem como ser chamado deus sendo deus esse ser tão humanamente variável como o ser que os teístas descrevem como deus.

A PRESENÇA DO MAL I

Uma definição que com muita frequência se costuma usar para o mal, um “presente” de Santo Agostinho18para a força de argumentação de muitos dos teístas diante do paradoxo do deus todo bondade que cria tudo mas não cria o mal, é a de que o mal não existe porque nada mais seria se não a ausência do bem; e como deus é o supremo bem, o mal seria a ausência de deus. Esse argumento é tão comum que podemos vê-lo e ouvi-lo em todos os níveis e de todo tipo de pessoa; a grande maioria dos que o usam mal sabem quem foi Agostinho e não fazem ideia de quem foi Plotino; ouviram no culto ou na missa, de seu padre ou pastor, acreditaram que estavam ouvindo uma grande verdade e não sabem que esse argumento foi usado por Agostinho, que o pegou “emprestado” de Plotino. O argumento parece tão bom aos teístas que se tornou comum receber por e-mail ou encontrar nas postagens publicadas nas redes sociais, historinhas “verdadeiras” criadas com base nele. Uma delas fala de um aluno “topetudo” que teria “calado a boca” de um professor ateu perguntando a ele se existe o frio e, quando o professor diz que sim o aluno contesta afirmando que o frio é apenas a ausência de calor e “explica” que o mesmo acontece com o mal; é a ausência do bem, é a ausência de deus. Ao final da história acrescentou-se que esse aluno 18 “Portanto, todas as coisas que são, são boas, e aquele mal, cuja origem eu procurava, não é substância, porque, se fosse substância, seria um bem. Com efeito, ou seria substância incorruptível, de toda a maneira um grande bem, ou seria substância corruptível, que, se não fosse boa, não se poderia corromper” (AGOSTINHO, Confissões 1988, p. 155)

atrevido e “brilhante” é nada mais nada menos do que o grande físico que foi reprovado em química: Albert Einstein. Os teístas acreditam, se comovem e espalham a historinha de todas as formas e por todos os meios. Mas ela é falsa, totalmente falsa, e seu argumento tão “genial” é na verdade muito fraco. Sim, essa definição do mal como sendo a ausência do bem não satisfaz. Não satisfaz porque “O mal é a ausência do bem” é um enunciado tão válido quanto “O bem é a ausência do mal”. É como dizer “A alegria é a ausência da tristeza” ou “A tristeza é a ausência da alegria”. Se podemos definir o mal como a ausência do bem, podemos igualmente definir o bem como a ausência do mal. Nenhuma das duas afirmações pode racionalmente ter mais peso do que a outra, nenhuma das duas afirmativas define o mal ou o bem, e – principalmente –

nenhuma das alternativas comprova a existência ou necessidade de deus. Nenhuma delas se sustenta como verdade única. A escolha fica a critério do falante e será ditada apenas pela conclusão que esse falante quer tirar da afirmação. E essa conclusão será sempre uma afirmativa sem valor de verdade. Mas, independente de toda equalquer definição afirmativa ou negativa do mal, o fato é que se alguém é espancado por um grupo de pessoas que acham divertido dar socos e pontapés em seres humanos somente porque esses seres humanos moram nas ruas, são índios ou são homossexuais; ou ainda se uma pessoa foi atingida e gravemente ferida por uma parede que desabou durante um terremoto que destruiu sua casa e matou pessoas de sua família; enquanto está no hospital esperando que se consertem seus ossos quebrados, cada uma dessas vítimas, por mais simples e ignorante que seja, saberá sim que o que aconteceu com ela foi um mal. Dizer que o mal é “apenas” a ausência do bem, afirmar e tentar provar com historinhas fantasiosas que o mal não existe são atitudes que não encontram respaldo na lógica porque, empiricamente, as pessoas sabem o que é o mal. Quem é atingido pelo mal o reconhece; pelo menos quando ele as atinge. Agostinho certamente queria “salvar” deus desfazendo o paradoxo da criação e manutenção do mal por um deus que é definido como bom, para isso conseguiu montar um argumento que tem força de verdade na mente de muitos teístas. Mas a solução de Agostinho não convence quem não parte do pressuposto da existência de deus. Como disse Steiner, o frio também pode ser definido como a ausência de calor, mas nem por isso deixamos de providenciar nossos casacos.19 E mesmo que aceitássemos a definição do mal como ausência do bem, ficaria muito difícil compreender como e por que um deus onipotente que fosse a suprema bondade estaria ausente em tantos momentos e em tantos lugares a ponto de que sua ausência se fizesse sentir da forma tão terrível como é sentida até mesmo pelos que acreditam nele. Raciocinando de acordo com o que ensina Agostinho, aceitando o mal como inexistente por ser apenas a ausência do bem, ou a ausência de deus – que é a mesma coisa pois segundo Agostinho deus é o supremo bem – caímos em outra armadilha porque outro ponto dessa afirmação é que ela invalidaaprópriadefiniçãododeuscujaexistênciaquerafirmar. 19 “Sto. Agostinho chegou à estranha conclusão de que o mal e o erro não existiam de fato, mas eram

apenas negação ou ausência do bem, de modo análogo à escuridão, que não teria realidade em si, mas seria entendida como ausência de luz: “Um ser finito possui fraquezas e não pode contínua e eternamente efetuar bons atos.” Essa explicação é para Steiner insatisfatória, pois é como se quiséssemos esclarecer o frio como negação do calor e isso não nos exime da necessidade de usarmos roupas quentes no inverno.” - MARANHÃO, Carlos Augusto. (Membro da Diretoria da Sociedade Antroposófica no Brasil). A questão do mal, Texto publicado originalmente no Boletim da Sociedade Antroposófica no Brasil, Nº. 49, março de 2008, pp. 6-9 (Disponível em: http://www. sab.org.br/antrop/a-questao-do-mal.htm. Acesso: 23 Out. 2010)

Vejamos: Deus é, por definição, onipresente e o supremo bem; se o mal é a ausência do bem e se deus é o bem por definição então, existindo essa ausência (que é o mal) existe também, consequentemente, lugar, momento, situação em que deus, o supremo bem, não está presente. Isso significa que deus não pode ser onipresente. Daí que não dá para aceitar racionalmente a existência ao mesmo tempo desse deus-supremo-bem-onipresente e do mal como ausência desse deus; a existência de um obrigatoriamente invalidaria a existência (ou ausência de existência) do outro. E se eu sei com toda certeza que o mal existe – ou a ausência do bem acontece – porque o presencio, o vejo, o sinto e até mesmo o tenho em mim, então a existência invalidada nesse caso seria a existência de deus. Fica difícil, portanto, dessa forma, acreditar racionalmente na existência de deus e mais difícil ainda acreditar nessa existência aceitando ao mesmo tempo a definição do mal como a simples ausência do bem. A resposta dos teístas para essa questão costuma ser que deus não fica onde não permitem sua permanência, ou seja, quando o homem nega deus está usando de seu livre arbítrio e “fechando seu coração e sua casa para deus”. Afirmam que, por ter lhe dado o livre arbítrio, deus não fica com o homem se esse “fechar sua porta para deus”, ou “fechar seu coração para deus”. Depois de dizer que temos o poder de expulsar o deus onipresente – Que poder enorme! – eles nos ameaçam com toda seriedade: não podemos culpar deus pelos males que entrarem em nosso lar e em nossa vida porque foi escolha nossa não permitir a entrada de deus em nossos domínios. Esse argumento, embora à primeira vista pareça bastante válido, e embora sirva para convencer muitos fieis e até para acrescentar mais ovelhas ao rebanho dos pastores e dos padres, é na verdade muito fraco. O fato logicamente perceptível é que não importa a razão por que deus não está em um determinado lugar. Ele pode não estar em minha casa porque sou uma ateia e não manifesto nenhum

amor ou respeito por ele, pode também não estar na casa do grande traficante de drogas do Rio de Janeiro porque esse homem é um criminoso, pode aindanãoestarnocoraçãodopsicopataporqueumpsicopata é o que há de mais próximo de uma personificação do mal. Não importa onde ou por que razões deus não estava presente, o fato é que, logicamente, estão afirmando que existem lugares e momentos em que deus não está presente – e são muitos mesmo, se pensarmos em quantos horrores acontecem no mundo desde sempre. Se existem lugares e momentos em que deus não está presente, deus não é onipresente. Sem presença, sem onipresença, certo? Outro problema lógico me ocorre com respeito a esse nosso poderdeafastar deus denossa presença quando somos maus. Imagine um homem mau que rapta uma criança e aprisiona essa criança em seu porão; há casos desse tipo acontecendo em vários lugares do mundo. Essa semana mesmo saiu a notícia chocante de três jovens que foram raptadas e que só agora – depois de 10 anos – conseguiram ser resgatadas; há alguns anos foi libertada uma mulher e os vários filhos que teve com seu carcereiro, estuprador e pai durante os muitos anos que esteve aprisionada com as crianças no porão, sem que nenhum deles pudesse sequer ver a luz do dia. Então, pela lógica teísta da ausência de deus quando uma pessoa se torna má e o expulsa, posso concluir que essas crianças e mulheres raptadas, estupradas e mantidas em cativeiro por décadas não foram resgatadas porque seus raptores expulsaram deus de suas casas e ele, obedientemente, se ausentou para que essas pessoas pudessem cometer seus crimes sem interferência? A respeito desse argumento de que grandes catástrofes acontecem quando Deus não está presente porque nós, usando de nosso livre-arbítrio, o expulsamos ou não permitimos sua presença nos lugares onde estamos e “em nossos corações”, vou colocar aqui um trecho da resposta que dei há algum tempo a um texto que circula com muita frequência nas redes sociais. Procure no google que você vai encontrá-lo em diversas páginas e sites religiosos; sempre com muitos comentários de entusiasmado elogio a esse raciocínio tacanho feitos pelos teístas mais entusiasmados e, infelizmente, os

mais propensos a colocar a bíblia em lugar da Constituição, seus líderes religiosos mais gananciosos e sedentos de poder no governo e impor a todos nós seus dogmas e suas leis, numa apavorante volta à Idade Média, ou à teocracia nos moldes dos países muçulmanos mais radicais, de tristes lembranças e tristes memórias. Principalmentepor conta desse perigo que não me parece assim tão distante como querem alguns que preferem “respeitar a religião dos outros” e nunca falar do assunto por mais que seja visível o quanto o fundamentalismo vem ganhando força, acho válido colocar aqui alguns trechos da resposta que dei, já há alguns anos, a um texto, que recebi muitas vezes por e-mail.20 Pela frequência com que é divulgado e pelos comentários de aprovação que recebe, nota-se que é um texto muito convincente para os que já são teístas. De acordo com o texto, Anne Graham, filha do pastor evangélico Billy Graham, em uma entrevista para um programa de televisão respondeu “sabiamente” à pergunta “Como é que Deus permitiu que algo horroroso como este dia 11 de setembro acontecesse nos Estados Unidos?”. 20 Minha resposta completa pode ser encontrada em: http://www. recantodasletras.com.br/artigos/1577327

Anne Graham: “Eu creio que tudo começou desde que Madeline Murray O’hare (que foi assassinada), se queixou de queera impróprio se fazer oração nas escolas Americanas como se fazia tradicionalmente, e nós concordamos com a sua opinião.” Eu: Aqui no Brasil, o índice de violência nas escolas nunca foi tão grande e, no entanto, temos até mesmo a disciplina Ensino Religioso nas escolas públicas do Rio de Janeiro, um estado ainda famoso pela violência, embora estatísticas afirmem que essa violência diminuiu muito depois da pacificação das favelas. Providência tomada não pela igreja nem por deus, mas por um estado corrupto e desonesto cujas estatísticas não são muito confiáveis. E desde quando o fato de Madeline Murray O’hare, a mulher citada no texto, ter sido assassinada é relevante? Ela não poderia ter sido assassinada justamente por ter dito isso, e o assassino não poderia ser justamente um adepto do “deus de amor” que esse texto defende? Provavelmente não, mas de qualquer forma milhões de pessoas já morreram assassinadas sem que tenham falado ou agido contra a religião. Ah, sim! E cabe perguntar a essa argumentadora “tão inteligente”: antes que Madeline Murray O’hare dissesse isso não existiam horrores no mundo? No

tempo em que se faziam orações nas escolas os Estados Unidos eram um paraíso? Ficam claras demais as falácias dessas argumentações! Anne Graham: “Senhor, porque não salvaste aquela criança na escola?” A resposta dele: “Querida criança, não me deixam entrar nas escolas!!!” Eu: Penso que essa pergunta e resposta foram acrescentadas por alguém que recomeçou essa “corrente” logo após um dos casos de assassinato de crianças nas escolas dos EUA, ou do caso semelhante ocorrido na escola do Realengo, no Rio de Janeiro, mas isso não fica claro em todas as versões. De qualquer forma, por que então deus não salva as milhares de crianças que sofrem maus tratos e violência fora das escolas, e inclusive dentro das igrejas? Se fosse mesmo verdade o que os religiosos afirmam o tempo todo: “Jesus te ama”, “Deus é bom”, “Jesus disse: Vinde a mim as criancinhas”, e outras coisas do tipo; se deus soubesse – pelo menos isso – reconhecer que crianças são inocentes e não têm que ser castigadas por atitudes de adultos; ele entraria sim nas escolas sem que fosse preciso ficar rezando e citando trechos da bíblia. Estaria lá porque “está em todos os lugares”, não é isso que dizem dele? A experiência tem mostrado diversas vezes que os males acontecem também para pessoas e em lugares que não estão e que não foram “fechados para deus”. A destruição de igrejas e morte de fieis durante os cultos e orações nos terremotos de Lisboa e do Haiti são exemplos disso. A própria “casa de deus” não está livre de ser atingida pelo mal. Essa realidade parece mostrar que deus, se existe, simplesmente não está em todos os lugares, ou porque não pode ou porque não quer. Senãoestá porque não quer, ele não só não é onipresente como também não é bom; se não está porque não pode, ele não só não é onipresente como também não é onipotente. De qualquer forma deus perderia duas de suas características definidoras, ou seja, perderia sua essência. Deus, portanto, como é definido pelos teístas, deixaria de existir. Negando a existência do mal Agostinho não prova a existência de deus, pelo contrário, mata-o. II Definir o mal, se não pensarmos profundamente nisso, não parece difícil, mas;

como acontece com quase tudo o que é conceito; quando a gente começa a alinhar as palavras elas se mostram incompletas, inadequadas, insuficientes. Se queremos uma definição que se aproxime da verdade, somos obrigados a abandonar o senso comum e a pesquisar e pensar filosoficamente, ou pelo menos tentar. Sócrates diz “Só sei uma coisa, e é que nada sei” e muitos outros depois dele, como David Hume e Bertrand Russell, mostram que não podemos ter certeza de saber nada, ou quase nada, do que pensamos saber. No entanto, empiricamente, ou seja, na prática, sabemos o que é o mal porque o vemos, porque o sentimos, porque o temos como parte de nós. Da mesma forma que uma pessoa sente a própria existência como realidade mesmo que alguma filosofia diga que não se pode ter certeza sobre nenhuma realidade, essa pessoa sente também a existência do mal. Pelo menos e com certeza, do mal que a atinge. Não foi por outro motivo que se criou, desde muito antes do cristianismo, a imagem do demônio, ou dos demônios: a personificação do mal. Se você tentar fazer esse exercício vai perceber que não é fácil, para não dizer que é impossível, explicar satisfatoriamente e completamente o que ou quem é você: Quem é esse ser que você sente e sabe como sua primeira realidade? E, continuando o exercício, você vai perceber também que não pode sequer provar de forma total, completa e irrefutável que você realmente existe. Quase da mesma forma, é difícil explicar, satisfatoriamente e completamente o que seja o mal. O que podemos afirmar é que, mesmo que não possamos explicar ou provar nossa própriaexistência,dentrodoque,empiricamente,entendemos por existir, eu existo e você existe. E o mal existe também! E existe até mesmo porque faz parte do que eu sou e do que você é. Negar a existência do mal é negar nossa própria existência, pois o mal é parte do que nos constitui. Não há como convencer ninguém que não seja um psicopata – e, portanto, uma manifestação concreta do próprio mal – de que torturar, estuprar e matar uma criança não seja um mal. Por mais que muitos teístas, usando como base o pensamento de Santo Agostinho, digam que o mal não existe, que o mal é apenas a ausência do bem, que o mal é a ausência de deus; o fato é que quando somos colocados diante dele nós o reconhecemos. E nós o reconhecemos mesmo que seja apenas em certa medida e mesmo que

seja apenas quando nós mesmos somos atingidos por ele. Nós o reconhecemos! Cecília Meireles diz a respeito da liberdade: Liberdade – essa palavra que o sonho humano alimenta: não há ninguém que explique, e ninguém que não entenda!”21 21 In: Romance XXIV ou Da Bandeira da Inconfidência. MEIRELES, C. Romanceiro da Inconfidência, 2005

Poderíamos parafrasear Cecília e dizer algo como: O Mal é essa palavra que o pesadelo humano alimenta: não há ninguém que explique, e ninguém que não entenda. O mal incita muitas outras perguntas além da própria existência do mal, eis algumas dessas perguntas: Uma pessoa que pratica o mal é obrigatoriamente má? Quem de nós já não praticou, ou desejou praticar, algum tipo de mal na vida? E, no entanto, pelo menos a maioria de nós, nem se julga nem é julgado como uma pessoa má. Aliás, a maioria de nós se lembra com tristeza e arrependimento dos males que alguma vez praticou e sabe que esse arrependimento, embora seja algo positivo para nos lembrar de não repetir o feito, não vai ter o poder de evitar que pratiquemos outros males ao longo de nossas vidas. “Viver é falar de corda em casa de enforcado” já diz o velho ditado. E falar de corda em casa de enforcado é praticar o mal, o mal de ofender ou magoar alguém. Somos então todos maus? Não parece muito lógico dizer que somos todos maus quando cada um de nós é capaz de pensar em pelo menos um ser humano que definiríamos como bom, seja uma pessoa pública como Gandhi ou Mandela, seja alguém das nossas relações, como nossa mãe ou um amigo especial. Além disso, a maioria de nós com certeza procura agir com honestidade e decência. A grande maioria de nós, se não consegue ser bom em tempo integral, pelo menos tentamos ser bons na maior quantidade de tempo possível. Ser bom é a ambição de muitos dos seres humanos que habitam esse planeta, quer acreditem ou não em deus. Então cabe perguntar: Se não somos todos maus – nem bons – em tempo integral, quando então uma pessoa é má? Uma pessoa é má apenas quando suas ações, todas e sempre, são conscientemente direcionadas

para o mal? Existe mesmo alguém assim? Quando conhecemos de forma direta ou indireta alguém que é tido e sabido como uma pessoa má, em geral nos surpreendemos e temos até dificuldade em acreditar que essa pessoa era ou é uma boa pessoa para alguém que conviveu com ela – talvez a mãe, ou um filho. Para a nossa justa tendência a demonizar os assassinos, estupradores e pedófilos é difícil aceitar que tenha havido alguém para quem eles foram bons, mas isso acontece com frequência. Descobrimos, espantados, que um estuprador em série era um marido amoroso; descobrimos que um assassino sanguinário é um filho muito amado que trata sua mãe com todo carinho e respeito; descobrimos que muitos dos nazistas que participaram ativamente do extermínio de mais de seis milhões de pessoas eram pais de família exemplares. Essas pessoas então não são más? Uma pessoa é má ou está má? O que eu tenho concluído, pelo que vejo e penso, é que alguns de nós, ao longo da vida, praticam atos de maldade em muito pouca quantidade, e outros de nós praticam atos de maldade em uma quantidade significativamente maior. O que sinto é que, felizmente, a imensa maioria de nós não somos pessoas más em tempo integral. Então, fica aparentemente mais correto dizer que nós – na maioria das vezes e talvez salvando-se algumas exceções – apenas estamos maus, num determinado momento ou sobre um determinado assunto. Estamos maus apenas nos momentos – para muitos bastante raros – em que cometemos alguma maldade. Porexemplo:umapessoaestácompressa, dáum encontrão em um idoso, quase o derruba no chão e sai apressado xingando, por dentro ou em voz alta, aquele “trambolho” que não saiu do caminho; uma outra pessoa lê um livro que lhe disseram ser“sagrado”, acreditounesselivroe, por conta disso e sem questionar, usa esse livro como justificativa para incitar o ódio e o preconceito. Nos dois exemplos essas pessoas podem ser, quanto ao resto do tempo ou dos temas, extremamente bondosas, MAS, naquele momento e naquele assunto, ambas as pessoas estão sendo más. É mau alguém que pratica o mal sem ter intenção de fazêlo? Praticar o mal sem intenção é acontecimento até bastante comum na vida das pessoas; os casos mais simples, aqueles que causam pequenas dores, pequenos ferimentos, mágoa, tristeza ou decepção a alguém, chamamos de “pagar mico”, “fazer besteira”, “dar bola fora”, “pisar na bola” e outras expressões similares que muitas vezes

traduzem o ato que involuntariamente causou algum tipo de mal a alguém. Provavelmente se pudéssemos fazer um levantamento não conseguiríamos encontrar uma única pessoa que nunca tenha causado um mal involuntário. Como foi dito acima “Viver é falar de corda em casa de enforcado”, e é também andar meio cego por entre “vitrines” de fragilidades. Se perguntarmos “Quem nunca pagou um mico na vida?” só não levantarão a mão as pessoas que não souberem o significado da expressão “pagar um mico”. Já os casos mais graves são chamados acidentes, fatalidades, infeliz acaso, desastre, e outros nomes de conotação bem mais triste do que a palavra “mico”. Esses muitos atos involuntários costumam causar grande sofrimento, grandes ferimentos e até morte. Muitas vezes as dores e sofrimentos causados pelos casos involuntários mais graves atingem tanto aqueles que foram vítimas quanto aqueles que foram a causa. Às vezes o impacto é tão grande que, ao tomar conhecimento da notícia, ficamos nos perguntando se a pessoa que praticou a ação involuntária vai conseguir algum dia se recuperar da dor e do remorso. Fica até difícil, em casos assim, perguntar se somos maus quando os praticamos. A resposta negativa parece ser a única que faz algum sentido. A quem podemos então atribuir a culpa por um mal que advém do acaso e não da intencionalidade? Tudo bem dizer que se não foi intencional não é minha culpa; mas é culpa de quem então? Se não existir deus a resposta é simples: culpa de ninguém, culpa do acaso. Mas se existir deus não existe acaso, pelo menos pelo muito que já li e ouvi dos teístas o fato é que nada acontece sem que deus permita; portanto, se deus existe, ele é o culpado por todos os males involuntários que nós praticamos. Parece estranho para você? Então como conciliar a ideia de que nada acontece sem que seja vontade de deus com a existência do acaso, do acidente, da ação involuntária que resulta em dor, sofrimento e/ou morte? Deus quis se divertir um pouco e deixou as coisas acontecerem como nas modernas “videocassetadas”, aqueles quadros de tremendo mal gosto22 que são tão comuns na televisão? Ou será que deus estava tirando um cochilo naquele momento? Considerando-se o grande número de acidentes mais ou menos graves que acontecem todos os dias em todos os lugares, deus parece que cochila demais. Como vimos, o ser humano é muito variado; praticamos

22 Usei o termo “mal gosto” propositadamente, para significar o mau gosto que tem nele embutido o mal, o mal de maldade mesmo, da maldade que faz com que as pessoas se divirtam com a humilhação ou o sofrimento do outro, como é o caso das tais videocassetadas

ações boas e ações ruins em tempos e situações diferentes. Será que é mesmo possível dizer de determinada pessoa que é uma pessoa boa, ou má? Eu não sei com certeza, mas acho que para a maioria das pessoas nenhum desses dois adjetivos pode ser válido de forma absoluta. Eu, por exemplo, já me senti uma pessoa boa e já me senti uma pessoa má em alguns momentos da vida; e na maioria do tempo não me sinto nem uma coisa nem outra. Será que as outras pessoas se sentem como eu? Não sei. O fato é que além de mim mesma, devo confessar que é dessa forma que vejo muitas das pessoas com quem ao longo da vida me encontro, às vezes elas são boas, às vezes são más; sobre determinados assuntos têm uma postura extremamente ética e decente, sobre outras têm conceitos que não me parecem nada éticos e que às vezes até me chocam. Logicamente tenho tendência a julgar meus amigos e todas as pessoas que amo como unicamente boas, mas, quando as comparo comigo, confesso que não confio tanto assim no meu próprio julgamento. Você quer exemplos? Tive e tenho amigos que são pessoas excelentes, que mostram em diversos momentos e por diversas razões um comportamento ético e um sentido de justiça que me torna sua admiradora. Gosto dessas pessoas, tenho prazer em vê-las e em estar com elas, eu as admiro e me sinto feliz e privilegiada por saber que essas pessoas me veem como amiga. No entanto, em um determinado ponto, em uma conversa descontraída ou em uma situação corriqueira, mais de uma vez amigos como descrevi acima, mostraram ou assumiram características que considero um exemplo do que eu definiria como mal. Coisas como dizer que não gosta de baianos, de cariocas, ou de judeus; coisas como dizer que sentiria imenso prazer se pudesse pegar uma arma e matar um desses menores que ficam se drogando e cometendo pequenos roubos nos grandes centros; dizer que não se incomoda em absoluto pelo fato de um animal ter sido torturado para produzir um alimento mais saboroso. Essas pessoas são más? Não na minha experiência. Então concluo que as pessoas, em sua grande maioria e incluindo eu mesma, ESTÃO más e ESTÃO boas em momentos diferentes e quanto a temas diferentes; e isso, é claro, em minha opinião e quando discordo delas. Não somos maus, temos o mal em nós e ele se manifesta

de forma variada. Pergunto ainda: O mal é também aquilo que não tem a interferência do homem, como os terremotos e os furacões? Se não, de que forma qualificar esses fenômenos quando causam sofrimento, destruição e morte? Vou detalhar melhor esse tema mais adiante, por enquanto deixo apenas a pergunta: Será que uma vítima direta ou indireta de uma catástrofe natural consegue dizer que aquilo não é um mal? Eu acho que os terremotos, as enchentes, os furacões, as grandes secas são grandes males que afligem a humanidade, será que, de verdade, alguém consegue pensar diferente de mim? Mesmo quando é vítima ou tem algum ser amado como vítima? Talvez com a bíblia na mão, longe do epicentro da catástrofe e tendo a capacidade de raciocínio impedida pela venda da fé, algum pastor ou padre consiga negar esse fato e suas “ovelhas” consigam concordar com ele; mas de outra forma, duvido mesmo. Um doente, um psicopata, uma pessoa mentalmente perturbada, um animal pode ser mau ou bom? Em que nível? Costumamos dizer ou ouvir dizer quando surge a notícia de alguém que cometeu um terrível crime que essa pessoa é “um doente”; normalmente não nos debruçamos muito sobre essa ideia, mas cabe perguntar: essa pessoa é mesmo doente? Sabemos muito pouco sobre a mente humana, mas sabemos que ela pode sofrer danos sérios, congênitos ou adquiridos. Até que ponto um psicopata é uma pessoa saudável? Juro que não sei a resposta e, provavelmente da mesma forma que acontece com você, a mim causa um desconforto muito grande pensar que um psicopata, um assassino frio, um torturador ou um pedófilo possa deixar de pagar pelos seus crimes sob a alegação de que é um “doente”; mas o que não consigo deixar de pensar é que a mente deles simplesmente NÃO PODE ser normal. Mas vamos esquecer por um momento os males naturais, os acidentes e os casos para os quais não temos resposta e pensar apenas nos males que os seres humanos praticam consciente e voluntariamente; podemos pensar então na intenção do mal. Esta é uma visão que adotamos com frequência: colocar o mal principalmente na intenção do mal, ou pelo menos parece ser assim. O tempo todo ouvimos teístas afirmando convictamente que somos os responsáveis pelomal porque deus nos deu o livre arbítrio e nós escolhemos o caminho do

mal; aí está a intenção! Como, teoricamente, só nós, humanos, podemos praticar um ato com intenção ou premeditação, isso significaria que só nós, humanos, podemos ser maus ou bons. Essa visão está de acordo com o argumento, também muito comum entre os teístas, de que deus não é responsável pelo mal e sim nós, os homens. Fico sempre com a sensação de que o teísta, para aceitar essa “inocência divina”, se obriga a não voltar às origens, porque se voltasse perceberia que deus, por ser onisciente e por ter criado o homem sabendo que esse homem “criaria” o mal, sempre será o primeiro responsável. Para mim, na possibilidade de deus existir, só ele pode ser culpado pelos crimes que nós humanos – mesmo os piores de nós, como os psicopatas – cometemos. Se deus criou o homem e se o homem tem tantos defeitos tão graves, a responsabilidade, a meu ver, só pode ser desse criador. Na verdade, saindo do tema religião e responsabilidade divina, os próprios teístas estão muito de acordo com esse meu argumento. Nossas leis não preveem que um fabricante é responsável pela qualidade dos produtos que cria, lança, fabrica, vende? Não responsabilizamos os fabricantes de automóveis quando esses saem com defeitos de fabricação que causam acidentes? Não temos a obrigatoriedade do recall23tão frequente em todo tipo de indústria ou produto? Que eu saiba não é comum um comprador deixar de atender a um recall e continuar andando com seu carro com defeito, ou possibilidade de, por achar que o fabricante não tem culpa de, por exemplo, aquela alavanca se quebrar com frequência. Por que o criador humano, e consequentemente imperfeito, é considerado responsável e responsabilizado por lei pela qualidade do que criou enquanto que deus, que dizem perfeito, não pode ser considerado responsável e muito menos ser responsabilizado pelos males que todos podemos ver e sentir na sua criação? Para mim isso não faz o menor sentido. Já li e ouvi muitos teístas argumentando que deus nos criou perfeitos, mas que depois nós nos corrompemos, mas dizer que deus criou o homem e que só depois, em consequência de uma liberdade mal usada, esse homem se tornou mau e 23 In: O direito à informação e o direito à segurança são um dos direitos básicos dos consumidores, previsto

nos termos da Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor). Desta forma, o Recall, ou chamamento, é o procedimento gratuito pelo qual o fornecedor informa o público e/ou eventualmente o convoca para sanar os defeitos encontrados em produtos vendidos ou serviços prestados. (Disponível em: http://www.procon.pa.gov.br/?q=node/92. Acesso em: 05 Abr. 2013)

causou a existência do mal parece algo tão absurdo quanto seria dizer que sou responsável pela existência da Europa porque um dia eu quis viajar e conhecer outros lugares. O ser humano é um animal e, por mais que tente negálo, age instintivamente e com o objetivo de autopreservação e preservação da espécie; como todos os animais, usa para isso os recursos que a natureza lhe deu. Acontece que a natureza deu ao homem alguns recursos de que os outros animais não dispõem, a prepotência é um deles. Daí que esse argumento não me convence porque não consigo evitar as perguntas que me vêm à mente: Mas deus não é onisciente? Então ele saberia que nos corromperíamos antes mesmo de nos criar, não saberia? Ele não é onipotente? Então poderia ter nos criado incorruptíveis; ou não poderia? Desculpe, mas eu tenho a forte impressão de que seu deus, seja ele qual for, não tem como escapar dessa lógica. E se continuarmos falando do paralelo com o criador humano; ninguém deixa de responsabilizar o fabricante – que não é nem onisciente nem onipotente – se um produto sai da fábrica perfeito, mas vai dar defeito logo em seguida, muito antes de que acabe a garantia. O “dois pesos e duas medidas” fica muito óbvio quando se pensa nisso, mas o fato é que essa necessária e tão óbvia responsabilidade de deus decididamente é coisa que um teísta não quer perceber. E quando cobramos que deus não evita que os males aconteçam, os teístas dizem que deus não interfere porque se o fizesse estaria ferindo o livre-arbítrio concedido por esse mesmo deus a Adão e Eva – acho que a Eva não tanto – no paraíso. Mas acontece que um dos argumentos mais usados por todas as religiões em favor da existência de deus são os milagres. E o que seria um milagre se não uma interferência de deus na vida das pessoas? De muitos teístas ouvi histórias de “milagres” que “aconteceram” com eles e na vida deles e que eles usam como “prova” da existência de deus, e tenho certeza de que não sou a única. Quem não ouviu nunca algo do tipo: “Eu posso provar que deus existe! Minha irmã (tia, mãe, prima, filha, vizinha) tinha uma doença

incurável (e ele conta os detalhes) mas foi curada por deus, nem os médicos acreditaram!” Afirmações desse tipo são tão comuns que se fossem mesmo dignas de confiança não existiriam ateus no mundo. Além disso, muitos teístas costumam afirmar que todas as coisas boas que acontecem com eles – inclusive as mais banais – são dádivas de deus. O elevador chegou assim que entrei no prédio? “Graças a deus!”, o jogador do meu time fez um gol? “Graças a deus!”, eu precisava sair de casa e não choveu? “Graças a deus!”. E afirmam que tudo o que têm é “graças a deus” que “deu” a ele – e só a ele – uma família maravilhosa, um bom emprego, saúde de ferro; enfim, mil coisas que milhões de pessoas não têm. Mas, curiosamente, o fato de alguém não ter o que deveria ser direito de todos não é “graças a deus!” – aí não! E os pedidos e orações? Alguns em suas igrejas, outros em suas próprias casas, fazem preces e pedem a deus que cure seus doentes, dê emprego a seus familiares, não permita que nenhum mal aconteça a eles e aos seus. Tudo isso não são interferências? E a oração ensinada por Jesus na bíblia (Mateus 6,9-13) e repetida incansavelmente por cristãos de todas as fés, não é um pedido de interferência? Então, dizer que “deus não interfere porque se o fizesse estaria ferindo o livrearbítrio” é um argumento tão fraco que nem merece o nome de argumento. Pensando apenas nos acidentes que vitimam crianças; um único exemplo de mal, um mal que não é culpa do ser humano, que acontece aos montes e que deus não evita mesmo sendo um “cara” que interfere tantas vezes na vida de tantas pessoas. E lembrando, sempre, que esse é apenas UM exemplo dentre tantos outros, podemos dizer: Se existem acidentes que vitimam crianças é possível, parafraseando Epicuro, perceber três possibilidades de explicação: 1 - Deus não é bom e não quis evitar o acidente; 2 - Deus não é todo poderoso nem onipresente e por ter estado ausente não teve o poder de evitar aquele desastre; 3 - Deus não existe. A primeira hipótese mostra deus como um sádico porque vê, sabe e não faz nada; a segunda mostra um deus fraco e totalmente descaracterizado, que está ausente com muita frequência, afinal, acontecem muitos acidentes todos os dias; a terceira, na minha visão, é a mais lógica e aceitável: Deus não existe.

Quantas vezes, a respeito de quantos exemplos de mal, podemos aplicar esse mesmo raciocínio “epicuriano” e chegar ao mesmo resultado e à mesma resposta? Eu bem que gostaria de ver como deus, se existisse, escaparia dessa. Cada estupro, cada assassinato, cada violência que acontece no mundo prova a inexistência de deus. Para mim simplesmente não há como ver a coisa toda de outro modo. Uma notícia ruim no jornal (e elas são tantas todos os dias!), seja a notícia de um desastre causado por algum fenômeno natural como tempestade ou terremoto ou um crime cometido por um ser humano, é sempre uma confirmação da impossibilidade da existência de um deus criador que seja consciente e bom. Estamos em um mundo que de forma alguma poderia ter sido criado por um personagem como esse no qual – inexplicavelmente para mim – tanta gente acredita. Como posso estar mergulhada em mal, vendo e sentindo o mal à minha volta em todos os momentos e mesmo dentro de mim algumas vezes e, aomesmotempo, acreditar sinceramente que um deus todo bondade e pleno de poder criou tudo? Como posso acreditar que um deus todo poder, bondade e justiça mantém tudo como está porque há uma ordem que chamam de perfeita, mas cuja perfeição eu não vejo? Como posso acreditar que esse deus-perfeição interfere apenas vez ou outra, muitas vezes de forma idiota como aparecer em uma torrada e só o faz na opinião dos muitos teístas que, contra todo o bom senso, acreditam em milagres? Como podem acreditar que esse deus, apesar de tudo isso, não criou o mal e não é responsável por ele? Como podem alinhavar tanto contrassenso em uma única ideia? Que o façam os que quiserem, eu não consigo acreditar na existência dele, e consigo muito menos ainda amar ou mesmo respeitar esse deus. III Muitos teístas e muitas religiões – principalmente antigos cristãos e atuais evangélicos – definem o mal como sendo o diabo, ou as ações do diaboque, por odiar os homens e seopor a deus, pratica e representa todos os males e é, juntamente com os próprios homens, o responsável por todas as coisas ruins que existem e acontecem no mundo. Sem esquecer de ressaltar que, como ateia, não acredito em diabos e demônios da mesma forma que não acredito em deus, uma vez que para mim diabos e demônios também são deuses; deuses do mal ou deuses menores dependendo da religião; novamente podemos usar aqui o

argumento da volta às origens: Mesmo que tenha criado o diabo como um anjo de perfeição e que este tenha mudado sua essência, deus, como um ser onisciente, saberia, antes mesmo de criá-lo, que o diabo “criaria” o mal; por isso deus seria, sem dúvida, o primeiro responsável e o criador do mal. E mesmo tentando pôr a culpa no diabo, pela lógica não poderiam sequer dizer que deus é “apenas” o criador indireto – e involuntário – do mal. Se eu crio uma obra de arte, uma pintura em tela, por exemplo, e se nela uso a cor vermelha, não posso me dizer responsável pela obra mas não por ela ser vermelha. E outro paralelo, mais direto, para ilustrar a responsabilidade de deus pela existência do mal: Imagine um fabricante de armas que desenvolvesse uma arma que desde o primeiro projeto ele saberia ser poderosa a ponto de exterminar quase toda a vida existente no planeta e que, depois de pronta a arma, esse fabricante a entregasse nas mãos de alguém que ele sabe com toda a certeza que vai usar a tal arma sem medir as consequências. Certamente nenhum cristão negaria que esse fabricante seria tão culpado pela destruição da vida quanto aquele que usou a arma. Como é que, para seu deus onisciente e onipotente, esse cristão faz questão de não usar o mesmo raciocínio lógico? A fé realmente cega as pessoas. Além disso, quando atribuem a responsabilidade pela existência do mal ao diabo, os teístas, aparentemente, estão tão ansiosos para inocentar seu deus que nunca se dão conta de que com esse argumentos estão atribuindo ao diabo a criação das doenças, dos vírus, das bactérias, da cadeia alimentar, dos parasitas, dos defeitos congênitos, das catástrofes naturais. Eles – sem perceber que estão fazendo tal afirmação e sem perceber o quanto ela é absurda – estão dizendo que o deus que criou tudo e de quem eles mesmos não cansam de dizer que é o único que tem o poder de criar algo a partir do nada na verdade não criou tudo porque, propositadamente e conscientemente, deixou a “parte feia” da criação sob responsabilidade do diabo. Parece que estão dizendo ou que o diabo é tão poderoso quanto deus, já que também tem o poder de criar algo a partir do nada; ou que é ainda mais poderoso do que deus, já que pode criar sem que deus saiba, permita ou tenha o poder de interferir. Ou ainda, estão dizendo que o diabo é muito poderoso – como um

deus menor – e é um subordinado de deus que criou o mal sob suas ordens. Afinal, é fato que o mal existe no mundo, e me parece até, embora eu não tenha nenhuma prova disso, que o mal existe em maiores proporções do que o bem. Dessa forma só se pode concluir que, sendo bom, deus não teria tido o poder de evitar as criações do diabo, ou, no mínimo, não teria tido o poder sequer de saber que essa criação aconteceria ou mesmo de anular ou destruir essa criação danosa, acabando com o mal e com o próprio diabo logo que a “brincadeira” começou. Isso faz com que deus pareça um fraco sem grandes poderes reais ou, se for realmente todo poderoso, um ser ainda pior do que o próprio diabo. Não consigo ver uma terceira opção. “Mas não se preocupe – dizem alguns teístas – deus vai derrotar o diabo quando Jesus voltar; e esse dia está próximo”. O dia da volta de Jesus “está próximo” desde as semanas seguintes à ressurreição; se é que Jesus existiu como dizem, coisa que eu duvido muito; ou melhor dizendo, coisa em que não acredito; absolutamente não acredito em Jesus, menos ainda que ele ressuscitou. Acontece que essa volta pirotécnica descrita no Apocalipse, prometida e esperada há séculos, parece um espetáculo de filme de terror classe C ou de seriados do tipo walking dead – e eu não gosto de filmes de terror – com mortos saindo das tumbas em um show de horror e mau gosto sem lógica e sem sentido. Além disso, eu perguntaria: por que tanta demora? Um deus todo bondade e todo poder não estava preparado para exterminar o mal assim que ele surgiu? Desculpem mas esse argumento e toda essa história de “volta de Jesus” não me parecem nada convincentes. Há ainda os teístas que afirmam que o mal é aquilo que o homem pratica quando não segue os ensinamentos de deus, versões dessa “verdade” são lugar-comum em textos religiosos impressos, textos publicados na internet e discursos depadres e pastores nos cultos e missas. Nesse momento os teístas, mesmo empunhando a bíblia e definindo-a como “Palavra de Deus”, esquecem os muitos males que se encontram na própria bíblia e que foram praticados, ordenados, apoiados ou incentivados pelo seu deus.24 “Nós somos os responsáveis pela existência do mal” é frase tão comum que até mesmo muitas pessoas que nem sequer são religiosas acreditam piamente nisso. Elas esquecem os muitos males que existiam antes de o homem habitar a terra, como as catástrofes naturais, que antes que nossos ancestrais descessem das

árvores já causavam destruição e morte de muitos animais com seus habitats, ninhos, tocas e filhotes. E esquecem também os males que existem sem que o homem, em qualquer tempo, tivesse o 24 “Vai, pois, agora, e fere a Amaleque, e destrói totalmente a tudo o que tiver, e nada lhe poupes; porém matarás homem e mulher, meninos e crianças de peito, bois e ovelhas, camelos e jumentos”. In: 1Samuel 15:3 – “E, o Senhor, teu Deus, a dará na tua mão, e todos os do sexo masculino que houver nela passarás a fio de espada; mas mulheres e as crianças, e os animais e tudo o que houver na cidade, todo o seu despojo, tomarás para ti, e desfrutarás o despojo dos inimigos que o Senhor, teu Deus, te deu”. In: Deuteronômio 20:13-14 – “A feiticeira não deixarás viver”. In: Êxodo 22:18. Etc...

poder de criá-los. Às vezes parece que, em defesa do seu deus, mesmo os teístas mais cultos e informados esquecem, ou fazem questão de não saber, que antes de o homem existir, nosso pequeno planetinha azul passou por nada menos do que seis extinções em massa. Não sei, sinceramente, o que pode levar a não considerar uma extinção em massa como um mal, a não ser o extremado e incoerente zelo religioso. E sobre as doenças, muitas delas anteriores à própria noçãodepecadoecertamente anteriores à vinda de Cristo e até mesmo a Abraão? Não há como dizer que os homens sejam culpados por essas doenças uma vez que muitas delas são causadas por outros seres vivos e se tem uma coisa que todo teísta afirma a respeito do ser humano é que mesmo com toda a nossa ciência nós não somos – e segundo eles nunca seremos – capazes de criar a vida – mesmo a mais simples – a partir do nada. Na sanha de inocentar seu deus, os teístas não se dão conta de que estão dando ao homem um poder que ele nunca teve. Não se dão conta de que o homem não pode ser o criador do mal; apenas foi, é e será um dos seus agentes e uma de suas vítimas. Muitas pessoas, até mesmo sem nenhuma intenção de ligação com religião ou teísmo, dizem que o mal acontece àqueles que praticam o mal; foi para isso que cunharam famosos ditados como “Aqui se faz, aqui se paga” e “Quem semeia vento colhe tempestade”, muita gente usa frases feitas como essas para justificar a existência do mal; e usam outras frases tão ou mais absurdas até mesmo para justificar coisas ruins que acontecem com pessoas que aparentemente não mereciam: “Não se sabe que pecados essa pessoa cometeu” – dizem. Ao dizer isso, as pessoas não parecem ter em bom estado sua noção de proporcionalidade, afinal, é bem difícil pensar que uma pessoa comum tenha

praticado tanto mal a ponto de merecer, por exemplo, perder um filho em condições trágicas. Eu não sei você, mas tenho dificuldade em imaginar para mim mesma um mal maior do que perder meu filho. Se fosse verdadeiro o tal “aqui se faz aqui se paga” e seus correlatos, pelo menos uma certa noção de justiça quanto à distribuição dos males entre as pessoas deveria ser notada; alguns males mais terríveis, como perder um filho em condições trágicas, aconteceriam raramente e apenas para umas poucas pessoas sabidamente más – e mesmo assim não seria justiça porque o filho que sofreria a tragédia estaria pagando pelo quê? De qualquer forma, o que acontece com muita frequência é que percebemos justamente o contrário de qualquer aparência de justiça. Olhando para os exemplos que temos todos os dias diante de nós, o que parece bem mais crível é que tanto o mal quanto o bem têm sido, ao longo de todos os tempos, distribuídos entre os seres vivos do planeta de forma extremamente aleatória. Acho até que foi por perceber muito bem o acaso dessa “distribuição” que cunhamos e usamos com frequência as palavras “sorte” e “azar”. O curioso sobre essa visão do “Aqui se faz, aqui se paga” é que aqueles teístas mais convencionais que acreditam na existência do inferno, quando manifestam acreditar nessa organização do mundo, não percebem que, com esse raciocínio, estão eliminando a “utilidade” do inferno. Afinal, se pagamos aqui mesmo pelos pecados que cometemos, estaremos “quites” quando morrermos; então para que existiria o inferno? E talvez mais grave ainda: se é deus quem determina e decide tudo o que acontece, se tudo de bom ou de ruim que ocorre na vida de um teísta foi “graças a deus” ou “porque deus quis assim” como eles tanto gostam de propagar, então nenhum teísta teria sorte ou azar. Mas eu ouço teístas falando em sorte e em azar o tempo todo. As casas lotéricas não andam se queixando de falta de clientes, e quando tem alguma loteria acumulada elas ficam cheias. Como nós, ateus, somos minoria, tendo a achar que boa parte dos que “apostam na sorte” são teístas. Se eles fazem essas apostas, fico no mínimo com a impressão de que acreditam na sorte. Parece que eles nunca se deram ao trabalho de pensar na incoerência disso. Aqueles que seguem o conceito de que “aqui se faz, aqui se paga” ficam com problemas sérios de lógica quando colocam o seu deus como agente principal e

único dessa “empresa de cobrança”. Quando a vítima do mal é uma criança, jovem e inocente demais para ter cometido qualquer pecado ou crime, muitos teístas dizem que essa criança pode ter praticado o mal em uma vida anterior. Pensando o algoz de acordo com esse raciocínio, pareceria lícito concluir que deus faz com que uma pessoa nasça com o objetivo de praticar o mal para uma outra pessoa que, em uma vida anterior, praticou o mal para alguém. Ou seja, quando um estuprador morre, ele volta a nascer e será vítima de estupro, daí aquele que estuprar essa pessoa que, em uma vida anterior, foi um estuprador, está sendo apenas um instrumento de justiça de deus. Esse raciocínio compromete seriamente o conceito de livre-arbítrio; afinal, se nasci para praticar o mal para determinada pessoa porque ela praticou um mal em outra vida e eu sou o instrumento que deus está usando para punila agora, que liberdade eu tenho? Além disso, cabe perguntar agora se a pessoa será castigada por cumprir a “missão” para a qual foi destinada. A pessoa foi usada por deus para que aquele que cometeu o pecado em vida anterior pague por esse pecado sofrendo o mesmo tipo de agressão que praticou, e será castigada por isso? Se for, esse castigo será injusto porque o mal praticado era uma missão determinada e ordenada por deus, se não for, cai por terra o próprio conceito do “aqui se faz, aqui se paga”. Fica estranho, não fica? Essa é uma das razões por que não sou espírita. Veja também que se o criminoso for punido, independentemente de a vítima estar sendo punida justamente ou não, essa “lógica” vai gerar uma corrente sem possibilidade de fim: um torturador morre, renasce e é torturado; o segundo torturador morre, renasce e é torturado; o terceiro torturador morre, renasce e será torturado, e assim vai seguindo até o fim dos tempos. É claro que, para fugir dessa corrente, dá pra falar em castigo que não envolva um algoz; um terremoto ou uma enchente seriam perfeitos para isso e a corrente se quebraria, mas isso implicaria em uma injustiça do deus que definem como sendo justo, afinal o castigo não seria proporcional ao crime. Seria? E ainda fica em suspenso nessa equação, o número e o papel das pessoas que amam aquela vítima ou aquele agressor. Os pais, avós, irmãos, amigos, tios, primos de uma criança violentada; os pais, avós, irmãos, amigos, tios, primos de um torturador. Será que em todos os casos são também pessoas que foram más

em outra vida e por isso merecem castigo? Então o torturador está sendo usado como arma de vingança de diversos pecados para diversos pecadores. Haja matemática e estômago para deixar limpa essa conta! Mas se o algoz não for castigado não se criará a corrente e podemos também pensar que, a partir disso, fica aparentemente fácil compreender os muitos atos de maldade que vemos nodia a dia serem praticados e não serem punidos. Mas acho que nem os crimes não punidos e não descobertos são em número tão grande assim, nem há como deixar de sentir que ver a coisa dessa forma não impede que fique em nós uma sensação muito forte de que algo não está certo. Afinal, em nosso íntimo e por tudo o que sentimos quanto aoque é justo, pela própria forma com que organizamos nossa sociedade, não costuma nos parecer muito certo alguém cometer um crime – principalmente um crime do tipo que chamamos hediondo – e não pagar por ele. Nosso sistema penal existe justamente por causa dessa sensação. Falando em sistema penal, castigar com a prisão alguém que cometeu um crime contra uma criança poderia então ser um delito grave cometido pelos promotores e magistrados, que teriam que voltar e, em outra vida, serem condenados por crimes que não cometeram. Afinal, se a criança está apenas sendo punida por um crime que cometeu em outra vida, então o criminoso estava cumprindo determinações de deus e deus pode não gostar que nós, com nossas leis, castiguemos seu “instrumento de justiça”. Não sei não, mas não consigo ver nenhuma aparência de justiça nesse sistema de castigar em uma vida posterior os crimes que se comete em vida anterior. Tenho muita dificuldade de considerar justiça um castigo impingido a alguém que não tem nenhuma memória e nenhum conhecimento de ter praticado o mal. Se vejo uma criança sofrendo por maus tratos, fome ou uma doença grave, não consigo deixar de sentir que essa criança não merece a dor que sente, mesmo que alguém me diga que essa criança foi o próprio Torquemada, não vou conseguir vê-la sofrer sem pensar que esse sofrimento é injusto, afinal, ela não sabe que foi Torquemada! O deus “justo” estaria então cometendo duas injustiças: a primeira, de punir ou permitir que seja punida uma pessoa que apenas cumpriu seu destino, sem ter escolha, sem ter liberdade, sem ter conhecimento do seu destino sinistro. A segunda, a injustiça de punir alguém por um crime que essa pessoa não tem

conhecimento de ter cometido. E ainda teria oagravante de fazer o que os teístas afirmam que deus não faz nem mesmo para evitar que o mal aconteça: Ele teria tirado o livre arbítrio de uma pessoa para que essa pessoa cometesse o crime, ou executasse o castigo. Não imagino como o teísta que afirma que uma criança que sofre é apenas um ser que paga por um crime que cometeu em outra vida explicaria todas essas coisas, mas duvido muito que consiga me convencer de que há qualquer coisa semelhante a justiça nisso. O que muitas vezes argumentam para sair desse e de outros impasses que algo do tipo “foi na outra vida” provoca é que a própria pessoa escolheu quem seria, como e onde nasceria, para dessa forma poder, não pagar ou ser castigada, dizem alguns, mas sim crescer espiritualmente compensando o que fez. Esse argumento não chega a trazer nenhuma mudança substancial no que parece e continuará parecendo um absurdo completo. Não me interessa se escolhi nascer na Somália e morrer de fome; quando estou na Somália morrendo de fome eu NÃO SEI disso! Com base em que se pode dizer que é justo uma criança morrer de fome porque um espírito que ela não sabe que é ou foi, em um momento que ela não sabe que aconteceu, e por um motivo que ela não tem nenhuma ideia de qual seja, “escolheu” nascer naquela situação? E como fica deus nessa história? Ele, em existindo, teria começado tudo isso, não teria? Com que raio de alegação “justa” um deus todo-poder começaria toda essa palhaçada? Desculpem os que acreditam nisso, mas não consigo ver nada a não ser maldade, injustiça e um grande nonsense nesse tipo de alegação. Há muitos teístas ainda que, numa atitude bem pouco piedosa, explicam os males sofridos pelas crianças “desencavando” os pecados dos pais dessas crianças: “A criança não pecou, mas seus pais são conhecidos pecadores” ou “A criança não pecou, mas só deus sabe quantos pecados seus pais cometeram”. “O Faraó não permitiu que os hebreus saíssem do Egito então seu filho ficou doente e morreu”. Esse tipo de raciocínio está presente em vários momentos da bíblia25; é a base do conceito de pecado original, tão caro ao cristianismo e, se não estou enganada, em especial à Igreja Católica que prega que todos nascemos com o pecado original, o pecado de Adão. Por isso é preciso que toda criança seja batizada, um

processo ritual pelo qual esta criança fica absolvida do pecado que não cometeu. Ou seja, na visão de muitos teístas, nas palavras da bíblia e no conceito católico de pecado original, o que se aceita é que o deus “justo” castiga no filho o pecado do pai. E não só até a terceira geração mas sempre e para sempre. Alguém consegue mesmo chamar isso de justiça? Dizem-nos o tempo todo que Jesus veio ao mundo para nos salvar, mas salvar de quê? Coloque essa pergunta para um ou para muitos teístas e, se você conseguir uma resposta que faça sentido, você deu mais sorte do que eu. Perguntei a muitos, recebi boa vontade, recebi bondade, recebi simpatia, mas não recebi nenhuma resposta que fizesse algum sentido para mim; procurei em textos e sites religiosos e não encontrei nada específico. 25 “... eu sou o Senhor, teu Deus, Deus zeloso, que visito a iniquidade dos pais nos filhos até à terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem” In: Êxodo 20.5

De acordo com o que minha mãe me dizia quando eu era criança e com algumas respostas que obtive na minha pesquisa, Jesus teria vindo justamente para nos salvar do pecado original, aquele que herdamos de nossos bíblicos pais originais; ou, em outras palavras, Jesus teria vindo para restituir o laço que nos ligava a deus antes do pecado do casal primordial. Então, o batismona igreja católica não é suficiente, continuamos culpados pelo pecado – que se pensar bem nem pecado é – do primeiro homem e da primeira mulher. Isso tudo, no fim das contas, quer dizer que para os cristãos em geral o pecado original, ou seja, a ideia de castigar nos filhos os pecados dos pais é responsável até mesmo pela existência do cristianismo. Se deus não castigasse nos filhos o pecado dos pais, Jesus nunca teria vindo, não teria sofrido, nenhuma igreja e nenhuma religião teria sido fundada em nome dele. Não teria acontecido nenhuma Cruzada, nenhuma queima de hereges em nenhuma fogueira da Inquisição, nenhuma Noite de São Bartolomeu, nenhuma demonização dos judeus. Não haveria nenhum padre pedófilo acobertado por nenhum papa que se faz de santo, não haveria nenhum pastor usando o nome de Jesus para instigar preconceito, destilar ódio e roubar pessoas ingênuas e desesperadas. Parece que seria muito bom se Jesus não tivesse vindo! Mas ele veio e, de acordo com os cristãos, veio para nos salvar desse pecado herdado ou para nos devolver a graça (seja lá isso o que for) que, não nós, não

nossos atos, não nossos próprios pecados, mas os atos e pecados de nossos ingênuos, azarados e tristes primeiros ancestrais fizeram com que nós perdêssemos antes de termos conhecido. A vinda de Jesus é o marco inicial, básico e estrutural do cristianismo, portanto, o cristianismo, dentro desse raciocínio, existe porque existe o pecado original. Ignorante e herege como sou, não consigo deixar de pensar que o cristianismo então nasceu da injustiça de um deus que é definido como justo. Os cristãos entendem de modo diferente, eu não entendo como conseguem isso. Tenho total certeza de que os teístas que pensam dessa forma não aceitariam como justa uma pessoa que espancasse o neto porque seu filho foi desobediente na infância, afinal, eu fui desobediente na infância e minha mãe, que é cristã fervorosa, nunca sequer pensou em bater no meu filho por causa disso. De qualquer forma essa equação depõe muito contra deus e mais uma vez coloca em xeque sua capacidade de fazer justiça. Tanto castigar um criminoso que não tem conhecimento do crime que cometeu quanto castigar no filho os pecados dos pais são coisas que não parecem, pelo menos para mim, com nada que, em sã consciência, se chamaria de justiça. Será que os teístas só aceitam essa injustiça porque acreditam que vem de deus e têm medo de serem castigados caso ousem pensar que deus cometeu uma injustiça? IV Muitos teístas acreditam seriamente na existência do inferno. A ameaça das chamas eternas é um lugar-comum nos cultos evangélicos e na história da igreja católica. Podemos dizer até que o medo de ir para o inferno muitas vezes faz com que as pessoas procurem segurar seus impulsos mais negativos; esse é, inclusive, um dos argumentos usados pelas pessoas que defendem a necessidade da religião para a manutenção da sociedade. Sem a religião, dizem, as pessoas não teriam razões para agirem corretamente. Estão na verdade afirmando que somos – todos nós e eles inclusive – seres muito medíocres. Querem dizer que todos nós só conseguimos ser bons por medo do castigo ou mediante recompensa. Não estão de todo errados. Você nunca verá um teísta confirmar que tudo o que faz é aceitar a chantagem proposta pelo seu líder religioso e, por extensão, pelo seu deus: “Creia em mim,

obedeça minhas leis e me ame ou queimará no inferno por toda a eternidade” diz deus. Mesmo aqueles teístas mais convictos da existência do inferno, sempre conseguirão uma desculpa esfarrapada para tentar nos convencer de que não é verdade que acreditam em deus e aceitam as “verdades” ditas pelo padre, pastor ou bíblia porque têm medo do inferno. Não! Nunca! A fé deles é sincera! Podem até usar o argumento deque a religião eo medo do inferno são úteis para fazer com que a criminalidade diminua, mas com ELES não é assim! Cada um vai dizer que isso só vale para os outros. E quando um deles ameaça o ateu com o “fogo do inferno caso não se arrependa” se, em resposta, o ateu usar o argumento da chantagem, o teísta vai se desdobrar para “provar” que na verdade não falou aquilo que acabou de falar. O famoso “você entendeu errado” cabe bem nesses casos. O problema com esse argumento de que a religião é útil para que as pessoas contenham seus instintos maldosos está na própria história das religiões. Sempre encontramos o mal sendo praticado, estimulado e justificado por centenas de líderes religiosos que – bem intencionados ou não – interpretam “as leis” de forma a estimular preconceitos, violência, guerras e todo tipo de injustiça. Vemos muitos e muitos exemplos de interpretações “adequadas” das escrituras sendo usadas por déspotas e ditadores que – com o apoio, conivência e parceria dos líderes religiosos – usam a religião para manipular a massa em favor do mais forte. Sempre houve líderes religiosos de todas as hierarquias, desde o pároco aliado ao fazendeiro mais poderoso de um lugarejo perdido no meio do nada até o papa aliado ao grande ditador. Sempre gananciosos e egoístas – muito bem disfarçados de piedosos e bons – estiveram e ainda estão prontos para manipular a massa usando a interpretação que melhor se adequar aos seus desejos e à sua ambição. Saramago, em seu livro Levantado do Chão26, cria um personagem muito significativo que dificilmente pode ser tomado por pura invenção da mente criativa de um artista das letras. O padre Agamedes representa sem muitas fantasias milhares – talvez milhões – de religiosos que estiveram ao longo de muitos séculos em quase todos os países da Europa e das Américas partilhando a farta mesa do senhor proprietário “legitimamente designado por deus” logo depois de discursar no púlpito sobre os benefícios da fome para a salvação do espírito e de alertar seu rebanho para o quanto o “pecado” da revolta afasta o pobre faminto de deus e da sua piedade.

A riqueza e prosperidade dos grandes latifundiários, a manutenção do regime escravocrata por tantos anos e a “naturalidade” do racismo devem muito a esses religiosos. O livro negro do cristianismo27, para o teísta que tiver a coragemdelêlo,trazmuitosexemplosdehorrorespraticados em nome de uma interpretação mais “conveniente” da bíblia 26 SARAMAGO, J. Levantado do Chão. São Paulo: DIFEL, 1982 27 FO, J.; TOMAT, S.; MALUCELLI, L. O livro negro do cristianismo 2007

e muitos exemplos de parcerias entre a igreja através de seus representantes e os muitos ditadores e seus regimes de terror28. Mas, se você não quiser ler um livro, basta acessar a internet que, numa pesquisa rápida, é possível ver imagens e ler textos que deixam bastante clara a parceria de religiosos dos mais altos escalões com os ditadores mais sanguinários da nossa história, como Franco, Hitler e Pinochet. Um exemplo claro é essa imagem que fala em milagre e pede orações para Salazar, ditador português desde 1933 até 1974:

28 “Nos últimos tempos surgiu uma nova discussão sobre a figura do papa Pio XII (1939-1958) e no seu possível envolvimento no nazismo e no extermínio de judeus [...] por que o Vaticano não condenou o progrom nazista de 1938 contra os judeus? O papa tinha conhecimento do extermínio de judeus? Como os fundos colocados à disposição por uma organização judaica americana acabaram sendo usados pela Igreja para salvar judeus convertidos e não todos os perseguidos? E quanto aos ciganos, negros e homossexuais? A falta de desculpas da Igreja a estas minorias é uma aprovação ao massacre. É verdade que o papa deu sua aprovação ao antissemitismo de Pétain em Vichy? Por que durante o famoso discurso do Natal de 1942 o papa condenou as violências nazistas, mas sem fazer menção aos judeus? Por que a Santa Sé se opôs à transferência dos judeus para a Palestina? [...] a Igreja ainda hoje responde a essas perguntas com o silêncio, chegando a permitir, ironicamente, que a comissão só consulte os arquivos vaticanos até 1922. Outra resposta significativa a essas perguntas foi a canonização do papa Pio XII por parte de João Paulo II”. (Idem: p. 204-205)

Veja que a Igreja não poupa superlativos para defender e abençoar o ditador que, coitadinho, sofreu um “infamissíssimo” atentado.29 Além desses muitos casos de interpretação da bíblia com o fim de obter ou manter privilégios, riqueza, domínio, poder, status quo, temos os horrores perpetrados pelos personagens bíblicos e pelo próprio deus, que são facilmente

encontrados nas páginas do texto dito sagrado e que em geral são usados como argumento que dá razão e respaldo a essas interpretações “convenientes”. Tudo isso faz pensar que a ideia e o argumento de que a religião e o medo do inferno são úteis para fazer com que as pessoas reprimam seus impulsos mais negativos tornandose mais éticas, fazendo com que a criminalidade diminua e ajudando a formar uma sociedade mais justa simplesmente não se justifica. Como bem disse Nietzsche “Você diz que acredita na necessidade da religião. Seja sincero! Você acredita mesmo é na necessidade da polícia”.30 Por conta disso parece mais lógico concluir que muitas pessoas, quando são boas e decentes, quando agem com honestidade e eticamente, o fazem porque são assim, não porque a religião que professam é boa ou prega realmente o bem. As pessoas são ou podem ser boas por outras razões além da religião, muitas vezes por razões bem mais nobres. Tanto é verdade que a religião e o medo do inferno não garantem a bondade das pessoas que, em muitos casos – e inclusive no caso do cristianismo –, a mesma religião que 29 Entre muitas páginas e sites onde se pode encontrar exemplos da conivência da Igreja com a ditadura e os ditadores, eis um exemplo, apenas um exemplo: http:// unabrasil.wordpress.com/2009/04/30/salazar-osanto-lider-portugues 30 In: http://frases.globo.com/friedrich-nietzsche/15372 Acesso em: 22 Ag. 2013

hoje prega o amor, ontem mandava matar. E algumas delas mesmo em nossos dias, enquanto se mostram tolerantes – ou pacíficas – em determinado lugar, em outro ponto do mundo está pregando o ódio, matando e torturando “em nome de deus”; é o caso, por exemplo, da religião muçulmana. Religião não costuma ser exemplo e não dá nenhuma garantia de bom comportamento moral. Se fosse assim, nos países onde o regime de governo é a teocracia, a paz, a tolerância e a prosperidade reinariam; mas o que vemos, infelizmente, é o contrário. Embora a perfeição não exista em nenhum país do mundo, costumamos ter mais tolerância nos países onde a religião não tem nenhuma, ou quase nenhuma, interferência nas decisões de governo, na elaboração e no cumprimento das leis. Principalmenteno que se refere a pensamentos e atitudes de tolerância e respeito ao outro, acho que posso afirmar sem medo de errar que muitas pessoas

realmente bondosas e decentes que hoje seguem determinada religião, se tivessem nascido em outra época – ou às vezes apenas em outro lugar – seriam consideradas hereges e sofreriam penalidades que variariam da excomunhão à pena de morte “em nome de deus” justamente por sua postura ética e decente. De qualquer forma não parece haver bondade nenhuma em agir de determinada maneira apenas por interesse na recompensa ou medo do castigo. Mesmo os teístas mais convictos em geral concordam com esse fato, principalmente quando o exemplo é colocado fora de sua religião e de seu livro, ou seja, numa situação em que ele possa avaliar o ato em si, e que não se sinta obrigado a justificar o injustificável para manter sua fé intacta. Há bons exemplos desse tipo de chantagem “ou faz o que mando ou será castigado” e de como ele nos parece condenável. Quando a ameaça é aplicada na educação ou quando alguém usa uma fraqueza do outro para conseguir dinheiro ou favores, por exemplo. Atualmente, a chantagem como “recurso pedagógico” encontra muitas restrições por parte dos educadores; muitas pessoas são contra usar de chantagem para fazer com que as crianças nos obedeçam; dizem – com razão – que o diálogo e o exemplo são métodos mais adequados e mais eficazes. Se chantagear crianças nos parece condenável, se chantagear adultos pode até dar cadeia, por que um deus chantagista seria digno de respeito e por que aceitar a chantagem desse deus pareceria qualquer coisa diferente de pura hipocrisia? De qualquer forma, sendo a chantagem válida ou não, se pensarmos bem, tanto a onipresença quanto a suprema bondade de deus sofrem um abalo lógico bastante grande quando se afirma o inferno como existente. Talvez por isso existam tantos teístas que não acreditam no inferno e dizem que inferno é “apenas uma metáfora”, embora afirmem que TUDO o que Jesus disse é a verdade e o bem. Como sempre não parecem perceber a contradição. No mínimo essas pessoas se esquecem de que Jesus acreditava no inferno; ou pior, esquecem que Jesus SABIA que existe o inferno. Isso porque se Jesus é mesmo deus, como sempre afirmam, e se a noção de trindade que defendem não foi eliminada junto com o inferno, então Jesus não apenas acreditava no inferno, ele sabia! Jesus é deus e deus não acredita, deus sabe! Portanto, se você acredita em Jesus e se acredita que tudo que ele diz na bíblia é verdade, então, pela sua própria lógica você tem que pensar que Jesus não manifesta uma crença quando

fala no inferno, ele dá uma informação. Daí que definir o inferno como “uma metáfora” quando se acredita que Jesus é real e é deus não faz muito sentido e, ao mesmo tempo, falar de Jesus como apenas bondade e amor ter mais tolerância nos países onde a religião não tem nenhuma, ou quase nenhuma, interferência nas decisões de governo, na elaboração e no cumprimento das leis. Principalmenteno que se refere a pensamentos e atitudes de tolerância e respeito ao outro, acho que posso afirmar sem medo de errar que muitas pessoas realmente bondosas e decentes que hoje seguem determinada religião, se tivessem nascido em outra época – ou às vezes apenas em outro lugar – seriam consideradas hereges e sofreriam penalidades que variariam da excomunhão à pena de morte “em nome de deus” justamente por sua postura ética e decente. De qualquer forma não parece haver bondade nenhuma em agir de determinada maneira apenas por interesse na recompensa ou medo do castigo. Mesmo os teístas mais convictos em geral concordam com esse fato, principalmente quando o exemplo é colocado fora de sua religião e de seu livro, ou seja, numa situação em que ele possa avaliar o ato em si, e que não se sinta obrigado a justificar o injustificável para manter sua fé intacta. Há bons exemplos desse tipo de chantagem “ou faz o que mando ou será castigado” e de como ele nos parece condenável. Quando a ameaça é aplicada na educação ou quando alguém usa uma fraqueza do outro para conseguir dinheiro ou favores, por exemplo. Atualmente, a chantagem como “recurso pedagógico” encontra muitas restrições por parte dos educadores; muitas pessoas são contra usar de chantagem para fazer com que as crianças nos obedeçam; dizem – com razão – que o diálogo e o exemplo são métodos mais adequados e mais eficazes. Se chantagear crianças nos parece condenável, se chantagear adultos pode até dar cadeia, por que um deus chantagista seria digno de respeito e por que aceitar a chantagem desse deus pareceria qualquer coisa diferente de pura hipocrisia? De qualquer forma, sendo a chantagem válida ou não, se pensarmos bem, tanto a onipresença quanto a suprema bondade de deus sofrem um abalo lógico bastante grande quando se afirma o inferno como existente. Talvez por isso existam tantos teístas que não acreditam no inferno e dizem que inferno é “apenas uma

metáfora”, embora afirmem que TUDO o que Jesus disse é a verdade e o bem. Como sempre não parecem perceber a contradição. No mínimo essas pessoas se esquecem de que Jesus acreditava no inferno; ou pior, esquecem que Jesus SABIA que existe o inferno. Isso porque se Jesus é mesmo deus, como sempre afirmam, e se a noção de trindade que defendem não foi eliminada junto com o inferno, então Jesus não apenas acreditava no inferno, ele sabia! Jesus é deus e deus não acredita, deus sabe! Portanto, se você acredita em Jesus e se acredita que tudo que ele diz na bíblia é verdade, então, pela sua própria lógica você tem que pensar que Jesus não manifesta uma crença quando fala no inferno, ele dá uma informação. Daí que definir o inferno como “uma metáfora” quando se acredita que Jesus é real e é deus não faz muito sentido e, ao mesmo tempo, falar de Jesus como apenas bondade e amor faz menos sentido ainda. Quando dizem que os horrores do antigo testamento não valem mais porque Jesus revogou tudo aquilo e pregou apenas o amor, eles esquecem que aquele “puro amor” que nunca pecou e que é o próprio deus ameaça com o “choro e ranger de dentes” todos aqueles que não o aceitarem; esquecem que esse “puro amor” em lugar de revogar reforçou o conceito de inferno que, aparentemente, para ele, não estava suficientemente claro na bíblia até então. O deus vingativo, ciumento e sádico do Antigo Testamento às vezes dá a impressão de que nos deixaria em paz depois da morte, mas esse deus “puro amor” do novo testamento continua a nos torturar além da tumba. Isso torna o segundo ainda mais terrível do que o primeiro, na minha visão, mas os cristãos não veem dessa forma e continuam falando em deus de amor; mais incoerências, inexplicadas e inexplicáveis, que os teístas precisam aceitar para continuar acreditando. Pesquisando um pouco sobre o inferno nas páginas cristãs da internet é possível perceber que os cristãos não estão absolutamente de acordo com respeito a esse tema. As descrições e definições são muito variadas, vão desde a realidade de fogo e enxofre onde eu e toda pessoa que ousa duvidar estaremos “chorando e rangendo os dentes” por toda a eternidade; passando por um castigo apenas temporário, nesse mesmo ambiente inóspito, cuja durabilidade será determinada pela “justiça” de deus até a total inexistência do lugar que, nesse caso, não seria um lugar físico e sim “uma metáfora”.

Essa metáfora também varia bastante quando tentam responder à pergunta “metáfora de quê”; passando por outras nuances, ela poderia ser a metáfora do sofrimento que minha alma experimentará quando descobrir que a graça existe e que eu não poderei alcançá-la porque não soube aceitála quando tive a chance, ou seria apenas a morte; a morte definitiva – única em que eu acredito por sinal – aquela morte que é o fim de tudo, a volta à não existência da qual fui tirada. O inferno pode ser esse nada que me parece tão melhor do que qualquer graça ou paraíso que qualquer teísta me possa descrever. Que sorte a minha! Encontrei também uma “semi-metáfora”. De acordo com essa visão o inferno existe sim, mas é o que acontecerá quando Jesus voltar e separar todos os que viveram em culpados ou inocentes de acordo com o que ele julga ser o bom e o mau, daí os bons irão para o paraíso eterno prometido enquanto que os maus conhecerão a realidade do fogo do inferno. Mas esse não será um lugar físico e você não queimará por toda a eternidade, será apenas um fogo intenso que arderá até consumir o pecador por completo. Pelo que entendi o inferno seria algo muito parecido com as fogueiras que queimavam as bruxas da Idade Média e deus e Jesus seriam muito parecidos com Torquemada e outras centenas de “defensores da igreja de Cristo” que torturavam e queimavam suas vítimas. Mas não eternamente! De acordo com essa visão nós, os hereges, juntamente com os homossexuais e demais pecadores, seremos queimados em um fogo que será eterno apenas enquanto houver vítimas sendo lançadas a ele e vítimas ainda não totalmente consumidas. Esse fogo, que parece ser um fogo especial porque queima até mesmo as almas, nos exterminará totalmente e depois disso – aí sim! – nossa morte será definitiva. A dor eo sofrimento por que passaremos nesse processo, assim como o fogo, será eterna enquanto durar como oamor do Soneto de Fidelidade, do Vinícius de Moraes31, mas não será eterna na realidade. Afinal as pessoas bondosas e piedosas que se fizeram merecedoras do paraíso não poderão desfrutar a felicidade eterna que mereceram se estiverem sabendo que um seu ente querido está queimando em um lugar de sofrimento eterno. Parece que ter um ser querido queimado num fogo “eterno enquanto dura” não tem problema. 31 Moraes, Vinicius de. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1960. p 96.

Se for considerado como real – da forma como e pela maneira com que nos

ameaçam, imagino que creem muitos teístas – o inferno é, por definição, o reino do diabo e lá deus não está, ou não deveria estar. O inferno é o lugar do mal e o mal é a ausência de deus, que é o supremo bem; se um ateu atrevido como eu ousar dizer que deus está no inferno certamente a maioria dos teístas ouvirá isso como uma suprema heresia. Podemos lembrar as conversas entre deus e o diabo, que acontecem no livro de Jó 32– a vítima inocente de uma brincadeira de moleques – podemos lembrar também do Raul Seixas ter cantado lindamente no seu Trem das Sete: “Ói, ói o Mal, vem de braços e abraços com o Bem num romanceastral” (e agora estou me permitindo uma brincadeirinha musical). Mas apesar desses exemplos de convivência pacífica, o que fica do que os teístas nos dizem quando afirmam seu deus como existente, é que para esses teístas – e nas três principais religiões do planeta – o supremo bem não convive com o supremo mal. Se deus é o supremo bem e o diabo é o supremo mal, de acordo com a definição comum do mal como sendo a ausência do bem, a única conclusão que podemos tirar desse argumento é que, para os teístas, deus não está no Inferno, portanto – mais uma vez – deus não é onipresente. Mas suponha que se extrapole toda a lógica teísta comum. Vamos admitir a onipresença divina; digamos que sim! Deus 32 “Pois nós, leitores, podemos ver que as coisas são ainda piores do que Jó suspeita. Ele implora compreensão. Suponhamos que soubesse que a morte de seus 10 filhos era o resultado de uma aposta de Deus com Satã, como dois colegiais briguentos disputando o poder. Alguém que ponha os justos à prova dessa maneira deverá Ele próprio prestar contas mais cedo ou mais tarde”. (NEIMAN, S. O Mal no Pensamento Moderno 2003, p. 31)

é onipresente, ser onipresente significa estar em todos os lugares, então deus está também no Inferno. Pensando, ou aceitando pensar dessa forma, fica a pergunta: como é que deus pode ser todo bondade, estar no inferno e não ouvir os gritos dos torturados? Como pode deus, a suprema bondade, estar presente em um lugar que é o reino da suprema maldade e, sendo todo poderoso, permitir que essa suprema maldade perdure por toda a eternidade? Como pode um lugar que seria habitado pelo mal continuar sendo um lugar habitado pelo mal na presença do supremo bem? Deus não é onipresente? Deus não é o supremo bem? Deus não é onipotente? Qual deles ele deixa de ser quando o inferno se torna real?

A possibilidade da existência do inferno suscita tantas perguntas que euzinha simplesmente não consigo entender como os teístas que acreditam na existência do inferno não as fazem: Como um deus que é a suprema bondade pode ter criado, a partir do nada, seres que ele, por ser onisciente, sabia que pecariam e seriam jogados no inferno? Por que a suprema bondade de deus não escolheu então não criar esses seres todos que povoariam o inferno, incluindo aí o próprio anjo que – ele sabia – se transformaria no diabo? Se deus criou tudo o que existe e se você acredita que o inferno existe então deus criou o inferno? Criou com que objetivo? Mantém esse lugar, que aparentemente recebe muito mais moradores do que o paraíso, com que objetivo? Por que fez as coisas dessa forma e não de outra menos terrível? Ele não tinha poder para fazer de forma diferente ou sempre teve esse poder, mas é um sádico e sua felicidade eterna depende de ver pessoas queimando eternamente? Embora muitos teístas acreditem, e o próprio Jesus Cristo acreditasse nele33, o inferno não faz sentido por ser um castigo atemporal para crimes temporais e, portanto, uma injustiça que seria cometida desde o começo dos tempos por um deus que afirmam ser bom e justo. Somos seres temporais e nossos crimes, por piores que sejam esses crimes, são temporais como nós. Qual seria mesmo o crime que mereceria um castigo terrível e eterno? Eu não consigo pensar em nenhum, a não ser talvez o crime de ter criado a partir do nada, a vida, a humanidade e todos os horrores que existem nesse planeta e, talvez, pelo universo a fora. Quando ouço um teísta defendendo a ideia de que o inferno existe – geralmente para me avisar de que é para lá que vou pelo pecado imperdoável de não crer e de “falar tanto contra deus” – fico com uma sensação muito desconfortável de dúvida a respeito da decência, da ética, da bondade genuína dessa pessoa que em geral se considera eleita por deus para habitar o paraíso pela eternidade. Confesso que tenho muita dificuldade para acreditar que alguém que seja realmente bom possa amar – e apoiar – um deus que tenha criado ou que permita a existência do inferno. Eu afirmo que jamais o faria! Nós, humanos, cometemos crimes de vários tipos e com vários níveis de requinte; podemos ofender uma pessoa com uma palavra dura ou matá-la depois de mantê-la sob tortura durante dias, meses ou anos. Somos capazes de uma gama enorme de crimes entre um e outro. Cometemos crimes com vários graus

de maldade envolvidos; desde o assassinato frio de um inimigo em uma guerra, até o lento assassinato 33 “Então, o Rei dirá também aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos”. In: Mateus 25:41 – “Onde não lhes morre o verme, nem o fogo se apaga”. In: Marcos 9:46 – “A fumaça do seu tormento sobe pelos séculos dos séculos; e não têm descanso algum, nem de dia nem de noite.” In: Apocalipse 14:11

de alguém cujo sofrimento somos capazes de apreciar com um prazer que a alguns de nós – dentre os quais me incluo – parece incompreensível. Com nossas ações más causamos variados tipos de dano à vítima, desde uma mágoa profunda até os piores sofrimentos sob as piores torturas, do tipo que são difíceis até de imaginar para uma pessoa comum. Quanto a nosso estado emocional, podemos apresentar, no momento do crime, variados níveis de insanidade mental, temporária ou não; podemos estar sob forte estresse, podemos estar totalmente fora de nossa consciência comum, ou podemos estar calmos e tranquilamente conscientes do que fazemos. Variamos também o número de vítimas atingidas pelos males que praticamos; alguns matam ou torturam apenas uma pessoa, outros fazem isso com um país inteiro ou todo um povo. Por conta de todas essas variantes e suas tantas e tantas nuances, os males que causamos são compatíveis com variadas penas. Tanto é verdade que a existência do inferno como punição eterna depõe seriamente contra a ideia de bondade e justiça divina que ultimamente tenho ouvido cada vez mais o argumento de que as pessoas que pecaram não ficarão no inferno por toda a eternidade como consta na bíblia, ficarão ardendo e “rangendo os dentes” apenas o tempo necessário para pagar por seus pecados, e esse tempo, variando de pessoa para pessoa, será determinado por deus e sua justiça “infalível e perfeita”. Não consigo imaginar outro lugar onde podem ter encontrado respaldo para esse argumento a não ser a corruptível, inadequada e imperfeita justiça dos homens que, mesmo que em muitos casos mal e porcamente, reconhece essa variedade e, pelo menos no papel, quase sempre tenta adequar a pena ao crime cometido. Seexistir o inferno com o qual muitos religiosos costumam ameaçar os ateus, cada uma das pessoas que estão ou estarão lá foram levadas por deus e lá estão porque deus quer que estejam e quis que assim fosse desde o princípio. Afinal, vejamos: se deus optou por tirar cada uma das pessoas que já existiram, que

existem e que ainda existirão, do nada mais absoluto para dar a elas a vida, e se, podendo tudo, criou essas pessoas como seres fracos, ignorantes e capazes de pecar, e ainda se, sendo onisciente, ele sabia desde sempre como, quando e quanto cada uma das pessoas que criou pecaria, então, logicamente foi ele, por suas próprias decisões e sua própria vontade, quem levou essas pessoas ao inferno. Ou será que deus não tem livre-arbítrio? Se deus existe e se o inferno existe, então eu posso, sem pecar contra a lógica, concluir que cada ser humano pode ser comparado a um leitão que foi criado por um fazendeiro para – no momento em que esse fazendeiro decidir – virar churrasco. É como se o fazendeiro dissesse aos seus porcos: “Vou colocar no espeto todos os porcos que se comportarem como porcos, ou seja, todos os que chafurdarem na lama, todos os que roerem tudo o que estiver a seu alcance e também todos aqueles que, se e quando virem uma oportunidade, tentarem fugir do chiqueiro”. Então o fazendeiro simplesmente faz churrasco todas as semanas porque sempre encontra um porco que se comportou como porco. E ele se justifica dizendo que avisou o porco, deu a ele a oportunidade e o livre-arbítrio para decidir chafurdar ou não chafurdar na lama, roer ou não roer tudo o que estivesse a seu alcance, tentar fugir quando a oportunidade se apresenta; ou ficar quieto no chiqueiro e não tentar fugir nunca, mesmo que a porta seja deixada aberta. Sei que a imensa maioria dos teístas ficaria chocada com essa minha comparação que lhes pareceria cruel, mas o paralelo não é absurdo. Sei que se eu dissesse isso num grupo de teístas alguns parariam por um momento inconscientemente esperando que um raio caísse do céu e me fulminasse pela audácia de blasfemar tanto assim, mas tenho certeza de que, se pudesse perder o medo, o teísta mesmo veria que a comparação não é nada absurda. Nesse caso o fazendeiro parece, em minha opinião, bem menos culpado que deus, afinal, se dissesse isso, ele certamente estaria sendo mais irônico do que malvado. Qualquer fazendeiro sabe que os porcos agirão como porcos, independente do que se diga a eles; o fazendeiro não é onipotente, precisa se alimentar para viver e não criou os porcos a partir do nada dando a eles sua sina e seu destino de serem porcos. Sei que diante dessa comparação muitos teístas diriam que os porcos não tem consciência e nós temos, e eu sei disso! Sei também que isso faz de nós seres

muito diferentes dos porcos – embora não tanto quanto alguns teístas gostariam – mas, se comparada a nossa consciência com a consciência de deus, será que essa diferença não seria equivalente à não consciência do porco comparada com a consciência do fazendeiro? Pelo que afirmam os teístas a respeito da superioridade de deus sobre nós, a diferença entre nossa consciência e a consciência de deus é astronômica, acho que todo teísta concordará com qualquer um que disser que a consciência de deuséinfinitamentesuperioràconsciênciadomaisinteligente dos seres humanos; portanto, não vejo como absurda essa comparação de proporções. Deus está para o homem assim como o fazendeiro está para o porco; e estou correndo o risco de ser injusta porque a distância entre a consciência do fazendeiro e a consciência do porco talvez não seja tão grande assim. O paralelo, portanto, parece perfeitamente aceitável na hipótese de existir esse deus no qual o ateu insiste em não crer. O inferno, como é descrito, além de contrariar a onipresença e a suprema bondade do deus criador, faria com que a imagem do deus justo também não parecesse muito convincente porque sua pena única e eterna não faria nem mesmo esse arremedo de justiça que são as nossas leis terrenas. Certamente muitos teístas acabam por sentir essa verdade, mesmo que seja de forma inconsciente, isso acontece por causa da ética e da decência que eles têm; não por causa da religião que professam, mas apesar dela. Eles percebem que, se o inferno existisse, não poderia existir bondade e justiça no deus que sua religião prega. Como não conseguem negar a existência de deus, esses teístas começaram a negar a existência do inferno. Para isso apelam às diversas possibilidades de interpretação que conseguem, com uma boa vontade hercúlea, encontrar em frases bíblicas do tipo “Então, o Rei dirá também aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos.” Mateus 25.41 e dizem: É uma metáfora. Os argumentos que encontraram para justificar essa negação apesar de o inferno estar descrito na bíblia; e com muita ênfase no Novo testamento; o que impossibilita usarem o argumento comum de que a vinda de Jesus mudou as leis de Moisés; foi dizer que essa parte da bíblia está em “sentido figurado”, ou então – e esse parece que é razoavelmente novo – que o inferno existe mas a pena deixou de ser eterna e passou a ser temporária.

É claro que não vão dizer que “a pena deixou de ser eterna”, dirão que nunca foi eterna, apenas entendemos errado até agora. Ainda não ouvi muitas explicações “teológicas” desse argumento além do “eterno enquanto dura” que comentei acima, mas certamente eles as estão encontrando; e nunca nenhum teísta admitirá que com esse esforço estão apenas copiando nosso próprio sistema legal. Quero deixar claro que digo isso sem nenhuma intenção de ofender os teístas, pelo contrário – como já disse antes – admiro o esforço que fazem para conseguir que deus diga o que eles, graças à sua bondade e decência, acham queé certo deus dizer; mas o que acho é que eles não têm consciência ou coragem de admitir que duvidaram da bondade e justiça de seu deus, então inventam uma “interpretação” que modifica sua “palavra imutável” para que esse seu deus não pareça assim tão terrível. São capazes de fazer qualquer coisa para que a fé seja mantida, inclusive ler o oposto do que está escrito. V Podemos dizer que o mal é algo que, pela lógica religiosa, não deveria existir. Epicuro lançou a questão: se existe um deus bom e ele criou o mundo, como é possível o mal no mundo? Quando se pensa em um deus que tenha criado tudo fica racionalmente difícil aceitar a existência do mal independentemente da interferência de deus. Embora filósofos, teólogos e teóricos de diversas áreas e em todas as épocas, que têm ou tiveram em comum a crença em deus, tenham se esmerado de diversas maneiras para transformar esse paradoxo em um argumento de certa forma lógico, não acho que eles o tenham conseguido uma vez que, apesar de todas as torturas e fogueiras, ainda existem ateus. Kant, Agostinho, Rousseau emuitos outros filósofos teístas explicam o mal como sendo o incompleto desenvolvimento no homem da sua capacidade para o bem, ou então como o inadequado uso que o homem faz da sua liberdade. Para eles a liberdade, como grande dádiva de deus aos homens, só poderia ser boa e levar ao bem. Somos nós que, com nossas escolhas erradas, nos tornamos responsáveis pelo mal. Filósofos, teólogos, pensadores e estudiosos – teístas e não teístas – costumam dividir o mal em moral e natural; mal moral seria, basicamente, o mal praticado

pelo homem, e mal natural seria o mal que vem da natureza, como enchentes, furacões, etc. Essa divisão, porém, nunca foi muito precisa, entre outras razões porque os teístas ao longo da história vêm acusando o homem igualmente pelos dois. Muita gente morreu em consequência dessa definição do mal tão mal arrumada que esteve em voga nos negros tempos da Idade Média e está implantada na mente demuitas pessoas ainda hoje. Histórias, infelizmente não ficcionais, de linchamento, de tortura e de queima de judeus, de artistas, de céticos, de mulheres que procuravam nas plantas a cura das doenças e que por isso eram acusadas de bruxaria são comuns no período medieval, e também antes e depois disso. Muitas vezes essas mortes se tornavam significantemente mais numerosas depois ou durante uma catástrofe natural, e eram explicadas como uma maneira de “tirar o mal” de entre as pessoas e “aplacar a ira de deus”. Acontecia de ter uma epidemia de determinada doença, uma seca ou algum outro tipo de calamidade que era logo vista como um castigo de deus naquele lugar e com aquela comunidade; logo alguém concluía que a causa da desgraça era a presença de uma pessoa ou grupo de pessoas que, por ser quem eram, “desagradável aos olhos de deus”, teria provocado sua ira e o consequente castigo a toda a comunidade. Todos concordavam porque discordar significava ser acusado de participar desse complô. Então toda a comunidade participava entusiasticamente da “limpeza” e o judeu, a bruxa, o herege ou a família de estrangeiros eram devidamente “desmontados” para que deus recolhesse sua fúria e a doença, seca, enchente ou o que fosse deixasse de acontecer. Ainda hoje essa mentalidade se mostra muito presente. Por exemplo, quando uma cidade é atingida por um terremoto sempre haverá um religioso dizendo que a causa foi a fé “errada” daquele povo; basta lembrar que, por ocasião do terremoto no Haiti, ocorrido no dia 12 de janeiro de 2010, muitos líderes religiosos pregaram em seu púlpito que a causa foi o fato de muitos haitianos praticarem o vodu. Esses líderes religiosos não pertencem ao mesmo grupo dos teístas que se esforçam por interpretar a bíblia de maneira que seu texto esteja de acordo a bondade e decência que eles têm e são.

Aparentemente a divisão do mal em moral e natural tem como objetivo diminuir a responsabilidade de deus, porque assim fica fácil argumentar – e Kant o fez muito bem – que o mal moral é de responsabilidade exclusiva do homem. Na esteira dessa visão, muitos teístas pregam que todo o mal que existe no mundo existe por causa e por culpa do homem, esse homem que recebeu a dádiva da vida, que recebeu o livrearbítrio, que recebeu o paraíso como morada, que recebeu e o privilégio de ter sido criado à imagem e semelhança de deus e que, mesmo assim, preferiu trilhar o caminho das trevas, viver em pecado e negar seu criador. Quanta choradeira para um deus onipotente! E, quanto ao mal natural, não é difícil, em uma análise mais superficial, argumentar que ele é parte da natureza, que a natureza, por ser destituída de intenção, não poderia ser má e que, portanto, os chamados males naturais nem sequer são males realmente. Esse argumento é tão bom que até mesmo pessoas céticas quanto à religião o consideram perfeitamente conciliável com a possibilidade da existência de deus. Isso acontece, pelo que vi, principalmente com os biólogos e outros cientistas naturais porque essas pessoas em geral amam e respeitam a natureza de tal forma que não conseguem ver nela nada a não ser beleza. Admiromuito essas pessoas e por mais que possa parecer contraditório tenho uma tendência muito grande a concordar com elas. Mas só se elas tirarem deus dos seus argumentos. De acordo com esse raciocínio deus seria aquele ser transcendente, bom e justo que salva milagrosamente uma vítima de terremoto ou de enchente e a quem todos atribuem esse salvamento e agradecem por ele, inclusive muitas vezes o próprio bombeiro ou o cidadão solidário e heroico que, este sim! com o risco da própria vida, realizou o salvamento. Mas, embora “onipoderoso”, “onibom” e onipresente, deus não seria o responsável pela morte das outras centenas de pessoas, em geral incluindo crianças inocentes, porque o povo atingido vivia contra suas leis; ou não seria responsável porque, embora deus seja “onipoderoso”, “onibom” e onipresente, terremotos e enchentes são acontecimentos naturais e a natureza não é boa nem má. Ouainda, argumento comum até mesmo entre os filósofos teístas, deus permitiu

aquela catástrofe e aquelas mortes por motivos que estão muito além da nossa capacidade de compreensão. É o chamado “mistério”, palavrinha chave muito útil e muito confortável que serve como resposta para todo e qualquer questionamento para o qual o teísta não consiga encontrar resposta sem abrir mão da fé. Deus criou a natureza e a natureza, quando se fala em cores, perfumes e belas paisagens, é “uma face de deus” e uma prova de sua existência. Todas as belezas da natureza são provas óbvias da existência de deus que apenas a teimosia impede que o ateu perceba; essas belezas são vistas até mesmo como sendo o próprio deus, como queria Espinoza. Mas curiosamente esse argumento costuma ficar esquecido; essa “realidade” em geral é posta em suspenso quando se fala em terremotos, furacões, tempestades, porque, ao falar dessas coisas, se não estiverem sendo provocadas para pensar o papel que seu deus teria diante delas, as pessoas tendem a defini-las sempre e cada uma delas como um mal. Não é possível, para quem tenta usar a mente sem as peias do medo, compreender essa lógica. Embora muitos deles tenham argumentado contra algumas das provas da existência de deus – como Kant com respeito às provas dadas por Tomás de Aquino, ou Paul Ricoeur com respeito ao argumento da não existência do mal dado por Agostinho – o que passa é que os filósofos teístas, em seus argumentos e suas teodiceias adequam seu pensamento de forma a fazer a existência de deus caber nele como certa, indiscutível, verdadeira. Isso torna todo o raciocínio artificial e frágil, como o gigante construído com pés de barro. Verdadeiros monumentos de raciocínio filosófico foram construídos ao longo da história por grandes pensadores a partir da “verdade” da existência de deus. Tire deus desse arcabouço lógico e todo o resto desmorona. O filósofo francês Paul Ricoeur (1986) é um dos que atribuem basicamente aos homens a responsabilidade pela existência do mal. Mas ele, ao mesmo tempo, reconhece a dificuldade que a realidade apresenta para que essa visão da culpa seja dada exclusivamente ao ser humano, isso acontece principalmente quando se fala da vítima do mal, a vítima que se pergunta “Por que eu?”. Numa aparente fuga da possibilidade de admitir a incoerência da existência de deus diante da realidade do mal34, Ricoeur volta-se para outro lado e se mostra

mais preocupado em procurar soluções do que em dar definições para o mal. A pergunta fundamental para Ricoeur é: O que podemos fazer para combater o mal? Esse desvio faz com que se conclua que ele não quis admitir que não há nenhum argumento convincente e que o deus em que ele acredita, diante do problema do mal, é indefensável. Leibniz constrói um pensamento “lógico” que não serve para muita coisa além de inspirar Voltaire a criar seu Cândido. Todos os filósofos e pensadores céticos, e até mesmo muitos dos próprios teístas, perceberam falhas gigantescas na sua Teodiceia. Leibniz, com sua teoria do melhor dos mundos possíveis, cria um deus de mentalidade extremamente lógicomecanicista que, dentre todas as possibilidades de mundo que poderia ter criado, escolheu o melhor. O deus de Leibniz parece que, no mínimo, não tinha tanto poder assim, afinal, se ele tinha uma quantidade X de mundos 34 Leibniz absolvia Deus restringindo suas escolhas mediante formas eternas. O resultado, como colocou Hegel, era por demais um conto de fadas para realmente perturbar alguém [...] Rousseau absolvia Deus mudando nosso foco para o mal moral e argumentando que Ele nos dera recursos para controlá-lo. (NEIMAN, S. O Mal no Pensamento Moderno 2003, p. 73) [Para Kant] Em sua descrição, o problema do mal pressupõe uma conexão sistemática entre a felicidade e a virtude, ou, de modo inverso, entre o mal natural e o mal moral. Mas o mundo não parece mostrar nenhuma conexão assim. (Idem, p. 76)

possíveis – fosse esse número X tão grande quanto se possa admitir – ele estaria na verdade limitado a esse número e só poderia escolher o que criaria dentre esses. Existiria – de acordo com o que se pode depreender da teoria de Leibniz – uma quantidade Y de mundos que deus não poderia criar porque são os mundos impossíveis. Mas os deístas defendem que “para deus nada é impossível”, então, nesse caso, deus não poderia reivindicar, ou a ele não poderia ser atribuída, a característica da onipotência. Portanto, a teoria do melhor mundo possível de Leibniz não parece muito convincente, daí que, a bondade de deus como sendo caracterizada pelo fato de escolher o melhor mundo possível e administrar esse mundo fazendo sempre as melhores escolhas possíveis a fim de que tudo funcione dentro da lógica mecanicista de um relojoeiro fica na verdade bem pouco adequada para ser levada seriamente em consideração. Ao dizer que deus não poderia ter feito um mundo melhor do que este, o seu famoso defensor arranca dele qualquer possibilidade de onipotência; e ao afirmar

que todas as ações de deus estão voltadas para o bem Leibniz transforma deus em um bufão desastrado que causa toda espécie de acidente fatal com intenção bondosa. Um deus como esse levaria a pensar que qualquer criação ficaria bem melhor sem ele. Tomás de Aquino, Agostinho, Kant, Leibniz e muitos outros tentaram encontrar uma maneira de invalidar o paradoxo da existência de deus diante da realidade do mal; na opinião de filósofos como Bertrand Russell, Davi Hume, Daniel Dannett, Umberto Eco e muitos outros, eles não conseguiram. Cada um dos teístas procurou criar um outro tipo de verdade que pudesse desfazer o paradoxo; para os céticos – e porque ainda existem céticos – nenhum deles conseguiu isso. VI Paramimpareceverdadeiroesuficientementeabrangente definir o mal como sendo tudo aquilo que causa ou é um dano para um ser senciente. Mesmo trazendo benefício ao ser que o pratica, se esse dano não for compensado por um bem maior que recaia – com seu conhecimento e concordância – sobre o mesmo ser senciente sobre o qual recairá o dano, este será um mal. Essa é a minha definição e devo dizer que ela foi estruturada e arrematada em muito baseado na leitura dePeter Singer.35Na minha visão, essa definição é muito adequada principalmente porque desfaz o argumento da relatividade do mal, um argumento usado com muita frequência por todo tipo de teísta, principalmente, na minha humilde opinião, por teístas que não têm em muito bom estado o seu próprio conceito de ética. Esse argumento diz basicamente que o mal é relativo porque o que é mal para uns pode ser o bem para outros. Em geral colocam como exemplo casos mais ou menos parecidos com esse: Eu causo um dano físico ou moral a uma pessoa, isso será um mal para ela, mas pode ser um bem para mim que com isso posso estar, por exemplo, tirando essa pessoa do caminho para conseguir uma promoção. Às vezes os exemplos são ainda mais terríveis. 35 Singer defende que “... a noção de ética traz consigo a ideia de algo mais vasto do que o individual. Se eu quiser defender o meu comportamento com fundamentos éticos, não posso assinalar apenas os benefícios que tal comportamento me traz a mim.” – “A ética exige que nos abstraiamos do “eu” e do “tu” e que cheguemos à lei universal, ao juízo universalizável, ao ponto de vista do espectador imparcial ou do observador ideal, ou o que lhe quisermos chamar.” Se tomarmos como mal todo comportamento que não seja ético, dentro dessa visão, teremos uma definição de mal bastante condizente com a que foi apresentada acima. In: SINGER, Peter. Ética Prática (Disponível em: http:// www.pdfcoke.com/doc/7299953/Peter-

Singer-Etica-Pratica. Acesso: 14 out. 201

Talvez seja bom tentar explicar melhor essa minha definição pedindo para que você atente em alguns conceitos e alguns detalhes dela. Quando falo em ser senciente, da mesma forma que Peter Singer, estou me referindo a todo ser capaz de sentir e, principalmente, de sentir dor. Perceba que dessa forma incluo quase todos os animais, se não todos uma vez que de muitos deles não temos como saber realmente e com segurança se sentem dor ou não. Além disso – se você pensarbem – pode incluir as plantas porque também não sabemos com certeza se elas sentem ou não. Mas não precisamos ir tão longe; para efeito prático podemos definir e tratar como seres sencientes todos aqueles sobre os quais podemos afirmar que, por possuírem sistema nervoso, são capazes de sentir dor e prazer. Em muitos casos, como acontece quanto aos nossos cachorros ou gatos de estimação, nem precisamos ter conhecimento de um estudo de suas anatomias, o comportamento deles já é suficiente para que possamos ter certeza de que esses bichos sentem prazer e sentem dor. Como muitas vezes somos obrigados a causar dor para salvar – e sabemos que médicos e enfermeiros fazem isso o tempo todo – coloquei a ressalva de que o mal será realmente um mal se não resultar dele um bem maior. E como a expressão “de um mal resultar um bem maior” já foi argumento para muitos males quando quem decidia qual era esse bem maior era justamente o autor do mal e aquele que seria beneficiado pelo “bem maior” advindo desse “mal necessário”, coloquei a ressalva de que esse bem maior deve recair sobre o mesmo ser senciente sobre o qual recairá o dano e com o conhecimento e a concordância desse ser senciente. Afinal, lembre-se de que o assassinato de judeus era visto por muitos nazistas como um mal que levaria a um bem maior. Nem ocorreu a eles perguntar o que os judeus pensavam sobre isso. E esse é apenas um dentre tantos exemplos. A hipocrisia desse raciocínio quase nunca é percebida pelo agente do mal. Em seu livro Mal: o lado sombrio da realidade, Jonh A. Sanford (1988) conta a história de uma epidemia que de 1616 a 1619 dizimou a população indígena de uma localidade americana deixando as terras livres para serem ocupadas pelos puritanos. Esses puritanos viram a epidemia como um grande bem e até mesmo como um milagre. E agradeceram muito a deus por ter varrido os pagãos das “suas” terras.

Sanford conta essa história justamente para falar da relatividade do mal. Dentro da minha definição de mal não há essa relatividade e, embora tenha causado alegria para os invasores, o extermínio de um povo inteiro por uma epidemia será sempre um mal, sem nenhuma sombra de dúvida e sem nenhum “porém”. Por maiores benefícios que seu extermínio possa ter trazido para os puritanos, foram os índios que sofreram o dano, e para eles não houve nenhum benefício. Há um outro tipo de atitude que quase todas as pessoas concordam que seja um mal embora possam chamá-lo por outro nome – como pecado ou simplesmente como falta de ética. Esse mal consiste em desejar a desgraça alheia ou se alegrar com a infelicidade do outro, muitos padres e pastores pregam em seus altares e púlpitos a frase “Não desejarás o mal” quase como se fosse um dos dez mandamentos. A atitude dos puritanos foi um exemplo desse mal, afinal eles festejaram e agradeceram a seu deus o extermínio de todo um povo. A esses peregrinos, pelo que conta a história, não deve ter ocorrido que esse povo dizimado era composto por pessoas, por seres vivos capazes de sofrer, não parece ter ocorrido a eles que certamente havia crianças inocentes entre eles, talvez pais e mães de família amorosos e que nunca fizeram mal a ninguém. Não ocorreu a eles que agradecer a deus ou a quem quer que seja por ter feito um mal tão grande não parece uma atitude nem sequer minimamente decente. E, seguramente, um mal de tal dimensão não parece condizente com o que seria, ou deveria ser, a prática de um deus todo bondade, caso esse deus todo bondade existisse. Alguém pode argumentar que o mal feito a alguém pode ser um bem feito a outro e pode ser também, justamente, algo digno de merecer gratidão; um exemplo disso pode ser um tiro dado por um policial em um bandido por legitima defesa num tiroteio. Outro exemplo pode ser um tiro dado por um policial (não necessariamente o mesmo) momentos antes de esse bandido matar uma ou mais pessoas em um assalto. No primeiro caso o policial tem toda a razão para se sentir aliviado e até feliz, no segundo caso os dois, tanto o policial quanto a vítima (ou as vítimas) salva por ele têm toda a razão para se sentirem felizes. Qualquer pessoa que foi salva em situações como essa terá toda a razão e todos os motivos para sesentir grata ao policial. E certamente será grata a deus se for religiosa – uma gratidão egoísta e

hipócrita, na minha opinião, porque está agradecendo ao deus cuja “bondade” e “justiça” a salvou mas não salva centenas de outros na mesma situação. Mas, enfim, os teístas sempre agradecem em casos assim. De qualquer forma, nos dois casos o bandido sofreu um dano pelo qual não foi compensado por um bem maior. O argumento e os exemplos são perfeitos! Porém, nesses dois casos temos um imperativo mais forte e determinante que supera a necessidade de não praticar o mal: no primeiro caso é o instinto de sobrevivência, no segundo é a necessidade de evitar um mal iminente aparentemente bem maior. Quando defino o mal como tudo aquilo que causa ou é um dano para um ser senciente, estou falando de um ser senciente inocente de, nesse caso e nessa situação, estar causando ele mesmo, algum tipo de mal a um outro ser senciente. Não coloco a palavra “inocente” logo depois de “senciente” no próprio enunciado da definição porque essa palavra daria margem a argumentos que levariam à justificação de muitos males, uma vez que sempre se pode argumentar que ninguém, ou quase ninguém, é completamente inocente. Se, como foi mostrado acima, até mesmo em pretensas vidas passadas às vezes as pessoas comuns buscam culpa para justificar o sofrimento injustificável, o que não fariam os genocidas com um “presente” desses? Peter Singer deixa claro em seu livro que uma ética centrada no ser senciente não deixa de apresentar dilemas extremamente complexos em algumas situações e circunstâncias específicas; mas para esses casos existe a democracia, existem as leis, existem os tribunais e existe – talvez menos confiável mas ainda assim um recurso muitas vezes válido – o bom senso. Há alguns casos em que se pode aplicar a definição do mal que leva em conta o ser senciente que certamente não receberão o mesmo apoio e a concordância quase unânime que a definição do assassinato e tortura de pessoas como sendo um mal costuma receber. Para a maioria das pessoas parece incompreensível e totalmente insano uma pessoa gostar de matar, é quase certo que a imensa maioria das pessoas concordaria que o prazer de matar é um mal, ficamos chocados com os assassinos em série que vemos nos noticiários, ou mesmo nos filmes. A grande maioria das pessoas, se perguntadas, certamente afirmaria com toda a veemência e com toda a convicção que o prazer de matar é um mal e que uma

pessoa capaz de sentir esse tipo de prazer é um louco insano, e, se forem religiosas, essas pessoas afirmarão ainda que o prazer em matar é um terrível pecado. No entanto muitas dessas mesmas pessoas definem a caça e a pesca como esportes; e muitas delas acreditam que criar pássaros em gaiolas é um hábito “inocente”, um “prazer” que as pessoas se dão. Quando abrem ou frequentam uma das muitas lojas que ostentam subtítulos como “artigos para caça e pesca” ou “casa de aves” que vendem e compram como “material esportivo” as armas, os anzóis e arpões e como “material para seu hobby ou negócio” as gaiolas e os próprios animais. Mesmo os mais religiosos, que se afirmam defensores convictos do primeiro mandamento “não matar” não percebem nenhuma incoerência na prática do seu prazer, do seu hobby, do seu negócio. Eles simplesmente não levam em conta que a caça e a pesca são atividades que matam, não ocorre a eles pensar que uma gaiola também pode ser vista como um instrumento de tortura. Fazem questão de não perceber que estão matando seres sencientes ou matando a liberdade que é a essência daquele ser vivo. E fazem isso não por necessidade de sobrevivência, mas por PRAZER! Dentro dessa concepção de mal, que respeita todo ser senciente e não apenas o ser humano, a caça é um mal, a pesca é um mal, criar pássaros em gaiola é um mal. Isso sem falar das cobaias de laboratório, das brigas de galo, das touradas e de outras maneiras ainda mais sofisticadas que o ser humano usa para se divertir ou ter lucro a custa dos nossos companheiros de jornada. É claro que não tenho como pôr objeção à prática da caça e da pesca para subsistência. A natureza é assim e somos parte – uma parte privilegiada – da cadeia alimentar; em diversos casos, em diversas situações, em diversos lugares pessoas precisam caçar e pescar para sobreviver. MAS SENTIR PRAZER NISSO? Para mim esse prazer é totalmente incompreensível. E o mais terrível, na minha opinião, é que sou minoria. Os animais, até prova em contrário, são seres sencientes que quando sofrem o dano não têm nem a culpa que justificou a morte do bandido nos exemplos acima, nem a condição e capacidade de serem consultados e concordarem em participar desses “esportes”, e certamente se pudessem opinar não concordariam.

Apesar de sabermos que, dentro de determinadas circunstâncias, o ato de matar é uma necessidade de sobrevivência, o prazer de matar que está presente na caça, na pesca e na tortura (gaiola), quando consideradas como esporte ou passatempo, será certamente um mal porque o caçador, o pescador ou o criador está causando dano a um ser senciente com o fim apenas em seu próprio prazer (doentio). Não há o atenuante da necessidade de sobrevivência, da legítima defesa, ou da necessidade de salvar a vida de um inocente. É maldade pura. E o curioso é que conheci muitas dessas pessoas que gostam de caçar, de pescar ou de prender pássaros em gaiolas e elas não eram pessoas más. Não consigo entender como é que conseguem, sendo boas, praticar o mal e não se darem conta disso. Ainda quanto a isso fico me perguntando como é que as pessoas podem pensar na caça e na pesca como uma necessidade e, portanto, como um bem quando acreditam que existe um deus criador onipotente e todo bondade. Eu não entendo isso porque para mim se existisse um deus que realmente fosse bom, ele certamente não criaria seres que só podem sobreviver à custa da morte de outros seres. Como imperativo natural, a caça de subsistência faz todo sentido, como necessidade da criação de um deus todo poder e todo bondade ela simplesmente me parece um absurdo. Em outras palavras, sem deus eu posso aceitar a necessidade de matar para viver como característica de uma natureza amoral que contém o equilíbrio entrevida e morte como sua essência; mas, com deus, essa necessidade de equilíbrio passa a ser imoral, teria que ser uma criação voluntária e, portanto, uma maldade planejada. No caso de deus existir, a necessidade de matar para sobreviver seria obrigatoriamente algo desprezível que simplesmente não pode ter partido de um ser todo poder e todo bondade. Novamente, aceitar a existência de deus nessas circunstâncias é como aceitar a existência de um círculo triangular. Impossível! Preciso esclarecer ainda que, dentro da minha definição de mal, chamo de dano a todo e qualquer prejuízo, sofrimento, ou dor. Esse dano pode ser físico ou mental, pode ser muito ou pouco duradouro, pode ser muito ou pouco intenso, pode ser muitooupoucolesivo. Enfim, desdeuma mágoa passageira até um assassinatosob tortura, tudooquepossa ser desagradável para o ser senciente por ele atingido, será um mal.

E não nos esqueçamos de que o ato de maldade pode até mesmo ser praticado em um terceiro corpo e não propriamente no corpo do ser senciente que sofrerá com ele. Veja, por exemplo, o caso de um incêndio criminoso; o corpo atingido foi outro e nem sequer foi o de um ser senciente, mas o ato foi um mal porque representa um dano para o ser senciente que é o proprietário do imóvel. Um outro exemplo, este um tanto polêmico, pode ser o de deixar morrer alguém que está em estado vegetativo e, portanto, talvez não possa ser tido como um ser senciente. Se a pessoa não manifestou claramente, antes de estar impossibilitada, o desejo de que se fizesse a eutanásia e se tem um familiar que sofrerá com sua morte caso ela seja permitida, a eutanásia será um mal. Por conta desse último exemplo devo dizer que concordo muito com Peter Singer quando ele expressa as opiniões pelas quais foi tão demonizado. Em princípio, como ele, não sou contra eutanásia ou o aborto. Penso que há casos – e muitos – em que ambos são perfeitamente aceitáveis e até mesmo eticamente obrigatórios. Acredito que, no caso da eutanásia, a opinião e o sentimento do próprio paciente ou, no caso de o paciente não poder se expressar, dos familiares, é o único ponto a ser levado em conta quando não há esperança de cura ou recuperação. Na minha visão advogados ou promotores, políticos ou líderes religiosos, e até mesmo médicos simplesmente não têm o direito de ter suas opiniões consideradas acima da opinião e da vontade do próprio paciente ou das pessoas que o conhecem e o amam. Se o paciente quiser continuar a viver ou, na falta de possibilidade de consultálo, se seus familiares quiserem que ele continue a viver, NINGUÉM deve ter o direito de fazer a eutanásia, e se alguém o fizer será assassinato. Mas, se o paciente ou, na falta de possibilidade de consultá-lo, aqueles que o amam, decidirem que a eutanásia é o melhor caminho, então NINGUÉM tem o direito de impedir que ela seja praticada. Eu mesma gostaria que alguém fizesse a caridade de desligar os aparelhos caso um dia me encontre em estado vegetativo sem esperança de cura, e conheço muitas pessoas que pensam como eu. Não consigo imaginar por que a opinião de alguém a respeito da MINHA vida – por mais “em nome de deus” que seja – pode ter mais importância legal do que a minha própria opinião.

No caso do aborto, o sentimento e o desejo da própria mulher devem ser observados e respeitados acima de quaisquer outros desejos ou opiniões e acima da “vida” do embrião. Antes dos três meses de gestação, o único ser senciente diretamente envolvido no processo de gravidez é a mulher, o embrião não tem sistema nervoso, não tem cérebro, não tem ainda capacidade de sentir dor ou prazer, é um aglomerado de células com o potencial de tornar-se um ser senciente, mas NÃO É um ser senciente. Em contrapartida a mulher, esta sim é um ser senciente completo, e ela é o ser senciente sobre o qual recairá o dano tanto de uma gravidez interrompida sem seu consentimento quanto de uma gravidez levada adiante sem o seu consentimento. Ela é o único ser senciente cuja opinião deve ser acatada. Advogados, promotores, políticos, líderes religiosos e médicos deveriam ser honestos, deveriam ser éticos e saber reconhecer esse fato não interferindo em nenhuma gravidez a não ser para evitar que alguém tente impedir que a vontade da mulher seja respeitada. Isso é ética para mim, isso é bondade. O contrário disso, por mais “em nome de deus” que seja, é o mal. VII Quanto aos fenômenos da natureza, dentro do meu conceito, eles também podem ser um mal, isso porque a enchente que causa mortes é um mal para os seres sencientes atingidos por ela, e o mesmo se pode dizer de todo e qualquer fenômeno natural que, vez ou outra, se torna catástrofe. Tais fenômenos não são conscientes, não têm intenção, mas são capazes de trazer e de ser um mal, e muitas vezes um mal imenso. Essas catástrofes naturais com muita frequência costumam causar danos a um número muito grande de seres sencientes, animais e filhotes são mortos, ninhos e tocas são destruídos, pessoas de todas as idades são feridas, desabrigadas e mortas. Os sobreviventes e seus ferimentos e perdas olham para o vazio, amigos e familiares que moram em lugares que não foram atingidos são vítimas impotentes que choram seus entes queridos. Não entendo como alguém pode pensar as catástrofes naturais como algo que nãopossa ser definido como mal; como alguns dos mais terríveis males que atingem toda espécie de vida do planeta. Atente para o detalhe de que sempre relaciono entre as vítimas das catástrofes

naturais não só os homens e suas habitações, mas também os animais e suas habitações; a gente tem mania de esquecer em nossos argumentos – e os teístas sempre esquecem nos deles quando nos culpam pelos males que sofremos – que as catástrofes naturais não matam e prejudicam apenas os seres humanos. Quando um teísta mais radical diz que a enchente acontecida no ano tal e em tal lugar foi na verdade um castigo de deus para o povo daquele lugar porque eles eram adeptos de uma religião diferente da do teísta insensato, ele, esse teísta desavisado para dizer o mínimo, está esquecendo que se o deus dele, num desejo de vingança que qualquer pessoa de moral minimamente sadia consideraria injusto, resolveu castigar homens pela sua religião “errada”; ele não teria justificativa – nem mesmo uma esdrúxula como a tal religião errada – para incluir nessa destruição também os animais que habitavam o lugar. E as catástrofes naturais, mesmo sendo inconscientes e, portanto, não responsáveis pelos horrores que causam, ainda assim conseguem ser eticamente superiores a deus. O terremoto, por exemplo, mata igualmente o pobre e o rico, o bom e o ruim, o velho e a criança, o homem e a mulher. Deus, ao contrário, é muito seletivo. Basta ler os jornais no dia seguinte a uma catástrofe e ver as entrevistas e depoimentos das pessoas que sobreviveram e afirmam que foram salvas por ele para concluir que ele sim, tem critério, escolhe alguns poucos privilegiados e salva apenas aqueles enquanto permite que os outros morram. Agora, que raio de critério “justo” é esse que faz com que deus salve um crente bajulador e deixe morrer dezenas de crianças inocentes eu nunca vou entender. O furacão, o terremoto, a chuva torrencial, o tsunami, o raio, a tempestade marinha, o frio e o calor não são maus nem bons, certamente, mas deus, se um deus existe, tem que ser obrigatoriamente mau por ter criado um mundo onde esses fenômenos existem e se tornam catástrofes. E mais, os seres humanos que agradecem a deus ou que atribuem a deus a responsabilidade por ter conseguido sobreviver a uma dessas catástrofes naturais são maus, ou estão sendo maus, porque não se dão conta – e não se dão conta porque não se deram ao trabalho de pensar – de que estão agradecendo também e consequentemente, pela morte dos que não conseguiram escapar e pela dor dos que perderam seus entes queridos nessa calamidade. A minha pergunta seria: Quem você pensa que é para merecer mais do que

qualquer um dos que morreram e dos que sofrem pela perda do seu ente querido? Duvido que esse crente bajulador será capaz de responder a essa pergunta simples de maneira a melhorar um pouco que seja a imagem de sádico injusto e imoral que ficou de seu deus; e dele mesmo por tabela. Muita gente diz que é apenas uma reação normal de alívio; que as pessoas que dizem essas coisas não estão de forma alguma agradecendo pela desgraça alheia, alguns dizem até que esse ”graças a deus” é apenas uma expressão e que nem sequer significa mesmo o que parece significar. Que seja, que digam e que pensem dessa forma, mas o fato é que essas explicações não eximem os “agradecidos” da culpa de não ter se dado ao trabalho de ao menos olhar à sua volta com um mínimo de sensibilidade, o suficiente para sentir vergonha de sequer pensar em dizer um absurdo desses. E certamente não exime deus de, caso existisse, ter possibilitado essa catástrofe, ter permitido que tantos morressem ou sofressem e ter salvado logo um ser tão insensível e incapaz de pensar como esse que não tem pejo de pronunciar frases infelizes desse tipo; muitas vezes pela televisão em rede nacional e de novo e sempre que pode até anos depois da tragédia, mostrando que não foi apenas “uma reação normal de alívio”. Desculpem, desculpem, desculpem! Sei que estou sendo muito dura, sei que estou me deixando levar por uma revolta com a qual a grande maioria das pessoas não concorda e que até mesmo pode ofender alguém, por isso peço desculpas e peço desculpas novamente. Mas o fato é que fico mesmo revoltada quando vejo ou leio essas frases, a verdade é que não entendo por que as pessoas não se pronunciam contra esse hábito, não consigo perceber a tolerância das pessoas, que não falam nada, que não fazem nada para mostrar para aqueles egoístas insensatos que seus pronunciamentos são inadequados e até mesmo ofensivos. Daí que sinto raiva da pessoa que disse isso, sinto raiva das pessoas que ouviram e não disseram nada e sentiria muita raiva de deus, se acreditasse nele, por permitir que as pessoas se comportem dessa forma. Para que não se diga que não compreendo esse “Graças a deus” dito por impulso vou contar uma historinha real: Quando meu filho era pequeno, morei em uma casa de fundos e a mulher que morava na frente tinha um neto com o mesmo nome do meu filho e quase da mesma idade. Minha mãe veio me visitar um dia e

não me encontrou, falou então com a minha vizinha de frente perguntando se estava tudo bem, a mulher respondeu que sim, mas que o Daniel estava no hospital; minha mãe se desesperou, fez (provavelmente) aquela “cara de avó que recebe má notícia” e a vizinha logo tratou de esclarecer que falava do Daniel dela, não do Daniel da minha mãe. Então, num repente impensado e tomada pelo alívio, minha mãe disse “Graças a deus!”, mas imediatamente percebeu a “gafe” que tinha cometido e pediu mil desculpas à minha vizinha que a desculpou imediatamente dizendo que compreendia e que provavelmente ela diria o mesmo se estivesse no lugar da minha mãe. Minha mãe sempre conta essa história, e eu certamente a ouvi vezes suficientes para perceber que, apesar de toda sua religiosidade, ela teve e tem total consciência de que esse “Graças a deus” não foi ético, foi apenas impensado. Tenho certeza de que ela colocou esse episódio naquela lista de “quantas vezes falei quando devia ter calado a boca” que todos nós temos, afinal, quem nunca “pisou na bola” alguma vez na vida? E eu compreendo perfeitamente esse “Graças a deus” impensado e impulsivo da minha mãe, assim como minha vizinha compreendeu. Mas, depois de ter tido tempo para pensar, às vezes semanas, ou até anos depois do fato; depois de saber quantas vítimas aquela catástrofe fez, eu decididamente não acho desculpável que alguém venha com esse “Graças a deus” em depoimento emocionado ao repórter que cobriu a notícia ou que conte esse episódio “milagroso” dizendo coisas como “Eu tenho prova da existência de deus, ele me salvou” omitindo, propositadamente o que deveria ser o complemento dessa frase: “... enquanto deixou que outras X pessoas morressem”. Isso é desonesto! Por mais que as explicações dadas pelos geólogos sobre o movimento das placas tectônicas, as diferenças de temperatura ou a pressão interna da Terra estejam corretas, por mais explicações geológicas, físicas, climáticas, termodinâmicas ou qualquer outro tipo de explicação científica que os cientistas de todas as áreas do conhecimento possam dar, e por mais que com essas explicações eles possam mostrar e provar que os fenômenos naturais são necessários e até vitais para o planeta que habitamos; ainda assim, não há como deixar de julgar o terremoto, as enchentes, as erupções vulcânicas e todas as outras catástrofes naturais como um mal porque essas catástrofes quando acontecem ferem, desabrigam e matam pessoas e animais. Os cientistas podem mostrar como funcionam, podem explicar porque

acontecem podem explicar até mesmo a necessidade de sua existência, mas não podem tirar delas o caráter de mal quando arrasam vidas. E eu, vendo essas explicações e essas provas, compreendo essa necessidade de existência dos fenômenos naturais da mesma forma que compreendo a cadeia alimentar; são parte da natureza, a natureza é amoral e não posso julgá-la pelos meus padrões, aceito isso e até admiro essas “soluções” naturais para que se mantenham os sistemas geológico, os ciclos da água, a distribuição de temperatura, etc. Só não posso aceitar isso quando colocam deus no jogo. Os teístas que usam o argumento de que nós, os seres humanos, somos responsáveis pelos males do mundo – inclusive o chamado mal natural – não estão totalmente errados. Nós podemos ser acusados, até com muita justiça, de sermos responsáveis pela maior gravidade e maior frequência de algumas catástrofes naturais, porque sim, nós poluímos ar e a água, nós desmatamos, nós não respeitamos a natureza. Sim! Nós somos culpados pelo aumento da quantidade de vítimas das enchentes por construirmos cidades às margens dos rios, nós somos responsáveis pelo aumento de vítimas de deslizamentos de terra porque construímos casas em encostas. Os teístas ecológicos têm toda a razão, com certeza somos responsáveis pela maior gravidade dos estragos causados pelas catástrofes naturais. Somos sim! Mas, apesar disso, não há como afirmar que os homens são responsáveis pela existência da violência nos fenômenos da natureza. Não os criamos, não os produzimos, não determinamos sua existência, não temos poder para movimentar placas tectônicas, massas de ar ou nuvens; nunca tivemos. Esses fenômenos existem e por vezes se mostram violentos desde muito antes da existência dos seres humanos no planeta. Até mesmo para acusar o diabo, embora alguns por vezes tenham tentado fazêlo, os teístas teriam dificuldades lógicas bastante sérias; afinal há que se atentar para o fato de que as catástrofes naturais são causadas pela Natureza, que, no dizer dos teístas, é a perfeita criação incontestável de deus. E no dizer de alguns a natureza é o próprio deus. Se existe esse deus e se ele é o Criador todo poderoso, então o lógico é que ele tenha criado o homem e dado a ele essa capacidade de sentir prazer em matar, essa prepotência que o torna capaz de agir apenas em seu próprio benefício com total desprezo pela natureza, pelos animais e mesmo pelos seus iguais.

Se deus é o criador único e onipotente, o lógico é que ele tenha criado a terra e dado a ela essa condição geológica que a faria ser – ao mesmo tempo que uma mantenedora – uma destruidora de vidas, uma causadora de sofrimentos, uma agente do mal. Se existe deus, se deus é tão poderoso quanto dizem, então ele é responsável pela existência do mal em todos os seus aspectos e manifestações, e é o responsável também pela permanência e manutenção de todo o mal que existiu, que existe e que existirá. Se existe deus, ele é o próprio mal. VIII Diante do terremoto de Lisboa podemos ouvir teólogos ortodoxos e fundamentalistas sem noção de ética acusando a sociedade lisboeta de estar mergulhada em pecado, podemos ouvir teólogos ortodoxos e fundamentalistas sem noção de ética rogarem a essas desesperadas vítimas, mesmo que nenhuma delas tenha jamais matado qualquer pessoa, que se lembrem dos milhares de índios e africanos que seus ancestrais massacraram, novamente numa demonstração da “justiça” do deus que castiga no filho os pecados do pai. Diante do horror de Auschwitz podemos ouvir um antissemita mais radical e ignorante como todos os radicais dizendo que as vítimas eram os assassinos de Cristo, podemos ouvir cristãos cheios de bondade afirmando que a culpa não é de deus e sim da maldade do homem – que é sempre culpado por tudo, mesmo quando é vítima – e podemos ouvir até, coisa comum atualmente, os chamados revisionistas que fecham os olhos para todas as provas materiais e conseguem se fazer de “paladinos da verdade” negando que tudo aquilo tenha realmente acontecido. Mas diante da existência da cadeia alimentar não ouvimos nada. Qualquer biólogo diria que a cadeia alimentar é um ciclo necessário para manter o equilíbrio biológico do planeta e não há quem possa discordar desse argumento e dessa verdade tantas vezes comprovada na prática. Todos sabem que qualquer forma de vida existente na terra precisa extrair energia de algum lugar para crescer, se multiplicar, mover-se; enfim, viver; e a grande maioria dos seres vivos do planeta tira a energia necessária para a própria vida da vida de outros seres vivos. Muitos seres vivos se reproduzem em um ritmo e em tal númeroque senão tivessem predadores povoariam a terra de tal maneira que ameaçariam a

existência de outras espécies. Os exemplos que me ocorrem agora são os gafanhotos e os ratos, mas certamente não são os únicos e acho que cada um de nós, se parar um pouquinho pra pensar consegue se lembrar de mais alguns, e se pesquisar no google você encontrará várias páginas falando das pragas urbanas. Pragas urbanas são animais que por estarem em ambiente diferente de seu habitat natural, estão longe também de seus predadores, então o que acontece é que seu número se torna excessivo e prejudicial ao ambiente em que vivem. Há também outras pragas, como os animais que deixaram de ter predador porque esses foram exterminados ou reduzidos a números insignificantes, ou ainda expulsos daquele habitat. Ou seja, os animais “precisam” dos predadores para que não se tornem pragas. Essa “convivência pacífica e necessária” entre predador e presa é o que os biólogos chamam de Cadeia Alimentar. A existência dos predadores controla a quantidade de indivíduos da espécie a que pertencem as suas presas e, ao mesmo tempo, a quantidade de presas disponíveis controla a quantidade de predadores, o que garante a sobrevivência das duas espécies. Em nenhum momento, no estudo, na definição, na defesa da beleza desse equilíbrio natural há qualquer menção e, aparentemente não há qualquer pensamento ou sentimento, que leve em conta o indivíduo, seja ele o predador ou a presa. E eu entendo que não haja porque isso tornaria mais difícil tanto compreender esse equilíbrio necessário, quanto ver os estudos e métodos de controle como são; e mais difícil ainda fazer tais estudos e aplicar tais métodos. Falando em natureza, em planeta Terra, em uma realidade preexistente, a cadeia alimentar faz todo sentido e parece ser tão organizada e necessária que não fica difícil compreender por que os teístas chegam a ver nisso um tipo de planejamento. Não fica difícil entender também por que mesmo os cientistas não religiosos, e até muitos dos ateus, defendam convictamente a beleza desse equilíbrio. É comum encontrar o ateu culto que afirmaria, se perguntado “Não acredito em deus, mas respeito e amo a natureza”, e isso faz todo sentido! Porém, se considerarmos a existência de um deus onipotente, onisciente, onipresente, suprema expressão da bondade e da justiça e criador do mundo, do universo e da natureza, será que não teremos que olhar novamente e com outros

olhos a cadeia alimentar?36 Na abertura do seu livro Quebrando o encanto, o filósofo Daniel C. Dennett (2006), descreve como o parasita Dicrocelium dentriticum domina o cérebro de uma formiga e a leva a expor-se com o objetivo de ser devorada juntamente com o capim sobre o qual sobe sempre cada vez mais alto. Isso acontece para que ela possa “levar” o parasita que a dominou para dentro do estômago de uma vaca ou carneiro. Ela será, claro, devorada e, consequentemente, morta para que o parasita que a dominou consiga chegar ao seu habitat e lá se desenvolver e, muito provavelmente, fazer adoecer o herbívoro que devorou aquela formiga infectada. Se puder parar um pouco e olhar essa cena não como um elo importante dessa “maravilha” que é a Cadeia Alimentar, mas como a vida de três indivíduos, será que nossa opinião sobre a maravilha da natureza consegue permanecer intacta? Há um indivíduo, a formiga, que comete suicídio não porque decidiu que não deseja viver, mas porque perdeu a capacidade de agir por conta própria. Há um indivíduo que precisa viver e que provavelmente não tem, nem tem como ter, conhecimento de que seu “transporte para casa” é um ser vivo cuja vida se foi por sua causa. Há, por último, um indivíduo que nem sequer se alimenta de animais, mas que involuntariamente devorou esse ser vivo involuntariamente suicida e que em consequência disso pode vir a morrer também, talvez sem que complete o ciclo de sua vida. Onde está a beleza disso? 36 John Stuart Mil: “Se uma décima parte do esforço feito para descobrir sinais de um deus benevolente todo-poderoso tivesse sido empregada para reunir provas para sujar o caráter do criador, o que não teria sido encontrado no reino animal? Ele é dividido em devoradores e devorados, a maioria das criaturas dotada de instrumentos para atormentar suas presas”. Citado em: HITCHENS, C. Deus não é grande 2006, p. 77

Vespas parasitas põem seus ovos em lagartas e suas larvas crescem e se alimentam do corpo da lagarta que vai sendo devorada de dentro para fora até que, ao atingirem o desenvolvimento adequado, as larvas eclodem matando finalmente sua enfraquecida hospedeira.37 Darwin teria encontrado dificuldades para acreditar que um Deus bom e onipotente pudesse, propositalmente, criar tais vespas: “Não posso convencer-me”, escreveu Darwin, “de que um Deus benéfico e onipotente tenha criado propositalmente as Ichneumonidae com a intenção expressa de que estas buscassem o seu alimento no interior do corpo vivo das lagartas”38

No Discovery Chanel, no Net Geo e até na Globo é comum que passem programas que tratam da vida dos animais; alguns desses programas têm nomes como “predadores”, ou algo do tipo. Qualquer pessoa que já tenha alguma vez se interessado pela vida dos animais ou que tenha visto um desses programas certamente viu animais caçando, agarrando suas presas e devorando-as; é comum inclusive, principalmente quando se trata dos grandes predadores, que a presa comece a ser devorada enquanto ainda se debate. Sei que muita gente consegue ver isso de forma muito natural e até aprecia os programas encarando tudo como “Maravilhas da Natureza”. Eu não consigo, a visão dessas mortes me provoca um mal estar físico. Mas isso é um 37 Esse horror pode ser visto em cores no filme da National Geografic. (Disponível em: http://www.agrega.tv/?p=5214. Acesso: 04 Abr. 2011) 38 Disponível em: DAWKINS, R. O rio que saía do Éden. (http://pt.pdfcoke.com/ doc/98099788/4/AFUNCAO-DE-UTILIDADE-DE-DEUS – Capítulo 4, página 52 – Acesso em: 10 Abr. 2013)

problema meu; sensibilidade em excesso. Sei lá. Consigo compreender a cadeia alimentar como necessária; consigo perceber a necessidade de que existam predadores e presas para que haja equilíbrio na natureza; consigo até mesmo perceber – mesmo que não consiga ficar olhando – a beleza desse equilíbrio que parece tão perfeito. Juro que consigo! Mas só posso perceber tudo isso sem considerar deus como possibilidade. Diante da hipótese da existência de deus tudo o que se pode chamar de cadeia alimentar ou de equilíbrio da natureza passa a me parecer algo tão terrível que esse deus ultrapassa em muito qualquer ideia que eu possa fazer do que seja um sádico psicopata dos mais terríveis. Se pensar que todas as garras, dentes e bicos foram criados por deus com o objetivo de proporcionar aos seus portadores a possibilidade de rasgar a carne de animais apavorados e indefesos e que os músculos, os venenos e toda peçonha foram criados por deus para proporcionar aos seus portadores todas as facilidades para matar e devorar, esse deus fica parecendo infinitamente mais terrível do que qualquer assassino maníaco, e o Holocausto fica parecendo um evento histórico até muito suave. Se criou a necessidade no predador de atacar e devorar suas vítimas, se criou na vítima o medo e a dor, se criou e mantém, desde as primeiras vidas primitivas e

unicelulares que habitavam as águas mornas da pré-história do planeta, esse equilíbrio macabro, que tipo de “deus de bondade” pode ser esse seu, senhor teísta? Alguma vez já tentou se colocar na pele de alguma vítima pequena e apavorada prestes a ser devorada antes de dizer que a Cadeia Alimentar é o equilíbrio perfeito que prova a beleza da natureza e a perfeição de deus, senhor teísta? Acho que já sei qual seria sua resposta: “Mas tem que haver predadores epresas, você gostaria quealgumas espécies, como os insetos, porexemplo, semultiplicassem livremente? Nãosabe que eles encheriam a terra e tornariam impossível outra vida no planeta?” Pense, senhor teísta, pense um pouco antes de dizer isso com tanta convicção. Seu deus não é onipotente? A maioria dos vegetais não devora outros seres vivos para sobreviver. Será que esse deus que se mostra tão criativo na extensa variedade dos meios e artifícios de morte e tortura com que dotou os animais esgotou nas plantas sua capacidade de criar seres que não precisam matar para sobreviver? Sua capacidade criativa não é então infinita como seu poder? Não consigo entender, não tenho como aceitar que um deus todo poderoso e bondoso criaria um mundo do nada e nesse mundo colocaria seres que precisam matar para viver; essa hipótese me soa tão absurda que nem tenho palavras para exprimir já que a palavra “paradoxo” não tem embutido no seu significado o nojo, o asco, o horror que essa ideia me provoca. Para mim um deus que criasse o mundo e incluísse a cadeia alimentar nessa criação seria mau, muito mau, tremendamente mau e doentiamente sádico; seria mau em um nível muitas vezes mais alto do que todas as possibilidades de imagens e descrições do diabo que eu possa me lembrar, imaginar ou ter visto. Será que esse deus onipotente, caso existisse mesmo, não teria poder para criar um mundo onde os seres vivos pudessem se reproduzir em número menor e sobreviver sem que uns tivessem que servir de alimento a outros? Para que serve sua onipotência se não pode sequer evitar o maior horror de todos os horrores que existem no planeta? Lembrando que as plantas também são seres vivos, senhor teísta, será que não podemos concluir que seu deus poderia criar um mundo em que nem mesmo elas tivessem que servir de alimento? Um deus que existisse, como você afirma que o

seu existe, e que fosse REALMENTE todo poderoso e todo bondade, como você diz sempre que seu deus é, precisaria mesmo criar a Cadeia Alimentar como única opção? Pense, senhor teísta, coloque-se no lugar dos bilhões de animais e pessoas que morreram, morrem e morrerão para que outros bilhões de animais e pessoas vivessem e vivam. E para que vivam, muitas vezes, apenas o tempo necessário para que, logo depois, encontrem outros predadores e sejam também mortos. Em existindo um deus todo poderoso, é possível mesmo dizer e acreditar que é necessário que exista a Cadeia Alimentar? Como? Nenhum argumento teísta que se esforce por apontar o ser humano como responsável pela existência do mal conseguiria fazer isso se repensasse a existência da cadeia alimentar, se repensasse a existência do parasita que devora e mata sob tortura não somente o homem mas também os animais, e não somente desde que começamos a caminhar sobre esse chão e a conspurcá-lo com nossos pecados, mas também antes de que existíssemos como espécie. Um deus que consiga sequer imaginar a possibilidade de criar um mundo com uma base de equilíbrio biológico tão terrível quanto a cadeia alimentar se torna um deus muito difícil de ser defendido até mesmo por novos adeptos de Leibniz. O melhor dos mundos possíveis, diante da visão realista do que é a cadeia alimentar, pode ser visto por qualquer um que defina o mal de forma não egoísta como um mundo tão terrível que certamente não teria sido criado por um deus de bondade e de justiça.39 39 [...] a teodiceia é tão obviamente sofista que deveria ser negada. Assim, Schopenhauer, ironicamente, apresentava um argumento de que este é o pior dos

Um deus bom – mesmo que fosse limitado como o deus de Leibniz – se não tivesse o poder de criar um mundo melhor do que esse mundo em que vivemos, certamente teria optado por não criar mundo nenhum. IX Livre-arbítrio significa “juízo livre”, pode ser definido como a capacidade de escolha entre o bem e o mal feita apenas pela vontade humana. O conceito de livre-arbítrio é uma crença religiosa e também uma proposta filosófica, ambas defendem que o ser humano tem poder e liberdade para decidir suas ações

segundo seu próprio desejo. Pessoas de todas as religiões e fés e muitos filósofos teístas afirmam que o mal existe e que deus não o evita por causa do livre-arbítrio que ele – em sua suprema bondade (?) – nos teria dado como um prêmio “para que não sejamos robozinhos”. Mas basta olhar à nossa volta para concluirmos que o livre-arbítrio é um benefício que só pode ser usufruído por aquele que pratica o mal e, claro, se for um ser humano. Sem contar que a própria existência do livre-arbítrio é muito questionável. Uma pessoa quando é ameaçada com uma arma não tem o livre arbítrio de se desviar da bala que pode atingi-la caso o agressor dispare; uma criança quando é estuprada não tem o livre-arbítrio de se negar ao estuprador; um bebê quando é espancado não tem o livre-arbítrio de se negar ao seu algoz; uma foca filhote, velha, doente ou ferida não tem livre-arbítrio para fugir do predador; e esse predador, se for uma orca, não tem o livre-arbítrio de evitar a necessidade de caçar para se mundos possíveis. Pois um mundo levemente pior deixaria de existir. (NEIMAN, S. O Mal no Pensamento Moderno 2003, p. 220)

alimentar; uma criança quandoacometida por uma doença não tem o livrearbítrio de se negar ao vírus, bactéria ou parasita que a esteja matando; e este vírus, essa bactéria, esse parasita, por sua vez, não têm o livre-arbítrio de negar a sua natureza de agente do mal. E os exemplos não param nunca. Diante disso, parece que a ausência do livre-arbítrio seria insuficiente para impedir a existência do mal, porque sobram ainda muitos agentes, e parece também que dizer que o mal existe APENAS porque temos livre-arbítrio é um tipo de argumento extremamente rasteiro. Caso exista, o livre-arbítrio não convence muito como “dádiva preciosa” porque é coisa apenas de algozes, de algozes humanos, e de algozes humanos que já tenham crescido o suficiente para serem capazes de agir – lembremos que crianças também podem ser agentes em muitos casos. À vítima só resta a dor e o espanto. Por que o criador de todo o universo daria um “benefício tão precioso” apenas aos seres humanos? Então esse deus não sabe agora e não soube nunca o quanto esses “premiados” são capazes de praticar atos de maldade? Como chamar esse

livre-arbítrio de bem se justamente aquele que sofre não tem o direito de fazer uso dele? Como algo pode ser um bem se só é um bem para quem pratica o mal? Tudo bem que, como argumentam os teístas, o ser humano capaz de usufruir de seu livre-arbítrio pode optar por não praticar o mal, mas no caso de esse ser humano capaz de usufruir de seu livre-arbítrio optar por praticar o mal, que opções a vítima tem? Eu não entendo por que os teístas valorizam tanto essa liberdade que temos quando resolvemos praticar horrores, mas que não temos para evitá-los quando somos a vítima desses horrores. O livre-arbítrio, caso existisse como a “dádiva de deus” que os teístas descrevem, seria suficiente para pôr em dúvida a bondade, a capacidade de fazer justiça e também a onisciência desse deus, mas não seria suficiente para explicar o mal. Por que é que o livre-arbítrio não começa, por exemplo – e é só um exemplo! – com deus dizendo algo do tipo “Olha, você vai nascer, não vai ser amado nem aceito, vai sofrer fome e frio, será ofendido e espancado durante toda a primeira infância; depois você vai crescer um pouquinho e passará a ser também estuprado, além de continuar passando fome e frio e continuar a ser espancado e violentado de várias formas durante toda a segunda infância e adolescência, pelos seus pais e pela sociedade. Depois, quando se tornar adulto, será revoltado e mentalmente desequilibrado, mas aí você vai passar a ter o livre-arbítrio e vai poder escolher entre duas opções muito claras: poderá dar vazão à sua revolta e ao seu desequilíbrio mental e cometer crimes, ou então poderá pensar melhor e optar por ser uma pessoa boa e honesta, crer em mim, tornarse meu servo e esperar pela recompensa. Se fizer tudo direitinho, você irá para o céu e passará a eternidade sendo feliz e me bajulando; mas se não tiver forças para superar seu trauma e para consertar seu desvio mental e por isso não fizer o que eu quero que você faça – ou seja, me adorar – então seu destino vai depender do que eu decidir; ou vai para o inferno ou será queimado na fogueira do apocalipse e voltará em definitivo para o nada. O que você escolhe? Nascer ou não nascer?” Aí o candidato a vivo poderia perguntar: “Mas, com uma primeira fase assim tão traumatizante, qual será a chance de que eu – sem me lembrar de absolutamente

nada dessa nossa conversa – consiga controlar toda essa revolta e superar esse desequilíbriomentalqueterei?”Deuscertamenteresponderia com um número extremamente baixo nesse caso específico e com números pouca coisa menos baixos em outros muitos casos não tão terríveis assim; acho que ele teria uma espécie de “tabela de possibilidades” que não precisaria consultar porque sua onisciência saberia inclusive SE essa pessoa iria ou não seguir a vida pelo caminho por ele determinado; se depois da vida estaria ou não no paraíso. Depois de ouvir a estatística – caso deus optasse por omitir o que realmente aconteceria e desse apenas os números – acho que essa pessoa escolheria voltar para o limbo; e acho que não seria só essa pessoa que abriria mão da existência, acho que muitas e muitas outras, inclusive aquelas cuja estatística não fosse assim tão desmotivadora fariam o mesmo. Agora, se deus não omitisse a informação que tem e dissesse logo “Não, você não vai conseguir superar o trauma, cometerá muitos crimes e, depois da morte, será castigado e queimado”, então, nesse caso, tenho certeza de que a pessoa não nasceria; e além dele ninguém, ninguém mesmo que fosse cometer crimes – ou pecados – que o levariam ao castigo, escolheria nascer; este seria um livrearbítrio. Mas essa conversa nunca aconteceu, e a prova disso é que estamos aqui; afinal, se ela tivesse acontecido certamente não teríamos criminosos e pecadores entre nós, e com certeza, mesmo sem contar os assassinos e torturadores, a imensa maioria de nós não estaria aqui. Outro detalhe importante é que, ainda assim, não seria um livre-arbítrio decente porque, em minha opinião, não se lembrar de ter feito tal escolha é motivo mais do que suficiente para anular a validade de tal escolha. Os teístas certamente vão argumentar com o velho chavão “Mas aí você não aprenderia nada!” eles afirmam que sofremos para aprender, para que nossas almas se tornem superiores, seja lá o que isso for, e que só através do sofrimento podemos alcançar esse aprendizado. Então responderiam que se deus dissesse o que vai acontecer não teria aprendizado e a vida não teria valor. Mas, eu pergunto, pode existir argumento mais absurdo do que esse? Qual seria o “aprendizado necessário” para quem vai voltar ao nada? Qual seria a necessidade de aprendizado que teria alguém que, se pudesse escolher, optaria

por não sair do nada? E, principalmente, que raio de deus todo-poderoso é esse que não pode ensinar sem fazer sofrer? Se esse argumento tivesse algum sentido, nenhuma das pessoas que fatalmente não terão o “merecimento” da tal “vida eterna” estaria agora entre nós. Eu não estaria aqui! Os espíritas parece que pensam um pouquinho diferente porque acham que todos têm direito ao tal aprendizado, mas aí volta a pergunta: Que porcaria de deus superpoderoso é esse que não é capaz de ensinar ninguém sem usar para isso tanto sofrimento e tanto horror? Só um sádico incompetente se encaixaria na resposta a essa pergunta. Além disso, o livre-arbítrio e a existência de deus como o definemnãosecombinamlogicamente.Temos,deacordocom os teístas, a liberdade de escolher entre duas opções: uma é o caminho “indicado” por deus através de seu livro sagrado, da interpretação que seu líder religioso faz desse livro ou até mesmo das próprias conclusões, a que esse teísta chega por si próprio e em geral acreditando que foi magicamente “orientado” por deus para pensar dessa forma. Mesmo nos muitos casos em que esse teísta pensa e age de forma ética e decente quando seu livro “sagrado” indica que ele deveria agir de outra forma; mesmo quando, por serem pessoas boas, os teístas em seu comportamento e em seus pensamentos vão contrariando tanto o livro sagrado quanto os líderes religiosos; mesmo quando as conclusões éticas e decentes a que chegam têm todo o aspecto de serem apenas e tão somente deles mesmos, esses teístas não percebem isso e atribuem sua própria bondade e decência a uma interferência de deus. Eles não conseguem perceber que seu deus não possui essas qualidades. Nesse aspecto são sim humildes demais. Mas, independente de como chegam ao “conhecimento” de qual éocaminhoindicadopor deus, os teístas afirmam, cada um sobre o seu, que este é o único caminho certo e o único que leva ao paraíso, ou – para alguns dos que acreditam em vida após a morte – é o único caminho que leva a um tipo de crescimento espiritual, digamos, mais rápido e menos sofrido. Para os teístas menos radicais existe também a possibilidade de o caminho escolhido por outros teístas de outras crenças ser igualmente capaz de levá-los ao paraíso ou ao crescimento espiritual, mas a tolerância total é muitíssimo rara, em

geral essa tolerância tem níveis. Na maioria dos casos há tolerância genuína apenas na condição de que esses caminhos sejam mais ou menos semelhantes ao seu. Por exemplo, um cristão pode admitir que outro cristão, de outra igreja ou de igreja nenhuma mas que crê em um deus parecido com o deus cristão esteja também no caminhocerto, mas émais difícil queaceitequeum muçulmano ou um ateu esteja tão certo quanto ele mesmo. A máxima condescendência que costumam ter nesses casos de “desvio” é esperar que o outro se converta. E temos a segunda opção, que é o outro caminho, chamado “do mal”. Esse – afirmam – certamente nos levará ao inferno. Muitos teístas, aparentemente decentes demais para conseguir acreditar que seu deus seja tão terrivelmente mau a ponto de criar aquele lugar pavoroso com o qual Jesus nos ameaça várias vezes na bíblia, preferem definir o inferno como sendo “apenas o sofrimento que nós mesmos procuramos”. Às vezes dizem que não entendemos a bíblia, que Jesus não nos ameaçou com “esse” inferno, lugar de fogo e caldeirões ferventes onde demônios nos espetam com tridentes, dizem que o que está na bíblia “é uma metáfora”, inferno seria o “vazio” que colocamos em nossa alma quando nos afastamos de deus. Fico achando que estão dizendo que inferno mesmo é ser ateu. De qualquer forma, por mais grata e compadecida que eu fique por essa ginástica mental que os teístas mais decentes se dão ao trabalho de fazer para excluir essa ideia terrível, o fato é que, lendo a bíblia, não parece muito crível que, seja quem for que a tenha escrito, estivesse realmente pensando em um inferno metafórico. Independente de aceitarmos o inferno como sendo “metáfora” ou como uma ameaça real para o pós vida dos rebeldes feito eu, o que temos não deixa de ser sempre os dois caminhos, únicos e opostos. Ou seguir o que deus manda e ir pelo “bom caminho” – aceitando que deus “manda” da forma que eu “sentir” que devo aceitar e sabendo que sempre haverá alguém que definirá isso também como o caminho errado – ou negar deus e ir pelo “mau caminho”. Não existe uma “saída pela direita”, não existe um “em cima do muro”, não existe uma terceira opção. Ou você escolhe ser levado ao paraíso de delícias que até hoje ninguém conseguiu descrever de forma diferente de um profundo e incurável tédio, ou escolhe ser levado para o inferno, metafórico ou condizente com aquele que foi descrito tantas vezes e com tantos detalhes. Você simplesmente não tem como escolher o que eu escolheria: Ser deixada em paz! Não ir para lugar nenhum simplesmente não é opção. Essa descrição

dualista que os teístas fazem, além de nos dar uma gama muito restrita de alternativas, está mais para chantagem e coação do que para livre escolha. Lembremos que deus seria, por definição, onisciente. Alguns teístas usam argumentos que limitam essa onisciência para tentar escapar das armadilhas lógicas que a onisciência apresenta quando se pensa a existência do mal; eles dizem que o livre-arbítrio que nos deu faz com que deus não saiba o que faremos no minuto seguinte porque temos liberdade de escolha40, mas ainda assim é onisciente. Essa limitação não fica muito convincente. Eles simplesmente ignoram o significado da palavra onisciente; esquecem que ou deus é onisciente ou não é. Se for dizer que deus é onisciente, então tem que ser ONI (= todo); se não for que se chame deus de adivinho ou de vidente, não de onisciente porque a definição dessa palavra “onisciência” torna esse argumento da limitação muito fraco. Caso seja realmente onisciente e não apenas um vidente razoavelmente bom, deus certamente saberia de 40 “Do mesmo modo que Swinburne afirma que a omnipotência de Deus se circunscreve àquilo que é logicamente possível fazer, ele também afirma que a omnisciência de Deus se limita àquilo que é logicamente possível saber. Assim, segundo este filósofo, Deus não pode saber o que é que uma pessoa fará no dia seguinte, dada a liberdade de escolha e de decisão dessa pessoa. Swinburne afirma que, embora seja omnisciente, Deus não pode saber qual a próxima decisão ou acção de uma pessoa, pois tal não é logicamente possível. Uma vez mais, poderia objectar-se que, se a omnisciência de Deus está limitada àquilo que é logicamente possível saber, então, tal como no que respeita à omnipotência, não é uma omnisciência em sentido próprio, pois quando se diz que um ser é omnisciente, diz-se que esse ser sabe e pode saber tudo. Contudo, ao invocar a liberdade de decisão e de acção das pessoas, Swinburne faz com que tenha também de se ceder neste ponto, uma vez que as pessoas não são absolutamente determinadas e só elas mesmas saberão aquilo que quererão fazer no momento seguinte. - Crítica: Revista de filosofia”. (Disponível em: http://criticanarede. com/html/fil_2sobremal.html. Acesso: 06 fev. 2011)

absolutamente tudo desde sempre; saberia inclusive de cada uma das situações de escolha com que cada ser humano vai se deparar ao longo da vida e qual escolha esse ser humano fará em cada uma dessas situações. E olha só a gente sendo “robozinhos” como os teístas afirmam que deus evitou que sejamos nos dando o livre-arbítrio! Alguns teístas afirmam que deus nos dá sempre a oportunidade de escolher, e que teria dado ao casal Adão e Eva, os primeiros a receber a “dádiva” do livrearbítrio, a oportunidade de escolher a obediência, mas o casal primordial, começando por Eva, rejeitou essa oportunidade, desobedeceu e pecou. O erro, portanto, foi deles, não dedeus. Novamente me encho de admiração pelos teístas que vejo com frequência

afirmando que a história toda de Adão e Eva é “apenas uma metáfora”. Sinto que, embora não sejam capazes de abandonar a fé de que pensam necessitar para viver, sentem que precisam de uma explicação menos terrível. Eu os admiro porque sei quesão decentes demais para aceitar que acreditam em um deus capaz de tal atrocidade. Esses teístas tão superiores ao deus que adoram, são obrigados a tanto esforço mental para manter sua fé que estou sempre me perguntando como conseguem. Acho que instintivamente eles percebem que se aceitarem culpar Adão e Eva para inocentar deus estarão dizendo que um casal que ainda não conhecia o mal porque ainda não tinha comido o fruto que dava conhecimento do bem e do mal, decidiu (como??) optar pelo mal e em consequência disso se tornou culpado não só por todos os sofrimentos do mundo – que foram e são muitos e que acontecem desde sempre e por milênios – como também pelo sofrimento e morte de Jesus, pela existência do cristianismo e por todos os horrores que foram praticados pelos cristãos “em nome de deus”. Para evitar essa armadilha, esses teístas decentes optaram por dizer que toda a história é “apenas uma metáfora” embora não consigam nunca explicar que tipo de “metáfora” seja essa; pelo menos não de uma forma que possa dar a ela qualquer aparência de legitimidade e de sentido que realmente inocente deus. Funciona apenas para eles mesmos e os que partilham de sua fé e de sua decência ética. Quando meu filho era pequeno nós tínhamos um cachorro. Meu marido ouviu ou leu em algum lugar a informação de que não se deve dar osso de frango para cachorros porque a maneira como eles quebram o osso na mastigação faz com que o animal engula farpas de ossos que se tornam pontiagudas e cortantes e então os cachorros correm o risco de terem seu estômago perfurado por essas farpas e morrerem de hemorragia interna. Logo depois de ouvir isso, meu filho foi dar restos de comida para o cachorro (era como alimentávamos os cachorros antes de as rações se tornarem comuns) e havia ossos de frango em meio a esses restos. Meu filho, que tinha uns 10 anos nessa época, antes de colocar o prato do cachorro no chão avisou: “Alf, você não deve comer os ossos de frango porque você vai quebrar eles com os dentes e eles ficarão como facas e quando você engolir eles podem te cortar e furar por dentro e você pode morrer. Por isso, cuidado: não coma os ossos de frango!”.

Então meu filho colocou o prato diante do cachorro que, como de costume, devorou vorazmente toda a comida, inclusive os ossos de frango. Olhando do cachorro para mim, ele disse abrindo os braços: “Eu avisei!”. Foi uma cena da qual rimos muito; o cachorro sempre comeu os ossos de frango e morreu de velho, mas imagine que meu filho tivesse pegado um pau e espancado o cachorro por ter desobedecido ao alerta, essa atitude teria sido, no mínimo, injusta e, nesse caso, colocar os ossos de frango diante do cachorro sabendo que ele os comeria mesmo depois do aviso e que seria castigado por isso teria sido uma atitude irracional, um comportamento sádico. Felizmente meu filho nunca foi sádico! Na minha visão, o que o deus bíblico fez com Adão e Eva foi algo muito parecido com essa atitude sádica que meu filho não teve. E para quem não crê nessa mitologia bíblica, a situação não muda muito porque, se pensarmos a respeito, é muito fácil concluir que caso as escolhas todas, desde Adão até o último homem da terra, sejam conhecidas e préprogramadas, então na verdade não existem escolhas. Não só Adão pode ser comparado ao meu cachorro na situação que narrei, mas também eu, você e todas as pessoas que existem, existiram e existirão. O único que teve escolha, no episódio que contei, foi meu filho. No caso do livre-arbítrio o único que teria escolha seria deus, que poderia ter escolhido não castigar uma escolha pré-programada, não permitir que surgisse uma situação de escolha que levasse ao mal ou então simplesmente não criar aqueles cujas escolhas levariam ao mal. A ideia do livre-arbítrio parece uma espécie de coringa que as pessoas aprenderam a tirar da manga para justificar o injustificável, para nos acusar por tudo o que há de errado e de ruim na vida e no mundo em que vivemos e para inocentar o deus que criou a vida e o mundo em que vivemos da culpa que seria só dele caso existisse. Até mesmo os teístas mais “calmos” e menos convictos ou menos fanáticos em geral puxam essa carta e a mostram com a certeza de que dessa forma encerram o assunto e ganham qualquer discussão. Mas como? Não dá para entender um deus todo bom e todo poderoso que, com a desculpa de um livre-arbítrio que ninguém pediu, se omitisse de ajudar os seres que ele mesmo criou e colocou para sofrer nesse teatro macabro também criado por ele. Que raio de deus bom

faria algo assim? Na vida cotidiana poucas, muito poucas pessoas conscientemente tomam alguma atitude em prejuízo próprio; e muitas pessoas, religiosas ou não, procuram durante a vida inteira nunca tomar atitudes que prejudiquem outras pessoas. No entanto há muitíssimas situações em que as pessoas escolhem um tal caminho na certeza de estarem escolhendo bem e fazendo o bem, mas, se o “deus dos enigmas” por um acaso achar que aquele é o caminho errado, então tudo estará perdido e a pessoa estará condenada ao inferno por toda a eternidade. Assim seria com esse deus de múltiplas faces e bondade extremamente discutível. Um exemplo mais ou menos recente foi o do médico que, cumprindo a sua promessa de lutar sempre para salvar vidas, optou por fazer o aborto de uma criança de nove anos que foi estuprada pelo padrasto, que tinha uma gravidez de extremo risco e que quase certamente não sobreviveria ao parto. Esse médico teve, como diriam os teístas, o livre-arbítrio e, na opinião da igreja católica representada por um de seus bispos, escolheu o caminho errado. O médico foi então excomungado; isso significa, de acordo com a igreja católica, que está condenado ao inferno e impedido para sempre de entrar no paraíso. O bispo em questão apenas cumpria as determinações da instituição que representa – e que dizem que representa deus – e, ainda de acordo com as leis dessa instituição, o estuprador, o ser “humano” que foi capaz de estuprar uma criança, este não só não foi e não será excomungado como ainda, caso se arrependa, poderá ir para o paraíso, sentaà mão direita de deus e ficar “apreciando”41 o sofrimento do médico, da mãe da menina e, provavelmente, da própria menina, que pecou porque aceitou fazer o aborto e pecou também porque, de acordo com a bíblia, quando foi estuprada, não gritou alto o suficiente (Dt 22:23-24). E então se conclui que esse caso da excomunhão do médico é um dos exemplos – e muitos dos casos de aborto também são – de uso do livre-arbítrio que “dá zica”. É claro que muitos teístas – e por isso mesmo estou afirmando desde o começo que existem muitos teístas decentes, honestos e bons no mundo – afirmariam que esse comportamento do bispo idiota e até mesmo da igreja católica como entidade não é, nesse caso, representativo do que seria a decisão de deus; deus, diriam esses teístas, nunca condenaria esse médico porque sabe que ele agiu na melhor das intenções.

Mas eu perguntaria: então para que serve a igreja católica? E para que servem as outras igrejas e as outras religiões se estão todas cheias de casos que, na opinião de muitos teístas decentes e bons, contrariam a justiça de deus? Por que deus apoiaria essas entidades? Por que permitiria que se chamassem santos os seus representantes? Por que faria dessas igrejas a sua morada? Já ouvi mais de uma vez de mais de um teísta o argumento de que “A igreja é uma instituição formada por homens e os homens são imperfeitos, portanto, nada mais natural do que encontrar imperfeições tanto entre os fiéis como entre os líderes”. Com esse argumento, você pode até conseguir se 41 “Ah, que cena magnífica! Como eu vou rir e ser feliz e exultar quando eu vir esses filósofos tão sábios, que ensinam que os deuses são indiferentes e que os homens não têm alma, assando e torrando diante de seus discípulos no inferno (Tertuliano, “De Spectaculis”) - “Para que os santos possam desfrutar de sua beatitude da graça de Deus mais abundantemente, lhes é permitido ver o sofrimento dos condenados no inferno” (Tomás de Aquino, 1225-1274, “Summa Theologica”)

convencer de que deus é inocente porque quem pratica os crimes são os homens. Você pode, eu não. Na minha visão teimosinha deus seria culpado direto e ativo, caso existisse, mas os teístas têm muitas “explicações” – muitas vezes discordantes – que conseguem convencê-los da inocência de deus. Então, para tentar não “brigar” muito com eles, afirmo que ao permitir a existência e as ações dessas entidades e dessas pessoas, ao permitir que tais pessoas sejam seus representantes e tais entidades sejam suas “casas”, deus está – novamente – cometendo crime de conivência, cumplicidade ou omissão. Deus seria criminoso por conivência não apenas no caso da excomunhão do médico que fez esse aborto; seria criminoso em cada um dos crimes de impunidade e acobertamento dos muitos padres pedófilos da igreja católica; seria criminoso por conivência por cada um dos estupros cometidos por qualquer um dos que se dizem seus representantes, seja na igreja católica ou em qualquer outra igreja ou templo onde crimes desse tipo tenham acontecido. Deus seria criminoso também no caso do bispo que negou o holocausto42e seria criminoso por conivência em todas as igrejas – católicas e não católicas – nas quais os representantes cometem erros, exploração de fiéis, enriquecimento ilícito, fraudes e todo tipo de crimes e ações infelizes e impiedosas. Se existisse, deus seria culpado – ao menos por omissão – por todos os crimes cometidos “em nome de deus”.

Católicos, e até mesmo não católicos, argumentam que o bispo não cometeu nenhum crime ao excomungar o médico, ele apenas aplicou o que dizem as regras da igreja. Explicam que excomunhão se aplica no caso do aborto e não no caso 42 In: http://pt.wikipedia.org/wiki/Richard_Williamson - Acesso em: 03 Jul. 2013

deestupro, e explicam por que dizendo algo como “um écrime outro é pecado” ou “um é passível de arrependimento outro não” e outros absurdos do tipo. Como entidade, a igreja católica – e toda e qualquer igreja – tem sim, com certeza, o direito de ter e praticar suas regras, suas leis e suas punições; desde que não contrarie as leis do Estado, mas acontece que estou falando de deus, um deus que se existisse certamente saberia o quanto é indecente castigar um médico que salva uma vida e inocentar o estuprador de uma criança. Então, olhando para o caso dessa forma, o que a instituição ICAR diz ou deixa de dizer passa a ter muito pouca importância, e poderia servir apenas para apontar mais um crime de conivência que deus teria cometido: o de permitir que uma instituição que usa o seu nome tenha leis e regras tão imorais. Diante desses “dilemas” do livre-arbítrio, o que dá pra pensar é que o deus dos cristãos prepara essas armadilhas para que as pessoas caiam nelas e queimem no inferno para seu eterno deleite. Se ele já gostava tanto do cheiro da carne queimada dos animais perfeitos que os antigos fiéis sacrificavam a ele, segundo suas orientações, de acordo com o que diz a bíblia, então deve adorar o cheiro da carne queimada das pessoas que sofrem por toda a eternidade no inferno e que foram para lá levadas – indiretamente, claro – por ele mesmo. Isso se o inferno existir. Os cristãos estão com sérias dificuldades para entrar num acordo quanto à existência do inferno, um dos maiores dilemas, em minha opinião, é que sem esse lugar o cristão simplesmente não consegue saber onde enfiar pessoas como Adolf Hitler. Afinal, ele teve o livre-arbítrio e optou pelo mal com todas as maiúsculas que se pode colocar. Mudando um pouco mas não muito o foco, eu pergunto: E você, abriria mão de seu livre-arbítrio para que não tivesse ocorrido o Holocausto? Abriria mão do seu livre-arbítrio para que os séculos de escravidão não tivessem acontecido? Você abriria mão do seu livre-arbítrio para que não tivessem ocorrido os

terremotos de Lisboa, do Japão e do Haiti? Abriria mão de seu livre-arbítrio para que não tivesse ocorrido nenhum dos milhares e milhares de guerras, conflitos, assassinatos em massa, extermínios de povos, aldeias, cidades, famílias? Você abriria mão de seu livre-arbítrio para que não ocorra nenhum mal a seus filhos, a seus pais, a seus irmãos, a seus amigos e até a seus vizinhos? Provavelmente poucas pessoas com um senso de ética apenas razoável, responderiam negativamente a todas essas perguntas, e algumas pessoas iriam mais longe e diriam que, para que as grandes catástrofes que a história registra não tivessem acontecido nunca, abririam mão até mesmo da própria existência, com ou sem livre arbítrio. Ou seja, abririam mãode ter nascido, abririam mão de cada minuto de felicidade de que desfrutaram. No entanto, ninguém teve o livrearbítrio de fazer essa escolha, você teve? Por que um deus todo bondade não nos criou com tanto asco por praticar o mal como temos por comer excrementos? Se esse deus criador pode conciliar nossa necessidade de comer e nossa liberdade de escolher o que comemos com a nossa impossibilidade de comer coisas que não são boas para nós – como areia, excrementos, madeira – por que então ele não poderia ter conciliado nossa liberdade de escolher o que fazemos com a impossibilidade de escolher fazer o mal? Sei que alguns dirão coisas como “Mas se nós não podemos sequer saber com certeza o que é o mal”, e eu respondo: Mas seu deus saberia, ou não? Além disso, o deus que é todo poder não poderia ter dado mais do que apenas duas opções? Não poderia ter dado apenas opções boas e que levassem ao bem? Não seria bom, por exemplo, se em lugar de escolher entre: 1 – fazer uma guerra ou 2 – não fazer uma guerra, como é comum acontecer, a gente pudesse escolher apenas entre 1 – Sentar e conversar só os dois principais interessados em um país neutro; 2 – Sentar e conversar num país neutro com o governante desse país como mediador; 3 – Visitar e conhecer o país e o povo do país com o qual tenhamos alguma divergência; 4 – Convidar o governante e os representantes do povo do país com o qual tenhamos alguma divergência para visitar o nosso país e conhecer nosso povo; 5 – Abrir as fronteiras de ambos os países para que o povo de um possa transitar livremente pelo país do outro; 6 – Fazer uma troca de professores, filósofos e cientistas entre os dois países para que os conhecimentos sejam divididos e multiplicados; 7 – Unir os dois países em um só. E, além dessas sete, talvez ainda mais algumas outras opções que não me

ocorreram no momento mas que certamente um deus onisciente e onipotente poderia encontrar facilmente. Seriam muitas opções e não apenas duas, e todas seriam boas porque fazer o mal seria contra a natureza de todas as pessoas envolvidas, ou seja, a opção “fazer uma guerra” simplesmente não seria aventada, a palavra guerra sequer teria sido inventada e a ideia de matar o outro porque “ousou” nascer no país “errado” sequer passaria pela cabeça dealgum governante ou cidadão; essa ideia bélica seria tão impensável quanto é impensável preparar e saborear um banquete com madeira assada ao molho de piche. Um deus todo poderoso não conseguiria mesmo fazer algo assim? Se sua onipotência se limita apenas ao que não é impossível em sua essência, ou seja, àquilo que não é uma contradição lógica nos seus conceitos, então onde está a impossibilidade dessa proposta que acabei de fazer? Não há como encontrar aqui uma contradição ou paradoxo do tipo criar uma pedra tão pesada que ele não consiga levantar ou um círculo triangular. Por que então o deus todo poder e todo bondade não nos deu livre arbítrio sem que para isso precisasse criar ou permitir a existência do mal? Por que os teístas nunca se fazem essas perguntas? X Desculpem mas não consigo levar Jesus muito a sério, para ser redundante, não boto muita fé na existência de Jesus não. Acredito, pelo que já li a respeito, que esse nome era bastante comum naquela época e naquele lugar e por isso posso acreditar até que existiu uma pessoa com esse nome que andou pregando por aqueles desertos e que morreu na cruz, mas, se existiu essa pessoa, tenho certeza de que ele e sua história foram muito diferentes do que nos pregam e do que está na bíblia. Penso que, caso tenha existido, Jesus foi uma espécie de Antônio Conselheiro da Palestina; mais um profeta meio maluco que conseguiu levar desesperados na conversa, só isso. Pronto! Sou realmente uma herege! Não só não acredito no pai como não acredito no filho. Mas acredito nas pessoas de bem e acredito que pessoas boas usam o que há de bom no exemplo que elas dizem ser de Jesus para nortear suas vidas, só não consigo fazer o mesmo. Acredito que, na verdade, não é por causa do exemplo de Jesus que essas pessoas são boas, elas são boas por elas mesmas, porque é da natureza delas serem boas; eu apostaria que, pelo menos a maioria delas, seriam boas mesmo que nunca tivessem ouvido falar em

Jesus. Falando de Jesus, os cristãos sempre falam da força de seu exemplo. A primeira vez que uma pessoa mais chata e mais questionadora fica decepcionada com o exemplo de Jesus é, em geral, a primeira vez que lê a bíblia, comigo foi lá pelos 14 ou 15 anos. Jesus trata a própria mãe com uma falta de respeito e de mínima educação que não condiz de forma alguma com o comportamento de alguém que tenha exemplos a dar.43 Lembra aquela recomendação romântico-social: “Não se apaixone nunca por um rapaz (ou moça), por mais perfeito(a) que seja ou aparente ser, se ele(a), em um restaurante, tratar mal o garçom. Porque se alguém não é capaz de tratar com educação e respeito uma pessoa que está em determinado momento em uma situação social inferior, é porque essa não é na verdade uma boa pessoa”. Que me perdoem os cristãos, mas Jesus fez muito pior do que tratar mal o garçom; em mais de uma passagem da bíblia ele tratou mal a própria mãe! Se essa atitude não é algo que se espere de uma pessoa minimamente educada e respeitosa, seria menos ainda uma atitude esperada ou mesmo aceitável de um ser que se quer tão perfeito a ponto de ser um deus, o filho único desse deus do qual, em mais uma das muitas incoerências, dizem que nós somos filhos sem nos dar nunca o status de irmãos de Jesus. Não é muito engraçado dois seres que são filhos do mesmo pai não serem irmãos? E como Jesus pode ser o filho único de deus se todos somos filhos de deus? “Deus nos ama tanto que nos deu seu 43 “Mulher, que tenho eu contigo?”. João 2-4

único filho em holocausto”44, “Somos todos filhos de deus”45, como essas duas frases podem fazer sentido ao mesmo tempo? A explicação que dão quando questionados é que “Somos filhos de deus por adoção, quando e se aceitarmos Jesus”. Então tira esse “todos” daí, caramba! E parem de tentar me convencer dizendo que eu também sou filha dedeus e que ele me ama! Por que os teístas fazem tanta questão de não enxergar as incoerências do que dizem? E tem mais uma porção de coisinhas sobre Jesus que não casam com sua pretensa bondade e justiça: por exemplo, aquela história de colocar demônios nos corpos dos porcos e depois levá-los à morte; que culpa têm os coitados dos porcos? E o dono dos porcos? Um criador que por uma questão que aparentemente não lhe dizia respeito de repente perdeu todos os seus animais,

que eram provavelmente o seu meio de vida, o seu ganha-pão e o sustento de sua família. E as curas então! Se é verdade que ele tinha poder, por que ao invés de curar uma meia dúzia de leprosos, ele não curou logo a lepra? Por que ressuscitar alguém da família e não uma criança que teria a vida toda pela frente? Por que ele nunca curou um amputado? Aliás, por que os que afirmam que existem milagres nunca dão como prova um milagre pouco mais difícil de duvidar, como esse de curar um amputado? Enfim, essas são questões que indicam, na minha visão e na visão de qualquer ateu, que a existência, a vida e a importância de Jesus são na verdade mais dignas de serem classificadas como lendas e charlatanismos do que como 44 “Porque Deus amou o mundo de tal maneira, que deu o seu filho unigênito para que todo aquele que n’Ele crê não pereça”. João 3:16 45 “Veio para o que era seu, e os seus não o receberam. Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que creem no seu nome”. João 1:11-14

milagres e suprema bondade. E tem ainda mais coisas que não fazem sentido e que os cristãos mais ferrenhos não conseguem nunca explicar: Querem eles que o antigo testamento meio que deixou de ter validade com o advento de Jesus, que o deus no qual creem, depois da vinda de Jesus, não é mais aquele ser terrivelmente mal, megalomaníaco e sádico do velho testamento. Mas esses mesmos cristãos que tanto leem a bíblia parece que não leram ou não entenderam a passagem em que Jesus diz que não veio para modificar as leis do pai.46 Ou ele estaria falando de outras leis, ou estaria falando de outro pai, ou então – o que é mais provável – essa história toda, que e por que não faz o menor sentido, é pura lenda. No espírito santo então é que não acredito mesmo! A tal ponto que nem sei se evangélicos ou espíritas têm essa ideia de trindade. Fui ao Google e, pelo que andei pesquisando parece que há diferenças sutis e diferenças não tão sutis entre a maneira como cada religião e cada religioso vê o espírito santo; evangélicos e espíritas em geral reconhecem o termo, mas tanto as diferentes correntes evangélicas quanto, aparentemente, as diferentes correntes espíritas têm visões e versões diferentes do que seja e do papel do espírito santo em sua doutrina, pelo

menos é o que dá para perceber pelo que dizem alguns dos adeptos dessa ou daquela religião ou corrente de determinada religião. De qualquer forma, parece que a ideia de trindade é mais forte e mais presente no catolicismo, mas mesmo nesse não parece tão forte assim para quem vê de fora. A impressão que 46 “Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes pleno cumprimento, porque em verdade vos digo que, até que passem o céu e a terra, não será omitido nem um só i, uma só vírgula da Lei, sem que tudo seja realizado. Aquele, portanto, que violar um só desses menores mandamentos e ensinar os homens a fazerem o mesmo, será chamado o menor no Reino dos Céus. Aquele, porém, que os praticar e os ensinar, esse será chamado grande no Reino dos Céus”. Mateus 5, 17-19

tenho às vezes é de que muitos dos próprios católicos não acreditam, ou não pensam muito no espírito santo; talvez por serem inteligentes e racionais o suficiente para perceber que a lógica dessa existência não se sustenta. E o motivo porque tenho essa impressão de que o próprio católico não acredita muito no espírito santo é a constatação de que os cristãos em geral – principalmente evangélicos, mas não apenas eles – assediam o ateu com “comprovações” da existência de deus, com afirmações de que “Jesus te ama”, com historinhas e imagens bonitinhas e todo tipo de recurso que conseguem imaginar, tanto dizem e tanto fazem que em deus e em Jesus o ateu é obrigado a pensar, mas quantas vezes um ateu pensa no espírito santo? Eu pelo menos, quase nenhuma, quase nunca, e não penso porque não recebo dos católicos, e menos ainda dos evangélicos, qualquer tipo de afirmação de que realmente existe essa pomba branca que fica sobre a cabeça das imagens comoos pombos das praças ficam sobre as estátuas. Exceto pelas medalhinhas bonitinhas com uma pomba de asas abertas que viraram moda ultimamente e pelo folclore da Festa do Divino que a gente vê em cidades muito pequenas de lugares longínquos, ninguém tenta me convencer de que o espírito santo me ama ou de que o espírito santo vai me castigar por eu não aceitar sua palavra. Aliás, ninguém nunca me disse que o espírito santo tem alguma palavra. Os católicos não tentam afirmar a existência do espírito santo, às vezes tenho a impressão de que muitas das pessoas que usam a medalhinha sequer sabem que ela representa o espírito santo, eu mesma demorei a ficar sabendo disso, achei queera o “bichinhobonitoda moda” ecomo prefirocorujas resisti à tentação de

comprar uma, depois é que soube o que era. Os evangélicos não tentam afirmar a existência do espírito santo, pelo menos nunca vi ou ouvi nada nesse sentido daqueles que, com a bíblia aberta e os nomes do demônio insistentemente repetidos, gritam pelas praças, ruas e corredores de ônibus, trens e metrôs. Os espíritas não tentam afirmar a existência do espírito santo, aliás, os espíritas em geral não tentam afirmar nada, são muito discretos e pouco incomodam, gosto muito disso neles. Portanto, o ateu não se dá ao trabalho sequer de pensar no espírito santo. Essa é mais uma prova de que o fato de falar e pensar em deus não é uma ação, é uma Reação, e não faz de forma alguma do ateu um crente. Nós só pensamos no assunto porque trazem o assunto até nós; simples assim. XI O ateu sempre se questionou e continua sempre se questionando mais e mais quanto mais o tempo passa e quanto mais pensa e aprende sobre o que leva pessoas boas e decentes a acreditarem a ponto de abraçarem religiões muitas vezes exploradoras e claramente “lavadoras de cérebros”. Apesar de serem incapazes de seguirem o principal mandamento que dizem ser a simplificação que Jesus fez da bíblia, apesar de não assumirem que esse mandamento é impossível de ser seguido, apesar de não pensarem nisso o suficiente para perceber essa impossibilidade e apesar de acreditarem em seu padre ou pastor que afirma que podem sim amar ao próximo como a si mesmos, essas pessoas – pelo menos muita delas – com certeza não são burras; então por que se deixam enganar com tanta facilidade? É isso que um ateu simplesmente não consegue entender. Além do caso óbvio e infelizmente tão comum daquelas pessoas que se deixam explorar por verdadeiros bandidos que usam o nome de deus para tirar dinheiro delas, é difícil para um ateu, por exemplo, entender como pessoas esclarecidas conseguem ser católicas. A história da igreja católica é tão horrível que abraçar essa religião se torna muito parecido com aderir ao nazismo e afirmar que o faz porque “hoje o nazismo é diferente e não se cria mais campos de extermínio”. Que me perdoem

os católicos, sei que podem se sentir chocados porque certamente nunca pensaram dessa forma, mas se pensarem bem não sei como encontrarão a diferença, afinal, nos dois casos, a pessoa está aderindo a uma instituição horrível porque pensa que tal instituição deixou de ser horrível. Por mais que eu saiba que existem católicos decentes e bons ao extremo, sei também que não há exagero no paralelo, é bem por aí: Assim como alguém, se aderisse ao nazismo hoje, mesmo não havendo mais campos de extermínio, estaria obrigatoriamente aderindo à instituição que os aprovou e os colocou em prática e, teoricamente, se propondo a participar ativamente caso essa atividade volte a ser praticada; como católica uma pessoa, que não estivesse cega pela fé, pensaria que está aderindo à instituição que criou e aplicou a Inquisição e que estaria também, teoricamente, disposta a jogar seu fósforo aceso na lenha, ou a se calar de medo, assim que essa instituição ache que devemos voltar a queimar hereges. Sei perfeitamente que nenhum católico com bom senso acredita que a Igreja Católica vai um dia voltar a queimar bruxas em praça pública, mas ela o fez e teoricamente poderia voltar a fazê-lo porque seus dogmas não mudaram tanto assim de lá para cá. A Igreja católica é uma das instituições mais ricas do planeta, o Vaticano é um país; a ICAR tem até banco próprio e é instituição ativa no mercado financeiro mundial. Seu patrimônio, falando apenas do país repleto de edifícios magníficos e mobiliário idem e não dos milhões de igrejas, catedrais e dioceses espalhadas pelo mundo, é estimado em 820 milhões de dólares (da última vez que pesquisei). Esse valor não inclui as obras de arte, até porque o valor de muitas delas é simplesmente incalculável. Não se pode saber qual é o tamanho total da sua riqueza porque, que eu saiba, boa parte dela não faz declaração de renda. E, se pesquisarmos seriamente para tentar saber de onde veio essa fortuna toda e todo esse poder, a resposta virá plena de histórias capazes de fazer tremer de horror qualquer pessoa minimamente decente. Por que então pessoas decentes continuam apoiando e defendendo a Igreja Católica? Eu não entendo! Quem vai ao Vaticano fica pasmo com a quantidade de obras de arte e com a pompa e riqueza do lugar. E no entanto toda igreja, pelo menos no Brasil, na Espanha, em Portugal e na França, que são os lugares onde estive e onde entrei

em igrejas, tem lá o seu cartaz de elogio ao dizimista e, pelo que se pode sentir das diversas campanhas e festas para arrecadação de fundos, parece que normalmente não se troca uma lâmpada sem pedir para isso o dinheiro dos fiéis. Digo isso porque mesmo nunca tendo sido católica já fui chamada a colaborar com minhas parcas merrecas para construção, ampliação ou reforma de igrejas católicas dos lugares onde já morei, então concluí que, se chamam para esses trabalhos financeiramente mais pesados até mesmo quem não frequenta a igreja, imagino que os que a frequentam assiduamente se responsabilizem financeiramente e possivelmente também com mão de obra, pelos consertos mais simples e até a manutenção do dia a dia. É extremamente comum que se veja nos noticiários, os repórteres entrevistando os grupos de fiéis que trabalham voluntariamente como pedreiros, pintores ou marceneiros sempre que uma igreja é danificada por um acidente natural; do qual deus não a protegeu. Nãoconsigopensar nada debom deuma instituiçãotãorica que não se priva de explorar as pessoas dessa forma. É exagero dizer isso? É possível, mas não muito exagero certamente, basta entrar em uma igreja católica para ver riqueza e pedidos de dinheiro. Tudo bem que também existem capelinhas e igrejinhas simples e despojadas, mas as que são ricas e imensas são ricas e imensas mesmo! E essas são muitas. Como gosto de arquitetura e história e porque tive a sorte depoder viajar um pouco, já entrei em muitas igrejas católicas imensas, antigas e ricas, já fui inclusive ao Vaticano, e sempre fico me perguntando: Como é que podem ter a indecência de ficar pedindo dinheiro aos fiéis? Como é que podem gastar fortunas para travar o desenvolvimento da ciência, acobertar criminosos, ajudar a propagar doenças proibindo o uso de camisinhas e ainda pedir dinheiro para isso? Dá para pertencer a uma igreja como essa? Como é que as pessoas esclarecidas conseguem? Por mais que respeite as pessoas e suas opiniões não consigo entender coisas como essas. Falando em Vaticano, ao contrário do que diz o velho ditado “Fazer X e não fazer Y é como ir a Roma e não ver o papa” – não sei se os mais jovens conhecem essa fala – eu digo que ir a Roma e NÃO ver o papa é tudo que eu

aconselharia a alguém. Não estou me referindo só ao papa, o papa mesmo, aquele velhinho que muitos católicos acham que é o representante de deus na terra, isso quando o tal velhinho da vez não passa a impressão de se achar o próprio deus. Tudo bem que não parece ser o caso do atual, mas o anterior me parecia ter um tanto desse complexo, de deus do mal, na minha opinião, e foi na época dele que estive no Vaticano. Enfim, a minha referência quando falo em ir a Roma e não ver o papa é ao Vaticano, o menor país do mundo, ou o menor país independente do mundo, parece. Vou contar a história dessa ateia aqui, que foi ao Vaticano numa viagem de um fim de semana a Roma. Eu e meu marido resolvemos, apesar do espírito não religioso de ambos, ir ao Vaticano, afinal, é voz corrente que não se pode ir a Roma sem ver a Capela Sistina e o museu do Vaticano, além da imensidão impressionante da praça e da catedral de São Pedro. Uma italiana que viajou conosco no mesmo trem disse que ver a Capela Sistina causava uma emoção que ela definia com uma palavra que significa algo que supera o deslumbramento, nós ficamos mais curiosos ainda e resolvemos tentar saber que emoção era essa: Foi uma das piores besteiras que fizemos! Chegamos de manhã e vimos uma fila imensa encostada feitoumacobra,seguindoasinuosidadedaenormemuralhaque cerca oVaticano, ou a parteondeestá a Capela Sistina, mas nós somos, ou estávamos naquele momento, otimistas e achamos que a fila estava rápida e que a entrada era logo à frente onde a muralha dobrava em uma aresta e não se podia ver além, então ficamos na fila. Sol quente, falta de sombra, calor, e cerveja a quatro euros o copo; copo, não latinha! Havia também pessoas que a cada cinco metros vinham se oferecer para, a um preço “módico”, deixar-nos entrar sem enfrentar a fila toda; achamos isso uma tremenda sacanagem e não pagamos. Tudo bem, pensei comigo, o papa pode bem ser que não saiba de nada disso, mas sendo ele quem é, deveria tomar providências para saber, e para não permitir coisas desse tipo, que tal mandar algum dos funcionários vir disfarçado de turista comum para saber como é visitar a Capela Sistina? Será que ele é “Papa demais” para pensar em algo desse tipo? Desculpem os que estão me achando rabugenta demais até aqui (vão achar mais ainda), é que tenho tolerância zero para corrupção e sacanagem, posso estar, e

quase sempre estou, em situação na qual pouco ou nada posso fazer para lutar contra isso, mas nunca estou em posição que me impeça de me revoltar, de sentir raiva e de me sentir injustiçada. Bem, entre pensamentos e desconforto a fila foi andando, três horas depois entramos, três horas porque a entrada era bem mais à frente do que nós e todos os que estavam na fila tínhamos pensado. Vimos que tudo era grande, inclusive o caminho até a Capela Sistina... A gente segue as indicações das placas e as pessoas, que naquele dia eram muitas e iam todas na mesma direção que nós. Pensamos que a capela estava logo ali e ela simplesmente nunca chegava. A cada trecho que se andava tinha um balcão vendendo bugigangas; eram rosários, medalhinhas, estatuetas, livrinhos, livrões, reproduções e postais. Gente, prestem atenção que não estou criticando o fato de ter quiosques, banquinhas ou balcões vendendo lembranças do lugar turístico que se visita, até no Louvre tem isso e eu acho ótimo que tenha porque a gente muitas vezes quer mesmo comprar, ou apenas olhar, as lembranças do lugar onde estamos e onde não podemos ir com muita frequência; o que me deixou muito furiosa foi o excesso, eram pontos e mais pontos de venda, não estavam apenas faturando uma graninha satisfazendo um desejo e até uma necessidade dos que visitam o Vaticano, estavam explorando mesmo. Tenho fibromialgia, e comecei a sentir dor, a fibromialgia se manifestou com tudo, talvez pelo desconforto e pela raiva de ver a exploração toda e de não chegar nunca à tal capela. Eu já estava querendo dar meia volta e sair de lá, desistindo sem remorso de qualquer emoção acima do deslumbramento em nome da minha sanidade mental que, eu sentia, já começava a ser afetada pela dor e pela raiva, mas não fiz isso porque nunca daria para saber se de repente para voltar não teria que andar mais ainda do que para chegar à maldita capela! Nessa altura, com todo o respeito aos católicos que, tenho certeza disso, em muitos casos têm essa viagem como a realização de um dos seus melhores sonhos, eu já estava passada a pontodedizer palavrões. Euficava pensando na falta derespeitocom as pessoas, na clara exploraçãofinanceira que são aqueles corredores, na dificuldade de algumas pessoas idosas e com problemas de locomoção e me perguntava por que eles não tinham um atalho para a tal Capela. Eu estava com dor e só quem tem fibromialgia sabe que essa dor não é algo que nos mantenha com o espírito calmo. Nunca tinha visto e duvido que um dia verei

uma capela mais difícil de se chegar do que essa! Quer outro exemplo de que era exploração? Muitas das obras expostas nos salões não tinham nenhum cartão com referência, nenhum nome, nenhuma explicação, tinham apenas um número e se você quisesse saber do que se tratava tinha que comprar os livros que falam tudo sobre o Vaticano ou então pagar pelo uso de um aparelho no qual você aperta a tecla indicada e ouve, na língua que escolheu, a explicação que qualquer museu que se dê esse nome tem ali, ao lado da obra. Não que esses aparelhos não sejam úteis, e muito, em muitos lugares que você visita quando faz turismo; usamos um desses no Coliseu de Roma mesmo, usamos também no coliseu de Nimes, na França e usamos outras vezes em visitas a castelos em Espanha e em Portugal; mas nos museus é de praxe que os detalhes mais relevantes sobre as obras de arte expostas, pelo menos as informações mais básicas, como título da obra e nome do autor, estejam em pequenas placas colocadas ao lado da obra. Todo mundo que já foi a qualquer museu pode constatar isso. No Vaticano tem-se que pagar por essas informações; fiquei enojada sim! Tudo bem que não se pode só falar mal, afinal de contas são muitas obras de arte, todas elas maravilhosas, todas dignas de admiração embevecimento e louvor (não no sentido religioso obrigatoriamente), mas ser obrigado a pagar para saber que obra é aquela é muita sacanagem, sem dúvida. Foi isso que pensei e foi isso que me deixou furiosa. Cheguei a, numa brincadeira meio irônica, pensar que o papa bem que gostaria de saber que eu, uma ateia assumida, estava lá, sofrendo dores e desconforto para poder chegar a um dos principais ícones da igreja católica, talvez ele dissesse que o nome disso era justiça; deus estava me castigando por tudo que já disse e já pensei sobre ele. Eu responderia então que, caso o objetivo do castigo fosse fazer com que eu me arrependesse e mudasse de ideia, não estava surtindo efeito! Além disso, e as outras pessoas? A maioria católicas mesmo, mereciam aquele desconforto e aquela exploração? Finalmente, depois de muitos quilômetros de caminhada e de passar por muitas, muitas e muitas lojinhas mesmo! chegamos à tão famosa Capela Sistina e... Surpresa! Lá não pode tirar fotografia, mesmo sem flash; durante todo o caminho se pode fotografar tudo, desde que seja sem flash, mas a capela não

pode e, o que é muito pior, tem que passar e sair correndo porque os guardas ficam expulsando a gente insistentemente. Resultado: Ninguém que vai ver a Capela Sistina vê a Capela Sistina! Deve ser para obrigar quem ainda não o fez a comprar uma reprodução colorida ou um livro com cada parte detalhadamente explicada como se fosse pelo próprioMichelangelo.Nessaaltura,numataquedebomhumor meio duvidoso, embora ditado pela dor, eu já estava cantando em ritmo do “Happy Birthday to You” essa versãozinha muito pessoal: O Papa é um filho da puta O Papa é um filho da puta O Papa é um filho da puuuuuuuuuuuuuta!!!!!!!! Ninguém pode negar! Ninguém pode negar! Ninguém pode negar! Sei que essa musiquinha faz de mim uma pecadora aos olhos de cada católico do planeta e que é uma blasfêmia imperdoável ofender dessa forma o representante de uma igreja; uma blasfêmia comparável à de Sinead O’Connor quando ela, em uma apresentação, rasgou a foto do papa dizendo que aquela era a foto do mal. Peço perdão aos católicos pois não tive intenção de ofendê-los, mas é que a raiva e a dor eram tantas que a musiquinha me veio à mente sem que eu a tivesse chamado, confesso que a achei divertida e, para a ocasião, bem adequada. Não me queimem, por favor! No fim das contas saí de lá furiosa, não senti nenhuma emoção-mais-quedeslumbramento e acho que o próprio Miguel ficaria muito puto se soubesse a sacanagem que estão fazendo com ele. Se o papa pensa em contar com o deslumbramento do luxo, da beleza e da pompa do Vaticano para conquistar fieis e trazer para “os braços do senhor” as “ovelhas desgarradas”, não vai ser um ateu mais crítico como eu que ele vai conseguir arrebanhar para o seu lado, pelo contrário, a distância só se faz maior. Claro que a pintura da Capela é linda, claro que tem muita coisa bonita naqueles corredores todos que a gente é obrigada a seguir para chegar até ela, mas toda a beleza fica perdida no meio da raiva, do desconforto e da exploração e, no meu caso, na sensação frustrante de perda de tempo. Sim, porque chegamos a pensar em tirar aquele dia para ir de ônibus até Pompéia e Herculano e acabamos não conseguindo ver nenhum dos dois lugares. Era uma viagem rápida, só tínhamos dois dias para ver Roma, escolhemos errado, muito errado, e perdemos quase

que inteirinho um dos dias que tínhamos para nos sentirmos torturados, explorados e enganados no centro da igreja católica. Como diz minha mãe (falando sempre sobre outras coisas é claro porque ela é muito religiosa): “Ah, se arrependimento matasse!” XII Eu, como todo ateu, tenho muitos amigos religiosos, e tenho uma amiga muito especial que é espírita. Ela é muito linda, é uma mulher forte, inteligente, divertida, simpática e maravilhosa; é uma amiga de quem gosto muito mesmo! Estamos afastadas já faz um bom tempo porque a vida nos levou para lados diferentes, ficamos então com os “oi, eu te amo” que trocamos vez em quando pela internet. Mas acho que ela sabe muito bem que tem um lugar especial no meu gostar e que eu nunca teria nenhuma vontade ou intenção de ofendê-la, diminuí-la ou desprezá-la de nenhuma forma, por isso espero que ela nunca entenda como ofensa qualquer coisa que eu diga sobre sua religião. Te amo, Márcia! Ela já me falou um bocado de coisas a respeito do espiritismo, e me emprestou alguns livros sobre o tema, que li. Penso e acho que o espiritismo não é uma doutrina tão hipócrita quanto muitas das religiões cristãs e não cristãs que conheço pouco mais ou pouco menos, mas os conceitos espíritas não conseguem me convencer e em geral não conseguem convencer o ateu porque, para variar, tem coisas demais que nós questionamos. O próprio número de habitantes do planeta durante o tempo que a história marca como “a evolução do homem na terra” dificulta bastante a compreensão do que o espiritismo aceita como verdade; a pergunta é: De onde vieram tantas almas tendo a população do planeta aumentado tanto? Pela teoria de que cada alma reencarna num processo de evolução até se tornar algo especial que realmente não consigo saber o que seja, a lógica seria que a população do mundo diminuísse e não o contrário. Para tentar responder essa questão é preciso que se imagine uma espécie de linha de montagem de almas que vem funcionando a todo vapor desde a criação do homem e imaginar um outro mundo – ou vários outros mundos – sabe-se lá onde, no qual estariam as almas que conseguiram evoluir e um outro mundo – ou vários outros mundos – onde estariam as almas menos evoluídas do que nós e de onde nós viemos quando evoluímos o suficiente para sair de lá e chegar até aqui.

Estaríamos então em um mundo intermediário entre dois outros ou entre dezenas de outros, não sabemos. A única coisa da qual poderíamos ter quase certeza é de que as almas mais evoluídas certamente não estão aqui, isso porque se estivessem certamente teríamos um número muitíssimo maior de Gandhis e Mandelas, um número tão maior que com certeza eles teriam conseguido desde há muito tempo influenciar mais gente e transformar a realidade, tornando melhor esse mundo em que vivemos. Ou será que não há outro mundo e só essas poucas almas evoluíram o suficiente para se tornarem Gandhis e Mandelas? Afinal, se houvesse um mundo para os mais evoluídos, o que estariam os Gandhis e Mandelas fazendo aqui? Antes colocavam esse – ou esses – outro mundo em um plano astral e imaterial, atualmente alguns espíritas têm falado em outros planetas. A coisa ficou então um pouco mais acessível. Mesmo assim fica muito difícil entender e aceitar toda essa linha de sucessão que leva a algo desconhecido que não me parece muito atraente. Se pensar em um mundo anterior a esse, o mundo menos evoluído de onde eu teria vindo, a ideia me revolta e me enoja. Os espíritas acreditam em deus, por que e como um deus bom criaria almas brutais como parecem ser algumas das pessoas que temos aqui e, pior ainda, por que criaria almas ainda mais brutais num outro mundo anterior a esse? E, indo para “cima”, por que um deus bom criaria um mundo para as almas mais evoluídas quando elas seriam tão mais úteis aqui? Essa escala de “evolução espiritual” envolvendo, como parece ser o caso, todo tipo de sofrimentos e barbáries, não faz o menor sentido e a existência de um esquema como esse faz menos sentido ainda. Por que um deus todo-poderoso não pôde criar as almas já no estágio mais alto de evolução? Incompetência ou maldade? Mas esse não é o único problema que se apresenta para a minha mente questionadora e teimosa; tem também o detalhe de Qual EU da pessoa reencarnaria; sim porque uma pessoa é na verdade muitas, o eu-velho de alguém não é a mesma pessoa que o eu-adulto desse mesmo alguém e não é a mesma pessoa que o eu-jovem e não é a mesma pessoa que o eu-adolescente e por aí vai; mesmo em se tratando do mesmo ser humano, em cada fase, em cada ano e até em cada dia há uma pessoa diferente. Qual EU desses terá o privilégio de reencarnar, e aprender, e evoluir, e tornar-se algo ou um espírito melhor?

E os outros EUs passados e futuros dessa pessoa? Esses morrerão definitivamente? Quem escolheria o EU que vai reencarnar? Teria que ser esse mesmo EU ou um outro? Seria um EU da própria pessoa ou um EU de outra pessoa ligada a ela? Essa escolha seria democrática e justa? Acho que um espírita diria que a escolha seria de deus, mas sou ateia e não acredito, não amo e não respeito deus e não gostaria nem um pouco de passar essa responsabilidade a esse ser que, como já expliquei antes, eu consideraria abominável caso existisse. Será que eu e os demais ateus teríamos liberdade de não permitir que esse deus que não respeitamos fizesse essa escolha tão importante por nós? Um amigo me disse que é o espírito que sou em essência que passa por diversas “vidas corporais” com o objetivo de adquirir experiência e aprendizados. Pela explicação que tentou dar, achei que ele não entendeu bem o que eu disse sobre os EUs passados e futuros dessa pessoa, parece que pensou que eu estivesse me referindo a outras vidas e estou falando dessa mesma, somente e apenas essa, na qual fui uma criança curiosa, uma adolescente rebelde, uma mulher agitada, uma senhora brigona, mas vou entender que o processo seja o mesmo e que a resposta dele significa que há uma essência que não mudou da minha infância até minha velhice. Acontece que a pergunta continua porque não consigo mesmo achar que a EU de sete anos que roubou uma colher na escola é a mesma EU que está contando esse episódio agora, tenho a lembrança mas não tenho nem uma célula no corpo e acho que nenhum ou muito poucos traços daquela personalidade. Qual dessas duas EUs reencarnaria? Qual delas contém mais da minha “essência”? Meu amigo disse que isso se torna mais claro para o espírito quando este se encontra no plano espiritual, entre uma encarnação e outra. Não consigo acreditar nisso, cadê as provas? Mas a pergunta mais terrível mesmo é outra: se estamos vivendo e evoluindo, se estamos reencarnando sucessivamente a fim de aperfeiçoar quem somos, então por que não evoluímos como espécie? Por que um deus bom e poderoso mandaria as almas evoluídas para um outro mundo e as impediria dessa forma de ajudar ou de participar da evolução moral do ser humano nesse mundo mesmo? Por que ainda temos os crimes, os abusos de poder e todas as aberrações que tínhamos desde que começamos a habitar o planeta? Por que crianças ainda sofrem? Por que, como bem demonstrou Geoge Carlin, para que retornemos à barbárie basta apagar a luz.47

Nenhuma resposta que tenha recebido ou que imagine para minhas muitas perguntas consegue me convencer de que reencarnação, plano espiritual, evolução espiritual e todas essas expressões façam qualquer sentido. Não consigo perceber sentido no próprio conceito de espírito, fica mais difícil ainda perceber sentido nessa “escola” mais ou menos sofisticada para formar sei lá o quê. Desculpem meus amigos espíritas, mas essa trama tem fios soltos demais. Sabemos que as coisas não precisam fazer sentido para existir porque muitas das coisas que existem comprovam isso, como a própria vida, por exemplo, mas acontece que as coisas sem sentido que existem e que sabemos que existem 47 In: http://www.youtube.com/watch?v=iMOdOaaYbzM - Acesso em: 22 Ag. 2013

são aquelas que podemos constatar pela experiência; afinal, por menos que a vida faça sentido, posso comprovar, empiricamente e na medida em que posso comprovar alguma coisa, que a vida existe porque sinto e sei – até prova em contrário – que estou viva. O fato é; para que eu; e qualquer ateu; tome alguma coisa como verdadeira sem que se possa ter nenhuma prova empírica é preciso que tal existência faça sentido quando pensamos logicamente, caso contrário nós a rejeitamos. Por mais que a gente ame a amiga ou o amigo que nos fala disso. Quer um exemplo? Nunca vi um átomo, não tenho experiência empírica da existência dos átomos, mas quando vejo as explicações científicas, quando leio sobre a história e a vida dos cientistas que chegaram a esse conhecimento, quando vejo as explicações, os estudos e as experiências sobre a eletricidade, tudo faz sentido logicamente, por isso acredito, não no sentido religioso mas no sentido lógico, que os átomos existem. Não consigo aplicar esse mesmo método a nenhuma das explicações dos espíritas. Desculpem. Evoluímos a ponto de eliminar a escravidão de boa parte do mundo mas não evoluímos a ponto de deixar de procurar e usar novas e antigas maneiras de explorar nossos iguais; evoluímos a ponto de não termos mais em arenas os gladiadores se matando em honra de César e para deleite do povo mas não evoluímos a ponto de deixar de apreciar e de vibrar com os socos e os pontapés das lutas de boxe ou das lutas estilo combate, UFC, MMA e outras modalidades; evoluímos a ponto de não sacrificarmos animais nos altares dos nossos deuses mas não evoluímos a ponto de deixar de chamar assassinato de esporte e de lazer, como fazemos com os termos caça e pesca “esportiva”; evoluímos a ponto de criar uma Declaração Universal dos Direitos do Homem mas não evoluímos a

ponto de cumpri-la; e, principalmente, não evoluímos a ponto de acabar com as diversas e cada vez mais variadas e sofisticadas espécies de guerra, desde as guerras de gangues e de torcidas organizadas de times de futebol até as guerras políticas, econômicas e “santas”. Além de tudo isso, o espiritismo é também cristão, também acredita em deus, na bondade de deus, na justiça de deus, no poder de deus; e em Jesus e no fato de que ele foi esse cara que o Paulo de Tarso inventou que ele era. Como nem deus nem Jesus, caso ambos existissem, mereceriam as loas que lhes tecem, fica difícil entender e concordar com meus amigos espíritas nesse ponto, da mesmíssima forma que não posso concordar com nenhum outro teísta. Tudo bem que há diferenças entre espíritas e cristãos de outras religiões, como o fato de que para os espíritas Jesus não é bem um deus e sim uma alma mais evoluída do que todas as outras, mas na essência do que é o cristianismo, eles não são muito diferentes dos demais cristãos e mesmo dos judeus e dos muçulmanos. Há o louvor a um deus criador, plenipotente e bom que, inexplicavelmente, criou e mantém o mal. Tudo o que sou incapaz de compreender como possibilidade. XIII Muitos teístas – principalmente via internet que é onde ouso falar sobre o assunto com mais frequência – me criticam e às vezes até me ofendem porque acham que eu não deveria escrever “essas coisas”. Mandam e-mails e deixam comentários nos meus posts perguntando por que não me calo; não entendem por que insisto tanto em “criticar deus” embora eu sempre tente deixar claro que não acredito em deus e, portanto, não critico deus mas sim a ideia deus. Para muitos desses teístas até mesmo pensar em deus de forma a questionar seus “desígnios” é algo que deveria ser inaceitável para qualquer ser humano, falar e escrever então são atrevimentos e ousadias do “inimigo” ou de seus adeptos, como muitos deles nos chamam. Daí a frequente mania dos crentes mais fanáticos de dizerem que os ateus são “adoradores do demônio”, eles não entendem que para o ateu o demônio é apenas um outro deus, um deus do mal, para nós tão impossível de existir quanto o deus “do bem” que os teístas adoram. Por que comecei a pensar em deus e em religião até chegar ao ponto de sentir necessidade de escrever este livro? Eu respondo essa pergunta usando a frase

que tanto já vi ser usada ironicamente pelos teístas para afirmar que na realidade não existem ateus, a mentira consoladora que inventaram para não ter que pensar muito em nós: Explico, usando a ironia deles, que sou ateia graças a deus. O que estou dizendo com isso é que descobri que sou ateia graças ao tanto que tentaram me convencer da “verdade” da existência de deus. Tantos religiosos vêm tentando desde sempre me convencer e me converter de todas as maneiras que não tive outra saída se não pensar no assunto! Principalmente depois que passei a usar e-mails e mais ainda depois que comecei a dar aulas em escolas estaduais do Rio de Janeiro. A partir daí comecei a sentir que o assédio dos religiosos se tornou mais intenso, tão intenso a ponto de eu não poder me virar sem encontrar em algum lugar os transmissores da “boa nova” com os recadinhos do tipo “Jesus me ama”. Tudo bem que conheço muitos religiosos que não são assim, que não ficam incomodando ninguém com suas crenças e opiniões, são muitas pessoas decentes e éticas o suficiente para serem amigas e aceitarem as outras pessoas sem querer impor a elas seu deus e sua fé. Mas tem também osreligiososinsistentes,persistenteseconvictosquechegam a se tornar incômodos e inconvenientes; e, infelizmente, eles são muitos. Estão tão certos de que sua missão na vida é captar adeptos que chegam a incomodar até mesmo aqueles religiosos tolerantes e amigos que citei lá em cima. Se a gente ousa dizer a eles que deviam parar com o assédio, vêm sempre com um argumento do tipo “Não tenho vergonha de falar do meu deus” ou citam um trecho da bíblia que diz algo sobre a missão do fiel de “espalhar a palavra”. A experiência tem me mostrado que alguns se tornam ainda mais incômodos quando a gente diz que eles estão incomodando. Eles vêm à nossa casa no domingo de manhã, de repente o único dia que temos para dormir um pouquinho mais; coisa que não conseguimos fazer por causa deles que invadem nossa rua em bandos portando as revistinhas que eles parece que decoraram antes e querem recitá-las inteiras na porta de cada casa! Eles enchem a nossa caixa postal com os e-mails coloridos e cheios de musiquinhas que, em pps, querem nos convencer definitivamente de que a religião e o deus deles é solução para todos os problemas, nossos e do mundo. Eles invadem as nossas páginas na internet com recadinhos cheios de brilho que

afirmam que “Jesus te ama”. Eles nos cercam na rua para entregar “santinhos” e convites para a próxima atração de suas igrejas e templos. Eles abarrotam os quadros de avisos das salas de professores e os corredores das escolas com imagens e mensagens religiosas a ponto de a gente não poder achar espaço para colocar alguma informação pedagógica relevante. Eles invadem ônibus, trens e praças gritando salmos e ofensas ao capeta que na opinião deles está dentro de todos nós que não somos de suas religiões e não “aceitamos” o seu deus. Eles aproveitam qualquer reunião de mais do que três pessoas como ensejo para constranger as pessoas a darem-se as mãos e rezarem ou orarem o padre nosso, isso quando não transformam reuniões cívicas ou pedagógicas em verdadeiros cultos. Eles chegam ao cúmulo de invadir os corredores do nosso prédio para enfiar por debaixo da porta do nosso apartamento papeizinhos com recados religiosos, e até (suprema e criminosa audácia!) constrangimentos financeiros como a oferta de uma imagem de santo em troca da doação de uma determinada quantia mensal. Acho tremendamente estranho e inexplicável – às vezes confesso que chego a achar até mesmo divertido e um tanto infantil – esse hábito que muitos teístas têm de não se contentarem em acreditar que deus existe, mas também, pelo que afirmam, de saberem tudo sobre os sentimentos, pensamentos e vontades tanto de deus quanto dos outros seres mitológicos em que acreditam, sejam esses santos, Jesus ou o diabo. Basta ver o quanto eles dizem que “Deus não quer que...”, “Deus se agrada de pessoas que...”, “Jesus fica triste quando...”, “O diabo quer mesmo que...” e frases do tipo para concluir que eles se sentem conhecedores do âmago do espírito de deus e de todos os outros mitos em que acreditam. Mas, caso alguém aponte isso a eles, com certeza negarão veementemente o que suas próprias palavras afirmam, e explicarão tudinho de uma forma que eu não poderei compreender porque estarão sempre dizendo que não afirmam o que estão afirmando. Esses religiosos que assediam e constrangem a gente de todas as formas em geral não são tolerantes, éticos e amigos como muitos dos meus amigos religiosos. Há sim muitos deles que, quando o assunto não é religião, quando não

sentem que estão falando com “um inimigo” ou a respeito de alguém de quem “deus não se agrada” como os gays e os ateus, são pessoas bastante agradáveis e gentis, mas se o tema da conversa é religião – tema que adoram introduzir nas conversas – estão sempre mais preocupados em falar do que em ouvir e não suportam qualquer argumento contrário. É claro que não estou falando de todos os religiosos nem dessa ou daquela religião, mas muitos deles sempre e o tempo todo enchem nossos ouvidos com os carros de som a todo volume anunciando a “prece do descarrego” que parece mais fantástica e saborosa do que as pamonhas de Piracicaba, e nos cercam na rua para entregar os papeizinhos de propaganda da fé deles e até mesmo o “santinho” do candidato deles para as próximas eleições. Se você mora em apartamento eles dão um jeito de enfiar papeizinhos debaixo da sua porta e alguns mais atrevidos, em uma clara violação de todos os princípios de segurança, conseguem convencer os porteiros, que muitas vezes são também religiosos, e talvez até da mesma igreja desses audaciosos espalhadores da “palavra”, de que estão trabalhando por uma boa causa – afinal, são servos de deus e estão trabalhando para deus – e, portanto, têm o direito de até mesmo bater na sua porta para convidá-lo para o culto, reza, novena. E estou falando com conhecimento de causa porque isso já aconteceu no prédio onde moro, já fui assediada na minha porta por uma dupla que estava tocando a campainha de todos os apartamentos para fazer “um convite”. E você não pode passar na frente da igreja deles em determinadas horas porque estão berrando com tal força e em tal altura que deveriam pagar multa por “barulho ensurdecedor que prejudica a saúde auditiva das pessoas”. Uma das recomendações para quem vai comprar ou alugar uma casa é “Fuja das proximidades de certas igrejas”, ou seja, eles conseguem até mesmo desvalorizar os imóveis! E conseguem, numa jogada que chega a, pelo menos para mim, parecer desonesta, conquistar a adesão dos nossos parentes mais ingênuos, como pais e tios idosos, e convencer esses parentes a usarem de chantagem emocional para nos convencer a fazer parte do grupo que terá direito ao paraíso eterno. Paraíso esse, aliás, que, em se acreditando na explicação e nas descrições deles, tem muito pouco de paraíso; está mais para Tédio Eterno. Tédio que pode ser comprado ao custo de dez por cento dos seus rendimentos mensais e será mais paraíso e mais certo ainda se, além dos dez por cento, ainda tiver uma doação

“por fora”. Esses teístas incômodos estão presentes em quase todos os lugares que frequento e é comum me constrangerem a participar, ao menos com minha presença, das cerimônias que só interessam a eles, mas que não se sentem vexados por impôlas porque foram ensinados pelos padres e pastores a falar de deus em todos os lugares e momentos independente de quantas pessoas vão constranger e incomodar com isso. Quando alguém reclama, eles vêm com o argumento tosco de que são maioria e a “palavra de deus não faz mal a ninguém”, não percebem ou não se dão ao trabalho de pensar que estão decidindo por todos o que cabe a cada um decidir por si mesmo. Sempre recebo, como todo mundo, vindos de todos os lados, recados, mensagens, avisos e até ameaças pretensamente chegados diretamente de deus. Alguns deles chegam até a vir assinados! Recebo direta e indiretamente em todas as formas, por todas as vias de comunicação e praticamente em tempo integral, lembranças de religiosidade. E, curiosamente, quando, num momento em que estou ouvindo absurdos ou ingenuidades religiosas, ouso entrar na conversa e falar sobre o assunto assumindo minha postura ateia, ouço sempre alguém dizer que “religião não se discute”. Pregação constrangimento todo mundo aceita. Existe um consenso não tão velado assim de que é deseducado retrucar ou se posicionar de forma contrária a alguém que está tecendo louvores e elogios ao seu deus e à sua fé, religião ou igreja. Todos aceitam e se calam ou balançam a cabeça concordando, ou ainda, se forem da mesma opinião, entram entusiasticamente no tema e fazem coro com o orador sempre que alguma pessoa, a propósito de qualquer coisa, se põe a falar de deus, de religião, de fé; ninguém se manifesta nunca de forma contrária. Diante de todo e qualquer discurso religioso a tolerância é obrigatória e ninguém se mostra nunca constrangido ou contrariado; pelo menos eu nunca vejo isso. A diferença – e assumo a culpa por isso – é que, no meu caso, muitos desses constrangimentos, muitas dessas pessoas e muitos desses discursos me irritam,

me aborrecem, me revoltam, acionam em alto e bom som o meu alarme “antiestupidez”. Daí que não consigo me segurar e entro na conversa se uma conversa for, e invariavelmente sou obrigada a ouvir de alguém a frase-falácia fatídica: “Religião não se discute” – parece que só se prega. Então, como podem estranhar que os ateus se manifestem? Como podem estranhar que os ateus existam? Sou sim um exemplo de “Ateu graças a deus” porque se não fosse pelo tempo, pela frequência e pela insistência com que me falam de deus; se não fosse pela maneira, muitas vezes até desonesta, com que tentam impor a mim e a todos os preceitos e dogmas da sua religião e do seu deus eu certamente não teria nenhuma razão para pensar nesse assunto, e não estaria escrevendo esse livro. XIV Se me revolto com o exacerbamento da religião, quero crer que tenho motivos mais do que justificados. Ao longo dos anos tenho visto uma crescente intolerância que me preocupa sinceramente. A razão da minha revolta é a percepção de que muitas pessoas se recusam a pensar e, o que é muito pior, ensinam as crianças a não pensarem. Já vi em sala de aula, aluninhos de quinta série (sexto ano) ofendendo colegas por causa de religião com argumentos ditados por uma determinada religião, com palavras e frases que não são deles, que ouviram em casa dos pais e na igreja do padre ou do pastor. Algumas crianças e jovens, de todas as séries do ensino fundamental ou médio, me olhavam como se eu fosse uma extraterrestre quando eu dizia que não tinha religião; e se espantam muito mais agora que – só e apenas quando sou perguntada e sem nunca fazer discurso – digo em sala de aula que sou ateia! Quando trabalho com o tema preconceito costumo falar de preconceito no geral e não me ater apenas ao preconceito de cor como já vi mais de uma vez professores fazerem. Enquanto abordo o preconceito de cor, o preconceito contra os idosos, contra os deficientes físicos ou contra as mulheres, entre outros, tudo está bem, eles leem os textos, concordam com minha indignação contra os preconceituosos, trazem exemplo e participam ativamente da aula; mas quando entro no tema homofobia muitos deles são rápidos em citar a bíblia para afirmar que “Se encontro um “viado” na rua eu caceto mesmo!”, “Pode descer a lenha sim, professora, deus não gosta dessa gente, tá na bíblia!” – Essas frases não

foram inventadas por mim, eu as ouvi de alunos. É só permitir uma conversa a respeito da homossexualidade que qualquer professor quase certamente vai ouvir frases desse tipo, pronunciadas poralunos desdeas primeiras séries doensino fundamental até já adultos nas aulas do EJA, antigo supletivo. Já aconteceu comigo de alunos mais velhos, já adultos, dos cursos noturnos,ameaçaremmedenunciarnadireçãoporque,segundo eles, “A senhora está falando de “outros assuntos” em lugar de cumprir sua obrigação que é dar aulas!”. Com alunos mais jovens já aconteceu de eles contarem em casa que eu disse – falando contra a homofobia – que a bíblia não deve ser usada como desculpa para justificar preconceito e os pais, indignados pela minha audácia em levantar esse tema tão impróprio para uma turma de adolescentes de ensino médio, se encarregaram de ir à escola reclamar na direção que “Essa professora ousou falar mal da bíblia e de deus” em sua aula. Por essa razão fui aconselhada pela diretora – que fazia pregações evangélicas todos os dias no pátio da escola – a não tocar no tema da homossexualidade porque isso é “assunto para ser tratado apenas pelo professor de filosofia”. Mas o mais terrivelmente assustador é que se levantar o problema na sala dos professores – eu já tive essa experiência – o professor corre o risco de ouvir, dos próprios colegas, frases muito semelhantes às que ouve nas salas de aula. Daí se pode compreender bem por que nas escolas não costuma haver muitos trabalhos abordando preconceito e, quando há, a grande maioria deles tem o “cuidado” de excluir qualquer menção à homofobia, como se homofobia não fosse preconceito. Não entendo por que e como muitas pessoas cultas, inteligentes e boas se recusam a pensar, travam suas mentes e chegam até mesmo a travar seu sentido de ética e de respeito ao ser humano quando sua religião e seu deus tem alguma relação com o tema em questão seja ele qual for. Em nome de um “amor a deus”, de uma adesão irrestrita aoque afirmam ser a “verdade” e sem questionar nem mesmo a ausência de sentido ético presente nessa “verdade”, as pessoas esquecem o simples e básico sentimento de respeito ao próximo; e, inexplicavelmente, nem sequer se dão conta disso! É comum, quase obrigatório, afirmar que não podemos falar mal de religião, que

não se pode criticar qualquer crença ou manifestação religiosa. A religião pode criticar tudo, pode condenar tudo, pode abominar toda e qualquer pessoa por todo e qualquer motivo, mas não pode nunca ser criticada. Não podemos nem sequer reivindicar o direito básico de ter umestadorealmentelaicocomoestádefinidonaConstituição. Nenhuma tentativa de mostrar que escola pública é um órgão público, nem mesmo pela redundância é levada a sério. Lá se faz orações no pátio com os alunos, se abriga missas e cultos evangélicos a propósito de qualquer coisa, se abarrota os quadros de avisos com imagens de santos, Jesus e coisas do tipo acompanhadas de orações e de trechos bíblicos. E temos que achar tudo isso adequado, muito lindo, muito educativo e muito bom; sem nos importarmos com o desrespeito que representa para com as minorias. É historicamente comprovado que muitos religiosos não sabem reconhecer minorias, nem a existência nem os direitos delas. E os professores de ensino religioso afirmam dar aulas de cidadania e não de religião propriamente dita, juram ensinar tolerância religiosa e se mostram e se sentem até ofendidos se alguém insinuar o contrário porque, de acordo com eles e muitas vezes com suas convicções mesmo, não usam essas aulas como desculpa para priorizar e orientar os alunos na sua própria religião e crença. Mas já vi casos de professores que comemoram o “dia da bíblia”, com exposição de trabalhos feitos pelos alunos e orientados por eles em evento escolar aberto à comunidade. Só que esses professores, que afirmam e acreditam que ensinam tolerância religiosa e respeito a todas as religiões, se forem perguntados, nem sabem se existe, por exemplo, um “dia do alcorão”, e certamente não preparam uma festa com exposição de trabalhos e participação da comunidade no dia de Iansã ou de Shiva. Eles não fazem por mal, eu juro, a intenção deles é boa e tenho certeza de que nunca lhes ocorreu que estivessem cometendo alguma irregularidade; comemoram o dia da bíblia porque são cristãos e no conceito deles a bíblia é o livro sagrado de todas as religiões que, para eles, os alunos devem respeitar. Nem sequer estão desrespeitando as religiões que não têm a bíblia como seu livro sagrado, estão apenas esquecendo que elas existem, da mesma forma que a direção da escola esquece que os ateus existem quando transforma uma reunião

pedagógica em culto ou missa. Ninguém faz por mal, disso eu tenho certeza. É apenas o véu cegante da fé que faz com que as pessoas se comportem assim, não a maldade ou uma intenção ruim e premeditada. Mas incomoda. Sinto dizer isso, mas o fato é que me incomoda muito. Esses professores de ensino religioso comemoram com orações e mensagens bonitas o dia da páscoa, ensinando aos alunos seu valor religioso e os vejo sempre alertando os alunos contra o apego excessivo ao chocolate porque, além de ser um apelo comercial ao consumismo irracional, é também um pecado contra “o verdadeiro sentido da data”. Mas eles não fazem ideia do que significa a palavra Chanucá e – para ficar mais “perto” – não falam nada, ou pelo menos eu nunca soube de um que falasse, sobre a importância do dia de jogar rosas no mar em homenagem a Iemanjá. Talvez na Bahia. Aliás, muitos desses professores nem citam, ou mal citam, o candomblé como religião; ou ignoram totalmente como se não existisse, ou citam rapidamente como uma curiosidade folclórica, ou então, o que é terrivelmente pior, falam que é “coisa do capeta”. O fato é que, sem a intenção de maldade mas com a priorização da própria fé como norte, os professores continuam dando aulas de “estudos” bíblicos e cristianismo, as escolas continuam promovendo missas e cultos e muitas pessoas continuam esquecendo a Constituição e o estado laico e defendendo a existência da disciplina ensino religioso no currículo escolar. E que alguém tente dizer que não aprova a existência dessa disciplina! No mínimo será acusado de estar tentando tirar o trabalho dos colegas. Tenho, porém, o dever de informar que, felizmente, nem todas as escolas em que dei aulas tinham essa postura tão claramente contrária à laicidade, em algumas delas a direção conseguiu substituir as aulas de religião por outras mais úteis e menos ofensivas. Minhas homenagens a elas! Já me senti muito mal dizendo essas coisas porque tive amigas quedavam aula deensino religioso, amigas que sei serem pessoas maravilhosas, amigas que considero muito e de quem gosto muito embora não estejamos mais trabalhando na mesma escola. Eu nunca quis ofender essas pessoas, não quero magoálas,

nãoquerofazer com quepensem quetenhoalgocontra elas e nem quero tirar seus empregos ou diminuir seus salários. Mas será possível que não posso mesmo dizer que aulas de ensino religioso são um retrocesso histórico e deveriam ser ilegais por serem basicamente inconstitucionais e fundamentalmente antiéticas? Não posso mesmo defender que o assunto cidadania e a preocupação com a moral e a ética deveriam ser obrigação de todos os professores de todas as disciplinas e que a história e as características das religiões deveria ser assunto de história, de filosofia, de sociologia e até mesmo de literatura e de educação artística? Fico brava! Fico irritada! Me sinto agredida! E não quero, não posso, não consigo deixar de gritar que odeio tudo isso: e o faço! Amo do mais profundo da minha alma os meus amigos, sei que muitos deles têm suas religiões, sei também que há muitos amigos meus que, mesmo sem serem religiosos, não partilham da minha raiva, e assim mesmo eu falo! Só queria que meus amigos – religiosos ou não – entendessem que eu os amo e que não quero ofendê-los. O problema é que acho que a imposição da religião como matéria escolar é algo muito errado. Acho isso feio, acho desonesto e simplesmente não consigo ficar indiferente e calada. XV Um ateu afirma que deus não existe e, se pensar bem, afirma também que todos os agnósticos são ateus com um nome mais sonoro. Me parece que todas essas pessoas que se dizem agnósticas porque não têm certeza sobre nada e não conseguem se definir como uma coisa nem outra são ateias que ainda não sabem que o são. Não estou tentando ofender ou diminuir o agnóstico nem estou sendo irônica ou sarcástica quando falo em “um nome mais sonoro”, é que acho mesmo a palavra “agnóstico” muito mais bonita do que a palavra “ateu” e principalmente mais bonita do que a palavra “ateia” que é uma palavra realmente muito feia. Entendo perfeitamente o argumento dos agnósticos de que não estão “em cima do muro”, apenas acham que não temos e não podemos ter conhecimento suficiente para afirmar com toda a certeza que não existe e nunca existiu nenhum tipo de deus. Eu também acho isso e sou ateia!

Muitas pessoas se definem como agnósticas, mas eu tenho a forte impressão de que, pelo menos em muitos casos, adotar o termo “agnóstico” é uma forma de se dizer ateu sem assumir a palavra “ateu”, que é mais pesada porque normalmente pressupõe um tipo de militância a que o agnóstico não quer se engajar. Muitas vezes a pessoa se diz agnóstica porque está em processo de estudo e, por ser honesta, sente que não encontrou – nem vai encontrar – argumentos suficientes para negar a possibilidade da existência de deus. Acho que há ainda aquelas pessoas que se definem como agnósticas porque aceitaram como razoável o argumento de que religião não se discute e até mesmo falar sobre religião de forma contrária à crença comum pode ser uma falta de respeito com a fé das pessoas, principalmente quando não se pode provar que elas estejam completamente erradas. Mas, o que me parece mesmo é que agnóstico é ateu porque, até onde eu sei, o agnóstico não acredita de verdade no deus dos teístas seja ele qual for e não acredita no “fato” de ser sagrado o livro sagrado dos teístas seja ele qual for; mas admite a possibilidade (pela simples impossibilidade de provar o contrário) de existir ou ter existido uma mente qualquer, inteligente e interessada – ou não – que pode ter criado o universo e a vida. O agnóstico não deixa de ser, no final das contas, um humilde, uma pessoa que sabe de suas limitações e faz questão de deixar isso muito claro. Por se conhecer e reconhecer como pertencente a uma espécie insignificante e limitada, o agnóstico afirma que não se importa se esse ser, ente ou mente criadora existe ou não porque para ele não há e não haverá nunca como saber disso com certeza, então ele opta por não tomar partido. Não há como negar que é uma opção perfeitamente racional. Pois bem, eu concordo com todos esses argumentos dos agnósticos e também admito que, seja como indivíduo seja como raça, muito possivelmente não tenho e nunca terei conhecimento suficiente para negar com absoluta certeza que um tipo qualquer de mente possa ter criado o universo e a vida. Portanto, penso exatamente a mesma coisa e do mesmo modo que os agnósticos, mas me defino como ateia, por quê? Simples: porque para mim essa mente, ou seja lá o que for, que pode existir ou não e que pode ou não ter criado o universo, não será, não é e não tem como, racionalmente falando, ser chamada de deus.

Sechamá-lasimplesmentedeIniciadorouMente criadora posso estar sem nem saber me referindo apenas a um ET mais evoluído. Mas aí começaria novamente a dúvida sobre quem criou o tal ET e nós nos tornaríamos novamente ateus ou agnósticos. Dequalquerforma,emminhaopinião,napossibilidadede existir ou de ter existido uma mente criadora do universo, nós teríamos que encontrar outro nome para esse “ser” porque a semelhança dele com deus seria, mais ou menos e mal comparando, a mesma semelhança que pode existir entre um cachorro e uma xícara de chá. Talvez até se pudesse encontrar mais semelhanças entre o cachorro e a xícara de chá do que encontraríamos, caso pudéssemos ver, entre essa Mente e o deus de qualquer teísta, afinal, pelo menos, cachorro e xícara de chá partilham a existência como matéria constituída de átomos, que formam moléculas, que formam substâncias, que são acessíveis aos sentidos humanos e que estão nessa parte desse universo. Pode ser que não exista semelhança desse tipo entre a Mente criadora e o deus cristão. É por isso que eu e – acho que – a maioria dos que conseguiram se libertar das amarras da fé e se deram ao trabalho de pensar no assunto – não por sermos mais inteligentes, mas por nos interessarmos pelo tema – negamos veementemente a existência de deus e nos definimos como ateus. O agnóstico não acredita no deus bíblico porque basta ler a bíblia para ver que esse deus não faz nenhum sentido. Mas, como eu já disse antes, fazer sentido não é e nunca foi um pressuposto para a existência; afinal, se olhada mais de perto a própria Vida ela mesma não faz nenhum sentido. Tanto não faz sentido que os místicos e religiosos precisam buscar sentido para a vida fora da vida ou em outra vida. Acontece que deus, esse deus que seria, nas palavras dos teístas, o “sentido da vida”, esse sim, se existisse, teria obrigatoriamente que fazer sentido. Como poderia aquilo que serve para dar sentido a algo sem sentido não ter sentido? Parece brincadeira de salão. Deus, portanto, teria que fazer sentido; e teria que fazer sentido não apenas para os que optaram por acreditar nele, teria que fazer sentido para todos e igualmente. Teria que fazer sentido inclusive para mim.

Nessesdeusesescritoresouinspiradoresdelivrossagrados, o agnóstico não acredita porque a prova de sua não existência está no próprio texto que muitos teístas querem usar como prova de sua existência e o agnóstico sabe disso. Ele admite sim a possibilidade da existência de uma mente criadora justamente porque não há como provar que ela não exista. Usando a lógica, um Iniciador chega a fazer sentido, por isso o agnóstico fica no meio, fica “em cima do muro”, não por covardia como irônica e falsamente dizem alguns, mas por não poder acreditar nem duvidar totalmente já que falta comprovação para ambas as hipóteses. Dá um espaço aí nesse muro que também estou nele! Por conta dessas concordâncias, acho que posso dizer que, além de não acreditar em deus, não acredito também em agnósticos; e o que estou afirmando com isso é que eu também não nego nem afirmo uma “mente criadora”, ou seja lá o que for; e sei que não tenho como fazê-lo mesmo. O que estou afirmando é que me sinto exatamente como o agnóstico quanto a essa possibilidade porque não há como provar nem existência nem inexistência dessa mente. Viu? O ateu é igualzinho o agnóstico! A diferença é que sou mais ousada e mais faladora, mais audaciosa – talvez “metida a besta” seja uma expressão mais adequada – e, consequentemente mais digna da excomunhão do que o agnóstico. Também fico em cima do muro, mas fico gritando para alertar os que não estão no muro que esse chão é movediço. O que defendo e o que me faz negar o agnosticismo é que, seja lá o que for essa “mente criadora” na qual não podemos acreditar e da qual não podemos duvidar, esse ser, essa entidade, essa coisa não é a mesma coisa que deus. Essa “mente”, que pode existir ou não, precisa de outro nome; e é bem possível que não seja adequado usar algum dos nomes que filósofos mais ou menos antigos usaram (por exemplo, o Uno de Heráclito) porque esses já foram tomados como sinônimos absolutos de deus por outros filósofos e por teólogos. Pensei na denominação que o George Lucas encontrou na trilogia Guerra nas estrelas: “A Força”, mas me parece que, por ser originária de um filme de ficção e não de um termo antigo em latim, grego ou sânscrito, vai ser difícil que esse termo seja aceito; palavras tiradas de filmes não têm tradição de serem levadas tão a sério assim. Além disso, “A Força” do filme se parece mais com o deus dos teístas do que essa “mente” se pareceria.

Dequalquer forma o fato é que o nome deus decididamente não serve para essa entidade de existência possível embora improvável. Essa é a minha teoria. XVI Eu me assumo ateia e falo sobre a lógica do meu ateísmo e sobre os caminhos seguidos pelo meu raciocínio e que me levaram ao ateísmo e explico esse raciocínio, explico essa incontrolável tendência a questionar que me leva sempre a reforçar essa minha não crença. Muitas pessoas, principalmente os teístas mas não somente eles, criticam os ateus por falarem desse assunto; essas pessoas frequentemente dizem que esse tema não deve ser discutido. Mesmo em casa, mesmo dos membros da própria família é comum que o ateu ouça o conselho para não falar sobre religião; para defender e justificar esse “conselho” os críticos do ateu praticante têm uma frase da “sabedoria” popular que diz que “Política, futebol e religião não se discute”. No entanto é engraçado que existem diversos programas na televisão e no rádio cujo objetivo central, motivo de ser e de audiência é justamente a discussão sobre futebol; em época de eleição as discussões sobre política são incentivadas para que se vote certo e os debates entre candidatos se tornaram uma necessidade para ajudar o eleitor a escolher, mas programas que debatem religião simplesmente não existem, pelo menos não no Brasil, que eu saiba. E quando o ateu faz um texto ou tem a audácia de falar do assunto, muitas vezes recebe o “aviso” de que esse assunto não deve ser discutido, e até mesmo o alerta de que discuti-lo é desrespeitar a religião “dos outros”. O que eu sinto e o que todo ateu sente certamente é que há uma injustiça enorme nessas observações. Afinal, o fato é que, por mais que o ateu falasse contra a existência de deus, os que creem nele certamente já falaram e ainda falam muito mais (muito mais mesmo!) a favor da existência dele. Ao longo de toda a sua vida a maioria dos ateus foi levada às igrejas pelos pais, afinal, quase todos os ateus quando crianças receberam todo tipo de lições religiosas e foram catequizados e orientados na religião de seus pais, e isso certamente vem acontecendo desde sempre e até hoje com todas as crianças nascidas de pais religiosos. Eu fiz primeira comunhão, muitos ateus que eu conheço frequentaram igrejas

durante anos, alguns chegaram a ser catequizadores ou seminaristas. Os pais religiosos estão em grande número e os pais religiosos que procuram não influenciar na religião de seus filhos são muitos poucos, eu acho; pelo menos entre os religiosos praticantes. Não é só o ateu que recebe todo tipo de mensagem religiosa em todas as fases de sua vida – aliás, ultimamente parece que com mais ênfase e frequência – veja você mesmo, preste atenção: quantas pessoas por dia te falam de deus na televisão, no rádio, nos cartazes das ruas, nos diversos lugares que você frequenta? Quantas mensagens você recebe falando que deus te ama? Quantas historinhas ilustradas te falam das maravilhas de deus? Quantas pessoas te chamam para a igreja delas? Quantas te cercam na rua para te entregar o convite para o próximo culto, uma foto com explicações sobre quem é o santo da semana ou o último número do jornalzinho da igreja do bispo ladrão? Agora conte dentre essas mensagens quantas argumentam contra a religião, quantas dizem que deus não existe? Tenho certeza de que a quantidade de mensagens a favor da existência de deus que você recebe é muito maior do que as mensagens contra; como é o caso desta minha. O ateu já é minoria, e o ateu que assume e fala do seu ateísmo é mais minoria ainda; poucos, bem poucos, ateus se definem ateus sempre e em qualquer lugar, alguns não o fazem porque dizem que os ateus assumidos são tão intolerantes quanto os religiosos, eu acho que esses estão julgando todos por um número muito pequeno. Muitos outros ateus não têm coragem de assumir seu ateísmo abertamente porque sabem que sofrerão restrições de todo tipo, inclusive profissionais; claro que hoje não somos queimados em praça pública, pelo menos no ocidente, mas certamente uma professora ateia como eu não tem lugar em escola confessional, e isso é, queira ou não, uma restrição de oportunidade de trabalho. O ateu que assume, fala e escreve o que pensa, como estou fazendo agora, sentese um ateu praticante, esse ateu assume seu ateísmo em qualquer lugar, avisa que é ateu sempre que se descreve ou se define e, principalmente, sempre que alguém fala algo sobre religião tentando colocá-lo como cúmplice ou catequizálo.

É o que acontece comigo, percebi que somos tão minoria que antes da internet e das redes sociais, eu nunca tinha me encontrado cara a cara com um ateu; antes de conhecer pessoas via Orkut e Facebook eu nunca tinha conhecido um ateu “assim de apertar a mão”, como diz um amigo meu sobre nunca ter conhecido alguém que leu Ulisses, de James Joyce. Em todos os lugares que frequento sou sempre a única ateia presente. Só em 2012, pela primeira vez, tive uma colega de trabalho ateia, e ela nem é praticante. Muitos ateus só conseguem assumir seu ateísmo e encontrar outros ateus no mundo virtual, eles se assumiram no Orkut, em um blog, no Facebook, no twitter. Muitos, como eu, não encontram em nenhuma outra parte; escola, trabalho, família, círculo de amigos, uma única pessoa que seja como eles. Quase todo ateu assumido se sente um solitário. Os ateus em geral e eu em particular não fazemos alarde da nossa postura religiosa no nosso cotidiano, ao contrário de muitos dos teístas que o fazem em todos os lugares e em todas as oportunidades, incomode a quem incomodar. Muitos teístas, embora não achem que os ateus devam ter espaço, sentem-se, eles e só eles, no direito de sempre e em qualquer lugar fazer uma oração, publicar uma mensagem via camiseta ou adesivo de carro, aproveitar para meter um “Foi graças a deus”, “Foi a mão de deus”, “Deus operou”, etc. em todo e qualquer discurso que façam. Para constatar essa mania que invadiu a mídia basta ver os jogadores de futebol dando entrevistas; a se crer neles deus toma partido em todos os jogos, e sempre a favor daquele que está dando a entrevista. Muitos teístas têm o hábito de ouvir música religiosa em público sem fone de ouvidos, às vezes cantando junto; saem pelas ruas, ônibus, praças e trens com a bíblia debaixo do braço; às vezes vão em grupos e levam até caixa de som para, aos gritos, “espalhar a palavra”. Depois dizem que os ateus devem ficar quietos porque estão ofendendo. Os ateus são mais criticados, mas no dia a dia são muito mais discretos, principalmente em público; quantas pessoas com camiseta da ATEA ou de qualquer grupo ateu você já encontrou na rua? Em contrapartida, alguns fazem muito estardalhaço na internet, “lugar” onde, na opinião deles e na minha, não vale a pena estar caso não se tenha liberdade para expressar sentimentos, pensamentos e opiniões; desde que, é claro, não se cometa crimes e não se ofenda ninguém que não mereça ser ofendido. Desculpem, mas ofender os Malafaias, Bolsonaros e Felicianos da vida não pode ser considerado crime, e pedir a prisão do ex-papa é mais do que obrigação de quem sabe quem é esse cara. Fora da internet, mesmo o ateu assumido e praticante fala de religião apenas

quando é provocado ou quando vê necessidade disso; da mesma forma que uma pessoa avisa que é vegetariana toda vez que alguém lhe oferece carne mas não sai gritando aos quatro ventos que optou por abrir mão de ser onívora. O ateu, por mais que os religiosos gostem de afirmar o contrário na tentativa infantil de desacreditá-los, não sente de forma nenhuma que sua postura é parecida com a dos que creem em deus mas não praticam nenhuma religião; ateísmo não é uma religião por mais que alguns deístas sorriam torto e digam isso! Muitos teístas dizem que o ateu é na verdade um crente; eles justificam de diversas maneiras falaciosas essa opinião, principalmente dizendo que o ateu é alguém que crê porque crê que deus não existe. Em resposta já disseram, e eu faço minhas essas palavras, que ateísmo é uma religião da mesma forma que careca é um tipo de penteado, abstinência é uma posição sexual, televisão desligada é um canal, nudez é um tipo de roupa e seca é um tipo de chuva. É irritante ouvir esse tipo de absurdo. Essa colocação é, claro, invenção dos religiosos que, para refutar ou dar aparência de que refutaram os argumentos dos ateus, querem fazer com que se aceite coisas absurdas como o fato sem nexo de que o ateu crê em deus. Afirmam isso apenas porque o ateu fala a respeito de deus; eles dizem, e alguns até, inocentemente, creem nisso, que o fato de o ateu falar tanto a respeito de deus, mesmo que seja contra, é prova mais do que certa de que o ateu na verdade crê em deus, afinal afirmam eles, ninguém se dá ao trabalho de ficar falando e escrevendo sobre algo em que não acredita. Na opinião deles, é claro, J.R.R. Tolkien acreditava em orgs, em hobbits, em faunos e na existência da Terra Média, caso contráriopor querazãoTolkien teria escritotantos livros falando sobreeles? E AnneRicecertamenteacredita em vampiros, caso contrário por que teria ela escrito tantos livros com histórias de vampiros, não é mesmo? Lembrando que, no caso de J.R.R. Tolkien não foram escritos apenas os três volumes de O Senhor dos Anéis, tem ainda O Hobbit, Silmarillion, Contos Inacabados e As Aventuras de Tom Bombadil. O argumento de que o ateu crê em deus é tão absurdo que só pode fazer sentido para aqueles que não pensaram de verdade no que estão dizendo, ou porque não querem ver seu amigo ou parente como um “inimigo” e por isso preferem aceitar uma mentirinha confortável; ou porque estão tão cegos pela fé que não conseguem ver a possibilidade de que alguém consegue negar tão completamente aquilo que eles aprenderam que não é possível ser negado. Eles não pensaram a respeito, a ponto de não perceberem que para o ateu falar sobre deus não é uma ação, é uma reação. Se eles, teístas, principalmente aqueles que são praticantes de alguma religião e que sentem que sua missão é

“espalhar a palavra”, não falassem tanto a favor de deus, os ateus, em muitos casos, sequer se dariam ao trabalho de pensar em deus, ou na ideia deus. Até mesmo nos países livres como o Brasil os teístas – não todos é claro, mas um número assustadoramente grande deles – parece que querem obrigar o mundo a crer como eles creem e, mais que isso, a frequentar a mesma igreja que frequentam. Eu e muitos ateus, se não todos, argumentamos contra a existência de deus porque gostamos de pensar. Expor meus pensamentos e minhas conclusões me ajuda muito a pensar mais e a, de certa forma, organizar esses pensamentos; debater com teístas que conseguem fazer isso de forma educada é uma maneira de pensar sobre aspectos da religião e da crença que podem não ter me ocorrido, me ajuda a obter mais informações sobre o que e como pensam as pessoas que creem. O que acontece também é que eu, e acho que todos os outros ateus, desejamos mesmo que as pessoas pensem sobre o assunto; que pensem de verdade e pensem por si mesmas ao invés de simplesmente balançar a cabeça diante do que o padre ou o pastor diz. Gostaria mesmo de ajudar as pessoas a se tornarem mais livres porque sei, por experiência, que pensar pode não dar o prazer acomodado da irresponsabilidade de ser ovelha de rebanho, mas liberta. E não estou com isso dizendo que todo teísta é apenas uma ovelha norebanho, mas muitos são esequer sabem disso, seria bom que pudessem deixar de ser; então, mesmo que continuassem teístas, seriam certamente teístas mais conscientes e, consequentemente menos preconceituosos e melhor informados. XVII Outra coisa que me incomoda muito é que toda vez que aceito conversar sobre deus com alguém, mais hora menos hora, se a pessoa não desiste simplesmente, ela corta o assunto me acusando de ser infeliz. Sempre vem uma frase mais ou menos assim: “Eu sou feliz e creio em deus, se você é infeliz e não acredita o problema é seu.” E isso depois de eu ter afirmado que quando falo sobre a vida e os horrores da vida estou falando no geral. Que parte de “no geral” essas pessoas não entendem? Para esses teístas talvez eu devesse começar cada página desse livro com o seguinte aviso: “Sou ateia mas não sou infeliz, acho a vida horrível mas a minha vida é ótima!” Será que assim vão parar de me julgar uma velha infeliz e frustrada, ou uma “sapatona mal amada” como já disseram mais de uma vez?

Será que sou e serei sempre, na visão de algumas pessoas que me leem, obrigatoriamente infeliz só porque não passo a vida olhando para o meu próprio umbigo? Embora compreenda que em geral nem é culpa dessas pessoas, embora compreenda que elas estão apenas aceitando como fatos e verdades tudo o que dizem seus líderes religiosos, embora compreenda que por acreditar nesses líderes elas não param para pensar mesmo e a fundo nessas questões, chega a ser revoltante ver que muitas pessoas acreditam em deus porque são felizes e atribuem a deus o fato de serem felizes enquanto esquecem que milhões de pessoas são infelizes porque lhes falta até o mínimo que um ser humano precisa para viver com dignidade. Na verdade a maioria das pessoas que passaram pelo planeta ao longo de toda a história da vida do ser humano na terra nunca foi feliz, e a maioria dos que passarão pelo planeta ao longo de toda a história que ainda resta para a vida do ser humano na terra nunca será feliz. Nem passa pela cabeça desses teístas felizes a possibilidade de que deus está negando a uma imensidão de pessoas a felicidade que dá a eles sem que nada justifique racionalmente essa preferência; não pensam que se deus existisse isso seria uma injustiça. O fato de serem favorecidos por essa injustiça faz com que deixem de ver que, se deus existisse, a responsabilidade por cada um desses infelizes seria dele. E sequer percebem o quanto estão sendo egoístas! Agradecem a deus porque têm bens materiais, saúde, família, amor e esquecem que milhões de outras pessoas não têm nada disso e que, se existisse mesmo um deus que deu a eles tudo o que eles têm seria obrigatoriamente o mesmo deus que teria negado essas mesmas coisas a outros milhões de pessoas, e seria portanto um deus injusto e mau. Em geral ouvir os teístas e seus louvores a deus dá na gente a impressão de que não olham para fora de si mesmos, dá a impressão de que não leem jornal, não veem televisão, não ouvem rádio, dá a impressão de que nem sequer tomam conhecimento das desgraças que acontecem a seu redor e com seus vizinhos de bairro ou rua. No entanto, o discurso é diferente quando eles – em geral provocados por

alguma calamidade recente – parece que esquecem que são teísta porque não estão nunca falando de deus eparticipam das citações, referências ecomentários sobre as coisas ruins que acontecem no mundo a seu redor. Quando se fala das infelicidades, catástrofes e calamidades, sejam de longe ou de perto e eles participam da conversa. Então – desde que não apareça nenhum ateu para citar deus como possível responsável – é como se para eles também deus não existisse. Em outras situações e quando tentam explicar sua fé fica parecendo que para eles a existência de deus torna tudo maravilhoso. Por que será que tantos tendem a tirar a conclusão de que tudo é maravilhoso só porque tem coisas boas no seu pequeno mundinho? Será tão difícil assim olhar para fora da sua concha? Tenho que afirmar novamente: Atenção gente, atenção todo mundo, que fique bem claro e que todos saibam. EU SOU FELIZ! Tenho onde morar, tenho amigos, tenho amor, tenho um filho do qual me orgulho, tenho tudo que qualquer pessoa feliz pode ter e que qualquer pessoa pode querer para ser feliz. Falando novamente: Eu sou muito feliz! EU. Meus maiores problemas, minhas maiores raivas e minha maior infelicidade vêm das notícias que recebo via jornais e revistas, com fotos de fome, guerras e desastres; vêm das crianças e adultos que vejo jogados pelas ruas sempre que saio de casa, vêm até mesmo da visão da vitrine do açougue e do olhar altivo do milionário que passa em seu iate sem enxergar ninguém abaixo da sua linha de visão medida em dólares. O que acontece é que tenho senso de ética, tenho senso de moral, tenho senso de justiça. Não que muitos teístas não tenham também senso de ética, moral e justiça muitas vezes até maiores e mais apurados do que o meu, mas é que muitos desses teístas não conseguem pensar da forma que eu penso porque tenho a mente livre da fé e eles não. A fé muitas vezes faz com que a ética, a justiça e a moral fiquem em segundo lugar até mesmo sem que a pessoa perceba, principalmente na hora de avaliar algumas coisas e situações que envolvem deus mais diretamente. Meu senso de ética, de moral e de justiça, por ser livre da venda da fé, pode se aplicar a qualquer coisa ou situação, inclusive a deus, um campo minado para o teísta. E quando olha para esse deus cuja ideia os teístas cultivam, o que meu

senso de ética, de moral e de justiça vê é um ser que, se existisse, não seria ético, não teria moral e não seria justo. Daí que não posso, não sei enão consigo levantar louvores a deus se existir um deus que me deu tudo que tenho sem ter dado a mesma coisa para o resto do mundo. Não sou melhor do que o coitado que morre de câncer depois de muito sofrer e muito rezar, por que mereço ter saúde e ele não? O que os teístas não se cansam nunca de falar é que se tenho saúde, tenho saúde porque deus, em sua infinita bondade, me deu saúde, e por isso devo agradecer a ele e amá-lo; esse discurso não faz o menor sentido para mim. Eu tenho saúde mas milhões de pessoas no mundo não têm; um deus bom teria dado saúde a todos, não só a mim, não só a uns poucos privilegiados escolhidos aleatoriamente. Por que tenho que agradecer a deus se ele foi injusto? O fato de a injustiça desse deus ter me favorecido, afinal não morri de câncer e o outro morreu, torna menos injusto o que aconteceu? Em minha opinião não. Se existisse um deus tão poderoso quanto os teístas afirmam o que eu teria a dizer para ele seria isso: dispenso privilégios! Como já disse antes, acho que as pessoas que usam o exemplo da cura das suas mazelas como prova da existência de deus estão sendo muito egoístas, egoístas e desonestas. Elas nem sequer se dão conta do quanto estão sendo desonestas, mas estão! Elas nem percebem que estão o tempo todo apenas olhando para o próprio umbigo, mas é o que estão fazendo. Tenho muita pena dessas pessoas! Elas, muitas delas, são boas, são generosa, são maravilhosas em vários aspectos da vida, mas nesse particular não são, e nem percebem o quanto são más! Elas agradecem um ser por ter dado algo a elas e negado a outros e dizem desse ser que “deus é justo”, mas elas mesmas se vissem um pai dar um prato de comida a um dos filhos e deixar o outro com fome diriam desse pai que ele é injusto, mau, criminoso. É curioso, é estranho, é incompreensível que na cabeça dessas pessoas boas um mesmo ato, se praticado por um ser humano, é crime ou maldade, mas quando praticado obviamente e às carradas por seu deus é um bem pelo qual o favorecido deve sentir-se grato; essa injustiça óbvia não consegue tirar de deus os qualificativos de bondade e de justiça que querem ver nele a qualquer custo,

mesmo ao custo do próprio sentido da palavra justiça. Quando afirmo que não acredito no deus delas, muitas pessoas cortam relações comigo, me chamam de infeliz e frustrada. Algumas ainda me ameaçam com o inferno eterno ou preveem que um dia algo de bom acontecerá em minha vida e aí então vou creditar no deus delas. Mas se algo bom acontece para mim ao mesmo tempo que “algos ruins” acontece para milhões de pessoas, não vou passar a acreditar em deus, pelo contrário. Muitas e muitas vezes algo bom já aconteceu para mim. Nesses momentos, quando na opinião dos teístas eu deveria estar mais feliz, agradecida e certa da existência, da grandeza e da bondade de deus, é justamente nesses momentos que duvido mais; e se acreditasse ficaria com raiva dele e não agradecida. Cada desgraça, cada calamidade, cada caso de doença, cada acidente fatal, cada morte prematura, cada nascimento depessoa com deficiência física ou mental, cada assassinato, cada bomba, cada arma, cada dentada que um animal dá na carne de outro animal para mim são provas cabais da não existência de deus. Não importa quantos sorrisos me venham, cada lágrima do outro está me mostrando que deus não tem como existir. Antes que alguém me acuse de mais essa, deixa esclarecer: Não, não sou boa, não me acho um poço de bondade, não me acho acima de qualquer crítica. Sei que sou má, sei que muitas vezes faço coisas erradas, piso na bola, faço julgamentos injustos, tomo decisões precipitadas e até (isso eu juro que é sempre sem querer) ofendo ou magoo as pessoas. Mas pelo menos sou má com conhecimento de causa. Sei que sou má, por isso estou sempre tentando melhorar; as pessoas que creem e louvam esse deus injusto são más, ou pelo menos estão sendo más no momento em que o estão louvando, e não sabem disso, são más, ou estão sendo más, todas as vezes que agradecem a deus por ter dado a elas o que negou a milhões, mas por não saberem disso, por não enxergarem essa maldade que praticam e que trazem dentro delas, não têm como tentar melhorar. Por que eu e não todo mundo? Por que algumas pessoas e não todas? Por mais que eu afirme para os deístas que o deus deles, se existisse, seria ruim e injusto demais para que euao menos o respeitasse, não adianta. Em geral não consigo sequer explicar o que penso e o que sinto porque; e isso é uma coisa muito

curiosa; os teístas sempre preferem falar do que ouvir, eles estão sempre pregando, sempre “espalhando a boa nova”, sempre catequizando. Alguns deles repetem o jargão da minha suposta infelicidade e terminam com a afirmação oca e sem sentido de que Jesus me ama. Chego a ter dúvidas sobre o nível de alfabetização esobre a capacidade de compreensão da língua portuguesa de algumas dessas pessoas. Eu digo: Se deus me deu, por exemplo, uma casa mas tem milhões de pessoas sem casa, então não vou agradecer a ele pela minha casa; na hipótese de que ele exista, vou chamá-lo de injusto e cruel por ter dado uma casa a mim e não a outros milhões de pessoas que mereciam mais do que eu ter uma casa e que, apesar disso, enquanto estou confortavelmente instalada entre minhas paredes e abrigada sob meu teto elas estão dormindo sobre papelão e abrigadas por folhas de jornais, ou morando embaixo de pontes e viadutos dos centros das grandes cidades ou ainda se abrigando em casebres caindo aos pedaços espalhados pelos quatro cantos do mundo. Eles dizem: Mas se tem tanta gente sem casa não é culpa de deus, é culpa do homem e da ganância que não permite uma justa distribuição de renda. Aí dou meu sorriso irônico e respondo: Mas peraí, se tenho uma casa e isso é prova da bondade de deus que deu essa casa para mim, e se o fato de outro não ter uma casa é culpa da ganância dos homens tem alguma coisa errada nessa equação. Será que só eu estou percebendo uma falácia aqui? Dois mais dois está dando cinco. Como é que pode logicamente e com justiça um mesmo bem ser dádiva de um deus para uns e, para outros, ser roubo praticado por humanos imperfeitos? Explicando melhor: como é que posso atribuir a falta de casa daquele que não tem casa à ganância dos homens e a existência da minha casa a deus? Como posso não atribuir a deus a culpa por ter permitido que a ganância dos homens tivesse roubado a casa dos que não têm casa? Se deus pode dar uma casa para minzinha, que não fiz nada e que não sou nada de especial, por que não pode fazer a mesma coisa para outras pessoas que até fizeram por merecer? Se a ganância dos homens não impediu deus de me dar uma casa, por que essa mesma ganância o impede de dar uma casa às outras pessoas? Ele não é poderoso o suficiente e não é bom o suficiente para que seus desejos sejam maiores do que a ganância dos homens?

E, não esqueçam, isso que estou dizendo sobre a casa vale para tudo, da casa à existência da doença incurável. Decididamente acho mais fácil acreditar em acaso e em coincidência. Pensar na possibilidade de existir um deus assim tão injusto me dá muita raiva; a existência de deus não faria bem à minha saúde. Nesse ponto dos meus argumentos os deístas em geral param a discussão. Quando questiono a justiça de um deus que privilegia alguns em prejuízo de outros, talvez justamente por uma espécie de vergonha inconsciente motivada pelo fato de já terem me contado o quanto são eles próprios privilegiados, o quanto são gratos a deus e, por tabela, o quanto não percebem a injustiça por causa do orgulho de serem favorecidos por ela, eles não conseguem mais continuar a conversa. E me contaram tudo sobre o quanto são privilegiados e favorecidos numa tentativa ingênua de me convencer da existência e suprema bondade de deus! Então eles param de me responder, ou mandam uma última mensagem me acusando de infeliz e informando que eles são felizes e por isso creem e agradecem a deus, às vezes até me acusam de estar sendo mal educada. Nãoentendoondeéquedeus escondeosenso de justiça de algumas das pessoas que creem nele, e não entendo também como é que ele tira delas a capacidade de compreensão de um raciocínio lógico tão simples. Como sei que não vou entender isso nunca, nunquinha, jamais. Vouapenas reiterar aqui enovamente minha afirmação: EU NÃO SOU INFELIZ, sou apenas ateia! XVIII Todos os ateus têm amigos religiosos. É preciso que tenham por dois motivos; um é que, ao contrário do que alguns religiosos mais radicais pensam a respeito deles, os ateus mesmo não consideram os religiosos como pessoas abomináveis, muito pelo contrário. Todo ateu sabe, conhece e reconhece que existem pessoas maravilhosas no mundo e à sua volta que são religiosas, e todo ateu sabe também que essas pessoas maravilhosas pertencem a diferentes religiões e têm maneiras diferentes de cultuar seu deus. O outro motivo é que se o ateu for cultivar a amizade apenas de outros ateus, além de – por um preconceito idiota como o são todos os preconceitos – perder a oportunidade de conhecer pessoas maravilhosas que são teístas, ainda ficará sozinho porque terá muita dificuldade em encontrar outros ateus por perto.

As pessoas maravilhosas que conheço e as que sei que existem mesmo sem conhecer, está claríssimo para mim que não são maravilhosas por causa da religião que professam, pelo contrário, a religião que professam é que fica menos ruim porque essas pessoas estão nelas. Em minha opinião as pessoas são maravilhosas por elas mesmas, nunca por causa de suas religiões. Mas o que às vezes me dá até um certo medo é que me parece ser muito verdadeira a frase de Steven Weinberg que diz que “Mesmo sem religiões você teria pessoas más fazendo coisas ruins epessoas boas fazendocoisas boas. Para pessoas boas fazerem coisas ruins é necessária a religião.” Tudo bem que o mesmo papel de levar pessoas boas a fazerem coisas ruins também pode ser exercido por outras ideologias nocivas, como foi o caso, por exemplo, do comunismo na Rússia, mas acontece que a religião é a ideologia mais facilmente disseminada no mundo e, por isso, é, em minha opinião, a mais nociva e a mais assustadora. Sei que para muitas pessoas dizer que a religião é uma ideologia nociva pode soar como ofensa pessoal, mas não há nessa minha colocação a intenção mais remota de ofender pessoa alguma, seja de que religião for. Basta que qualquer teísta olhe para a história e para a história das religiões para que ele mesmo, caso não seja um fundamentalista, perceba que, como instituição, a religião tem sido quase sempre e desde sempre uma ideologia negativa. Para quem, como eu, está de fora e olha para a religião como um todo e não apenas para uma determinada religião – por mais que reconheça que existem muitas pessoas boas em todas elas – não tem como ver a instituição religião de outra forma que não seja essa: uma ideologia negativa e assustadora que desejo e espero que não cause mais danos do que já causou porque espero e desejo que essas pessoas boas que aderiram a essas religiões – e não entendo por que – não permitam que isso aconteça. Muitas coisas ruins, além da religião, existem no mundo. Nenhum ateu em sã consciência acusaria as religiões institucionalizadas de serem os únicos males do mundo, nem mesmo de serem o maior dos males do mundo, acho. Reconheço inclusive que há muitos casos de criminosos e infelizes de vários tipos, como drogados, assassinos, ladrões e vagabundos que, por causa da religião, acabam por abandonar seus vícios e suas condições ruins e se tornam pessoas melhores;

embora saiba, e os teístas menos fanático têm que reconhecer também, que em muitos casos essas pessoas saem de seus vícios ou de sua condição ruim mas se tornam uns chatos fanáticos que dão mais a impressão de ter trocado um vício pelo outro; mas, enfim, por um outro teoricamente menos danoso. Sei queter chamado religiãode vício danoso, como no final das contas acabei por fazer acima é algo que pode novamente ofender muita gente, mas venhamos e convenhamos, um ser psicologicamente perturbado que troca o crime ou o vício pela religião se torna facilmente um fanático, é facilmente manipulável e pode sem grandes trabalhos ser usado para as práticas nada humanitárias às quais fanáticos de todas as religiões aderiram no passado e aderem ainda hoje em alguns lugares do mundo. Bem manipuladas, essas pessoas e depois outras e mais outras podem ressuscitar práticas tidas como totalmente mortas. Posso parecer excessivamente alarmista, mas não acho que seja tanto exagero assim da minha parte afirmar que a crescente influência atual da religião na política, por exemplo, pode desencadear uma moderna Inquisição. É comum que se pense que em nosso mundo moderno, cercados das mais altas tecnologias, estamos longe da barbárie e de um passado de horror e intolerância que se encontra apenas nos livros de história, mas isso não é totalmente verdade e basta olhar ao redor para ver. Em praticamente todos os quarteirões há uma igreja e nelas sempre há um esbravejador profissional capaz de manipular as mentes que querem ser manipuladas, e elas são muitas. Não pensar é bom, não pensar é cômodo, não assumir responsabilidades, não tomar decisões, agir quando e como mandam agir e ainda receber em troca uma eternidade de delícias num paraíso ilógico mas extremamente tentador quando finalmente sair desse nosso mundo de dores e sofrimentos é uma proposta vantajosa demais para não arrebanhar multidões acomodadas; sempre foi assim, sempre será assim. Daí que, por ser cética também quanto à crença na hipotética evolução moral do homem, não consigo ver como impossibilidade uma onda de loucura que predomine e que leve pessoas – inclusive pessoas boas – a achar, como acharam no passado, que o livro sagrado deve ser seguido à risca e que alguns discordantes são responsáveis pelos males maiores e por isso devem ser eliminados. Seria um retrocesso enorme sim, mas a história mostra que já

retrocedemos antes. De qualquer forma, alarmismos à parte, o fato é que as pessoas são fracas demais e manipuláveis demais para perceberem que poderiam ter saído da criminalidade ou do vício com uma boa dose de força de vontade, de tratamento e de ajuda de amigos e familiares, isso sempre e certamente se elas, com elas e para elas, decidissem aceitar essa ajuda externa e colocar suas forças internas em prol dessa mudança. Essas pessoas dificilmente percebem que se assim fizessem não precisariam da religião e não precisariam trocar um vício pelo outro, uma dependência pela outra. Principalmente depois de cooptadas pelos líderes religiosos, as pessoas não conseguem ver de forma alguma que poderiam conseguir o mesmo “milagre” sem a religião e que nesse caso sairiam livres e senhoras de si. Não sabem que sairiam certamente melhores do que são os fanáticos religiosos porque nessa altura já se tornaram fanáticos religiosos. Muitas pessoas que são viciadas ou criminosas têm em si e nos amigos e familiares; principalmente antes de mergulhar fundo demais e perder todos os que realmente se importam; a força, toda a força de que precisam para sair dessa situação, mas não o fazem porque não sabem que têm essa força. Por não acreditarem em si mesmas elas têm necessidade de atribuir a própria força a um algo externo e esse algo externo o líder religioso a convence de que é deus. As pessoas na verdade conseguem muitas coisas por elas mesmas e usando apenas os poderes humanos que possuem e que podem encontrar à sua volta mas, por não acreditar na verdade desse poder que têm, sentem-se coagidas e são convencidas a atribuir o resultado que conseguiram basicamente por elas mesmas a esse ser imaginário que um espertalhão pode convencê-las de que existe, de que foi quem as mudou e de que esse ser quer que elas façam coisas em troca, coisas como dar parte do seu dinheiro, fazer propaganda via pregação e – como possibilidade apenas – eliminar a concorrência. O que coloquei acima não acontece apenas quanto aos casos mais graves como vícios e crimes, acontece também quanto a coisas bem mais simples do que isso, como uma dor de cabeça de cunho emocional ou uma determinada fobia. É extremamente comum pessoas afirmarem que foram curadas de mazelas desse tipo depois que aderiram a determinada religião ou começaram a frequentar determinada igreja; o que não percebem e não aceitam é que elas se curaram a

elas mesmas, que se tivessem pensado na própria força e na própria capacidade em lugar de pensar em deus ou em determinado santo teriam conseguido o mesmo resultado sem ter de pagar dízimo. Essas pessoas também são manipuláveis e também podem, talvez com um pouco mais de trabalho do que os exemplos anteriormente mencionados, ser convencidas de que estão fazendo determinada coisa porque “deus quer”. Na verdade muitas pessoas já foram convencidas disso com respeito a algumas coisas, elas acreditam que pagar o dízimo é algo que deus quer que elas façam e os resultados das eleições mostram todo ano que muitas pessoas acreditaram que deus queria que votassem em determinado candidato; ou no próprio pastor quando esse se candidata a fim de impor os dogmas de sua religião como leis do estado. E acreditaram nisso porque o padre ou pastor cabo eleitoral ou ainda o pastor candidato disse que era assim. E, seguindo essa linha, com um pouco mais de trabalho ainda por parte dos aproveitadores fanáticos, essa determinada coisa que “deus quer” que façam pode ser inclusive algo que fere os direitos humanos. Chegar a isso não é tão impossível assim quando se é levado a acreditar que um livro que estimula preconceito é a “palavra de deus”. Sei perfeitamente que, no caso dos vícios pesados, fui um tanto quanto insensível e talvez até exagerada nessa minha aparente certeza de que os viciados crônicos conseguem mesmo, caso queiram, sair do vício sem a ajuda da religião. Sei que não é fácil, sei que vão dizer que estou falando de algo que não tenho ideia do que seja porque nunca vivi isso “na pele”, mas a minha razão para dizê-lo baseia-se em dois pontos principais. O primeiro é o fato de ver e saber que as pessoas que se recuperam pela religião o fazem através de diversas religiões; acho que todas as religiões do planeta, passadas e presentes, têm sua lista de fieis “ex-alguma-coisa”; então concluo que não é o deus ou a religião que “cura” a pessoa, mas a pessoa mesma que, levada pela força de sugestão desse grupo, por suas promessas atraentes e pelas possibilidades de entrosamento e sentimento de importância, exclusividade e preferência que as religiões incutem naqueles que abraçam suas crenças, consegue se curar; acho que a pessoa consegue encontrar a força que não tinha por conta do amor próprio que passa a ter. Outra razão é que já vi uma pessoa que saiu do vício das drogas sem ser através

da religião, saiu pelo próprio desejo – nesse caso específico – de ter uma família, um trabalho, uma vida “normal”, daquele tipo que muitas vezes nos deprimem mas que em alguns momentos e para algumas pessoas pode ser um objetivo na vida. Nesse caso que conheci de perto alguns podem dizer que foi o amor romântico que conseguiu o “milagre”, em minha opinião e sem tirar a importância do amor romântico, foi mesmo o desejo burguês de ter uma casa com geladeira, filhos e contas pra pagar. Pode parecer deprimente à primeira vista, mas a forma como vi essa pessoa assumir suas obrigações de marido, pai, companheiro, provedor, e o fato de que foi dessa forma que se identificou como pessoa por todos os anos seguintes, me faz pensar que estou certa. Enfim, cada pessoa tem seus sonhos e seus desejos e alguns sonhos, por mais que pareçam pequenos a muitos de nós, podem ter para outros, a força descomunal que frequentementedizemserpossívelapenasnatranscendência. Eu é que não vou tentar negar o sonho de alguém. Enfim, oque espero e desejo como ateia é que as pessoas que são boas, justas e íntegras acima e apesar da religião a que aderiram estejam em número suficiente e tenham força suficiente para impedir que todos os meus receios alarmistas se concretizem um dia. Não aceito a existência de deus como uma verdade e por isso não tenho fé nele, mas quero e quero muito crer nas pessoas boas e na capacidade delas de, se não conseguirem fazer um mundo melhor, ao menos impedirem que esse piore muito. XIX Tem gente que acredita em deus, estão em maioria, são felizes porque colocam tudo “nas mãos de deus” e vivem suas vidas, alguns confundindo piedade com egoísmo e fé com discriminação e outros realmente construindo vidas iluminadas dia a dia pelo bem que estão sempre plantando à sua volta. Existem, em contrapartida, aqueles que, como eu, não conseguem, não sabem, não têm condições de acreditar nem em deus nem em paraíso eterno porque quando pensamos nessa possibilidade, em lugar de nos trazer conforto, ela nos revolta e nos enoja.

Se disséssemos que acreditamos estaríamos mentindo, e já fizemos isso durante séculos para evitar a fogueira da Inquisição. Há lugares do mundo onde os ateus mentem ainda hoje porque negar o deus que todos cultuam ainda é crime passível de pena de morte em alguns países. Mesmo em países ocidentais e que, pelo menos no papel, se definem como democracias, como é o caso do Brasil, nem todos os ateus assumem seu ateísmo em qualquer situação e circunstância, afinal, nem todos gostam de receber olhares atravessados ou ouvir gritos quase histéricos do tipo “Como? Você não acredita em deus?” em plena rua ou em outros lugares públicos quando alguém tenta pregar suas crenças e você, educadamente, diz que é ateu. Estou falando de experiências que eu mesma já tive; em uma dessas vezes todo mundo no restaurante se virou para olhar e meu marido achou que a mulher fosse me bater. Felizmente ela não o fez, era bem maior e eu teria apanhado feio. De qualquer forma, o que quero dizer é que ateísmo não costuma ser uma escolha. Na maioria dos casos, se não em todos, não é por querer, não é de propósito, é por incapacidade mesmo; nós simplesmente não conseguimos acreditar no deus, ou nos deuses que nos mostram, e por não conseguir acabamos perdendo a oportunidade de fazer parte de um grupo de apoio muito forte e perdemos o direito a um consolo muito confortador diante dos muitos problemas que, como todo ser humano, nós, ateus, também temos. Ou seja, no final das contas parece que quem sai mal nessa história é mesmo o ateu, seja pela rejeição provocada pelo preconceito, seja pelo risco de vida provocado pelo fanatismo – felizmente não aqui no Brasil, ainda – ou mesmo pelo fato de que crer é confortador quando se consegue crer e esse tipo de conforto é inacessível a nós. Mas, mesmo assim e apesar de tudo, nós não conseguimos acreditar. Será mesmo por pura teimosia? Tem gente, inclusive, que setorna ateia justamente quando procura ficar mais próxima de deus. Ouvi uma pessoa contar que foi ler e pesquisar a bíblia e outros textos religiosos com o objetivo de encontrar argumentos para poder dizer e provar para os ateus que eles estavam errados; o que aconteceu foi que todo argumento ateu que tentava derrubar, porque para ele e sua fé parecia claro que tal argumento só podia ser falso ou mentiroso, acabava se mostrando correto. Ele contou que isso era mais desconcertante ainda quando se tratava do que os ateus diziam a respeito da bíblia.

Um ateu falava de uma coisa terrível que deus fez e dizia que estava na bíblia, ele ia procurar e estava mesmo. Daí ele conversava com um pastor ou teólogo – maior conhecedor da “palavra” – e este dizia que o ateu via a passagem fora do contexto, então ele lia mais e não conseguia perceber nenhum contexto que justificasse aquele horror. Essa pessoa viu que simplesmente não há razão lógica nenhuma para acreditar que deus existe e se tornou um ateu militante. Claro que nem todo teísta que estuda para argumentar com ateus se torna ateu, menos ainda ateu militante, mas o risco existe e uma vez que procurar deus pode levar ao ateísmo, parece mais segurofazer como muitos teístas fazem: acreditam que já o encontraram e param de pensar nisso. Tem gente que faz exatamente assim. Uma amiga minha muito querida me disse com todas as letras exatamente isso: “Prefiro não pensar nisso porque se pensar sei que vou parar de acreditar e não estou preparada para viver sem deus na minha vida”. Eu não consegui deixar de lembrar de quando era pequena e ouvi uma menina dizer que papai Noel não existia, saí de perto e não quis pensar nisso, não quis nem falar mais com aquela menina porque queria continuar acreditando em papai Noel. Lembro que procurei minha mãe e meu pai e confirmei com eles que papai Noel existia sim, disse a mim mesma que meu pai e minha mãe sabiam muito mais do que aquela menina boba e consegui continuar acreditando em papai Noel mais um tempo. Não muito tempo. Mas quanto a deus não consegui usar o mesmo processo, eu já sabia há muito tempo que meu pai e minha mãe não sabiam mais do que os cientistas e filósofos que li; e como li a bíblia de capa a capa, não tive como não comprovar por mim mesma que tudo aquilo simplesmente não fazia sentido. Fui incapaz de fazer como minha amiga, mas não vou nunca tentar convencê-la de que está errada. O fato é que algumas pessoas, quando se arriscam a pensar mais a fundo – se conseguirem se libertar do medo do castigo ou do inferno e abrir mão da segurança que a crença lhes dá – sentem que não ficariam bem e não viveriam nunca em paz com esse deus criador caso acreditassem na existência dele. Sou uma dessas pessoas; não consigo ver nem bondade nem justiça nessa ideia que chamam deus. Penso que, pelo menos nesse assunto, sou racional e teimosa demais para aceitar

sem questionar, e quanto mais questiono mais vejo que os pontos negativos desse deus são muito maiores e estão em muito maior quantidade do que os pontos positivos que tanto insistem em apontar os que creem. O que de verdade faz sentido para mim é que só existem pontos positivos nas pessoas que acreditam em deus, não no próprio deus. E comprovo isso com muita ênfase quando vejo pessoas boas se recusarem a obedecer determinações erradas da sua religião e pessoas más totalmente dispostas a abraçar até mesmo as determinações religiosas mais terríveis. E eu vejo isso o tempo todo. Acho que as pessoas que são excessivamente questionadoras e teimosas, quando por alguma razão conseguem se libertar do medo que a religião sempre tenta incutir em todos nós desde a infância, sentem que têm que ser ateias para não odiar deus porque elas sabem que, caso existisse, os sentimentos que seriam capazes de nutrir por ele seriam esses: ódio, aversão, asco, nojo, horror. E é odiável odiar! O amor é tão melhor e tão mais gostoso! Fica tão mais fácil e tão tranquilo simplesmente perceber que deus não existe e que somos livres para amar as pessoas reais em lugar de uma invenção que só nos desperta sentimentos negativos. Ironicamente, apesar de ser sempre acusada de odiar deus porque não tenho competência para viver bem, o fato é que o ateísmo é para mim uma maneira de não odiar. Eu me sinto livre e leve sendo ateia! Meu ateísmo me permite aceitar a vida como um acaso fortuito, raro e às vezes maravilhoso; graças ao fato de não acreditar em deus posso aceitar a natureza comoparte de um todo equilibrado sem consciência, sem culpa e sem propósito. Por causa do meu ateísmo posso ver as coisas como são sem me revoltar, posso aceitar a vida e a natureza como elas são sem me sentir injustiçada e aprisionada por um ente mau e sádico. Eu não me sentiria livre se acreditasse. É comum, quando exponho minha opinião sobre como o deus em que as pessoas acreditam é terrível – o que significa apenas explicar como deus seria abominável se existisse – receber como resposta, em tom piedoso e algumas vezes carregado de ironia, frases desse tipo: “Você deve ser muito infeliz para odiar deus tanto assim”, ou a piedade vem em forma da pergunta “Por que você odeia deus? Provavelmente você passou ou está passando por algum sofrimento muito grande e isso fez com que você brigasse com deus. Entregue seu coração a ele que essa dor passará”.

A razão de falarem assim com os ateus pode ser que os teístas talvez não consigam conceber, nesse caso, a lógica de que não se pode odiar o que não existe; como para eles deus existe e apenas aventar a hipótese contrária é impensável (um pecado mortal) eles simplesmente não conseguem perceber que não podemos odiar deus. Mas pode ser também que estejam apenas tentando desmoralizar o ateu – principalmente se tiver ouvintes – e “ganhar” a discussão. Em um e no outro caso o teísta está enganado porque ele pode até convencer outros teístas que pensam como ele – se é que se pode chamar isso de convencer – mas para nenhum ateu esse argumento pode fazer qualquer sentido. Eu não odeio deus, eu o odiaria SE ele existisse, e muitas vezes odeio o que essa ideia-deus faz com as pessoas, odeio o fanatismo que essa ideia-deus coloca nas pessoas e que as leva a serem preconceituosas, a rejeitar o diferente a ponto de querer destruí-lo, a cometer crimes terríveis que vão desde a segregação até o genocídio; odeio essa capacidade que, em nome dessa ideia-deus, as pessoas têm de pensar e, infelizmente, fazer as coisas mais absurdas e prejudiciais, de cometer crimes até, sem sequer se darem conta disso e acreditando, porque a ideia-deus incutiu essa crença nelas, que estão fazendo algo de bom. É isso que odeio; não deus. Além disso, muitos ateus não são infelizes, não passaram nem estão passando por nenhuma “provação terrível” e não se tornaram ateus simplesmente como uma brincadeirinha infantil de “Tô de mal” com deus. Não posso negar que acontece, algumas vezes, de o crente estar certo sobre determinada pessoa que se diz ateia, mas o que acontece em geral é que pouco tempo depois essa pessoa acaba voltando para a igreja, em alguns casos apenas muda de uma igreja para outra que agora define como “a verdadeira” e sente que se disse ateu apenas porque estava na igreja “errada”. Em muitos casos essa pessoa dá seu testemunho no púlpito, às vezes até se torna um pastor, prega com convicção e ganhamuitosadeptossedefinindocomo“exateuconvertido”. Há casos inclusive de pessoas extremamente cultas que se diziam ateias, mas que por alguma razão se converteram e se tornaram verdadeiros ativistas da “fé-racional”, dois nomes que se enquadram nessa definição são C. S. Lewis, autor das Crônicas de Nárnia, e o doutor Francis Collins, ex-diretor do Projeto Genoma Humano, duas pessoas que transformaram suas conversões em livros e influenciaram muitas outras pela

inteligência com que manipularam seus argumentos em favor da crença. Mas na maioria dos casos – e possivelmente em todos – o fato é que na verdade essas pessoas nunca foram ateias. Acho que um ateu mesmo não deixa de ser ateu, não sou especialista, não acho que possa provar; o livro Cérebro e Crença, de Michael Shermer (SHERMER, 2012) me deu respaldos científicos para me fazer ainda mais convicta de que minha tese não é nenhum absurdo. Na minha opinião, simplesmente não existem ex-ateus – e isso vale para a pessoa comum que “brigou com deus” porque teve uma grande perda, um grande desgosto, um grande problema, rezou, pediu e não foi atendido; vale para a pessoa comum que apenas “ainda não tinha encontrado a igreja certa” e vale também para os grandes cérebros como C.S. Lewis e dr. Francis Collins, que na minha opinião queriam crer mas ainda não tinham encontrado maneiras de justificar “racionalmente” essa crença – acho que, independente do “depoimento” que deem ou dos livros que escrevam, não há essa possibilidade de um ateu se tornar teísta, menos ainda teísta convicto e militante, isso porque para mim Albert Einstein estava certo: “A mente que se abre a uma nova ideia, jamais voltará ao seu tamanho original”. Por favor, que não fiquem ofendidos os eventuais teístas que me lerem, se é que algum o fará; não estou chamando teístas de ignorantes; não sou ignorante a ponto de desconsiderar a existência de teístas muito inteligentes e racionais, conheço e conheci pessoalmente vários deles, seria extremamente idiota da minha parte negar isso. O que afirmo é que para se tornar ateu é preciso se libertar de correntes muito fortes, é preciso se conscientizar de que havia correntes, é preciso usar para com a religião a mesma lógica que usamos para outros aspectos da vida, é preciso analisar os aspectos religiosos muito mais a partir do não-eu do que a partir do eu. Não é fácil e a maioria das pessoas – independente do seu grau de cultura ou da sua inteligência – simplesmente não consegue. Mas quando alguém faz isso, não há como voltar atrás. Por isso digo que não acredito em deus, nem em ex-ateus. XX Algumas pessoas deixam de crer em deus quando enfrentam problemas graves, mas não é o caso de todas as pessoas, pelocontrário, achoque os que se tornam descrentes por causa de acontecimentos ruins na própria vida estão em minoria, mas existem. Algumas pessoas sequer podem dizer quando deixaram de crer,

apenas descobrem que não acreditavam, descobrem que já desde muito não negavam deus simplesmente porque se negavam a pensar no assunto e, quando pensaram, essas pessoas viram que a crença firme que costuma estar dentro dos teístas nunca esteve dentro de si; ou só existiu na infância, juntamente com a crença na infalibilidade do pai e na existência do papai Noel. Foi o que aconteceu comigo. Tem gente que deixa de crer por raiva, acontece uma desgraça ea pessoa vêquedeus, embora tenha sidochamado, nãoestevelá para ajudareconclui queelenãoexiste. Eupasso por isso praticamente toda a semana, não no sentido de deixar de crer, pois quem já não acredita não pode passar a não acreditar, mas no sentido de reforçar minha descrença. É até irônicoofatodequea mesma catástrofe, a mesma desgraça, a mesma doença que faz com que muitas pessoas reforcem sua fé porque, milagrosamente, escaparam dela, obtiveram ajuda de onde não esperavam, foram curadas faz com que eu me sinta mais e mais convicta de que esse deus de superpoder e extrema bondade não existe e não tem como existir. Nunca deixo de me surpreender com aqueles que passam a crer em deus, e às vezes se tornam fanáticos, quando enfrentam um problema grave e o superam. É espantoso que alguém consiga fazer isso! A situação fica assim: Milhares de pessoas têm câncer ou AIDS ou outra doença grave todo ano e milhares de pessoas morrem dessas doenças todo ano, mas se a dona Maria tem um câncer e consegue escapar, toma issocomo prova de que deus existe e a curou porque ela rezou (ou orou) e pediu a ele que a curasse; e a dona Maria esquece os milhares de pessoas que tiveram câncer, que rezaram (ou oraram) e que ele não curou. É como se dona Maria estivesse afirmando que deus curou a ela porque ela é melhor do que todo mundo e ela merece mais do que todo mundo. Para mim isso é um exemplo de coisas ruins que as pessoas boas só conseguem pensar quando o assunto envolve a tal fé. Já ouvi diversas vezes pessoas de níveis culturais e financeiros diferentes dizendo as mesmíssimas coisas. É sempre uma história comovente, como uma doença grave, um acidente quase fatal, o nascimento prematuro de um filho, o sofrimento de ter um filho ou um irmão perdido pelas drogas ou pelo crime; daí essa pessoa, humilde ou não, semianalfabeta ou não, pobre e humilde ou não, conta com todas as cores a sua história de sofrimento e suas orações, seus pedidos a deus e sua fé; então ela conta o “milagre”; ela ou seu ente querido se curou; ela e/ou seus entes queridos saíram ilesos do carro que deu perda total; seu filho ou seu neto nascido prematuro e pelo qual os médicos não davam

esperanças é hoje uma criança esperta e saudável ou um adulto responsável que dá orgulho à família; seu filho, seu irmão, ou até ele mesmo, trocou o “baseado” pela bíblia e hoje prega a palavra de deus em algum lugar. E todos eles estão sempre convictos, e muitas vezes acham que vão me convencer também, de que a história deles prova, sem deixar sombra de dúvida, que deus existe, que deus é bom e que deus “opera milagres”. Em geral eu nem me atrevo a dizer o que penso, não tenho coragem de lembrar as muitas milhares ou os muitos milhões de histórias parecidas com a dela e que, apesar de todas as orações, apesar de todos os pedidos e apesar de toda a fé não tiveram o mesmo final. Em geral não falo nada porque não quero ser desrespeitosa e mal educada e também porque em muitos casos terei que ouvir essa pessoa tentar, das maneiras mais tacanhas e absurdas possíveis, me explicar por que ela mereceu o milagre e os outros não mereceram. As explicações vão desde o fatídico “Os desígnios de deus são inescrutáveis para os homens” até o absurdo e preconceituoso comentário de que provavelmente as outras pessoas não eram de sua igreja ou não tinham a força de sua fé. Esse tipo de tentativa de justificar o porquê de deus dar uma vida boa a alguns e um caminho de desgraças para outros costuma mostrar, a mim que estou de fora e que de fora ouço, o lado pior de muitas pessoas que eu julgava boas. Ouvir alguém que eu considerava uma pessoa boa e íntegra dizer que o filho daquela mulher morreu de câncer depois de anos de sofrimento porque a mãe é uma fofoqueira, uma pessoa que só vai à igreja quando precisa de alguma coisa; outra me disse que a mulher teve um filho com deficiência mental porque é “do candomblé”; são perigos que corro se não me calar diante das histórias de milagres que muitos vêm me contar. Então, em geral eu me calo. Para mim parece ser muito convencimento, muita pretensão, muito egoísmo por parte das pessoas agirem e pensarem no que diz respeito a esse deus de forma agradecida e, no entanto, é exatamente como elas pensam e agem porque a fé não permite que se deem conta disso. Se um ônibus escolar sofreu um acidente e de trinta e cinco crianças só uma escapou e é o filho da dona Maria, ela vai dizer que foi milagre e que deus é bom e misericordioso porque salvou seu filho; e danem-se as outras trinta e quatro crianças que morreram e os sessenta e oito pais que perderam seus filhos! Essa visão tacanha provoca muita raiva em um ateu mais questionador e mais

consciente, e, possivelmente provoca raiva também em um teísta que não seja tão cego a ponto de ter seu raciocínio assim tão embotado. Na minha cabeça não cabe esse conceito religioso de agradecer a deus por algo que se tem, que é básico e que milhões de pessoas no mundo não têm. Alguém mentalmente saudável e eticamente decente não poderia, não saberia, não conseguiria, a não ser que esteja totalmente cego pela fé, agradecer a deus por ter, por exemplo, um teto sobre sua cabeça enquanto milhões de pessoas no mundo todo, muitas delas ali mesmo na sua cidade, não têm onde morar e dormem pelas calçadas. Sei que muitas pessoas fazem isso, mas não entendo; ou entendo sim, entendo que essas pessoas o fazem porque não pensaram a respeito a ponto de se darem conta do absurdo do que estão fazendo, elas rezam e oram sem perceber o terrível egoísmo contido nas palavras que pronunciam. Só assim eu consigo entender. Quando leio aquela frase que está pregada em muitos carros que passam por mim: “Deus é fiel”, eu me pergunto: Fiel a quem? Fiel a quê? Um professor de português ou um aluno mais ou menos aplicado sabe que falta um complemento nominal aí, qual é ele? Afinal, quem é fiel é fiel a alguém ou a alguma coisa, a quem ou ao que deus seria fiel? À humanidade diriam os teístas, “Deus nos amou tanto que nos deu seu filho para morrer na cruz por nossos pecados”, diriam certamente os cristãos; mas eu vejo os absurdos e os horrores que acontecem todos os dias pelo mundo e que vêm acontecendo sempre e sempre ao longo da história e não sinto essa fidelidade realmente patente do final das contas. Então, para mim, o caminho natural foi acreditar que não existe um ser tão horrível a ponto de criar esse circo de horrores que é a vida, esse palco de morte que é a natureza, esse poço escuro e tenebroso que é a alma humana; alma que o homem acredita divina, que o faz capaz de se sentir bom, nobre e perfeito enquanto discrimina, mata, prende, subjuga, devora. Apesar de amar muitas pessoas e de saber que existem pessoas boas e decentes no mundo, muitas vezes sinto raiva de saber que o ser humano como raça é esse bicho nojento, e sinto vergonha de pertencer a essa raça e de ser também, em última análise, um bicho nojento.

E por causa dessa raiva, para não me tornar ainda mais impotente estendendo minha raiva ao deus que dizem ser o responsável, o criador dessa raça nojenta à qual pertenço, preferi me permitir pensar sem as amarras da fé, e foi assim que me vi incapaz de acreditar que deus existe e capaz de perceber que não somos tão nojentos assim; somos apenas animais. É por isso que me sinto muito feliz por ser ateia. Mas, mesmo me definindo como ateia, preciso admitir que, pelo pouco que sei de ciência e pelo pouco que sei sobre o quanto a ciência sabe a respeito do universo, da matéria e da energia, parece impossível – pelo menos por enquanto – negar com toda a certeza a possibilidade de que possa existir, ou ter existido, uma força, um ente, um ser, uma espécie qualquer de “Designer”, “Criador”, “Fonte”, “Projetista”, “Relojoeiro” ou como quer que o chamem, que seja, ou tenha sido, responsável, consciente ou não, pela criação do universo como o conhecemos. Mas acho também – e acho mesmo, com um tipo de acho muito forte que está quase mais pra certeza do que para “achômetro” – que essa impossibilidade de negar total e definitivamente a hipótese de um tipo qualquer de agente responsável pela nossa existência não serve absolutamente para sustentar o argumento da existência de deus, embora seja o argumento mais usado por muitos dos teístas mais inteligentes e mais cultos. Por mais que me defina como ateia, por mais que afirme que deus não existe, como não sei nada sobre se o universo foi criado ou se sempre existiu, sou obrigada a aceitar a hipótese de um tipo de “criador” no mínimo no mesmo nível que aceito a hipótese de que seres inteligentes de outro planeta um dia nos visitarão. Ou seja; acho muito difícil, mas nãotenhocomodescartarcompletamenteessapossibilidade. Porém, em minha opinião, para que essa teoria seja coerente, essa entidade hipotética não poderia ser chamada de deus e poderia menos ainda ser confundida ou associada de qualquer forma com o deus cristão. Daí que, independente de existir ou não uma “mente” responsável pela criação, o que afirmo com toda a convicção é que não existe deus. Dizer que essa mente responsável (possível enquanto não temos nenhuma outra explicação inquestionável) é deus seria ainda mais falso do que dizer que um balde de água é uma pessoa pensando no fato de que o corpo humano se constitui, em mais de 70%, de água. Acho que no segundo caso o paralelo é menos absurdo.

A hipótese de que o universo tenha algum tipo de responsável pela sua existência, pelo que posso perceber, gera uma série bastante grande de outras hipóteses e, pelo que posso perceber, nenhuma dessas hipóteses seria suficientemente semelhante à definição que os teístas dão de deus para que qualquer uma delas possa ser chamada por esse nome sem que pareça uma apropriação indevida. Até onde sei, as hipóteses aventadas para explicar um suposto início de um universo, quando aventadas a partir de raciocínio e não de simples fé religiosa, são hipóteses que, em sua construção, por mais “fantasiosas” que sejam, evitam ser elaboradas sobre paradoxos evidentes, o que não é o caso de deus. Vou tentar relacionar algumas das possibilidades em que posso pensar, ou me lembrar de ter ouvido em conversas com outros ateus. O responsável pelo início de tudo pode ser uma entidade inteligente, porém tão diferente e tão maior e superior a nós que essa distância tornaria impossível que esse ser sequer possa ter conhecimento de nossa existência. Numa comparação um tanto tosca nossos sentimentos, pensamento, necessidades e nossa própria existência podem ser, para esse ser, algo tão alheio e desconhecido como seriam para nós os sentimentos, pensamentos, necessidades e existência de um parasita que habitasse o interior do corpo de uma ameba – se esse parasita existisse e tivesse sentimentos, pensamentos e necessidades. Imagine: se para a maioria de nós é um “fato” desconhecido e totalmente inalcançável – e sem muito interesse – a possibilidade de existirem sentimentos, pensamentos e necessidades conscientes em uma ameba de cuja existência temos conhecimento, porque podemos vê-la pelo microscópio, qual seria nossa empatia e a importância que daríamos aos sentimentos, pensamentos e necessidades de um parasita dessa ameba? Nós, nossa existência, nossos sentimentos, pensamento e necessidades seriam, para esse ser, tão nada quanto é para nós a existência, os sentimentos, os pensamentos e as necessidades desse parasita de uma ameba. Talvez menos ainda porque pelo menos teríamos algo em comum com o parasita da ameba que esse ser não teria conosco: pertenceríamos à mesma realidade e ao mesmo universo. Não estou sendo original ao dizer que outra possibilidade seria a de que somos parte, mas uma parte muito ínfima, de um corpo do qual cada galáxia é algo não semelhante exatamente, mas comparável a um átomo, ou então a uma célula. Talvez esse corpo tenha sido criado por algum outro ser, mas de qualquer forma

pode ser um corpo em desenvolvimento e isso “explicaria” o fato, comprovado pela ciência, de que o universo está se expandindo. Sei que essa hipótese apenas transferiria a questão “quem criou” do universo que conhecemos para o “corpo” de que falo, mas de qualquer forma nos leva ao mesmo problema dahipóteseanterior:umserdiferentedemais,distantedemais e com zero possibilidade de saber sobre nossa existência. Da mesma forma como não poderíamos saber da existência – e menos ainda dos sentimentos, pensamento, necessidades de seres vivos que habitassem um elétron de um dos átomos do nosso corpo. Há ainda a hipótese de que tenha existido uma mente responsável pela criação do universo, mas que essa mente não era eterna nem imutável e que ela simplesmente deixou de existir, talvez muitos milhões de anos antes do surgimento do homem na Terra; ou do surgimento da própria Terra. Ou então o criador foi simplesmente um tipo de força externa e sem consciência agindo por um tipo de impulso inconsciente comparável a uma “inércia sem impulso”, um tipo de energia sem mente que não conhecemos porque não podemos ter contato com ela. E, se forçarmos nossa imaginação com certeza poderemos pensar em mais um bom número de hipóteses, algumas completamente absurdas na aparência, mas tão difíceis, ou impossíveis, de falsificar que não há como negar a elas o status de “hipóteses”, embora à imensa maioria delas, se não a todas, falte muito para que possam atingir o status de hipótese científica. Mas, tudo bem, o deus bíblico também é uma hipótese que não tem direito ao status de hipótese científica. Pelo menos não para os cientistas que praticam a ciência de maneira séria, responsável e imparcial no quesito pesquisar as origens do universo. E isso é sim mais um “achômetro” meu. E vale lembrar que em todas essas hipóteses e nas muitas mais em que alguém consiga pensar, esse “criador” pode ser sempre algo cuja “mente” não tem nenhuma relação com o conceito que usualmente temos de mente, cuja “inteligência” não tem nenhuma relação com o que usualmente chamamos de inteligência e até mesmo cuja “existência” não tem nenhuma relação com o que usualmente chamamos de existência. O que me parece muito claro é que, existindo qualquer “criador” de qualquer

tipo que seja, nunca será e nunca poderá ser qualquer coisa sequer parecida com o que os teístas chamam de deus. E é por isso que, apesar de não me atrever a negar a possibilidade de que o universo possa ter sido criado, eu me defino como ateia; total e completamente ateia. Além disso, é preciso que se diga que, quando raciocinamos mais profundamente a respeito de todas essas coisas, surge ainda uma outra conclusão bastante viável e, na minhaopinião,extremamentedefensávellogicamente.Vamos pensar um pouco nisso: Universo, pela definição da palavra, é TUDO aquilo que existe. Se tomarmos esse sentido na forma ampla que a definição sugere, temos que, qualquer criador, consciente ou não, do universo na verdade não teria como ser criador do universo porque, em existindo, esse criador seria parte do que se define como universo. Daí que há uma impossibilidade lógica de o universo ter sido criado por algo fora do universo porque há uma impossibilidade lógica para a existência de algo fora do universo. O universo não pode ter “fora”, o universo não pode ter limite, o universo não pode ter sequer nada. Mesmo o nada seria parte do universo. Então, o eterno aqui, o infinito, o “incriado”, seria o universo e, se existe ou existiu algo, consciente ou não, que criou o universo que conhecemos, o que podemos concluir logicamente é que existe algo, que é universo e que não conhecemos, e que esse algo, que está no universo como um todo e cujo todo não conhecemos, pode ter criado a parte do universo que conhecemos. Complicado, não? Mas, em minha opinião, muito mais lógico do que a ideia de um deus que criou um planetinha minúsculo como se fosse o centro de tudo e um ser insignificante como se fosse o máximo de perfeição. XXI Tem gente que acredita em deus, estão em maioria, são felizes porque colocam tudo “nas mãos de deus” e vivem suas vidas; alguns confundindo piedade com egoísmo e fé com discriminação e outros realmente construindo vidas iluminadas dia a dia pelo bem que estão sempre plantando à sua volta (Tudo bem, eu sei que já disse isso antes, é só pra reforçar mesmo). Uns e outros estão esperando pela eternidade no paraíso, uma felicidade eterna prometida para depois da morte. Uma felicidade eterna que desfrutarão “sentados à mão direita de deus pai todo poderoso, criador do céu e da terra”, mas dessa regalia não desfrutaremos todos porque, de acordo com a bíblia e com

a pregação e discurso de grande parte dos teístas, há os que não terão direito sequer a vislumbrar esse paraíso de total e plena felicidade porque lá estarão apenas aqueles que conseguem crer e obedecer. O que eu não entendo é como esses teístas conseguem pensar na possibilidade de um paraíso do qual estarão excluídas algumas das pessoas que eles amam, principalmente se seguirem, como muitas vezes afirmam seguir, o mandamento de Jesus: “Amai ao próximo como a ti mesmo”. Dentro do meu entendimento leigo e limitado, dizer que ama o próximo como a si mesmo deveria significar uma total incapacidade de imaginar ou aceitar que um lugar possa merecer o nome de paraíso sem que todos esses que se ama como a si mesmo estejam lá. E imaginar um paraíso dentro do qual esteja presente o conhecimento e a certeza de que aquele que se ama como a si mesmo está no inferno, sendo consumido sem ser consumido, pelas eternas chamas do sofrimento perene me parece mais difícil ainda. Minha própria mãe é uma dessas pessoas a quem a porta do paraíso estará aberta, e eu sou, na concepção dos adeptos da religião da minha mãe, a pessoa que não terá direito a sequer vislumbrar tal porta. Por mais que minha mãe explique que ainda tem esperança de que eu um dia vou “enxergar” a verdade, e por mais que ela tente se enganar dizendo que sou boa demais e por isso irei sim para o paraíso – a coitada criou para mim uma espécie de “passe especial” – não posso ver sentido nisso. Caso estivéssemos em campos opostos, eu recusaria qualquer paraíso por não existir, na minha visão, possibilidade de paraíso sem que meu marido, minha mãe, meus irmãos, meus amigos e, principalmente, meu filho estejam nele. E mais, eu recusaria qualquer paraíso se tivesse a certeza de que qualquer pessoa, mesmo uma total desconhecida, estará queimando eternamente no inferno. Para algumas pessoas pode parecer difícil compreender isso, mas, na hipótese de o deus bíblico existir, eu recusaria qualquer paraíso até mesmo se tivesse a certeza de que não encontraria lá as pessoas terrivelmente más, como Hitler, Torquemada ou Átila porque essas sim, estariam no inferno. Se existisse um paraíso, eu só aceitaria estar nele se TODOS os seres vivos que existem, que já existiram e que existirão também pudessem estar nele; todos, sem absolutamente nenhuma exceção. Isso porque, para mim, se o deus bíblico

existisse, ELE seria o único ser que deveria estar queimando no inferno, só ele e apenas ele mereceria esse “privilégio”, afinal teria sido ele o criador de todas as pessoas e o responsável primeiro por cada um dos atos de maldade que elas cometeram. Sei que alguém pode me acusar de estar mentindo porque – dirá – tendo a certeza da existência de deus, do inferno e do paraíso, logicamente o medo do inferno me levaria a aceitar o paraíso sem nenhuma objeção; e quem disser isso estará certíssimo. Lembrando o maravilhoso livro 1984, de George Orwell48, pode-se dizer que em sua trama ficou mais do que provado que pelo medo e pela tortura, e mais ainda pelo medo da tortura, se pode fazer com que uma pessoa aceite qualquer coisa. E, conforme ficou demonstrado no livro, se pode dizer também que pelo medo e pela tortura, e mais ainda pelo medo da tortura, é possível fazer com que uma pessoa deseje, sinceramente, que a tortura recaia sobre o outro em lugar de si. Se o “trabalho de persuasão” for bem feito, um bom torturador pode fazer com que uma pessoa peça e deseje, sinceramente, que a tortura que recairia sobre ele seja transferida até mesmo para alguém a quem ama. Então eu diria que sim, deus poderia me convencer a aceitar o paraíso com o conhecimento de que existem muitas pessoas no inferno; e poderia também me convencer a aceitar o paraíso mesmo com o conhecimento de que meus entes queridos estão no inferno; mas para conseguir isso, deus teria que ser um torturador pelo menos tão bom quanto O’Brien49. E onde 48 1984; livro escrito pelo jornalista, ensaísta e romancista britânico George Orwell, denunciou as mazelas do totalitarismo e tornou-se um dos mais influentes romances do século 20. O livro conta a história de Winston, um apagado funcionário do Ministério da Verdade da Oceania que da indiferença perante a sociedade totalitária em que vive passa à revolta, mas acaba por descobrir que a própria revolta é fomentada pelo Partido no poder. 49 O’Brien; personagem do livro 1984, é um agente do governo que engana Winston fazendo-o acreditar que ele é um membro da resistência e convencendo-o a aderir a esta; depois usa isso contra ele para torturálo.

fica a bondade dele nesse caso? E como alguém poderá dizer que minha aceitação foi voluntária? Acho muito difícil que exista um teísta que não tenha entre as pessoas do seu relacionamento e convívio – mesmo que seja um parente afastado, um vizinho não muito próximo ou um ex-colega de escola – alguém que “se perdeu do caminho do bem”, ou seja, alguém que ele, teísta, acredita não ter os requisitos

necessários para merecer o privilégio de “sentar à mão direita de Deus pai”. Como conseguem acreditar num paraíso com essas exclusões? Eu não entendo. E, para ser sincera, não consigo também imaginar de que maneira estar sentada “à mão direita” de um ser que criou e permite a existência do mal possa me parecer sequer levemente agradável, menos ainda um paraíso, e menos paraíso ainda se essa companhia for eterna. Se esse deus existisse, eu preferiria – com toda a certeza! – manter dele a maior distância possível. De preferência voltar para o nada de onde vim, único “lugar” onde imagino que talvez pudesse estar a salvo de sua presença maligna. Em oposição aos teístas que às vezes até se imaginam – não sei como – em um paraíso eterno post-mortem, eu simplesmente não consigo, não sei fazer com que a minha parca inteligência alcance algo que assim se possa chamar e que parta desse deus que os teístas adoram. Deus, paraíso, salvação, evolução da alma até um nível de “perfeição” que não sei qual possa ser, e tudo o mais que envolve a tal fé; não tenho nenhuma condição de acreditar em nada disso. Para ser sincera, e pedindo mil desculpas àqueles que acreditam; a verdade é que sequer consigo ver algo de bom na possibilidade de essas coisas existirem. Digo novamente que, pelo efeito positivo que essa crença traz aos que partilham dela, posso até entender que nós, os ateus, não estamos fazendo a melhor escolha; mas, como já tentei explicar antes, em geral não se é ateu por escolha. Então, continuaremos no prejuízo por conta dessa nossa falta de crença. De qualquer forma, não posso fazer nada porque, por mais que acreditar em um deus criador faça bem e dê paz às pessoas, não faria bem e não daria paz a mim. O único paralelo que consigo fazer a respeito disso é que eu me lembro muito bem que, pelo menos uma vez por ano, eu era muito feliz no tempo em que acreditava em Papai Noel. Sei que para os teístas essa comparação de deus com Papai Noel chega a ser ofensiva, mas não é essa a minha intenção, é apenas o que eu sinto. Eu acreditava em Papai Noel e para mim ele era tão real quanto deus é real para os teístas; a diferença é que o Papai Noel se manifestava apenas uma vez por ano, mas nesse dia eu era feliz. Fico imaginando que para o teísta a sensação é a mesma, ele tem um Papai Noel que está “presente” todos os dias do ano. Acho que dá pra dizer que para os

teístas mais convictos todo dia é como se fosse o natal da minha infância, aquele que tem papai Noel. Pensando nisso e lembrando como me sentia, fico com a certeza de que acreditar é sim muito confortável. Peço aos teístas que reflitam sobre isso porque, se o fizerem, acho que não será difícil entenderem que na maioria dos casos – se não em todos – o ateísmo não é uma escolha. Não é por querer, não é de propósito que não acreditamos em deus; é por incapacidade mesmo. Sentimos que não viveríamos nunca em paz com esse deus criador caso acreditássemos na existência dele porque não conseguimos ver nem bondade nem justiça nessa ideia que chamam deus. Sei que muitos se espantam genuinamente com o que acabei de escrever (de novo!) porque conseguem não só ver como “sentir” a bondade de deus; mas eu não consigo. Pelo contrário, cada vez que me deparo com um tipo de sofrimento, seja de pessoas, de animais ou, principalmente, de crianças, via jornal, conversas ou encontrando os sofredores por onde vou, e alguém diz alguma frase clichê do tipo “Que deus olhe por esse infeliz”, “Tomara que deus o cure”, “Vamos rezar por ele”, “Deus sabe o que faz” ou “Graças a deus não foi pior” o que penso é que deus, se existisse, seria culpado por aquilo; e seria culpado, inclusive, pelo fato de as pessoas terem pensamentos tão pouco piedosos. Às vezes, antes do ateísmo, temos uma fase em que sem querer sentimos e pensamos essas coisas todas e ficamos chocados com o que vemos no mundo, à nossa volta ou até mesmo dentro de nossas igrejas e por isso chegamos àquele ponto em que inventamos um outro deus, diferente do deus violento e sádico da bíblia. Inventamos aquela espécie de “deus cartão bancário” de que falei lá em cima, e, nesse conforto, passamos a viver. Em alguns casos demoramos muitos anos para nos permitir pensar realmente em questionar a ideia de deus, mas quando o fazemos, quando conseguimos abrir mão do conforto que a fé religiosa proporciona e/ou deixar o medo do pecado e da danação eterna de lado – e talvez por isso – acabamos sendo racionais e teimosos demais para continuar acreditando. Foi exatamente isso que aconteceu comigo. Comecei pensando que um deus bom não me puniria por usar o cérebro que ele me deu para questionar o que me parecia estranho ou errado. E continuei questionando; sem o medo do pecado, da heresia e da blasfêmia, sem conseguir mais sentir conforto no que cada vez mais me parecia falso, acabei vendo com

muita clareza que os pontos negativos de deus – mesmo quando eu o separava do terrível deus bíblico – são muito maiores e estão em muito maior quantidade do que os pontos positivos que os teístas de todas as fés tanto insistiam em apontar quando queriam me convencer de sua existência ou quando simplesmente tentavam explicar por que acreditam, respeitam e amam esse deus para o qual rezam, oram ou com quem simplesmente “conversam”. Muitas vezes me parecia – e mais tarde me convenci totalmente disso – que em toda e qualquer religião ou fé, se existem pontos positivos, esses estão nas pessoas que acreditam em deus, não no deus em que essas pessoas acreditam. XXII É muito comum as pessoas questionarem o ateu a respeito de em que o ateu acredita; a pergunta vem normalmente em forma de pergunta-espanto: “Mas você não acredita em nada?” meio que respondendo essa pergunta, eu afirmei mais de uma vez lá atrás que creio que muitas pessoas são melhores do que a religião que professam. Na verdade, tanto eu como qualquer ateu, cremos em muitas coisas, já ouvi dizer que existem ateus que creem em duendes, mas não creio que esses ateus existam. O que posso afirmar é que eu creio em muitas coisas, mas normalmente não costumo crer em coisas para as quais não existem evidências e que não fazem sentido; como, em minha opinião, é o caso dos duendes, por exemplo, e de outras coisas nas quais muitas pessoas acreditam, como vida depois da morte, ETs e OVNIs que nos visitam frequentemente, espíritos que caminham entre nós, anjos, premonições, horóscopo e coisas assim. Não creio em nada disso porque nunca vi evidências confiáveis e porque quando penso nelas o que percebo é que não fazem sentido. Mas vou falar agora de uma coisa em que creio muito. Porém, antes de soltar essa minha “frase de efeito”, tenho que fazer um pedido encarecido a todo teísta que possa estar lendo o que escrevo, contrariando dessa forma todas as minhas crenças a respeito do que venha a acontecer com esse livro que estou escrevendo na certeza de que não será lido por mais do que três ou quatro pessoas, ateias; se é que serão tantas assim. Para não correr o risco de fazer algum inimigo, na eventualidade de eu estar

errada e pelo menos um teísta resolver se dar o trabalho de ler essas páginas, peço a esse teísta que não se sinta ofendido, que entenda porque e de que forma penso isso que vou dizer agora. E a todos os três ou quatro leitores peço que me desculpem pela repetição não recomendada do verbo, mas achei que a frase fica mais engraçadinha assim: Creio que crer em deus é prepotência. Repetindo: Creio que crer em deus é prepotência. Creio mesmo. E creio que foi essa prepotência que criou a religião e que criou deus; creio que é essa prepotência que leva o aparentemente mais humilde dos teístas a ser um supremo orgulhoso, um preconceituoso inconteste e um vaidoso sem medidas sem que esse aparentemente humilde “servo de deus” sequer sedêconta do quanto “peca” contra as próprias crenças. E o pior é que essa prepotência leva muitos teístas ao fanatismo, esse fanatismo que faz com que as pessoas matem, humilhem, subjuguem e escravizem aqueles que pertencem a outra espécie, a outra raça, a outro grupo, a outro sexo ou a outra família. Creio que essa prepotência, ao longo da história, tem feito com que tudo isso que listei venha acontecendo sempre em nome de seres quiméricos, alguns deles“ditadores”delivrosplenosdecontradiçõeseabsurdos, desde sempre, até hoje e por muitos anos no futuro. Creio que enquanto ainda existirem seres humanos no planeta, haverá essa prepotência, e ela provavelmente fará com que se continue a matar, humilhar, subjugar e escravizar o outro em nome de algum tipo de deus. Tenho plena consciência de que a imensa maioria dos teístas, na relação com as pessoas que os cercam, não são prepotentes no sentido que geralmente daríamos a essa palavra; mas, com respeito à crença em deus, certamente sem sentir e sem se dar conta disso, os teístas se guiam por uma atávica prepotência. Eu já disse mais de uma vez em meus escritos nunca publicados a não ser na internet que deus é onipotente e o homem é oniprepotente. E é essa minha certeza que vou tentar justificar agora. Uma das palavras mais curiosas que a maioria dos leigos já ouviu ou leu ligada a essa desconhecida, incompreensível e fascinante física moderna foi a palavra “multiverso”; a ela estão ligadas teorias como a dos universos paralelos tão explorada pela ficção; a dos onze universos, a teoria da bolha, que os ignorantes como eu imaginam meio parecido com uma panela de mingau de fubá fervendo e soltando bolhas, e cada uma dessas bolhas seria um universo, e há outras

teorias mais. Não sei se todas ou apenas algumas são chamadas teorias pelos cientistas, talvez sejam mais adequadamente denominadas pela palavra hipótese, não sei bem. E, além de não saber sequer nomeá-las, como leiga e ignorante que sou, admito não entender praticamente nada sobre elas, mesmo quando leio as explicações “para leigos” do Marcelo Gleiser ou do fabuloso Stephen Hawking. Enfim, não sei até onde essas teorias ou hipóteses de multiverso teriam qualquer respaldo científico que dê a alguém a autoridade para falar delas como falamos da teoria da relatividade ou da teoria da evolução – quanto a essa última, sei que ainda existem algumas “vozes discordantes”, mas sei também que ninguém que leve ciência a sério, seja ateu ou teísta, dá a mínima atenção a essas vozes – portanto, não vou fazer nenhuma afirmação a respeito a não ser a de que existem pessoas para as quais não parece inviável a afirmação de que nosso universo não é o único universo que existe. Volto a dizer que não sei nada sobre isso, apenas acho fascinante a ideia, como quase todo mundo acha. Mas vamos ficar com o que conhecemos com razoável certeza: Existe um universo que embora possa não ser o único é o único de cuja existência podemos fazer alguma afirmação; esse universo é o nosso e é nele que estamos agora. Qual é o tamanho do universo? Procurando pela resposta a essa pergunta você encontra várias: que o universo é infinito e não pode ser medido; que o universo tem um raio de 13,7 bilhões de anos-luz porque tem 13,7 bilhões de anos de idade, que tem 78 bilhões deanos luz de ponta a ponta; epara esclarecer essas medidas você encontra a informação de que um ano-luz equivale a 9,5 trilhões de km, que é a distância que a luz percorre em um ano terrestre, não esquecer que a luz é o que há de mais rápido dentre todas as coisas que conhecemos; se é que podemos chamar luz de “coisa”. Muitas respostas nos dão explicações de como e por que é difícil estipular a dimensão exata do universo. De qualquer forma, o que todos dizem e todos sabem é que o universo tem dimensões tão astronomicamente enormes que, para os nossos sentidos tão limitados e para a nossa tão limitada capacidade de locomoção e de imaginação, sendo ou não infinito, a verdade é que o universo acaba por ser, ou parecer, infinito para nós.

No universo tem mais de 80 bilhões de galáxias, alguns falam em bem mais que 120 bilhões. A nossa Galáxia, que é apenas média, teria mais de 100 bilhões de estrelas, outros falam que tem de 200 a 500 bilhões. Veja que os números são BILHÕES, se falassem em milhões já seria suficientemente espantoso para mim, mas falam sempre em bilhões. E pelo que vemos ao pesquisar o assunto, todos os valores são aproximados, tudo tendendopara mais, em alguns casos para muito mais; e em todos os casos, mesmo o “um pouquinho” mais é dado em medidas e números tão grandes que para nós são quase impossíveis até de imaginar. O nosso sol está longe de ser a maior estrela da nossa galáxia e o nosso planeta, todos sabem, não é o maior do nosso sistema solar. Nesse nosso planetinha azul tem vida desde bem mais de três bilhões de anos, e o homem está aqui há “apenas” dois milhões de anos. Atenção: Vida há mais de três BIlhões; gente há dois MIlhões; BI, MI, percebeu? Você já pensou nisso? Durante mais de três bilhões de anos existia vida aqui, mas nós não estávamos presentes para observála, não éramos parte da “maravilha da criação”. Esses números incrivelmente grandes, essas dimensões absurdamente gigantescas me fazem pensar no total contrassenso que é o ser humano, esse nada cósmico, acreditar que tudo isso foi criado por um deus que o ama e só para que ele, o oniprepotente macaco pelado sem rabo, fizesse as suas orações. Diante das dimensões de tempo e espaço do universo, o teísmo me parece de uma prepotência tão grande que eu não consigo entender como os religiosos conseguem falar em humildade. A humildade seria, olhando por esse prisma, o sentimento e o comportamento mais distante possível do que pode significar ser um cristão. Ou muçulmano, ou judeu, ou qualquer adepto de qualquer religião cujo deus ao menos sabe que o crente existe. Como os teístas mais cultos e mais inteligentes conseguem não perceber isso? Como é que alguém pode pensar que um tipo de mente criadora desse absurdo de imensidão pode nos dar qualquer importância ou sequer tomar conhecimento real da nossa existência a ponto de se preocupar com nossas mazelas? Como é que alguém pode pensar que um tipo de mente criadora desse absurdo de imensidão pode nos dar qualquer importância ou sequer tomar conhecimento real da nossa existência a ponto de se preocupar com a nossa vida sexual? Qualquer que possa ser a origem do universo – ou dos universos, se existir mais de um – não tem como ser algo sequer parecido com o deus que os teístas

descrevem porque, entre outras coisas, a característica de bondade suprema não existiria; pelo menos não existiria no sentido de essa entidade criadora se importar com o ser humano individualmente a ponto de abominar a homossexualidade, condenar o aborto ou de mudar as leis da natureza em função de um pedido balbuciado ou gritado a plenos pulmões; por mais que esse pedido seja acompanhado dessa força incompreensível chamada fé. Daí que, independente de existir ou não uma mente responsável pela criação, não existe deus. No caso de existir uma mente tão superior a ponto de ser capaz de criar o universo a partir do nada, essa mente não poderia sentir qualquer coisa sequer levemente parecida com amor, ou mesmo com uma simples empatia, por nossas insignificantes vidas. Expressões como “Deus ama você!”, “Grande é o amor de deus por nós”, que são ditas pela maioria dos teístas com tanta frequência e com tanta certeza de que isso seja uma verdade, me soam simplesmente como risíveis. “Quem é você para que o criador do universo te ame? Você não se enxerga não?”. Isso é o que eu diria a mim mesma caso um dia me sentisse tentada a acreditar no que os teístas dizem. XXIII Os teístas afirmam que deus criou o mundo, criou a natureza, criou a vida, nos criou. Afirmam que a maravilha da vida, por ela mesma, é prova da existência, do poder, da bondade e da perfeição de deus e que somos cegos se não enxergarmos isso. Eles apontam as belezas e a harmonia da natureza como provas da existência e da perfeição de deus. Uma das coisas mais comuns para um ateu é ouvir de um crente a frase carregada de espanto: “Você não acredita em deus? Então me diz quem foi que criou o mundo, quem foi que criou as flores, o céu, a natureza?” e, se a conversa avança, é comum que ele “desfile” uma sequência bem selecionada de belezas naturais, de “maravilhas da criação” como prova, na visão dele incontestável, da existência, da bondade e até mesmo da presença de deus. A natureza é grandiosa e incrivelmente bela, a vida é um milagre fantasticamente maravilhoso e incrivelmente bom; como ousa você, um ateuzinho de merda, duvidar da existência do criador disso tudo? Acontece que a natureza não é feita só de beleza. Entre todos os seres vivos

podemos observar periódicos e não tão raros acontecimentos de deformidades. Algumas dessas deformidades conseguem apenas não ser muito apreciáveis esteticamente, como um olho um tanto torto, por exemplo. Outras são bem mais sérias, como a cegueira é para nós, humanos, nos dias atuais. Há outros casos tão sérios que causam incapacidades adaptativas e de sobrevivência, como a própria cegueira, para animais que vivam em ambiente selvagem. E há ainda outras deformidades que sequer permitem que o ser viva mais do que alguns poucos dias ou horas. Se você quiser uma lista desses horrores procure no google, vai encontrar imagens chocantes. Pessoas e animais nascem deformados, com membros faltando ou em excesso, com crescimento ósseo inadequado e deformante. A gama de possibilidades nunca parou de surpreender estudiosos e curiosos, tanto que muitos casos de deformação séria acabam se tornando atração circense – antigamente nos próprios circos, hoje em sites da internet e outros lugares mais “discretos” – expondo, na minha humilde opinião, uma outra deformação muito séria, embora não tão perceptível, que é a atração mórbida que as pessoas costumam ter pela desgraça e pelo sofrimento do outro. E ainda há que considerar – se estamos falando em beleza – aquelas coisas e aqueles seres que, mesmo sem ter nenhuma deformidade, não podem ser tachados de belos exceto com muito boa vontade. Quem acha uma barata, uma lesma ou uma aranha bonita? Sei que muitos vão revidar afirmando, com toda a razão, que isso que eu disse sobre a falta de beleza da lesma, da barata e da aranha nem merece ser consideradocomo argumento porque o conceito de beleza é muito subjetivo, pessoal e até mesmo de espécie, uma vez que, como espécie, nós, humanos, tendemos a achar feio tudo aquilo que é muito diferente de nós e, principalmente, aquilo que nos desperta medo ou nojo. Mas, se o teísta usa o argumento da beleza presente na natureza, ele não está fazendo exatamente isso? Não posso afirmar também que o conceito de beleza é muito subjetivo, pessoal e até mesmo de espécie, uma vez que, como espécie, nós, humanos, tendemos a achar belo tudo aquilo que é semelhante a nós e, principalmente, aquilo que nos desperta amor ou prazer? Por que então o argumento do teísta valeria mais do que o meu? Se é para falar de beleza, desconsiderando a relatividade do próprio conceito, basta procurar que encontraremos a falta dela em vários, se não em todos, os aspectos e seres da natureza.

Um crente mais culto ou alguém que esteja consciente da fragilidade do argumento da beleza como prova da existência de deus, se tiver lido ou ouvido alguma coisa de ciência e lido algo sobre as leis da física, mesmo que muito superficialmente, usará o argumento da harmonia do universo como prova, mais uma vez inquestionável na opinião dele, de que deus é o criador e sua presença pode ser percebida no próprio funcionamento do nosso mundo. Mas acontece que o mundo tem bastante desarmonia facilmente detectável. Para falar apenas do nosso planeta e da vida que nele habita, temos que as guerras são consequências de desarmonias na convivência entre pessoas e grupos de pessoas; muitas doenças são consequências de desarmonias no funcionamento do corpo vivo, de pessoas, de animais e até mesmo de plantas; os defeitos congênitos são consequências de desarmonias na concepção e na formação de novas vidas; muitos dos acidentes naturais são consequências de desarmonias da Terra, desarmonias climáticas por exemplo. Como já disse antes, não sou especialista em nenhuma ciência que não seja a língua portuguesa para a qual tenho um diploma, e mesmo nesse caso há muito percebi que a linguagem e os mecanismos que a produzem formam um sistema tão complexo que não parece possível que alguém possa se considerar assim tão “especialista” como um diploma poderia sugerir. Sou leiga ou ignorante em todas as ciências do espaço e da natureza, mas penso que há desarmonias que certamente podem ser detectadas tanto no macro quanto no micro universo que está vedado à visão comum do ser humano comum. Em se tratando de universo, galáxias, sistemas, planetas e todos os corpos e espaços grandes ou pequenos que estão “lá fora”, essa tal harmonia pode perfeitamente ser questionada porque, pelomenos na minha visãohumana, rasteira ecomum, imensas explosões por choques de planetas ou galáxias, que são comuns no universo, não poderiam ser exatamente o que se chamaria de “movimento harmonioso dos astros”. Sei que essas “megagigantescas” explosões são responsáveis até mesmo pela minha existência porque foi a incrível força de uma ou de várias delas que criou os elementos químicos dos quais meu corpo é constituído, eacho isso incrivelmente maravilhoso. Mas, mesmo assim, não há como dizer que astros se movimentam em perfeita harmonia quando eles se chocam uns com os outros em gigantescas explosões que destroem milhões de planetas e sois, há?

Quanto ao microuniverso sei ainda menos, mas; citando novamente Marcelo Gleiser; ele relata em seu livro possibilidadesdeimperfeiçãononívelsubatômicoquepodem ser responsáveis inclusive pela nossa existência como seres vivos e pensantes. O livro Criação (im)perfeita não tem esse nome por simples capricho semântico do seu autor, a tese que ele defende, se é que entendi alguma coisa do que li, é justamente essa: A criação NÃO é perfeita, a vida não surge a partir da perfeição, muito pelo contrário, somos resultados de falhas e mais falhas que se acumularam chegando até nós. A perfeição seria estéril. A vida é um acidente cósmico dos mais intrigantes, principalmente porque intriga justamente aqueles que foram os resultados desse acidente. É lindo!Essa visão de que somos tão raros, e talvez únicos, em um universo potencialmente infinito e incrivelmente hostil; justamente porque somos o resultado de uma sequência quase impossível de falhas é uma visão que supera toda e qualquer explicação teológica que já tenha sido criada. E o legal disso é que cientistas como Marcelo Gleiser estão descobrindo indícios e mais indícios de que pode ter sido exatamente isso que aconteceu. Voltando ao nosso “universo mediano” e à nossa vida concretizada, voltemos a falar sobre nosso tema central: o mal. O bem e o mal são os opostos que realmente colocam a nossa compreensão de mundo em cheque, e a relatividade que o ser humano consegue colocar nesses dois conceitos muitas vezes nos deixa sem ação e sem saber o que pensar. Em nome da simples diversão, pessoas fazem coisas que em outras situações elas mesmas considerariam como demonstrações claras do mal mais genuíno; mas de alguma forma e por algum motivo, essas pessoas conseguem se abstrair de tal maneira no “objetivo primeiro” – a diversão – que simplesmente não percebem e não enxergam o paralelo. Já dei os exemplos da caça e da pesca como esporte, já falei que pessoas que consideram crime tirar uma vida por diversão muitas vezes definem a caça ou a pesca “esportiva” como sendo um dos seus hobbies; e falei também de pessoas que definiriam no mínimo como pecado o ato de trancafiar inocentes, mas que criam pássaros em gaiolas e justificam isso dizendo que os ama. Outros exemplos são os esportes violentos, muitas pessoas sequer conseguem me

compreender quando digo que não consigo ver possibilidade de chamar um homem dando socos na cara de outro homem de esporte. Essas mesmas pessoas que muitas vezes pregam a paz, a não agressão, o amor ao próximo como máxima cristã de conduta, não perdem uma luta de boxe e vibram cada vez que o lutador para o qual torcem acerta um soco bem dado no queixo do adversário. Como digo sempre, minha parca inteligência não alcança esse conceito de esporte. Pessoas ficam estupidificadas por tantas vezes levarem os socos que fazem com que seus cérebros se choquem com as paredes de crânio. Não sou neurologista, mas duvido muito mesmo que o cérebro não seja afetado pela violência dos socos. E, em lugar de se sentirem culpados pelos danos que sua sanha por “diversão” causa, as pessoas incluem o“esporte” nas olimpíadas. Mais recentemente aperfeiçoaram a arte da barbárie e criaram os tais MMA e UFC que, confesso, nem sei direito o que são e qual seja – se é que tem – a diferença entre um e outro. Alguém me explicou que um deles é a luta em si e o outro éalgo como o nome da competição em que este esporte acontece, confesso que não prestei muita atenção e não me sinto disposta a desperdiçar neurônios me preocupando com isso. O que sei é quefazem o maior sucesso e que os programas de televisão voltados para os esportes; entre um e outro quadro que demonstra o quanto praticar esportes é saudável e ajuda a desenvolver não só o corpo como até mesmo a sociedade; eles colocam uma notícia, um anúncio ou uma luta “ao vivo” entre dois importantes brutamontes trogloditas que já desfrutam status de ídolos. Novamente afirmo: minha parca inteligência não alcança qual seja mesmo o benefício social dessa aberração de retorno à barbárie das lutas de gladiadores e qual é a justificativa minimamente compreensível que poderiam dar para o fato de chamarem esse absurdo de esporte. Que me desculpem os apreciadores; dizem que todos nós temos nossos preconceitos, acho que um dos meus é esse, não consigo ver absolutamente nada de bom nessa coisa. Além disso, como marca indelével que mancha toda a história da humanidade, estão os absurdos cometidos em nome de deus, que quase invariavelmente têm sido considerados, pelos que os praticam, como um grande bem, por mais terrível e sanguinário que seja esse ato. Muitos pilares da igreja, muitos

paladinos da fé, foram e são pessoas que defenderam e defendem coisas como discriminação, preconceito, segregação, assassinato e genocídio. Não há como negar que a destruição em nome de deus é lugar comum na história da humanidade, e não há como negar que toda essa destruição sempre foi considerada como um bem pelos que as praticaram e por cada um dos indivíduos das multidões que, muitas vezes em praça pública, apoiaram essas práticas. O mal, quando praticado em nome de deus, se torna o bem, essa inversão de conceito supera o argumento da relatividade do mal porque ele não é mais relativo, é simplesmente transformado no seu oposto, é até mesmo divinizado. E, talvez acima de todos os exemplos, há a relatividade do mal colocada no esforço de inocentar deus contra todas as evidências. Quando uma coisa é definida como “criação divina”, as pessoas a definirem como bem ou, no mínimo como “não mal” mesmo que sejam realmente um mal ou um agente do mal. Um mesmo crente que, quando atingido direta ou indiretamente por uma doença define essa doença como um mal, se colocado diante do argumento de que o microrganismo causador dessa doença é um ser vivo e, portanto, uma criação de deus, vai se emaranhar em “explicações” confusas a fim de levar o interlocutor a concluir que “não é bem assim”. E aqueles que afirmam que a bíblia é a inquestionável palavra de deus, ao serem colocados diante das várias narrativas de ações praticadas ou ordenadas por deus que, em outras circunstâncias e em outro contexto, seriam certamente condenadas como sendo exemplos do mal, apenas porque tais ações estão descritas na bíblia e foram ações ou ordem de deus, essas pessoas deixam seu senso de ética e seu conceito do que é o bem e o mal de lado, afirmam e reafirmam que aquilo não é um mal, e, mais terrível ainda, dizem que aqueles horrores todos são exemplos de bem. E novamente vêm os malabarismos mentais para tentar, acima de toda e qualquer lógica, justificar o porquê de o mal não ser o mal. Mas estávamos falando de mundo e natureza e, embora o ser humano esteja no mundo e faça parte da natureza, essa separação pode ser cobrada. Então, voltando ao mundo e à natureza, podemos dizer que, embora não tenha como negar que muitos aspectos da vida e da natureza parecem ter sido criados com o único objetivo de nos maravilhar, deslumbrar e espantar; embora muito do que vemos e sentimos, com respeito à vida, à natureza e até mesmo às pessoas, possa fazer com que a gente sinta que a vida, apesar de suas limitações, ainda poderia vir a ser realmente bela; o que acontece é que a existência do mal faz com que

toda a beleza apontada pelo teísta perca o brilho, a importância, o encanto. Por causa da realidade do mal nenhuma beleza serve como prova nem mesmo da possibilidade de um deus criador onipotente, perfeito e bom. E mais; a possibilidade da existência de um deus torna o mal ainda mais capaz de apagar o brilho de tudo que há de bom e de belo no mundo. Sem que deus exista não fica difícil aceitar o mal como sendo parte constituinte de nossa realidade; sem que deus exista podemos ver e aceitar até mesmo que, em alguns aspectos, o mal é necessário para que exista a vida como a conhecemos. Mas, pensando na existência de um deus que, por ser onipotente, poderia fazer tudo diferente do que é, o mal perde qualquer possibilidade de justificativa. A maior prova de que deus não existe e não tem como existir é que diante da inquestionável realidade do mal qualquer mentalidade criadora possível só poderia ser um ente abominável. Deus não existe porque é definido como bom, e um ser que criasse o mal teria obrigatoriamente que ser a visão hiperbólica do próprio mal. XXIV Diante da palavra de todos os filósofos que consegui consultar, diante de tudo o que pude ler nos livros antigos e atuais, diante do que vejo nos jornais do dia de todos os dias e ainda do que vejo à minha volta, ao meu lado e em mim mesma, fica muito difícil aceitar a existência de um deus poderoso, bom e justo sem que eu tenha que, apenas no que tange a esse assunto, desprezar qualquer vestígio de razão, inclusive a razão mais básica e cotidiana que uso para viver e conviver nesse mundo no qual estou inserida e do qual faço parte. E eu teria que começar todo esse processo simplesmente fechando os olhos para as imperfeições gritantes desse mundo que teria que ver como perfeito porque teria que ser assim para ser a “perfeita criação do deus perfeito”. Desculpem, eu não consigo fazer isso! Conheço muitas e sei que existem muitas outras pessoas além das muitas que conheço que são boas, que são generosas, que são maravilhosas e lindas em todos os aspectos em que a beleza realmente importa e que são teístas. Muitas dessas pessoas são religiosas ligadas a uma determinada fé, frequentam uma determinada igreja, participam de atividades ligadas à igreja que escolheram como a “verdadeira”.

Muitos são religiosos praticantes e crentes fervorosos; e são pessoas maravilhosas. Eu as amo e admiro com todo o amor e a admiração de que sou capaz, mas não consigo deixar de sentir que, para aceitar a crença nesse deus tão incompreensível, essas pessoas deixam de lado a lógica que faz parte delas, a lógica da piedade, do amor, da generosidade e da empatia que faz delas as pessoas maravilhosas que são. E nem se dão conta disso. Não consigo explicar de outra forma uma pessoa que é boa a ponto de ser incapaz de cometer uma injustiça, mas que consegue acreditar realmente que seu deus é justo por fazer que nasça maldito alguém que não tem consciência nenhuma de ter cometido qualquer crime, alguém que muitas vezes morre pouco tempo depois de nascer e nem sequer tem condições de chegar a saber o que é cometer um crime. Essas pessoas maravilhosas justificam isso dizendo que os seres assim nascidos foram para o céu e estão agora “sentados à mão direita de deus pai”. Mas nunca lhes ocorre perguntar por que esse ser teve que nascer e sofrer e, se alguém pergunta, “desencavam” aqueles argumentos que envolvem a expressão “vontade divina” ou a palavra “mistério”. A trama do cristianismo – e das outras duas religiões – é perversa demais para que eu consiga pensar que as pessoas maravilhosas que o abraçam usam mesmo de alguma lógica para fazê-lo. Em nome da crença em deus os teístas insistem em “ver” o mundo que habitamos como uma dádiva desse deus de amor e de bondade; a linda e perfeita natureza é o palco maviosoeaprazívelcuidadosamentepreparadopordeuspara a vida humana. Eles apontam as belezas naturais que nos cercam como prova da existência de deus, e as possibilidades de mais beleza – se aceitarmos acreditar – como provas da bondade de um deus que não desiste e que está sempre disposto a acolher as “ovelhas desgarradas”. Tudo é visto como maravilhas que só podem ter sido fruto da bondade, do amor, da perfeição e do poder de deus. Esses teístas, porém não são cegos, eles conseguem enxergar também os horrores, ainda mais visíveis, que existem no mundo. Muitas vezes, infelizmente, os melhores deles chegam até mesmo a ser atingidos por alguns desses horrores. E, apesar de tudo, o que simplesmente não conseguem é ver esses horrores sob o mesmo ângulo e com os mesmos olhos com que veem as maravilhas. O que não conseguem – e que eu não consigo evitar de fazer – é olhar para esses horrores como prova da impossibilidade da existência desse deus das maravilhas.

Há uma coisa sobre a qual os teístas estão certos: Aceitar a “teoria do puro acaso” realmente exige muito esforço, talvez seja mesmo uma impossibilidade e a gente tenha que deixar a pergunta em suspenso. Talvez, diante da razão desse argumento, sejamos obrigados a aceitar que jamais seremos capazes de adquirir o conhecimento necessário para ter um dia uma explicação plausível de como tudo começou e de como chegamos aqui. Mesmo não sendo na verdade uma “teoria do puro acaso” como alguns teístas costumam ironicamente definir, e mesmo sendo aceita como fato científico, como alguns teístas se negam a aceitar confundindo, muitas vezes parece que de propósito, o significado científico da palavra teoria com seu significado popular, a Teoria da Evolução não explica o começo de tudo e o surgimento da vida, principalmente da nossa vida e da consciência que temos dela. Mas, em minha opinião, seguir o conselho do Parthenon e olhar para si mesmo exige muito mais esforço do que aceitar a possibilidade da “teoria do puro acaso”. Somos todos um pouco santos a nossos próprios olhos. Ver-se a si mesmo como o animal voraz, feroz, imperfeito, incompleto, egoísta e capaz de todos os males é quase que uma impossibilidade. Aceitar a hipótese de que somos finitos, efêmeros e que o que nos espera depois da vida é apenas o mesmo nada de onde viemos; sobreviver à ideia de que não somos importantes, valiosos ou amados por ninguém além de nós mesmos e das pessoas para as quais temos alguma importância; imaginar como possibilidade muito lógica que não há nenhuma entidade transcendente que sequer tenha conhecimento da nossa insignificante existência; tudo isso é simplesmente impossível para a imensa maioria de nós. A sensação de abandono que essa ideia gera na maioria das pessoas é tão forte que abrir mão da lógica em troca do agasalho fica sendo um preço até baixo a pagar. Essa éuma das razões por que muitos de nós conseguimos atribuir todos os adjetivos negativos à raça humana mas, nem como possibilidade, podemos atribuí-los a nós mesmos; é por isso que conseguimos pensar na efemeridade e término completo da vida de um animal mas, nem como possibilidade, podemos atribuir esse fim absoluto para as nossas próprias vidas. Não épossível para nós pensar a vida humana sem nenhuma razão, sem nenhum

objetivo que não seja a própria vida humana; em lugar disso preferimos aceitar qualquer outra hipótese, por mais ilógica que seja. Essa nossa incapacidade de nos ver como somos faz com que seja muito fácil aceitar a hipótese fantasiosa e incoerente de que somos o ápice da criação de um ente pleno de poder que nos ama e precisa de nós. É muito fácil ignorar o fato de que estamos sendo dirigidos pela própria prepotência e atribuir a nós mesmos uma importância muito além de qualquer coisa que pareça razoável. É da nossa natureza nos sentirmos superiores aos outros seres com quem dividimos o planeta e é da nossa natureza nos sentirmos diferentes da raça a que pertencemos; por isso muitos de nós conseguem, mesmo e apesar de todos os horrores que nossos semelhantes são capazes de imaginar e praticar, olhando apenas pelo espelho da nossa vaidade, aceitar sem reservas que esse ser que somos seja o ápice da criação de um deus todo poder e todo bondade. Não é pela raça humana que esse deus se inflama de amor; é POR MIM. Essa ideia, que certamente não nos chega de forma consciente, é a base emocional mais sólida em que nos apoiamos para acreditar que “Deus nos amou tanto que nos deu seu filho em sacrifício”. Inconscientemente sabemos que a raça a que pertencemos não é digna de todo esse amor e sacrifício, mas, mesmo inconscientemente, temos a tendência a acreditar que nós somos. Reconhecer que, ao contrário do que nossa prepotência nos diz, somos a prova da não existência de deus é um esforço que está acima da capacidade da maioria de nós. Se pudéssemos fazê-lo, apesar de tudo o que não conseguimos compreender, apesar de todas as maravilhas e de todos os “milagres”, saberíamos que este mundo em que vivemos não tem como ser criação de um deus perfeito e bom simplesmente porque nós estamos nele. Saberíamos que se não existisse nenhum outro argumento, nenhuma outra dúvida, nenhuma outra prova da impossibilidade de existência de um deus criador todo poder e todo bondade, ainda assim esse deus não poderia existir porque nós mesmos, como indivíduos e como raça, somos, sempre fomos e sempre seremos imperfeitos e, portanto, não podemos ser criação de um deus como esse, menos ainda o ápice dessa criação. Se pudéssemos nos ver como somos, não poderíamos acreditar em deus.

XXV O que muitos teístas fazem na ânsia de assumir a culpa – por si próprio e por todos nós – a fim de defender seu deus é esquecer que para contrariar o argumento tão comum de que nós somos responsáveis pelo mal basta estudar um pouco de história. Fica fácil ver que o mal existe desde sempre, ou desde antes da pré-história. Vulcões, terremotos, tsunamis, enchentes, secas, tempestades; tudo isso existia muito antes de sequer existir vida na terra, e tudo isso continuou existindo – e matando muito – antes que o homo sapiens chegasse a caminhar pelas savanas. E muitos dos micro-organismos que causam doenças; além dos casos de má formação congênita; certamente já causavam sofrimentos diversos e mortes terríveis aos animais que nunca chegaram a conviver com o ser humano. E para os que têm a bíblia como verdade revelada, basta lê-la para ver que o mal existe no mundo desde antes da expulsão de Adão e Eva do paraíso; afinal, a serpente já era o mal e estava lá, não estava? O bom humor de Millôr Fernandes já questionou essa bondade: Mestre, respeito o senhor, mas não à sua Obra: Que Paraíso é esse, que tem cobra? 50 Eu, no caso deconsiderar como verdadeira esta mitologia, só discordaria do Millôr no primeiro verso; como respeitar um “mestre” que é, ele mesmo, o mal presente e anterior ao próprio mal? Quando plantou no meio do seu jardim aquela árvore que – ele sabia muito bem – serviria para que suas criaturas cometessem o primeiro pecado, deus preparou o cenário e deu a chance de tudo começar. Se isso não é maldade então eu não sei o que seja. Seaceitarmos que deus existe, somos obrigados a aceitar que ele quis que suas criaturas pecassem e que em muitos casos sofressem sem sequer ter pecado. Sua onipotência não permite aceitar que ele não possa acabar com o mal, sua onisciência não permite aceitar que ele não saiba como fazê-lo e sua bondade simplesmente desaparece, até como possibilidade, diante da existência do mal. Os teístas dizem sempre que nada acontece sem que deus queira, com isso estão dizendo que deus quer o mal, quis que ele existisse e quer que ele continue a

existir. Não sabem, não têm ideia de que estão dizendo isso, mas estão. Eles estão dizendo que deus é mau, mas certamente não se dão conta disso e se algum deles me ler, certamente vai conseguir dar mais um nó no cérebro, provavelmente usando o argumento do mistério ou da inescrutabilidade dos desígnios de deus, para ter a ilusão de que me convenceu e para convencer-se de que não estão dizendo o que estão dizendo. A lógica não faz mesmo parte da fé. Se tudo acontece quando e como deus quer, então ele 50 In: FERNANDES, M. Literatura comentada. p. 67

quis que existisse o mundo e que o mundo fosse como é. Se é onipotente então poderia fazer diferente, mas não fez. Se é onisciente então sabia que o mal surgiria, mas quis que assim fosse. Se deus existe, então ele quis que o mal existisse e, se não o criou diretamente, preparou, consciente e cuidadosamente, todo o “pano de fundo” e todos os ingredientes necessários para que o mal acontecesse. As perguntas que restam são: Como um deus todo bondade coloca o mal como semente da sua criação? Que tipo de “livre” arbítrio é esse que serve apenas para fazer com que os “robozinhos” ajam da forma que o “mestre” determina que devem agir? E, novamente, como é que os teístas conseguem afirmar que um criador desse seria todo bondade? A história da criação descrita no Gênese parece muito com a história de um tremendo crime cuidadosa e detalhadamente premeditado. Tanto considerando muitas das possibilidades de metáfora quanto pensando a história como verdadeira, se aceito como existente, o deus criador foi e é o primeiro e o maior mal. A onisciência que lhe atribuem é comprovação de que ele conhece e sempre conheceu o mal. Dizer que deus não conhecia o mal, ou – apesar de todas as incoerências já explicadas – aceitar que somos nós os responsáveis pelo mal; dizer que deus “criou tudo perfeito, mas nós deterioramos essa perfeição” é como dizer que deus não é onisciente porque não sabia, quando nos criou, que deterioraríamos sua criação perfeita; e é dizer também que deus não é onipotente, pois além de não saber que o faríamos, ele não pôde nos impedir de fazê-lo. Isso sugere, contra toda a lógica, que nós somos mais poderosos do que deus. Dizer que deus não é onisciente equivale a dizer que deus não existe; ou, no mínimo, é dizer que ESSE deus ao qual rezam e oram não existe. Afinal, se

rezam e oram a um deus que é onipotente, onisciente, onipresente, bom e justo, um deus qualquer que não tenha alguma dessas características seria um outro deus, não seria esse. Uma vez que definem deus como onisciente, então a onisciência é parte de sua essência, é parte do que ele é, é uma parte sem a qual ele deixa de ser quem é; isso seguindo o que de deus dizem os próprios teístas. Não entendo como os teístas podem definir seu deus como onisciente e onipotente e depois dizer que nós somos responsáveis pelo mal porque, sem que deus soubesse que o faríamos e sem que deus tivesse conseguido nos impedir, criamos o mal. Fica difícil entender mesmo coisas mais simples, como por exemplo, que deus nos permite sofrer porque precisa testar a nossa fé. Fico achando que essas pessoas não sabem o significado da palavra onisciente. Da mesma forma, o fato de deus ter criado o mal; ou permitido que o mal existisse, o que equivale a criá-lo mesmo que indiretamente; comprova que, de alguma forma, deus desejou que o mal existisse, e não só o desejou e criou como também aprecia a existência do mal já que, mesmo sendo onipotente, permite que esse mal predomine no mundo. Independentemente de quanto livre-arbítrio tenhamos ou deixemos de ter, não há como escapar do fato de que deus, em existindo, em sendo o criador onipotente, não tem como deixar de ser o responsável único pela existência do mal. Mesmo e até, do mal que nós, seres humanos, praticamos. Uma vez que deus criou tudo, essa criação plena tem que incluir o mal, só mesmo com argumentos forçados e carentes de qualquer lógica racional os teístas conseguem fazer parecer – apenas a eles mesmos – que explicam esse paradoxo de um deus que criou tudo mas não criou tudo. Não seria como dizer que o fogo queima mas não queima? O nome disso não é paradoxo? O nome disso não é impossibilidade lógica? De acordo com a nossa visão humana e falha, o natural é que se crie aquilo de que se gosta ou, no mínimo, aquilo com o qual se tem alguma ligação. Em geral aquilo que criamos, de alguma forma e em algum aspecto, está em nós, em forma de vontade, de pensamento, de ideia. Não sei por que com deus isso seria diferente. Mas se, de novo num esforço homérico de abandono de toda lógica, a gente aceitar que deus não criou o mal, temos então que ver o mal como uma espécie

de efeito colateral da criação; daí então, se deus é bom e cria um mundo perfeito mas o mal surge sem que ele o crie, então esse deus, como bom e como todo poderoso, só teria que eliminar o mal. Não parece uma tarefa impossível para um ser onipotente, porém o fato de o mal existir prova que essa ação não foi tomada. Por conta disso, voluntária ou involuntariamente, pela lógica, o deus bíblico, “talmudiano” e “alcorânico”, se existisse, teria que ser, obrigatoriamente, a primeira fonte do mal. É comum, muito comum mesmo, que teístas tentem rebater argumentos atrevidos e céticos sobre o paradoxo da existência do deus diante da presença nefasta do mal dizendo que não podemos fazer tais observações porque estamos julgando de um ponto de vista inadequado. Segundo eles, estamos analisando o problema do mal do ponto de vista humano; o ponto de vista errado uma vez que deus está acima do humano. O mal é mal para nós segundo nosso conceito humano, falho, imperfeito. Quando julgamos deus sob esse ponto de vista estamos cometendo um grande erro porque deus está muito acima do que é humano e só ele teria como saber o que é realmente o mal e só ele pode saber como julgar. Nós, nunca. Eu queria que algum teísta me dissesse sob que ponto de vista ele julga seu deus bom e justo. Para Protágoras o indivíduo é a “medida de todas as coisas”; Marcelo Gleiser diz; junto com Carl Sagan; que nós somos “como o Universo reflete sobre si mesmo”51, somos “a consciência do cosmo”. Levando isso em consideração, podemos concordar com os teístas quando eles dizem que o conceito do mal é o conceito HUMANO do mal. Mas essa realidade não serve bem aos propósitos que os teístas têm em mente quando a afirmam porque, bem ao contrário do que dizem, isso não diminui em nada nosso direito de elaborar esse conceito e de questionar a divindade com base nele. Somos humanos e a essa única condição estamos reduzidos. Não temos outro parâmetro que não seja o humano, não temos outra experiência que não seja a humana, não temos outro pré-requisito que não seja nossa humanidade, não temos outro conhecimento que não sejam os conhecimentos humanos adquiridos a partir de nossa percepção humana, não temos outro conceito que não sejam os conceitos criados a partir de nossa relação de seres humanos com o que nos cerca e que percebemos através de nossa capacidade

humana de perceber. Não temos como ter outro conceito que não seja o conceito humano. Todos os conceitos a que temos acesso são conceitos humanos, inclusive o conceito de deus do próprio teísta que está tentando desmentir nossa afirmação com o argumento de que nosso conceito é APENAS humano. Se, em nosso conceito humano de mal, levarmos em conta todos os seres sencientes, ou seja, se esquecermos por um 51 GLEISER, M. Criação (im)perfeita 2010, p.25

momento a prepotência que nos leva a achar que somos os seres mais importantes do universo e pensarmos que outros animais além de nós também sofrem e sofreram e que outros animais além de nós também foram e também são atingidos pelo mal. Se tirarmos por um momento os olhos de nosso próprio umbigo, não podemos assumir a culpa pela existência do mal por mais que a gente queira. E, se pensarmos o mal levando em conta todos os seres sencientes, veremos ainda que para muitos seres sencientes nós somos o mal, e somos inclusive, em alguns casos, um mal involuntário. Quer um exemplo? Quando construímos nossas casas, nossas vilas e nossas plantações, mesmo antes de aprendermos a poluir e a devastar o ambiente em que vivemos, mesmo cuidando apenas da nossa sobrevivência, matamos, desabrigamos e até extinguimos espécies animais, e fizemos isso apenas porque somos o que somos. Se um deus nos tivesse criado, esse deus teria nos criado para que matássemos, desabrigássemos e extinguíssemos espécies animais; traduza-se: para que, para alguns seres sencientes, nós fôssemos o mal. Mesmo hoje que poluímos, depredamos e aviltamos a natureza, mesmo hoje que criamos e descobrimos novos males, novas doenças e novas formas de nos matar e de matar os outros seres que dividem conosco esse planeta, ainda não podemos, racional e logicamente, na possibilidade da existência de deus, tirar dele a responsabilidade pela existência e permanência do mal. Por mais que muitos teístas queiram tomar a si essa culpa para não colocá-la sobre deus, não podemos assumi-la porque somos sim, muito capazes de agravar o mal, mas, a despeito da nossa pretensão, não temos o poder de criá-lo. Sendo conceito humano e não podendo ser outro, a existência do mal nos torna, como seres sencientes que somos, e juntamente com todos os outros seres

sencientes com quem dividimos o planeta, nada mais do que vítimas. Nós só temos a consciência do mal porque e da forma que somos atingidos por ele; e deus, sendo criador do mal; como não poderia deixar de ser se admitido como existente e criador de tudo o que existe; seria, sem nenhuma possibilidade de dúvida, o nosso primeiro e maior algoz. XXVI Talvez se o mundo desse mais importância à filosofia do que à teologia; se os homens ensinassem mais a ética do que os preceitos religiosos a seus filhos; se todos lessem mais textos sobre ciência e história do que a bíblia – que aliás não leem – se atentassem mais para as descobertas, as lições e os pensamentos dos grandes homens do que para as fantasias mirabolantes de santos, profetas e “salvadores” duvidosos; se mostrassem mais preocupação com a salvação do corpo e da dignidade do seu igual do que com a salvação da própria alma; se olhassem mais para os lados do que para dentro de seu próprio egoísmo; talvez se fizessem isso o mundo poderia ser melhor. Muitos religiosos rezam em silêncio, oram aos gritos e pedem, imploram e rogam que as leis da natureza sejam quebradas ou alteradas em nome unicamente da sua pessoa; e quando por alguma razão têm a impressão de que isso aconteceu, eles tomam o fato como prova da existência e da bondade desse mesmo deus que, se tivesse feito o “milagre” por eles, teria obrigatoriamente, ao mesmo tempo, negado esse milagre a milhões de outras pessoas que também creram, pediram e estavam prontas a agradecer. E pode ser até que, pelo que são e pelo que têm, algumas dessas pessoas às quais o “milagre” foi negado o merecessem mais do que o religioso agradecido que sequer pensou nessa hipótese. Talvez dando mais importância à ética do que à religião o ser humano pudesse perceber o absurdo de não valorizar, de não olhar, de não se importar com o próximo a não ser egoisticamente sentindo-se felizes pelo fato de existirem infelizes para que os não infelizes pratiquem a caridade. Os teístas caridosos são, se olhados bem de perto, pessoas muito más. Eles não sabem disso, eles em geral não se dão conta disso, mas o fato é que para aqueles que creem na existência de deus e na realidade do paraíso pósmorte a que só terão direito aqueles que praticam o bem, o outro acaba sendo apenas ou pouco mais do que um meio, um instrumento para que esses teístas,

bondosos, “escolhidos” e privilegiados por um deus todo (in)justiça, consigam ganhar seu passaporte para o paraíso prometido. Eu não consigo perceber a bondade de alguém que em lugar de questionar a justiça de seu deus onipotente e impotente prefere a alegria de poder aceitar essa chantagem; e, paradoxalmente, sei que muitas dessas pessoas são boas. A única explicação que posso encontrar para isso é que os teístas que agem e sentem dessa forma assim o fazem apenas porque não pensaram a respeito; e não pensaram porque, de acordo com suas crenças, às vezes tão arraigadas que sequer conseguem se dar conta disso, questionar “os desígnios de deus” é uma maneira certa de perder o paraíso tão esperado e desejado. Talvez se os teístas deixassem de pensar que todas as coincidências e acasos que os favorecem são milagres; se deixassem de ver esses “milagres” como efeitos ou provas dos privilégios que acreditam ter recebido de deus; se vissem que esses acontecimentos, caso fossem causados por um deus onipotente, não seriam “milagres” e sim injustiças; se conseguissem pensar o óbvio: “O que não é para todos não pode ser justo mesmo que eu seja beneficiado” então, talvez, esses teístas pudessem ver que esse seu deus todo-poder só pode ser injusto e, portanto, inverossímil Se pudessem olhar os fatos sob essa ótica, talvez todos eles pudessem usar o próprio sentido de ética e pudessem recusar muitas das posturas preconceituosas, elitistas e até criminosas que muitas vezes são levados a tomar em nome desse deus que os leva a usar a bíblia para afirmar que amam ao próximo ao mesmo tempo que a usam também para encontrar justificativas para o preconceito, o ódio, o desprezo, o ato de humilhar. Talvez, se vissem que o deus delas é na verdade injusto, essas pessoas pudessem encontrar nelas mesmas o sentido da palavra justiça e parassem de ver o irmão que sofre como meio de chegar aos céus e pudessem ver o irmão que sofre como um igual que elas podem ajudar sem estar apenas fazendo caridade. Talvez essa ajuda então pudesse ser mais efetiva, mais prática e mais real. Talvez se parassem de tentar ser boas as pessoas conseguissem se tornar boas de verdade. Tudo isso é na verdade um utópico sonho extremamente otimista e irreal, tudo isso só se pode dizer com um “talvez” vago e meramente figurativo anteposto às frases que descrevem uma impossível e irrealizável realidade; isso porque não é possível que algo tão abstrato quanto um pensamento ético alheio ao “eu”

consiga fazer com que muitos teístas deixem de ser teístas; e mesmo que tal raciocínio desvinculado da fé e de suas amarras fosse possível, provavelmente as pessoas encontrariam algum substituto para a crença em um deus inverossímil, talvez algo ainda mais nocivo. Acordar para o absurdo da fé não conseguiria mudar o mundo tanto assim, isso porque a própria natureza e constituição humana não permitem que o homem, como raça, seja genuína e totalmente bom e consiga viver em paz. O ser humano tem o mal como parte constituinte e inseparável da sua essência; o mal, em forma de egoísmo, de ganância, de megalomania, de prepotência, é o sangue da alma da espécie humana. Talvez Platão esteja certo e o homem precise mesmo da religião para controlá-lo como indivíduo, mesmo com o risco de a religião instigá-lo sempre e muitas vezes a se tornar o genocida, o assassino impiedoso, o senhor da ganância e o escravo do poder que a raça humana mostrou ser tantas vezes na história. XXVII Vamos revisar? Seguindo fielmente as coisas todas que os que creem em deus dizem e atentando para o que todo mundo vê à sua volta, a linha de raciocínio é essa: No começo nãohavia nada, e quando digo nada é nada mesmo! Nãohavia as leis da natureza porque não havia natureza, não havia as leis da física porque não havia física, não havia as regras da existência, o instinto de sobrevivência, a possibilidade de superpopulação de insetos, não havia absolutamente NADA! Exceto deus. Esse havia e ninguém diz como, nem onde, nem a partir de quando ou de que forma surgiu. Apenas havia deus, mais nada! Bem, seguindo a “verdade” que a religião ensina, temos que deus – o único que havia – é onipotente. Se é onipotente significa que ele pode tudo. TUDO, o contrário de nada! Tudo e tudo mesmo! Ou seja, ele não está preso às leis da física, da natureza, da sobrevivência, ou a quaisquer outras leis, afinal, ele criou a física, a natureza, a sobrevivência, etc, etc, etc, ad infinitum! Lembre-se: Estou apenas raciocinando em cima e de acordo com o que dizem os teístas. E assim, com todo esse poder, deus vai e cria algo, cria por decisão própria; porque é preciso decidir fazer alguma coisa antes de fazê-la, certo? Para justificar essa minha afirmação diante do teísta posso usar até mesmo seu próprio livro sagrado: Está lá, na bíblia, deus, antes de mandar o dilúvio decidiu

mandar o dilúvio52, portanto, não vejo como ser mais clara e não vejo como esse fato possa ser contestado por um teísta: se existe um deus que estava sozinho no nada e que criou tudo o que existe, então esse deus certamente agiu nessa sequência; primeiro decidiu criar o mundo, depois criou o mundo. Seguindo à risca o que dizem os teístas, deus criou porque quis criar e, porque era o único que existia, criou sem ninguém mandar, criou a partir do nada mais absoluto, criou porque quis, o que quis e do jeito que quis; ou será que é possível que seja diferente? E o que é que ele escolheu para criar mesmo podendo criar QUALQUER outra coisa ou qualquer coisa diferente? Sim, não nos esqueçamos nunca disso: Deus é onipotente e, portanto poderia criar absolutamente qualquer coisa diferente do que criou, qualquer universo diferente do que criou, qualquer mundo diferente do que criou, qualquer vida diferente da que criou. Ele escolheu criar uma natureza exuberante, linda, colorida e perfumada sim, mas escolheu que essa natureza fosse regida por diversas leis, leis que não existiam antes dele e que ele também criou do nada, leis que muitas vezes fazem seres como eu, sem poder e sem conhecimento nenhum, ter 52 “Então, disse Deus a Noé: Resolvi dar cabo de toda a carne, porque a terra está cheia da violência dos homens; eis que os farei perecer juntamente com a terra”. In Gênesis 6-13

engulhos. E esse é um deus todo bondade! Deus criou a vida! Ah, que linda que é a vida! Peraí! É linda mesmo? Comparada com o quê? Dá pra tentar fazer um exercício de imaginação e pensar em outro tipo, ou outros tipos de vida que poderiam existir e que fossem radicalmente diferentes das vidas que existem? Todos, todos nós mesmo, certamente preferiríamos, se pudéssemos escolher, uma vida que não tivesse doenças, que não tivesse velhice, que não tivesse violência, que não tivesse assassinatos. Todos nós, seres humanos, se pudéssemos escolher um outro tipo de vida, a não ser que sejamos sádicos ou egoístas demais para isso, preferiríamos uma vida na qual as pessoas (no mínimo as pessoas!) não sofressem tanto. Mas, raciocinando a partir do que me dizem os teístas deus, esse deus que é tão poderoso e tão bom como os teístas dizem e não se cansam de dizer, justamente por ser tão poderoso poderia, antes de criar o mundo, escolher, e escolhendo poderia ter criado uma vida sem tantos horrores, sem tantas dores, sem tantas

mortes; ele poderia fazer isso com toda a certeza porque é onipotente, mas não o fez. Pensando nisso eu procuro a bondade secreta, seguramente muito bem escondida dentro dessa escolha, mas não consigo encontrar. Pensando e pensando muito podemos ver que embora muitos artistas, principalmente na literatura e no cinema, tenham tentado criar mundos e vidas diferentes, talvez não esteja ao nosso alcance imaginar tanto; afinal, as tentativas desses artistas, se a gente for olhar bem de perto e com bastante atenção, não ficaram tão diferentes assim da realidade; todos os outros mundos criados têm conflitos, todos têm guerras, em todos acontecem assassinatos e desavenças; se em um aparentemente melhorzinho não tem todas essas coisas, ao menos algumas delas certamente tem. Não há falta de sofrimento e de conflito, pelo menos eu não me lembro de nenhum caso, nas histórias de ficção da literatura ou do cinema, não faltam dores e desavenças em nenhuma daquelas histórias em que o autor usa a imaginação no mais alto grau possível para fantasiar um mundo que seja outro e diferente do mundo em que estamos. Desde o País das Maravilhas de Alice até Avatar de James Cameron, não podemos encontrar mundo ficcional que não tenha nenhuma das mazelas do nosso mundo real. Parece que a imaginação do ser humano não é capaz de alcançar esse objetivo, se é que é capaz de conceber esse objetivo. Mas deus é onipotente, não é? Ele certamente poderia ter imaginado e criado algo completa e totalmente diferente. Mas não criou. Com base no que afirmam os teístas posso concluir que deus escolheu criar tudo como é e como está, ele escolheu nos criar como somos e como estamos. Daí que “A vida é linda comparada com o quê” não é uma pergunta absurda que se poderia fazer a deus e a qualquer pessoa que defenda essa ideia. Enfim, ele pôde escolher antes de criar, ele poderia ter imaginado e criado qualquer outra coisa, inclusive coisas que certamente estão além da nossa capacidade de imaginação; mas, mesmo podendo tudo e qualquer coisa, ele imaginou isso e, o que é pior, escolheu criar o que imaginou, escolheu tornar real e concreta toda a cadeia de horrores que imaginou. Como é que alguém consegue enxergar bondade nisso? Na minha visão, só o fato de ter conseguido imaginar os horrores que existem no

mundo antes de eles existirem tira completamente de deus sua característica de bondade suprema. Veja bem, ainda seguindo o que os deístas pregam como verdade, ele “pensa”, “imagina” e cria; e o que ele cria? Cria a vida que só vive à custa da destruição de outras vidas. E, não se esqueça, ele é ONIPOTENTE! Como é que alguém consegue amar e respeitar um deus desses? O que tem de bonito na vida que deus criou? Ah, tem muita coisa! Tem árvores, tem flores, tem gatinhos peludos, tem mar, tem pôr-do-sol, tem cores aos montes, tem brilho, tem sorrisos, tem crianças! Tem música, tem perfume, tem amor, tem luar, tem arte, tem sabor, tem brilho, tem o mar fazendo ondas, tem nuvens brancas criando formas no azul, tem as estrelas caindo na noite, faiscando, mudando de lugar, fazendo abrir e esquecer de fechar a boca da gente. Tem gente!! Mas, se olhar mais de perto, tem fome, tem frio, tem medo, tem dor, tem doenças; tem um animal devorando as entranhas do outro que ainda tenta se mover desesperado; tem bichinhos que só estão vivos quando devoram outros bichinhos e que deixam de estar quando são por outros devorados; tem seres que estão, durante toda a vida, entocados para matar e não serem mortos; tem pequenos animais que para crescerem a partir de ovos e larvas, devoram durante dias, semanas, meses, a partir das entranhas, o outro animal dentro do qual foram por suas mães colocados; tem terremotos, avalanches, incêndios, enchentes, erupções, furacões, tornados, maremotos, secas, alagamentos. E, além de tudo isso, tem gente!! Dizem que deus fez o homem à sua imagem e semelhança. E o que é o homem? O que é esse animal que se diz soberano sobre todas as outras formas de vida? O que é esse animal que se acha superior a qualquer outra forma de vida, inclusive ao outro homem? Que animal deus escolheu para ser a sua imagem e semelhança? O fato de ter feito essa escolha já não deporia contra ele? Olha só para o homem, “a mais perfeita criação de deus”: isso parece mais uma suprema ironia, ou uma brincadeira de mau gosto. O homem, seguindo a “verdade” do teísta, é um ser criado do barro e no qual foi assoprado o alento da vida. E, junto com essa vida, como parte integrante dela, foi nesse animal chamado homem colocado também o egoísmo, a inveja, a ganância, o medo, o preconceito, o orgulho, a vaidade, o prazer de destruir, o fascínio pela morte, a vontade de submeter, de humilhar, de torturar, de fazer sofrer.

Esse é o ser que se diz o mais perfeito. Deus é o onipotente, o homem é o oniprepotente! E o teísta, entre tantas coisas que não percebe, não percebe o quanto está sendo prepotente afirmando como verdade esse conto da carochinha que contaram para ele. Se o mundo todo fosse realmente perfeito, lindo, maravilhoso e bom, ainda assim deus não poderia sê-lo e não o poderia justamente por ter criado o homem. Tudo o que há de ruim, de terrível e de tenebroso no mundo, e que estaria sem sombra de dúvida também nesse deus caso esse deus existisse, está presente e patente na alma humana. Por mais que a gente veja e conheça pessoas maravilhosas no mundo, essas mesmas pessoas maravilhosas hão de reconhecer que cada ser humano, por melhor que seja, pertence a uma raça muito ruim. O homem, analisado como raça, tem de terrível o suficiente para negar, em sua própria essência, a possibilidade de ter sido criado por um deus todo bondade. Em última análise posso dizer, e acho que qualquer pessoa, se conseguisse se libertar das amarras da fé, poderia dizer a mesma coisa: Porque eu existo esse deus todo bondade não tem como existir; minha própria existência é, para mim, prova suficiente da não existência de deus. A presença do homem no planeta torna a veracidade da existência e da bondade de deus algo logicamente absurdo. Um deus com todo o poder possível a um deus e que fosse realmente bom, jamais criaria um ser tão terrivelmente mau como é o ser humano. A existência dohomem na terra, apesar dos seres humanos maravilhosos que nela existiram, existem e existirão, é, por si só, prova mais do que válida de que o deus que cultuam nas catedrais, mesquitas, templos e sinagogas não tem como existir. O que fica realmente difícil de entender é a vaidade que impede o homem, mesmo os melhores homens, de olhar para si mesmo e perceber esse fato tão óbvio. E a esse homem criado à sua imagem e semelhança, deus deu também, além da suprema maldade, da suprema prepotência e da quase incapacidade de enxergar a si próprio, o envelhecimento, as doenças, as deficiências físicas e mentais, a capacidade de criar máquinas de matar e de criar a língua para, dentro dela, criar o eufemismo; o eufemismo que salva a todos porque graças a ele o homem não

assassina peixes, ele pratica o esporte da pesca; não assassina animais, abate para venda e consumo ou pratica o esporte da caça; não destrói a natureza, cria novas tecnologias; não humilha o seu semelhante, coloca-o no seu lugar; não espanca seus filhos, educa-os; não rouba, adquire bens; não explora, contrata funcionários; não é ladrão, é político! E aí está aquilo que, além e mais do que qualquer coisa, por mais que os teístas tentem me explicar eu não consigo entender! A esse deus que, caso exista, criou todo esse circo de horrores forrado de belezas feitas para atrair e destruir, o homem chama de “Deus de Bondade”! Que bondade? Euzinha, quando olho para essas coisas – e graças à insistência dos teístas tenho olhado muito – embora consiga ver perfeitamente que há bondade em muitos homens como indivíduos e consiga ver beleza na natureza como plástica, não posso, por mais que tente, ver onde está essa bondade do deus criador cuja existência os teístas afirmam. Como argumento contrário às minhas conclusões sobre o homem e a natureza serem essa mistura de bem e mal que não condiz com um criador bondoso, muitos teístas poderiam dizer que vivemos num mundo de opostos e que é necessário que seja assim; temos que ter o claro e o escuro, o bem e o mal, o bonito e o feio, diriam eles; a existência dos opostos é natural e necessária. Esse argumento é muito parecido com aquele que, para inocentar deus pela existência do mal, usa as leis da natureza como se elas fossem anteriores a ele e não se dá conta de que está fazendo isso. Ele é onipotente, lembra? Podia fazer diferente e não há lei ou necessidade que supere essa possibilidade, dizer que “a existência dos opostos é natural e necessária” não faz nenhum sentido se você está falando de um ser onipotente, a não ser que seu deus seja limitado, dependente e impotente. Se for o caso, por que adorá-lo? Por que dizer dele que é bom? Por que louvá-lo e em seu nome esquecer o outro, o outro que é real e que sofre como você? Por quê? XXVIII Por incrível que pareça as pessoas em geral, e até mesmo cientistas e filósofos renomados, esquecem sempre que os argumentos contrários à ideia de deus não podem ser rebatidos com leis físicas e leis da natureza em geral já que ele teria, como criador de TUDO, que ter criado também essas leis e, principalmente, teria

que, como ser onipotente, que ter o poder de ter criado leis diferentes. As pessoas costumam colocar em seus argumentos, muitas vezes sem se darem conta disso, as leis da física, da química, da biologia, da natureza enfim, como se elas fossem anteriores à existência de deus, na possibilidade de deus existir. Por exemplo, dizem que o horror que causa a mim o fato de que um animal só pode viver se para isso se alimentar de outro animal não pode ser usado como argumento contra a perfeição, a beleza e a maravilha da natureza criada por esse deus todo bondade porque isso – uma vida só viver se alimentando de outra vida – é uma lei natural. E argumentam: “Se não fosse assim do que viveríamos? Plantas também são vivas, sabia?” E me olham como se eu fosse uma criança dizendo bobagem. Mas as pessoas se esquecem de que se essas leis e essa necessidade de matar e morrer forem assim tão imperativas, elas se tornam apenas mais um argumento – e um dos mais fortes – em favor da tese de que deus não tem como existir. Afinal, se ele é todo poderoso não pode estar sujeito às leis da natureza, tem que, ao contrário, tê-las criado, o que o tornaria obrigatoriamente mau já que criou assim quando, por ser onipotente, poderia ter criado diferente. E se deus – como dizem sem se dar conta disso – criou tudo sem que fosse possível afetar, por exemplo, a cadeia alimentar e a necessidade dos opostos porque essas coisas são leis da natureza e não podem ser alteradas; então deus está sujeito às leis da natureza, sejam elas quais forem. Isso só pode significar que deus não é onipotente porque essas leis são mais poderosas do que ele. Se for o caso então, vamos esquecer deus e cultuar as leis da natureza! Sem crer em deus todos os fenômenos se explicam e se definem pura e simplesmente como fenômenos, sem que caiba a eles qualquer tipo de julgamento do que seja bom e mau. Sem crer em deus fica clara a necessidade de que os pássaros devorem os insetos para manter o equilíbrio ecológico necessário para a manutenção de todas as vidas que vivem, por necessidade, devorando outras vidas nesse nosso planeta azul. Sem crer em deus fica clara a necessidade da camada de ozônio que nos protege dos raios nocivos do sol, mas que pode ser destruída a qualquer momento deixando-nos à mercê desses raios. Sem crer em deus fica claro que não houve e não há maldade nos acontecimentos catastróficos dos quais a vida na terra já foi vítima, desde o grande meteoro que exterminou os dinossauros até o terremoto

no Japão. Sem crer em deus faz todo sentido precisarmos inventar a penicilina, as vacinas, os analgésicos, a anestesia para que as pessoas não morram tanto e não sintam tanta dor. Mas, na possibilidade de deus existir, nenhuma dessas coisas faria qualquer sentido a não ser como provas mais do que óbvias da incompetência de um criador fraco e limitado ou da maldade de um criador que onipotente que, podendo fazer de outra forma, optou por isso. Ou seja, cada um dos itens relacionados acima seria uma prova de que o deus que os teístas cultuam não existe. As perguntas são muitas e não são novas: Como é que um ser Todo Bondade pode permitir a existência do mal? Como é que um ser Onipotente não pode criar nada melhor do que seres vivos que vivem de matar outros seres vivos? Como é que um ser Onisciente precisa testar as pessoas porque não sabe se elas lhe são fiéis ou não? Por que um ser que é Todo Perfeição, e portanto completo, precisaria do amor, da fidelidade e da adoração do ser humano? Como é que um ser Justo pode permitir o sofrimento de inocentes? Como é que um ser Onipresente pode não se manifestar diante do mal? Como é que se pode dizer que todo o mal que existe no mundo é culpa dos homens se há tantos males que não têm nenhuma relação com o animal humano? Como podemos olhar para nós mesmos sem ver que somos vetores e containers do mal e, portanto, imperfeitos demais para que faça sentido esse conceito de que somos a dileta criação de um deus perfeito e bom? Entre todas as infinitas maneiras que, por ser todo poderoso, deus poderia ter escolhido para criar esse mundo; entre todas as infinitas formas diferentes e possíveis de mundo que ele poderia ter criado – porque para ele nada é impossível – deus, se esse deus existir, forçosamente e obrigatoriamente, decidiu criar justamente esse mundo e criálo sendo exatamente como é. Ou seja, deus, sendo onipotente e por isso tendo o poder decriar qualquer outra coisa, escolheu criar o mundo contendo o mal, e contendo seres como nós, capazes de perceber e de sentir o mal. Ou então, no mínimo, teria criado o mundo contendo a possibilidade do mal e contendo seres como nós, capazes de perceber e de sentir o mal. Afinal, poderíamos ter sido criados de tal forma que não pudéssemos sentir ou perceber a existência do mal mesmo que ele existisse, não poderíamos? Dessa

forma não sofreríamos; dessa forma não estaria eu aqui, escrevendo páginas e páginas sobre o mal. A criação do mundo e o modo como seria esse mundo foi escolha de deus. Não há como, pela lógica, fugir desse argumento a não ser negando a existência de deus. E eu afirmo, sem ter qualquer sombra de dúvida, que um deus bom, se um deus assim existisse, não criaria o mal e não permitiria que qualquer criatura sua, racional ou irracional, por qualquer que fosse a razão, soubesse ou sentisse o que é o mal; ou mesmo uma parte do mal. Um deus bom que fosse onipotente certamente teria criado seres perfeitos como ele. Ou seja, um deus bom que fosse onipotente certamente não teria nos criado como somos, seríamos perfeitos como faz sentido ser toda e qualquer criação de um ser perfeito. Os teístas diriam qualquer coisa do tipo “temos que aprender, temos que nos aperfeiçoar, a perfeição já dada, sem que nada fizéssemos para atingi-la não teria valor”; então eu perguntaria: Você quer dizer então que a perfeição de deus não tem valor? Ou será que deus também teve que aprender a ser perfeito? Quem ensinou isso a ele? Sei que não obteria nenhuma resposta razoável, então voltemos à hipótese de que, por alguma razão, deus optou por criar seres em processo, como somos nós; nesse caso, um deus bom que fosse onipotente certamente teria maneiras de ensinar e de evoluir sua criação sem usar para isso a arma do sofrimento imposto e inexplicável. Deus, por ser onisciente saberia o que é o mal; por ser bom não criaria, a partir do nada, esse mal ou qualquer outra coisa que pudesse gerar ou causar a existência do mal; e, por ser onipotente, poderia criar um mundo sem o mal ou sem a possibilidade do mal, ainda que conservando o tão valorizado livrearbítrio, que os céticos não conseguem ver mas que os teístas afirmam e reafirmam com tanta ênfase. A maior prova da impossibilidade da existência do deus dos teístas é a impossibilidade de contestar o fato de que um deus tão bom como esses mesmos teístas o definem jamais permitiria o mal, e menos ainda que esse mal perdurasse tanto tempo. Esse “Deus Todo Bondade”, se existisse, teria usado seu infinito poder para criar um mundo em que não houvesse possibilidade de existência do mal. Ou não teria criado nada.

Divina de Jesus Scarpim

o

Sou uma professora, uma esposa, uma mãe. Uma mulher curiosa e questionadora que já viveu mais de meio século. Enquanto vivi fui descobrindo que o amor existe e não dói tanto assim quando você mantém orgulho; que amigos valem mais do que tesouros; que filho vale mais do que a felicidade; que descobrir que se está no mundo sozinha e de mãos vazias não é tão ruim assim se a gente puder pensar; e que quando alguém diz que algo é a Verdade a melhor coisa que faço é duvidar.

Pude constatar que a história de todos os povos é feia e sanguinolenta embora todos os lugares sejam maravilhosos e todos os países sejam o melhor do mundo. Vi que todas as línguas são pura poesia; todas as culturas são ricas; todos os times são vitoriosos; todas as crianças são lindas; todos os jovens são fantásticos e o preconceito é a maior de todas as burrices. E sou teimosa, tem coisas que não aceito nunca. Por exemplo, eu me recuso a aceitar que alguém, por mais “em nome de deus” que seja, tenha o direito de proibir duas pessoas de se amarem. Eu me recuso a aceitar que estupro possa ser justificável. Eu me recuso a aceitar que os animais existem apenas para uso dos seres humanos. Eu me recuso a aceitar que sofrimento, estupro, tortura e morte de crianças possam ser justificados por qualquer tipo de justiça, por mais “divina” que seja. Eu me recuso a aceitar que uma pessoa espancando outra pessoa possa ser uma definição de esporte. Sou alguém que ainda está viva e atuante e que, portanto, aprende alguma coisa todo dia. Mas sei que isso não durará muito tempo. Porque a vida é curta e o melhor a fazer é sorrir e amar. BIBLIOGRAFIA ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 2. ed. Trad. Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 1999. AGOSTINHO, S. Confissões. 9. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1988. ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. 9. ed. Trad: José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras.1999 OS PENSADORES. George Berkeley; David Hume. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Col. Os Pensadores). Bíblia sagrada. 2. ed. São Paulo: Edição missionária, sd HITCHENS, Christopher. Deus não é grande. Trad. Alexandre Martins. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007 COMTE-SPONVILLE, Andre. Dicionário filosófico. São Paulo: Martins Fontes, 2003 CORREA, Leonildo. A banalidade do mal e o direito penal do inimigo, -Trabalho da disciplina Direito Penal; Prof. Vicente Greco - Faculdade de Direito – USP. Disponível em: http:// xoomer.virgilio.it/direitousp/texto30.htm. - dia: 28 Jan. 2011

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