Coutinho

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NOTAS SOBRE CIDADANIA E MODERNIDADE* Carlos Nelson Coutinho** 1. Foi-me sugerido desenvolver, nesta conferência, o tema das relações entre cidadania e modernidade. Ora, uma das características mais marcantes da modernidade -- ou seja, da época histórica que se inicia com o Renascimento e na qual, apesar das apressadas afirmações em contrário dos chamados "pós-modernos", ainda estamos hoje inseridos -- é precisamente a afirmação e expansão de uma nova concepção e de novas práticas da cidadania. Antes de mais nada, cabe lembrar que, sobretudo em sua acepção propriamente moderna, ocorre uma profunda articulação entre cidadania e democracia. Embora, no decorrer dessa conferência, eu me proponha a apresentar algumas determinações do conceito de democracia, tomarei como ponto de partida uma definição sumária e aproximativa: democracia é sinônimo de soberania popular. Ou seja: podemos defini-la como a presença efetiva das condições sociais e institucionais que possibilitam ao conjunto dos cidadãos a participação ativa na formação do governo e, em conseqüência, no controle da vida social. Há um importante conceito de Marx, hoje injustamente em desfavor (como, aliás, anda injustamente em desfavor o próprio marxismo), que é o conceito de alienação. Segundo Marx, os indivíduos constróem coletivamente todos os bens sociais, toda a riqueza material e cultural e todas as instituições sociais e * Transcrição de conferência pronunciada na EMBRATEL, com transmissão em rede nacional de

televisão executiva, em 20 de maio de 1994, num ciclo de debates sobre "Modernidade". Esta conferência foi publicada na revista Impresssa Praia Vermelha - Estudos de Política e Teoria Social. Vol. 1, n.1, set/1997, do Programa de Pós-Graduação da ESS/UFRJ e, também, no livro Contra a corrente – ensaios sobre democracia e socialismo. São Paulo: Cortez, 2000, de autoria de Carlos Nelson Coutinho. ** Professor titular do Departamento de Política Social da ESS/UFRJ. Autor de vários livros e ensaios, publicou recentemente Marxismo e política. A dualidade de poderes e outros ensaios (São Paulo, Cortez, 2^ ed., 1996) e "Crítica e utopia em Rousseau" (Lua Nova. Revista de cultura e política, São Paulo, CEDEC, nº 38, 1996, pp. 5-30).

COUTINHO, C. N. Notas sobre cidadania e modernidade. In Revista Ágora: Políticas Públicas e Serviço Social, Ano 2, nº 3, dezembro de 2005 - ISSN - 1807-698X. Disponível em http://www.assistentesocial.com.br

políticas, mas não são capazes -- dada a divisão da sociedade em classes antagônicas -- de se reapropriarem efetivamente desses bens por eles mesmos criados. A democracia pode ser sumariamente definida como a mais exitosa tentativa até hoje inventada de superar a alienação na esfera política. Desde Rousseau, o mais radical representante do pensamento democrático no mundo moderno, a democracia é concebida como a construção coletiva do espaço público, como a plena participação consciente de todos na gestação e no controle da esfera política. É precisamente isso o que Rousseau entende por "soberania popular". Um dos conceitos que melhor expressa essa reabsorção dos bens sociais pelo conjunto dos cidadãos -- que melhor expressa, portanto, a democracia -- é precisamente o conceito de cidadania. Cidadania é a capacidade conquistada por alguns indivíduos, ou (no caso de uma democracia efetiva) por todos os indivíduos, de se apropriarem dos bens socialmente criados, de atualizarem todas as potencialidades de realização humana abertas pela vida social em cada contexto historicamente determinado. Sublinho a expressão historicamente porque me parece fundamental ressaltar o fato de que soberania popular, democracia e cidadania (três expressões para, em última instância, dizer a mesma coisa) devem sempre ser pensadas como processos eminentemente históricos,

como

conceitos

e

realidades

aos

quais

a

história

atribui

permamentemente novas e mais ricas determinações. A cidadania não é dada aos indivíduos de uma vez para sempre, não é algo que vem de cima para baixo, mas é resultado de uma luta permanente, travada quase sempre a partir de baixo, das classes subalternas, implicando um processo histórico de longa duração. A noção de cidadania não nasceu no mundo moderno, embora tivesse encontrado nele a sua máxima expressão, tanto teórica quanto prática. Na verdade, as primeiras teorias sobre a cidadania, sobre o que significa ser cidadão, surgiram na Grécia clássica, nos séculos V-IV antes da era cristã, correspondendo ao fato de que os gregos conheceram na prática as primeiras

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formas de democracia, nas quais um número relativamente amplo de pessoas interferia ativamente na esfera pública, contribuindo para a formação do governo. E foi precisamente com base nisso que Aristóteles definiu o cidadão: para ele, cidadão era todo aquele que tinha o direito (e, conseqüentemente, também o dever) de contribuir para a formação do governo, participando ativamente das assembléias onde se tomavam as decisões que envolviam a coletividade e exercendo os cargos que executavam essas decisões. Mas é importante registrar que a teoria e a prática da cidadania entre os gregos clássicos estava longe de possuir uma dimensão universal (como veremos, é precisamente essa tendência à universalização da cidadania que irá caracterizar a modernidade). Para os gregos, mesmo nas situações mais democráticas, como em Atenas nos séculos V e IV a.C., estavam excluídos dos direitos de cidadania os escravos, as mulheres e os estrangeiros, os quais, em conjunto, constituíam mais de três quartos da população adulta ateniense. Além disso, os direitos de cidadania na Grécia envolviam somente o que hoje chamamos de "direitos políticos", ou seja, os direitos de participação no governo, mas não compreendiam ainda os modernos "direitos civis", como, por exemplo, o direito à liberdade de pensamento e de expressão: foi por isso que Sócrates, acusado de ter uma religião diferente da religião da pólis, da cidade-Estado, foi condenado à morte pela democracia ateniense. Malgrado esses limites, contudo, foi certamente na Grécia clássica onde, pela primeira vez na história, surgiu a problemática da cidadania. No mundo moderno, a noção e a realidade da cidadania também estão organicamente ligadas à idéia de direitos; mas, num primeiro momento, ao contrário dos gregos, precisamente à idéia de direitos individuais ou "civis". John Locke, por exemplo, que viveu no século XVII, baseou seu pensamento político na afirmação de que existiam direitos naturais. Os indivíduos, enquanto indivíduos, enquanto seres humanos (e não mais enquanto membros da pólis, como entre os gregos, ou enquanto membros de determinado estamento, como na Idade Média), possuiriam direitos. Para garanti-los, deveriam contratar entre si

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a criação de um governo, de um Estado, já que esses direitos naturais estariam ameaçados no pré-político estado de natureza. A tarefa fundamental do governo, para Locke, seria precisamente a garantia desses direitos naturais, que ele considerava inalienáveis. Entre tais direitos inalienáveis, Locke priorizava o direito à propriedade, que incluiria não só os bens materiais dos indivíduos, mas também sua vida e sua liberdade. Esse conceito de "direito natural" -- de direitos que pertencem aos indivíduos independentemente do status que ocupam na sociedade em que vivem -- teve um importante papel revolucionário em dado momento da história, na medida em que afirmava a liberdade individual contra as pretensões despóticas do absolutismo e em que negava a desigualdade de direitos sancionada pela organização hierárquica e estamental própria do feudalismo. Decerto, nessa versão liberal, o jusnaturalismo terminou por se constituir na ideologia da classe burguesa, sobretudo porque Locke e seus seguidores consideravam como direito natural básico o direito de propriedade (que implicava também o direito do proprietário aos bens produzidos pelo trabalhador assalariado), o que terminou por recriar uma nova forma de desigualdade entre os homens. Para além dessa limitação classista, a própria idéia de que existem direitos naturais é uma idéia equivocada. Os indivíduos não nascem com direitos (uma noção, aliás, reafirmada em 1948 na Declaração dos Direitos da ONU). Os direitos são fenômenos sociais, são resultado da história. Hegel tem plena razão quando diz que só há direitos efetivos, ou liberdades concretas, no quadro da vida social, do Estado. As demandas sociais, que prefiguram os direitos, só são satisfeitas quando assumidas nas e pelas instituições que asseguram uma legalidade positiva. Por outro lado, aquilo que hoje quase todos consideram como direitos indiscutíveis (por exemplo, os chamados direitos sociais, como o direito ao trabalho, à saúde, à educação, etc.) não figuravam de modo algum na lista dos direitos naturais defendidos pelos jusnaturalistas liberais.

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Mas há uma verdade parcial no pensamento dos jusnaturalistas, ou seja, a afirmação de que o direito é, de certo modo, algo que antecede -- e é mais amplo -- do que o direito positivo, ou seja, do que o direito estatuído nas Constituições, nos códigos, etc. Os direitos têm sempre sua primeira expressão na forma de expectativas de direito, ou seja, de demandas que são formuladas, em dado momento histórico determinado, por classes ou grupos sociais. Vou dar um exemplo simples. Na consciência dos trabalhadores (e na sua atividade prático-política), tornou-se um indiscutível direito, a partir do início do século XIX, a necessidade de fixar limites legais para a jornada de trabalho. Quem conhece história, sabe que os operários trabalhavam 14 horas por dia ou mais na época da revolução industrial, isto é, pelo menos até meados do século XIX. Os trabalhadores, então, lutaram para que fosse fixado um limite legal para a jornada de trabalho, algo que ia de encontro às já então famosas "leis do mercado". Isso significa que a demanda dos trabalhadores por uma jornada de trabalho reduzida colocou-se historicamente como uma postulação, como um direito, já antes que a promulgação de uma lei tornasse esse direito algo positivo, o que só ocorreu, na Inglaterra, na segunda metade do século XIX. Outro exemplo: as mulheres foram até meados do século XX excluídas do direito ao voto, a votarem e ser votadas, não só no Brasil, mas na maioria esmagadora dos países do hoje chamado Primeiro Mundo. (Nisso, até, o Brasil não foi dos mais retardatários: as mulheres votaram aqui em 1933, enquanto só vieram a fazê-lo na Itália, por exemplo, em 1946). Importantes movimentos femininos demandaram e lutaram pelo que consideravam um direito indiscutível. E terminaram por inscrever nas leis positivas de todos os países (parece-me que a Suíça foi o último país a fazer isso) esse direito que já ninguém hoje contesta, pelo menos publicamente. Ao relembrar esses exemplos, pretendo apenas insistir no caráter histórico dos direitos (dei exemplos de direitos sociais e políticos, mas poderia me valer de exemplos de novos direitos civis, como o relativo à liberdade de orientação

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sexual) e, por conseguinte, no caráter fundamentalmente histórico da própria cidadania. Nesse sentido, penso que o sociólogo britânico T. H. Marshall deu uma importante contribuição para a compreensão da dimensão histórica da cidadania quando -- no seu famoso ensaio sobre "Cidadania e Classe Social"1 -- definiu três níveis de direitos de cidadania e, baseando-se na história da Grã-Bretanha, traçou uma ordem cronológica para o surgimento desses direitos no mundo moderno, descrevendo um processo que se inicia com a obtenção dos direitos civis, passa pelos direitos políticos e chega finalmente aos direitos sociais. É indiscutível que essa ordem cronológica, do modo "clássico" como Marshall a descreve, não se reproduziu do mesmo modo em um grande número de países, entre os quais o Brasil2. Mas também me parece indiscutível que Marshall -apesar deste e de outros limites -- tem o mérito não só de delimitar essas três determinações "modernas" da cidadania (civil, política e social), mas também de insistir na dimensão histórica, processual, do conceito e da prática da cidadania na modernidade.

2. O que são "direitos civis" e como surgiram historicamente? Para Marshall, esses direitos surgiram na Inglaterra no século XVIII, tornando-se direitos efetivamente positivos depois que a chamada Gloriosa Revolução, de 1688, consolidou nesse país a monarquia constitucional. Se observarmos bem, veremos que os direitos civis elencados por Marshall em seu estudo são precisamente os direitos que Locke (que, não casualmente, foi o principal teórico da Gloriosa Revolução) chamou de direitos naturais inalienáveis. Trata-se, 1. Incluído em T.H. Marshall, Cidadania, classe social e status, Rio de Janeiro, Zahar, 1967, pp. 57-

114. 2. Cf., sobre isso, a interessante reconstituição histórica de José Murilo de Carvalho, Desenvolvimiento de la ciudadanía en Brasil, México, El Colégio de México--Fondo de Cultura Económica, 1995.

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essencialmente, do direito à vida, à liberdade de pensamento e de movimento (de ir e vir) e, não em último lugar, à propriedade. Sabemos hoje que eles não são direitos naturais, mas sim direitos históricos; surgiram como demandas da burguesia em ascensão (no momento em que essa classe representava todos os que não eram nem aristocratas nem membros do clero, ou seja, todos os que constituíam o que os franceses chamavam de "Terceiro Estado") em sua luta contra o Estado absolutista, Estado que, naquele momento da história, defendia essencialmente os interesses dos outros dois "Estados", ou seja, da artistocracia feudal e do alto clero. Tratava-se então de criar um novo tipo de Estado, fundado no consenso dos súditos (ou seja, num contrato firmado entre eles e com os governantes), cuja legitimidade se assentaria no fato de respeitar plenamente esses direitos "naturais" que todos os indivíduos possuiriam. A afirmação dos direitos civis, portanto, implicava uma limitação do poder do Estado. São direitos dos indivíduos contra o Estado, ou seja, são direitos que os homens devem usufruir em sua vida privada, que deve ser protegida contra a intervenção abusiva do governo. Já aqui podemos observar uma significativa diferença em relação ao conceito grego de cidadania, para o qual, como vimos, ser cidadão não é algo que se refira à vida privada, mas precisamente à vida pública, à qual os gregos claramente subordinam a esfera privada. Foi precisamente a natureza individual e privada desses direitos civis modernos que induziu Marx, em sua obra juvenil sobre A questão judaica3, a caracterizá-los como meios de consolidação da sociedade burguesa, da sociedade capitalista. Não hesito em dizer que, num determinado e decisivo sentido, Marx estava certo. Tomemos, por exemplo, o modo pelo qual Locke (e as várias Constituições que nele se inspiraram) tratou a questão da propriedade, apresentada como o direito natural fundamental, cuja garantia é a razão essencial pela e para a qual o Estado existe. Locke começa definindo o direito de propriedade como o direito aos frutos do nosso trabalho; mas, logo em seguida, 3. Karl Marx, A questão judaica, Rio de Janeiro, Laemmert, 1972.

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diz que -- com a invenção do dinheiro, que permite acumular o trabalho passado -- tornou-se legítimo comprar a força de trabalho de outros, sobre cujos frutos teríamos também direito de propriedade4. Vemos aí um claro exemplo de como um direito universal (todos temos direito aos frutos do nosso trabalho) torna-se um direito burguês, particularista e excludente, restrito aos proprietários dos meios de produção. Foi nesse sentido que Marx criticou os chamados "direitos do homem", no sentido de que -- entendidos como direitos únicos e exclusivos -- eles se transformam na prática em prerrogativas apenas de um tipo de homem, o homem proprietário da classe burguesa. Penso que Claude Lefort, o brilhante filósofo liberal francês, não tem razão quando diz que, para Marx, nesse seu texto juvenil, os direitos civis seriam em si direitos burgueses e, como tal, elimináveis no socialismo5. O sentido da crítica de Marx é outro: os direitos civis -- os direitos do indivíduo privado -- não são suficientes para realizar a cidadania plena, que ele chamava de "emancipação humana", mas são certamente necessários. O próprio direito de propriedade não é negado por Marx e pelos marxistas, mas sim requalificado: para que esse direito se torne efetivamente universal, assegurando a todos a apropriação dos frutos do próprio trabalho, a propriedade não pode ser privilégio de uns poucos, devendo ao contrário ser socializada e, desse modo, universalizada6. Portanto, a cidadania plena -- que, como mostrarei adiante, parece-me incompatível com o capitalismo -- certamente incorpora os direitos 4. John Locke, Segundo tratado sobre o governo civil e outros escritos, Petrópolis, Vozes, 1994: 97. 5. Claude Lefort, A invenção democrática. Os limites do totalitarismo, São Paulo, Brasiliense, 1983,

pp. 43 e ss. 6. "Horrorizai-vos [os burgueses] porque queremos abolir a propriedade privada. Mas, na vossa sociedade, a propriedade privada está abolida para nove décimos de seus membros. E é precisamente porque não existe para esses nove décimos que ela existe para vós. [...] O comunismo não retira de ninguém o poder de apropriar-se de sua parte dos produtos sociais; apenas suprime o poder de escravizar o trabalho de outrem por meio dessa apropriação" (K. Marx e F. Engels, Manifesto do Partido Comunista, in Id., Obras escolhidas, Rio de Janeiro, Vitória, vol. 1, 1956, p. 38). Também nesse sentido, cf. o sugestivo ensaio de C.B. Macpherson, "Os direitos humanos como direitos de propriedade", in Id., Ascensão e queda da justiça econômica e outros ensaios, São Paulo, Paz e Terra, 1991, pp. 103-113.

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civis (e não só os afirmados por Locke, mas também os gerados mais recentemente), mas não se limita a eles. Por exemplo: não há cidadania plena (ou, o que é o mesmo, não há democracia), sem o que Marshall chamou de "direitos políticos", isto é, sem a retomada daquela dimensão da cidadania que era própria dos gregos. Ora, se é verdade que os regimes liberais, que consolidaram a dominação burguesa, asseguraram (ainda que nem sempre e nem todos) os direitos civis, é também verdade que não fizeram o mesmo em relação aos direitos políticos. E quais são esses direitos? Além do direito de votar e de ser votado, que é um dos principais meios de assegurar a participação na tomada das decisões que envolvem o conjunto da sociedade, temos ainda -- precisamente como condição para que essa participação se torne efetiva - o direito de associação e de organização. Esses direitos, pelo menos até o final do século XIX, foram negados à grande maioria da população, mesmo nos regimes liberais. O direito universal ao sufrágio, que se tornou corriqueiro nas democracias contemporâneas, foi uma árdua e difícil conquista. Com diferentes alegações, os pensadores e as Constituições liberais restringiram o direito ao sufrágio, concendendo-o apenas aos proprietários, considerados como os únicos verdadeiros interessados no bem-estar da nação. Um pensador tão importante como Kant -- certamente um liberal, ainda que moderado -- não hesitou em justificar teoricamente essa limitação do sufrágio. Segundo ele, só deveriam votar os indivíduos que, por serem independentes, teriam a possibilidade de um juízo livre e autônomo; e essa independência tinha para ele uma base econômica, classista, já que o filósofo alemão excluía do direito ao voto tanto as mulheres (que dependiam de seus pais e maridos) quanto os trabalhadores assalariados (que dependiam dos seus patrões), com o que atribuía tal direito apenas aos proprietários e aos produtores autônomos ou artesãos7.

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. Immanuel Kant, La metafísica de las costumbres, Madri, Tecnos, 1989, pp. 144-145.

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A primeira Constituição que emerge da Revolução Francesa, a de 1791, que expressa a hegemonia dos liberais, consagrou legalmente essa distinção entre "cidadão ativo" e "cidadão passivo", o primeiro dos quais com direito a votar e ser votado (e, portanto, a ser governo), enquanto o segundo teria apenas direitos civis. Na Constituição de 1793, que expressa a hegemonia democrática dos jacobinos, essa distinção desaparece, mas para ser retomada nas Constituições francesas posteriores, pelo menos até 1848. A mesma limitação da franquia (do direito ao voto) com base na propriedade está presente na totalidade das Constituições liberais do século XIX, inclusive a brasileira. A transformação do direito universal ao sufrágio em um direito positivo só se completou na Europa no século XX. (E, no Brasil, só em 1988, quando a Constituição em vigor suprimiu a proibição de voto aos analfabetos.) Em muitos países europeus, os trabalhadores tiveram de promover amplos movimentos sociais, como greves gerais, para conquistarem esse direito. Isso já indica um fato fundamental: a generalização dos direitos políticos, até mesmo nesse nível do sufrágio, é resultado da luta da classe trabalhadora. Não me parece casual que o primeiro movimento operário de massa, o cartismo inglês, que atuou na primeira metade do século XIX, tivesse fixado como sua principal bandeira de luta -- ao lado da redução legal da jornada de trabalho - precisamente o sufrágio universal. Foi assim em luta contra o liberalismo burguês, contra suas teorias e suas práticas, que os trabalhadores (e as mulheres) transformaram em direitos positivos da cidadania moderna os chamados direitos políticos. E isso não se refere apenas ao sufrágio, mas também ao direito de organização. Com efeito, durante muitos anos, os governos liberais proibiram os sindicatos, sob a alegação de que eles violavam as famosas leis do mercado: com sua organização, os trabalhadores obtinham um preço para a força de trabalho diferente daquele que resultaria do "livre" movimento do mercado. Na França, por exemplo, somente nos anos 70 do século XIX é que os trabalhadores conseguiram revogar a Lei Le Chapellier, promulgada em 1791, em plena Revolução Francesa, que proibia a associação dos trabalhadores e as greves.

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Também uma outra forma básica de organização na democracia moderna, o partido político de massa, é uma invenção da classe trabalhadora: o primeiro partido desse tipo, que supera claramente o velho modelo liberal do partido meramente parlamentar ou de "notáveis", é o Partido Social-Democrata Alemão, que se tornou o paradigma dos vários partidos operários de massa que se alastraram na Europa no último terço do século XIX, conquistando finalmente a legalidade após décadas de proibição e repressão. Por tudo isso, já podemos ver que é um grosseiro equívoco, tanto teórico quanto

histórico,

falar

em "democracia

burguesa".

Pode-se

certamente

caracterizar o liberalismo como uma teoria e um regime político burgueses: em sua origem, o liberalismo se liga claramente à classe burguesa, à sua luta pela construção de uma ordem capitalista, o que não quer dizer que não existam no liberalismo -- e é preciso sempre insistir nisso - muitos elementos que transcendem esse vínculo com a burguesia e adquirem valor universal. Já as conquistas da democracia enquanto afirmação efetiva da soberania popular, o que implica necessariamente o direito ao voto e à organização (em suma, o direito

à

participação),

têm

resultado

sistematicamente

das

lutas

dos

trabalhadores contra os princípios e as práticas do liberalismo excludente defendido e praticado pela classe burguesa. Portanto, seria não somente um equívoco, mas também uma injustiça contra os trabalhadores, atribuir à burguesia algo que foi conquistado contra ela. Não concordo, assim, com a contraposição que habitualmente se faz (e cuja origem reside sobretudo em Lenin) entre "democracia burguesa" e "democracia proletária". Segundo essa visão redutiva, só seria "proletária" a democracia direta, participativa, baseada nos conselhos ou sovietes. Ora, como vimos, também os institutos da democracia representativa tal como hoje existem -parlamentos eleitos por sufrágio universal através do embate de partidos políticos de massa -- são uma conquista dos trabalhadores, ou, em outras palavras, são resultado de um processo de lutas que ampliou o estreito horizonte teórico e prático do liberalismo burguês originário. Decerto, uma democracia ampliada - e,

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portanto, mais congruente com o ideal da soberania popular - deve articular esses organismos representativos com outros organismos de base, de natureza claramente participativa, constituindo aquilo que o marxista italiano Pietro Ingrao chamou de "democracia de massas"8. Mas a necessidade dessa articulação só reforça o fato de que é um contra-senso falar em "democracia burguesa". Finalmente, mas não em último lugar, há um terceiro e decisivo nível dos direitos de cidadania, precisamente o que Marshall chamou de "direitos sociais" (uma designação que pode levar a equívocos, já que todos os direitos, inclusive os civis e os políticos, são sociais por sua origem e vigência). Esse nível da cidadania - embora tenha sido reivindicado pelos trabalhadores ao longo de todo o século XIX -- só foi assimilado (e mesmo assim parcialmente) como momento do direito positivo em nosso século. Os direitos sociais são os que permitem ao cidadão uma participação mínima na riqueza material e espiritual criada pela coletividade. (Esse mínimo, seguindo o que Marx já havia estabelecido em relação ao salário, não deve ser concebido apenas com base em parâmetros naturais, biológicos, mas deve ser definido sobretudo historicamente, como resultado das lutas sociais). É interessante recordar que essa dimensão da cidadania foi relativamente reconhecida, por exemplo, na Roma clássica, quando os plebeus conquistaram o direito de, em caso de necessidade, serem alimentados pelo Estado. Já no mundo moderno, hegemonizado pela burguesia, os direitos sociais foram por muito tempo negados, sob a alegação de que estimulariam a preguiça, violariam as leis do mercado (e, portanto, o direito individual à propriedade), além de impedirem os homens de se libertar da tutela de um poder estatal autoritário e paternalista. Não é assim casual que esses direitos voltem a ser negados hoje, teórica e praticamente, pelos expoentes do chamado neoliberalismo. Na modernidade, entre tais direitos sociais, foi aquele à educação pública e universal, laica e gratuita, o primeiro a ser reconhecido de modo positivo: se não 8. Pietro Ingrao, As massas e o poder, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980, passim.

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estou enganado, esse direito já está presente nas Constituições que resultam da Revolução Francesa. Mais tarde, sobretudo em nosso século, muitos outros direitos sociais foram se consolidando (à saúde, à habitação, à previdência pública, à assistência, etc.), terminando por gerar o que tem sido chamado de Welfare State, ou Estado do Bem-Estar. Cabe registrar, contudo, que -- mesmo nos mais abrangentes tipos de Welfare - jamais foi assegurado o direito social à propriedade. Tal como no caso dos direitos civis e políticos, mas de modo ainda mais intenso, o que se coloca como tarefa fundamental no que se refere aos direitos sociais não é, muitas vezes, o simples reconhecimento legal-positivo dos mesmos, mas a luta para torná-los efetivos. A presença de tais direitos nas Constituições, seu reconhecimento legal, não garante automaticamente a efetiva materialização dos mesmos. Esse é, particularmente, o caso do Brasil. Mas, embora a conversão desses direitos sociais em direitos positivos não garanta sua plena materialização, é muito importante assegurar seu reconhecimento legal, já que isso facilita a luta para torná-los efetivamente um dever do Estado. Tampouco é casual que os neoliberais se empenhem hoje, inclusive em nosso País, por eliminá-los também das normas legais, em particular da própria Constituição. Embora possa parecer óbvio, não é desnecessário lembrar que os direitos sociais, talvez ainda mais do que os direitos políticos, são igualmente uma conquista da classe trabalhadora. E não é desnecessário porque as políticas sociais -- ou seja, o instrumento através do qual se materializam os direitos sociais -- são muitas vezes definidas sem que esse fato seja levado em conta. Para muitos autores que se baseiam numa leitura mecanicista do marxismo, as políticas sociais seriam nada mais do que um instrumento da burguesia para legitimar sua dominação. É como se as políticas sociais fossem uma rua de mão única: somente a burguesia teria interesse num sistema educacional universal e gratuito, numa política previdenciária e de saúde, etc., já que, através desses institutos, não só ampliaria sua taxa de acumulação, mas obteria ainda o

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consenso

das

classes

trabalhadoras,

integrando-as

subalternamente

ao

capitalismo. Essa posição, por ser unilateral, é equivocada. Como todas os âmbitos da vida social, também a esfera das políticas sociais é determinada pela luta de classes. Através de suas lutas, os trabalhadores postulam direitos sociais que, uma vez materializados, são uma sua indiscutível conquista; isso não anula a possibilidade de que, em determinadas conjunturas, a depender da correlação de forças, a burguesia use as políticas sociais para desmobilizar a classe trabalhadora, para tentar cooptá-la, etc. Assim como no caso do sufrágio universal (que não garante automaticamente a vitória dos trabalhadores), também nesse terreno das políticas sociais nada está decidido a priori: embora tanto os direitos políticos como os direitos sociais sejam importantes conquistas dos trabalhadores, pode ocorrer que - em determinadas conjunturas e em função de correlações de força específicas - eles não explicitem plenamente o seu potencial emancipatório. Para que tal ocorra, é mais uma vez necessária a intensificação das lutas pela realização da cidadania, o estabelecimento de correlações de força favoráveis aos segmentos sociais efetivamente empenhados nessa realização. De resto, essa visão dialética dos direitos sociais como conquistas dos trabalhadores e não como simples instrumentos da burguesia já está presente na obra do próprio Marx. Em 1863, no discurso que proferiu no ato inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores, Marx disse que a fixação legal da jornada de trabalho, que acabara de ser promulgada na Inglaterra, tinha sido a primeira vitória da economia política do trabalho sobre a economia política do capital9; ou, em outras palavras, a primeira vitória de um direito social sobre a lógica privatista do capitalismo. Essa lógica se expressa, essencialmente, através da afirmação do mercado como forma suprema de regulação das relações sociais. Portanto, é como se Marx dissesse: tudo o que limita o mercado em 9. Karl Marx, Manifesto de lançamento da Associação Internacional dos Trabalhadores. In Marx e

Engels, Obras escolhidas, cit., p. 354.

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nome de um direito social universal (ou, se preferirmos, da justiça social) é uma vitória da economia política do trabalho, isto é, de uma outra lógica de regulação social. Essa formulação marxiana me parece ter uma significação bastante ampla: com ela, Marx fundamentou a legitimidade e a possibilidade concreta de obter transformações sociais substantivas através de reformas. Se uma reforma tópica, a fixação da jornada de trabalho, é uma vitória da economia política da classe operária, o mesmo pode ser dito -- e ainda com mais razão -- do conjunto de direitos sociais que terminaram por se consolidar, na segunda metade do século XX, no chamado Welfare State. Não é assim casual que o neoliberalismo -- a ideologia hoje assumida pela burguesia, seja no Primeiro, no Terceiro ou no ex-Segundo Mundos -- propugne enfaticamente o fim dos direitos sociais, o desmonte do Welfare State10. Se esse objetivo assumiu formas extremas nos emblemáticos governos de Ronald Reagan e de Margareth Thatcher, não cabe esquecer que ele está igualmente presente ainda que por vezes sob formas menos radicais - na maioria esmagadora dos governos capitalistas contemporâneos. Pressionados pela queda da taxa de lucro provocada pela dura recessão que abala hoje o capitalismo, os atuais governantes burgueses buscam pôr fim ao Estado do Bem-Estar, ao conjunto dos direitos sociais conquistados pelos trabalhadores, propondo devolver ao mercado a regulação de questões como a educação, a saúde, a habitação, a previdência, os transportes, etc. Essa é uma clara prova de que os direitos sociais não interessam à burguesia: em algumas conjunturas, ela pode até tolerá-los e tentar usá-los a seu favor, mas se empenha em limitá-los e suprimi-los sempre que, nos momentos de recessão (que são inevitáveis no capitalismo), tais direitos se revelam contrários à lógica capitalista da ampliação máxima da taxa de lucro.

10. Para um eficiente balanço crítico do neoliberalismo, cf. os textos incluídos em Emir Sader e

Pablo Gentili (orgs.), Pós-neoliberalismo. As políticas sociais e o Estado democrático, Rio de Janeiro, Paz e Terra. 1995.

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Por tudo isso, não hesitaria em dizer que a ampliação da cidadania - esse processo progressivo e permanente de construção dos direitos democráticos que caracteriza a modernidade - termina por se chocar com a lógica do capital. Mas o que esse processo de ampliação também nos demonstra é que não se deve conceber esse choque, essa contradição entre cidadania (ou democracia) e capitalismo, como algo explosivo, concentrado num único ponto ou momento. Trata-se de uma contradição que se manifesta como um processo: processo no qual o capitalismo primeiro resiste, depois é forçado a recuar e fazer concessões, sem nunca deixar de tentar instrumentalizar a seu favor (ou mesmo suprimir, como atualmente ocorre) os direitos conquistados. Estamos diante de uma linha sinuosa, marcada por avanços e recuos, mas que tem tido até agora, no longo prazo, uma tendência predominante: a da ampliação progressiva das vitórias da economia política do trabalho sobre a economia política do capital (para retomarmos a expressão de Marx), ou seja, a introdução cada vez maior de novas lógicas não mercantis na regulação da vida social. O fato de que essas novas lógicas só possam se consolidar plenamente no quadro do novo ordenamento socialista não impede a comprovação empírica dessa ampliação. Embora políticas neoliberais venham sendo sistematicamente aplicadas há vários anos em todo o mundo, pode-se constatar -- como, entre outros, o faz Perry Anderson 11 -- que ainda permanecem em vigor, sobretudo na Europa, conquistas decisivas do Welfare State. Esse antagonismo entre cidadania plena e capitalismo, de resto, expressa uma outra contradição (para a qual, aliás, Marshall já chamara a atenção, ainda que sem lhe dar solução adequada), ou seja, a contradição entre cidadania e classe social: a universalização da cidadania é, em última instância, incompatível com a existência de uma sociedade de classes. Ou, em outras palavras: a divisão da sociedade em classes constitui limite intransponível à afirmação conseqüente da democracia. Como parece óbvio, a condição de classe cria, por um lado, privilégios, e, por outro, déficits, uns e outros aparecendo como óbices a que 11. P. Anderson, "Balanço do neoliberalismo", in Sader e Gentili (orgs.), Pós-neoliberalismo, cit., p.

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todos possam participar igualitariamente na apropriação das riquezas espirituais e materiais socialmente criadas. Ora, se há alguma conclusão a tirar disso, ela me parece óbvia (embora toda a propaganda ideológica atual tenda a negá-la): só uma sociedade sem classes - uma sociedade socialista - pode realizar o ideal da plena cidadania, ou, o que é o mesmo, o ideal da soberania popular e, como tal, da democracia.

3. Como disse antes, citando Hegel, só existem direitos no Estado. Seria então interessante recordar rapidamente de que modo o processo de ampliação da cidadania, que tentei esboçar há pouco, influiu na evolução do Estado moderno. Irei adotar, para discutir a questão do Estado, o paradigma marxista; ele não é certamente o único a fornecer contribuições para conceituar adequadamente o Estado, mas me parece - por motivos que não terei tempo de justificar aqui - o mais rico, aquele que capta o maior número das determinações essenciais do Estado moderno. Também veremos que se trata de um paradigma em evolução, que não coagula ou dogmatiza observações desse ou daquele marxista, mas que tem sua essência na permanente revisão dialética dos resultados já alcançados12. Se lermos o Manifesto Comunista de 1848, que é talvez o primeiro texto político significativo de Marx e Engels, veremos que nele o Estado moderno é definido sinteticamente como "o comitê executivo da burguesia", com o objetivo de gerir os negócios comuns dessa classe e impor seus interesses às demais classes, uma imposição que tem na violência e na opressão os seus principais recursos. Em suma, o Estado é definido como um aparelho que representa apenas os interesses da classe dominante e que faz valer tais interesses através da coerção. As duas afirmações se seguem como numa dedução lógica: na 12

. Para um mais amplo desenvolvimento dos temas indicados neste item, bem como para maiores referências bibliográficas, cf. C. N. Coutinho, Marxismo e política. A dualidade de poderes e outros ensaios, São Paulo, Cortez, 1996, pp. 13-69.

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medida em que não representa nem leva em conta os interesses das demais classes, que formam de resto a esmagadora maioria da população, o Estado burguês é obrigado a ter na coerção seu principal, se não único, recurso de poder. Embora essa definição "restrita" nos pareça hoje distante da realidade de boa parte dos Estados capitalistas efetivamente existentes, ela correspondia essencialmente à natureza dos Estados com os quais Marx e Engels se defontaram quando escreveram o Manifesto. A maioria dos Estados existentes em 1848 se expressava através de regimes políticos claramente autoritários, quando não despóticos; e mesmo os poucos Estados liberais ou semiliberais da época (Inglaterra, Estados Unidos, França) estavam longe de assegurar a maior parte do que hoje consideramos como inequívocos direitos de cidadania. Vejamos alguns exemplos. Onde havia sufrágio, tratava-se apenas de um sufrágio restrito, como recordei antes: o voto era censitário, um direito atribuído apenas aos proprietários ou aos que pagavam um certo montante de impostos. Os sindicatos eram proibidos. Não havia ainda partidos de massa, que representassem os interesses das classes excluídas do poder; os partidos operários eram pequenas seitas, que atuavam à margem da legalidade, sendo freqüentemente perseguidos. Não havia, portanto, um mínimo de direitos políticos. Além disso, não eram infreqüentes as proibições à liberdade de pensamento e de sua expressão pela imprensa, o que tornava precária a própria realização dos direitos civis. Os direitos sociais eram completamente ignorados. Então, não me parece equivocada a definição "restrita" de Marx e Engels em 1848: nesse momento de sua história, o Estado capitalista se manifestava efetivamente como uma arma nas mãos da burguesia, como algo fortemente excludente e coercitivo. E tampouco é casual que, em 1917, em O Estado e a revolução, Lenin houvesse retomado literalmente essa concepção restrita: com efeito, o Estado czarista que ele se empenhava em abater apresentava-se como uma arma das classes dominantes, como uma clara ditadura autocrática. Mas

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Lenin e os bolcheviques, escrevendo no início do século XX, estavam equivocados quando generalizaram essa concepção para todos os Estados capitalistas da época, ou seja, quando a apresentaram como a única verdadeira concepção marxista de Estado. Com efeito, no intervalo de tempo que intercorre entre 1848 (ano da publicação do Manifesto Comunista) e 1917 (quando Lenin escreve O Estado e a revolução e lidera exitosamente a Revolução de Outubro), mas sobretudo depois disso, surgiram inúmeros fenômenos novos no mundo capitalista ocidental, tanto na esfera econômica quanto na política, que terminaram por modificar a própria natureza do Estado capitalista. Sem deixar de ser capitalista, esse Estado asssumiu novas características, na medida que se viu obrigado, pela pressão das lutas dos trabalhadores, a incorporar novos direitos de cidadania política e social. Desenvolveu-se no último terço do século XIX e acentuou-se ainda mais no século XX o que tem sido chamado de "socialização da política". Ou seja: um número cada vez maior de pessoas passou a fazer política, não só através da progressiva ampliação do direito ao voto, mas também por meio do ingresso e da militância de amplos segmentos da população nas múltiplas organizações (sindicatos, partidos, movimentos, etc.) que se iam constituindo. Com isso, desaparece progressivamente aquele Estado "restrito", que exercia seu poder sobre uma sociedade atomizada e despolitizada. Em face do Estado e formando um novo espaço de construção da esfera pública -, surge agora uma sociedade que se associa, que faz política, que multiplica os pólos de representação e organização dos interesses, freqüentemente contrários àqueles representadas no e pelo Estado. Configura-se assim uma ampliação efetiva da cidadania política, conquistada de baixo para cima. Foi precisamente esse novo espaço público que Gramsci chamou de "sociedade civil". Trata-se de um fenômeno que, curiosa e paradoxalmente, não foi visto nem por Marx e Engels em 1848 nem por Locke e pelo liberalismo clássico. Para esses autores, o Estado existe como um poder que assegura a propriedade e

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monopoliza a coerção, garantindo e protegendo a autonomia da esfera privada, do mundo das relações econômicas, no qual deve interferir o mínimo possível. Ainda que com sinais de valor claramente invertidos, Locke e os jovens Marx e Engels limitam a esfera pública a esse Estado "restrito", que tem praticamente a função de um guarda noturno. Ora, o que surge no final do século XIX e se reforça no XX é uma esfera pública situada fora desse Estado restrito, a "sociedade civil" gramsciana; com isso, o âmbito do Estado se "amplia" e ganha novas determinações. Ao usar essa denominação de "sociedade civil", Gramsci emprega um termo bastante usado na obra de Hegel e de Marx, mas o faz emprestando-lhe um conteúdo diverso. Enquanto em Hegel e em Marx (mais em Marx do que em Hegel) "sociedade civil" designa o mundo da economia, o mundo dos interesses privados, esse termo denota em Gramsci um fenômeno historicamente novo, precisamente esse espaço público situado entre a economia e o governo, ou - para continuar usando a terminologia gramsciana - entre a "sociedade econômica" e a "sociedade política". Trata-se de uma esfera que, sem ser governamental, tem incidências diretas sobre o Estado, na medida em que nela se forjam claras relações de poder. Por isso, para Gramsci, a "sociedade civil" torna-se um momento do próprio Estado, de um Estado agora concebido de modo "ampliado". Diferentemente do que ocorria no protocapitalismo, o Estado tornou-se - diz Gramsci - uma síntese contraditória e dinâmica entre a "sociedade política" (ou Estado strictu senso, ou Estado-coerção ou, simplesmente, governo) e a "sociedade civil". Na medida em que essa sociedade civil corporifica e representa os múltiplos interesses em que se divide a sociedade como um todo, o Estado capitalista "ampliado" - aquele que existe nas sociedades que Gramsci chamou de "ocidentais", ou seja, onde ocorreu uma socialização da política - já não pode ser estável e se reproduzir mediante o simples recurso à coerção. Torna-se agora necessário obter também o consentimento, ainda que relativo, dos governados, o que se opera, sobretudo, precisamente no âmbito da "sociedade civil".

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Ora, quem fala em consentimento ou consenso fala em concessão ou negociação, o que implica dizer que o novo Estado capitalista não pode mais ser o representante exclusivo das classes dominantes, ser apenas o seu "comitê executivo". O Estado capitalista é obrigado a se abrir também para a representação e a satisfação - ainda que sempre parciais, incompletas - dos interesses de outros segmentos sociais. Ele já é não mais uma simples arma nas mãos da classe dominante; sem deixar de representar prioritariamente os interesses da classe burguesia, converte-se ao mesmo tempo, ele próprio, numa arena privilegiada da luta de classes. Nicos Poulantzas, desenvolvendo as idéias de Gramsci, deu uma correta definição desse novo fenômeno quando afirmou que o Estado é a "condensação material de uma correlação de forças entre classes e frações de classe", na qual sempre se dá a preponderância ou hegemonia de uma classe ou de uma fração de classe 13. Enquanto no Estado "restrito" essa preponderância ocorria em primeira instância, ou seja, de modo quase imediato, agora - no Estado "ampliado" - ela se dá, digamos assim, em última instância, após uma série de conflitos e de ajustamentos. Decerto, o novo Estado

"ampliado"

não

deixou

de

ser

capitalista;

mas

alterou-se

substantivamente o modo pelo qual ele faz valer prioritariamente os interesses da classe burguesa dominante. Agora se tornou possível, em função da correlação de forças, impor limites à implementação dos interesses burgueses e até mesmo, em certas condições, impor decisões que contrariem esses interesses e atendam a demandas das classes subalternas. Ora, essa nova concepção marxista do Estado me parece ligada organicamente aos processos de ampliação e construção da cidadania de que tratamos anteriormente. Foi porque se desenvolveram os direitos de cidadania, tanto políticos quanto sociais, que se tornou possível essa nova configuração do Estado, que o faz permeável à ação e aos interesses das classes subalternas.

13. Nicos Poulantzas, O Estado, o poder, o socialismo, Rio de Janeiro, Graal, 1980, p. 147.

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Essa nova configuração do Estado abriu a possibilidade concreta de que a transformação radical da sociedade - a construção de um ordenamento socialista capaz de realizar plenamente a democracia e a cidadania - se efetue agora não mais através de uma revolução violenta, concentrada num curto lapso de tempo, como era previsto no Manifesto e na reflexão de Lenin, mas sim através de um longo processo de reformas, do que Gramsci chamou de "guerra de posição". Essa nova estratégia política poderia também ter o nome de "reformismo revolucionário". Através da conquista permanente e cumulativa de novos espaços no interior da esfera pública, tanto na sociedade civil quanto no próprio Estado, tornou-se factível inverter progressivamente a correlação de forças, fazendo com que, no limite, a classe hegemônica já não seja mais a burguesia e, sim, ao contrário, o conjunto dos trabalhadores. Nesse novo paradigma de revolução, o socialismo é concebido não mais como a brusca irrupção do completamente novo,

mas

como

um

processo

de

radicalização

da

democracia

e,

conseqüentemente, de realização da cidadania.

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4. Portanto, para concluir, eu diria que uma das principais características da modernidade é a presença nela de um processo dinâmico e contraditório, mas de certo modo constante, de aprofundamento e universalização da cidadania, ou, em outras palavras, de crescente democratização das relações sociais. Esse processo é contraditório, sujeito a avanços e recuos, porque no limite, como vimos, há um antagonismo estrutural entre essa universalização da cidadania e a lógica de funcionamento do modo de produção capitalista, cuja implantação, consolidação e expansão foi, decerto, outra das características marcantes da modernidade. Mas seria unilateral identificar pura e simplesmente a modernidade com o capitalismo, como o fazem todos aqueles que parecem supor que uma sociedade se torna "moderna" quando está plenamente integrada na lógica da atual globalização capitalista. Contra essa visão, que continua a empolgar nossos governantes e muitos de nossos intelectuais, é preciso conceber a modernidade também pelo ângulo da ampliação e da universalização da cidadania, ou seja, concebê-la como uma época histórica marcada pela promessa da plena emancipação do homem de todas as opressões e alienações de que tem sido vítima, a maioria das quais produzidas e reproduzidas precisamente pelo capitalismo. Nesse sentido, podemos dizer que as possibilidades que a modernidade abriu para a humanidade - as generosas promessas de emancipação que ela criou - ainda não foram realizadas. Portanto, longe de se ter esgotado (como afirmam os "pós-modernos"), ou de se identificar com o capitalismo (como dizem os neoliberais), a modernidade continua a ser para nós uma tarefa: a tarefa de prosseguir no processo de universalização efetiva da cidadania e, em conseqüência, na luta pela construção

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de uma sociedade radicalmente democrática e socialista, na qual - como disseram Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista - "o livre desenvolvimento de cada um é a condição do livre desenvolvimento de todos"14.

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. K. Marx e F. Engels, Manifesto, cit., p. 43.

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