DISCURSO DE FORMATURA por Dr. Marco Antonio Santana Senhores pais, amigos, familiares, convidados, homenageados, membros da mesa diretora, boa noite! Queridos, muito queridos formandos de Medicina da Universidade Federal da Bahia! Que felicidade é estarmos todos aqui hoje para celebrarmos nossa vitória! A emoçăo deste momento é algo impossível de ser mensurado pois envolve uma gama de componentes e situaçőes, umas previsíveis outras absolutamente inimagináveis. O fato é que adrenalina, as endorfinas, a serotonina estăo em turbulência colocando em risco a minha homeostase. Nesse momento, a voz fica apertada e as palavras parecem insuficientes porque nenhuma delas é capaz de traduzir a intensidade dos sentimentos que vivenciamos agora. Olho ao redor,e observo o rosto de cada um dos presentes, nesta noite tão especial e o que vejo? Jovens e radiantes médicos, cada um afogado em um mar de pensamento e de expectativas, de mãos frias e explodindo de ansiedade por chegar ao baile. Diante de tantas emoções, tentarei fazer da minha voz, ainda que com um pouco de sotaque, a voz de cada um dos meus colegas, de forma que vocês, queridos, não devam estranhar se em determinados momentos vocês se reconhecerem naquilo que falo frases proferidas e gravadas em minha memória durante todo esse período que passamos juntos. Há cerca de sei anos, a maioria deste grupo vivia o êxtase de ser aprovado em um dos vestibulares que, mesmo antes das cotas, era um dos mais concorridos do Brasil. Entrávamos na tão sonhada faculdade de medicina da Universidade Federal da Bahia. Nesse período tão inesquecível para cada um de nós, muitos dos convidados aqui presentes eram testemunhas da nossa alegria, vibraram com o nosso sucesso e nos fizeram crer que éramos especiais, inclusive imediatamente passaram a nos chamar de “doutor” e a solicitar consultas. E estávamos todos exaltados, orgulhosos, cheios de si. A partir daquele dia cada movimento de nossas vidas se deu em direção ao mesmo sonho: Nos tornarmos médicos. Um longo caminho de pedras nos esperava, mas trazíamos a esperança no peito e a certeza de que o nosso sonho seria o bastante para suportarmos todas as dificuldades. Mas éramos todos muito ingênuos. Ingênuos, porque nenhum de nós tinha a real noção da transformação que estava por vir. Você se achava o mais inteligente da sua turma no colégio? Que pena. Com o início das matérias básicas o manto da humildade foi vestido sob o peso dos tomos de Anatomia, Histologia, Patologia, Imunologia Biologia... E da mais pura agonia. Um mundo novo e desafiador se revelou a nós em forma de partículas microscópicas e substâncias crípticas que pouco entendiam, mas que tinham o poder de vida e de morte sobre nossos corpos. O massacre de informações só não era maior que a ânsia de saber e da fome de crescer. Aí começaram os sacrifícios. Noites e mais noites perdidas estudando. Não que estudar seja perda de tempo, longe disso, mas para um jovem de vinte e poucos anos, imbuído de energia e disposição frutos do sentimento de emancipação causado pelo início da vida universitária, o tempo parece querer correr em sentido das festas, dos amores, dos amigos, ou mesmo do bar da esquina. Mas, heróis, seguimos estudando. E hoje, quando recordamos todas essas dificuldades, sentimos o gosto da vitória ainda mais acentuado e percebemos um sentido que não conseguíamos enxergar naquele momento: tudo fazia parte do processo de transformação a que seríamos submetidos. Era preciso ter a certeza do nosso sonho questionada para que pudéssemos reconstruir na realidade aquilo
que apenas tínhamos na idealização. Então chegou um momento pelo qual muito esperávamos: Nosso primeiro contato com os pacientes. Muitas vezes tivemos vontade de fugir ao nos depararmos com eles na porta do consultório ou no leito da enfermaria. Nosso coração bateu forte e ansioso, nossas mãos tremeram e nosso corpo suou frio. Mas logo nossos olhares se encontraram, o deles em busca de apoio, o nosso em busca de aceitação, foi amor à primeira vista. Eles se entregaram de corpo e alma, nos contaram sua história de vida, seus temores, seus desejos, suas dores, e nem por um minuto duvidaram de nossa capacidade, bem, talvez por um minuto ou dois, mas enfim. Nós ouvimos atentamente, buscamos cada detalhe a procura da causa de seus males. Passamos dias e noites estudando, pesquisando, perguntando. Sempre desejando aprender mais com o intuito de lhe ajudar, até que um dia nos agradeceram apenas por sentar e ouvir, por lhes dar a mão e compartilhar de suas dores. Eles foram o estímulo principal para nosso crescimento. Nos fizeram enxergar que sem a compreensão e o carinho, de nada vale a mais perfeita técnica e que deve haver harmonia entre a ciência e a alma, e isso não se aprende lendo os 2 volumes do Manual de Semiologia de Mario Lopes Compreendemos ali a verdadeira lição sobre a profissão que tinhamos decidido seguir pelo resto de nossas vidas. Não, não é uma profissão melhor ou mais importante que nenhuma outra, mas é a única que permite conhecer e cuidar do ser humanos desde seus menores fatores bioquímicos até a maneira como as pessoas se relacionam. Ser médico é ser especialista em ser humano. Chegamos ao internato, e enfrentamos o dia-a-dia das enfermarias e dos ambulatórios. Experimentamos a sensação do cuidar, do aliviar, do confortar. Fomos desafiados a continuar sensíveis, mesmo diante do repetido quadro de sofrimento e de mazelas sociais que presenciávamos, das dificuldades do sistema de saúde brasileiro que força seus profissionais a serem verdadeiros artistas de circo para lidar com seus problemas. Pena que são por vezes malabaristas e por vezes palhaços. Tivemos contato com a morte, nas suas mais diversas faces: vimos a morte da criança e do jovem, que se foram ainda com face angelical, imaculados, vítimas dos maus tratos sociais, vimos a morte da mãe de família acometida por doença incurável, vimos a morte do velho, que se por um lado parecia executar a música convencional da vida, por outro mostrava que a dor da ausência parece independer do momento em que o fim da jornada acontece. Vimos a morte de pessoas honradas e de outros nem tanto. De todas as experiências vividas a morte escrevi esse poema que, me permitam, ler neste momento. Chama-se "O Médico". O MÉDICO Vê confiarem-lhe a vida Lida dia a dia com a morte Mas quando encontra saída É por saber ou é por sorte? De branco pelos corredores Caminha o fantasma Salvação dos sofredores Perdição do miasma Visão primeira do reanimado E também do recém-nascido
Porém a última sombra do finado Que pelo fato de ter morrido Torna-lhe o dia por frustrado E se com isso não for prevenido. Ao menos foi avisado. Que a vida tem validade Independe de merecer A morte rapida ou na agonia Pois se sabe que na verdade O pre-requisito para morrer É ter vivido apenas um dia Logo, por Deus não tome o nome Pois a isso não tem direito Não é mais do que um homem Pressionado a ser perfeito Sim, pressionados a ser perfeitos. Com a aproximação de nossa formatura nossos pensamentos se desviaram bastante do que eram anteriormente. O velho idealismo romântico estudantil passou a dar lugar a um pensamento real, palpável e pragmático, o nosso futuro profissional. Na constituiçăo de 88 foi decretada a extinçăo da humilhante figura do indigente, pois a saúde passou a ser direito de todos e obrigação do estado. Do mesmo modo desapareceu a figura do médico profissional liberal. O médico passou a racionar os seus horários para fazer frente às dificuldades e obstáculos e tentar manter o seu padrão de vida. O avanço tecnológico e científico, “a famosa tecnologia de ponta”, abriu novos caminhos para os profissional e pacientes porém o seu alcance é difícil e oneroso. E agora neste ponto estão o médicos modernos. Tendo em vista o avanço estupendo das ciencias, e das informações acessíveis à velocidade da luz, o médico agora vê-se confrontado com uma população que cobra pelo que há de melhor e mais moderno, e ele vê-se limitado pelos entraves burocráticos mercantilistas e das deficiências econômicas que o forçam a sacrificar a qualidade do seu trabalho em busca de uma suposta razão custo-benefício. Além disso, na sociedade atual a figura do médico tem perdido o respeito que desfrutou nos últimos 200 anos.Muito disso causado pela desova vergonhosa de profissionais mal preparados e materialistas, formados em instituições mambembes, que culminaram em uma enxurrada de processos ético-profissionais nos Conselhos de Medicina do Brasil afora. Mas há esperança. Mas eu falo por uma turma que tem esperança. Uma turma formada com os pés fincados nos preceitos da ética e da postura profissional.Uma turma que enfrentou unida as dificuldades de uma, duas, TRÊS greves consecutivas sem baixar a cabeça. Uma turma que foi elogiada por onde passou pelos professores mais admirados e ilustres da Bahia. É um orgulho ser parte desta turma. Uma turma que compartilhou das mais diversas emoções: dor, angústia, medo, limitação, superação, felicidade, reconhecimento. Fizemos amizades que levaremos por toda a vida, mesmo sabendo que nossos caminhos, neste momento, tomarão destinos diferentes. Fica a certeza de que estaremos ligados pela lembrança dos anos compartilhados. Sabemos que a batalha que se iniciará em seguida não será fácil, mas fica o desejo de que não percamos a vontade de ajudar as pessoas, a garra, o brilho do olhar e nem a nossa capacidade de indignar-nos, pois o futuro depende de nós. Mas antes devemos agradecer
aos responsáveis por tudo isso. Após anos de sacrifício e dedicação, na busca do conhecimento, acabamos por descobrir que nossos melhores mestres não foram os que nos ensinaram as respostas, mas sim aqueles que nos ensinaram as perguntas. Transmitiram-nos um pouco de si, suscitando em nós a critica, os sonhos e as expectativas. Talvez as respostas que aprendemos se percam ao longo do tempo, talvez não nos lembremos daquela fórmula, daquele algoritmo, daquele critério diagnóstico específico, porém, jamais nos esqueceremos de quem me ensinou a questionar, a pensar, sonhar e aprender. Não se pode ensinar alguma coisa a alguém, pode-se apenas auxiliá-lo a descobrir por si mesmo. O processo da lapidação humana é árduo e exige dedicação, abnegação e experiência e por isso permitam-nos, mestres, render-lhes estes breves agradecimentos, tão pequenos diante da atenção que recebemos de vocês. Obrigado. E nossos pais. Posso dizer que hoje, sentados aqui nessa platéia, temos três tipos de pais: aqueles que vibram sem medo de serem ridículos, aqueles que falam pouco, tentam segurar a emoção e disfarçadamente limpam uma ou outra lágrima que insiste em cair de sua face, e ainda temos aqueles mais durões, que tentam convencer a si próprios e aos outros que vão tirar de letra toda a emoção. Não importa qual deles seja o senhor ou a senhora, sabemos que quando os nossos nomes forem anunciados, as palmas mais fortes partirão de suas mãos e as lágrimas mais verdadeiras cairão de suas faces. E por mais que estivéssemos tão envolvidos com o nosso próprio caminho, reconhecemos hoje que sem vocês não teríamos chegado aqui e esse é momento de receber, como reconhecimento da nossa mais sincera gratidão, o aplauso mais intenso e caloroso dos seus filhos! Por fim, por mais difícil que tenha sido o caminho até este momento, nada se compara com o que ainda está por vir, mas nada disso é motivo para desanimar. Somos acima de tudo vitoriosos, heróis, tenazes em busca de nossos objetivos. Faço reverência a vocês e a todos os que participaram desta conquista. A todos, o meu muito obrigado pela paciência, atenção e respeito. Vamos celebrar.