Contos Da Cidade Vol

  • November 2019
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  • Words: 8,414
  • Pages: 47
Contos da cidade Vol. II victor Almeida 2008

Conto 1

A guerra havia acabado e era a primeira vez que Articus voltava para sua cidade após três anos fora. As ruas por onde andara milhares de vezes agora o desconheciam, o ar ainda conservava o cheiro da pólvora misturada à poeira, não havia lugar sem cicatrizes, marcas deixadas pelo o que ocorreu.

“You must remember this, a kiss is still a kiss.

Os corajosos tentavam trazer esperanças retirando os entulhos

que

ocupavam

suas

salas,

seus

quartos.

Outros

começavam a erguer paredes para tapar os buracos deixados pelas bombas.

A sigh is just a sigh

Na praça não havia mais árvores ou flores, tudo virou cinzas, tudo ficou cinza. Sacos de areia perfurados por balas estavam espalhados por todos os lugares.

The fundamental things apply,

Olhando em direção ao prédio onde um dia funcionou o café mais movimentado da cidade Articus vê o palco em que Rosário costumava cantar. Lembrava-se da última música que ela cantou na noite em que tudo começou.

As time goes by.” Pouca coisa restou da antiga casa de seu avô, parece que foi vítima certeira de uma bomba ou granada de mão que colocou o teto e as paredes no chão. Revirando os entulhos encontrou algumas fotografias esperando para ser resgatadas, fragmentos de lembranças que nunca se apagarão. As vozes continuavam a atormentar sua mente, um fardo pesado que carregaria pela eternidade, e que atualmente eram seguidas por imagens de acontecimentos daquela noite, tentava transcrever para o papel essas lembranças tentando desta forma se livrar delas, mas elas continuavam a retornar. Eu estava sentado no canto próximo à janela, na mesma mesa em que sempre estava. O Café estava cheio, afinal era sextafeira e todos estavam lá querendo relaxar após uma semana difícil. Sobre o palco Rosário cantava com sua voz doce, trajava um longo vestido vermelho e um belo colar com um pingente em forma de anjo sobre o peito.

Teria me apaixonado por ela se tudo não tivesse mudado naquela mesma noite. Ela interpretava 'As Time Goes By' quando as luzes se apagaram, quem estava no local começou a resmungar pensando que fosse um corte de energia, porém o dono do Café subiu no palco pedindo que todos ficassem em silêncio. -Fui informado que todos devem deixar a cidade dentro de uma hora, sugiro a todos que não demorem, o motivo ao certo ainda não sei, mas façam o que eu digo. Adeus. Ele desceu do palco e deixou o Café apressado, todos fizeram o mesmo, mas eu fiquei ao ver Rosário sozinha sentada em frente ao balcão a beber. Aproximei-me. -Você não vai arrumar suas coisas, perguntei. -Tudo o que eu tenho está aqui, não tenho por que partir. -Você sabe o que está acontecendo. Após tantos anos Articus continuava a se arrepender de tê-la deixado sozinha naquele balcão. Quando ele abriu a porta do Café e olhou para trás pela última vez viu a expressão de medo nos olhos dela, um medo duplo de ficar e de partir. Fechou a porta e correu para casa. Mais de uma hora havia se passado desde que o Café ficara vazio e Rosário continuava sentada no mesmo lugar pensando no último olhar que Articus lhe dera antes de sair.

Devia ter ido com ele, pensava. Era só ele ter pedido que eu o seguiria para qualquer lugar. Volta, ela pediu, porém ele não estava lá para ouvi-la. O chão, as paredes, o copo sobre o balcão, começaram a tremer, gritos romperam o silêncio, pela vitrine era possível ver pessoas correndo na direção oposta à dos tiros que passaram a ser disparados. Rosário se levantou assustada. Entrem em cada casa e prendam quem estiver dentro, se houver resistência pode eliminar, alguém gritou na rua. Ela pega a garrafa que estava sobre o balcão para poder se proteger, corre para as escadas no fundo do Café, mas a porta é arrombada antes, ela grita, a garrafa cai no chão e se quebra. Da rua um novo grito vindo do café pode ser ouvido, tão alto quanto o anterior, geralmente gritos cessam gradativamente até que se encha o pulmão novamente de ar para que um novo grito se suceda, entretanto este não cessou aos poucos, parou de súbito e nenhum outro sucedeu, um acontecimento estranho pensaria quem estivesse por perto, do lado de fora do Café, os corpos estendidos no chão nada pensaram. A Morte caminha pelas ruas da cidade, porém não passa alegre como se é imaginado, mas triste, eternamente triste devido ao amor, sim, a Morte que apesar da preposição ante seu nome é

homem, também ama como qualquer ser humano, sua tristeza vem de nunca ter podido viver seus amores, afinal é obrigado a tirar a vida de todos inclusive das mulheres por quem se apaixona e Rosário era uma delas. Felizes são os homens, ele dizia ao vento. Felizes são os homens. Deixei o Café e corri até a casa do meu avô, faltavam trinta minutos para a saída do trem, a porta da casa estava aberta, o encontrei na sala lendo um livro, ao perceber minha presença ele levantou o rosto e me viu suado após a cansativa corrida. -Aconteceu alguma coisa? -Ainda não, respondi. -Qual o problema? -Parece-me que é uma Guerra, uma Revolução, não sei ao certo, mas independente do motivo, temos que pegar o último trem para fora da cidade. Meu avô ficara preocupado, subiu até seu quarto, colocou na mala tudo o que era necessário e me esperou do lado de fora da casa. ...Me ajude a encontrar minha irmã... Zero um estava escrito sobre a tampa que selava a entrada para o esgoto, salvara a sua vida aquela noite, pena não conhecer

aquele lugar antes, poderia ter salvo a vida de seu avô. Cidades como pessoas tem seus segredos. Articus trancou a porta da casa, pensava que logo voltaria, foi até o portão. -Todas essas pessoas também estão indo pegar o trem, perguntou o avô. -Creio que sim, acho melhor nos apressarmos. Mal eles sabiam que quando estamos com presa o tempo passa infinitamente mais rápido e esse seriam um dos motivos que eles não chegariam à estação. Minutos depois Articus viu que as pessoas que até pouco tempo caminhavam na mesma direção que ele, agora corriam na direção oposta. Um deles era um velho amigo de Articus, Teseu, ambos se reconheceram, este parou, aquele continuou a correr e gritou. -Corram, eles estão vindo. -Eles quem, o que? Entretanto já era tarde demais, pessoas começaram a cair no chão após som de tiros. -É o Golpe, um homem gritou antes de um tiro lhe perfurar o crânio. Eu me abaixei para deixar aquele lugar, o que quer que fosse se aproximava. Olhei em volta e não encontrei meu avô,

ouvi alguém me chamar em meio ao barulho ensurdecedor dos disparos, vinha da calçada do outro lado da rua, era meu avô sentado atrás de um poste, uma poça de sangue se formava a sua volta. Corri até ele, tentei ajudá-lo a se levantar, mas me empurrou. -Deixe-me te carregar. -Se você me carregar cairá ferido antes da próxima esquina. -Eu não vou deixá-lo. -Mas você precisa, ele disse fazendo um movimento com as mãos para me afastar, a poça sob ele aumentava, porém não conseguia enxergar onde estava ferido. Vá, estão cada vez mais próximos. Eu o abandonei, era a segunda pessoa que abandonava naquele mesmo dia, comecei a chorar, me sentia culpado e corria cada vez mais rápido para que a dor do corpo me fizesse esquecer a dor do coração. O trem apitou, partia antes da hora prevista, o maquinista tinha medo, Articus entrou em uma rua deserta, indiferente à tragédia que ocorria nas suas vizinhas. Ouviu o apito do trem, não tinha mais para onde ir. Pensou ter visto algo se mexendo no chão.

-Olá, tem alguém aí, perguntou. -Articus, uma voz respondeu. -Sim. Uma das tampas que levavam ao esgoto ergueu-se, alguém colocou a cabeça para fora do buraco, Articus se aproximou, era seu amigo Teseu que havia visto há pouco tempo. -Venha entre aqui. Ele entrou. Havia dias que não chovia, portanto os dutos estavam secos. Teseu o guiou através da escuridão, eram inumeráveis curvas que com o tempo pareciam levar ao mesmo lugar, no entanto, chegaram a um túnel sem saída. -E agora, Articus perguntou. -Espere e verá. Aproximou-se da pedra, ou porta sem fechadura, que obstruía o caminho e bateu três vezes. Um som metálico ressoou pelos túneis, era ensurdecedor tal qual estar dentro de um sino gigante. Do outro lado alguém respondeu com duas batidas ainda mais insuportáveis. Por fim Teseu bateu uma última vez e a "porta" se abriu. Era pesada, difícil de ser movida, a luz vinda pela abertura cegou Articus por um tempo, teve de ser puxado pelo caminho, quando sua visão voltou pode ver onde estava, era um

lugar inimaginável, um cinema construído no subsolo.Um anfiteatro com a capacidade para cerca de duzentas pessoas em frente a uma grande tela branca, que parecia ser feita com alguma espécie de tecido, do lado oposto por um pequeno quadrado se encontrava a lente do velho projetor, que persistia a funcionar com suas força unicamente para que a magia do cinema impregnada sobre aquelas paredes, aquelas poltronas, não desaparecesse. Teseu subiu as escadas em direção à sala de projeção, Articus estava cansado e deprimido, ainda não havia superado ter deixado o avô morrer, sentou-se em uma poltrona vazia no corredor, as outras estavam ocupadas, todos tentando esquecer o que haviam visto horas antes na superfície e não escutar os gritos e ruídos de disparos vindos do teto. As luzes diminuíam de intensidade, o som ensurdecedor do velho projetor funcionando passou a ser ouvido silenciando os barulhos do lado de fora. Letras garrafais apareceram na tela dizendo “Despedidas no inverno”, era uma história de amor, porém ele não chegou a ver o final dormiu e em seu sonho seu avô lhe contava que ele havia feito a coisa certa. Eu já vivi mais que o suficiente e você ainda é jovem, existem muitas coisas que você deve fazer antes de deixar o

mundo, não se preocupe eu estou bem aqui, não é o que eu imaginava, na verdade eu acho que não é como ninguém imagina. Só vendo é possível entender. Infelizmente quando Articus acordou não se lembrava do sonho e chegou até a pensar que aquela noite não havia sonhado. Na metade do filme eu dormi acordei muito tempo depois, já havia perdido a noção das horas, não sonhei com nada, levantei-me e fui em direção ao banheiro que ficava no corredor do lado oposto, foi neste momento que eu a conheci. Passava pela frente da primeira fileira e vi uma moça, aparentando a mesma idade que ele, dormindo sentada em um das últimas poltronas do lado direito, ela trajava um vestido que um dia fora branco, mas que agora estava encardido de terra, além de manchas de sangue espelhadas em diversos pontos, tinha o cabelo despenteado, o rosto sujo. Quando passei pela poltrona dela, como que se fosse uma revelação divina, ela acordou e correu em minha direção assustada, olhando para todos os lados, me abraçou com o corpo encolhido, procurava proteção, e lágrimas escorriam dos seus olhos. -Onde estou, me perguntou. -Também gostaria de saber.

-Eles vão atirar em mim, perguntou olhando para a infinitude da tela branca. -Não, você está segura. Começava a se acalmar, mas ficou novamente agitada, me afastou e começou a olhar para todos os rostos que estavam na platéia procurando alguém, começou a gritar “Lívia?”, “Lívia, onde você está?”. Fui em sua direção, a segurei com força e pedi para que se acalmasse. -Olha para mim e diz quem é Lívia. -Minha irmãzinha, eu estava segurando na mão dela enquanto corríamos dos homens maus, mas algo aconteceu, não me lembro mais de nada até que acordei e te vi. Mas eu preciso encontrá-la. Ela chorava, voltou a gritar o nome da irmã, terminando de acordar, quem havia conseguido resistir aos primeiros gritos. -Acalme-se, nós vamos encontrá-la. -Você promete? -Prometo, mas só se você se acalmar. -Está bem. -Então agora sim estamos começando a nos entender, sou Articus, qual seu nome? -Dolores.

Ele a levou até o banheiro e ajudou a retirar a sujeira que cobria seu rosto e seu cabelo, o sangue no vestido não viera dela, estava arranhada, porém não ferida. Ao término parecia melhor, tinha um rosto de traços leves, mas seu nariz parecia quebrado, não da noite anterior, mas de muito tempo atrás. Articus conseguiu fazer com que ela descansa-se mais um pouco, Teseu os levou um pouco de comida e água do estoque de suprimentos do cinema, fê-la esperar até o anoitecer e os mostrou a passagem atrás da tela de exibição que levava à tampa do bueiro na rua do prédio do governo. Enquanto passavam pela buraco na parede Teseu os parou. -Articus, se vocês saírem, não poderão voltar para o cinema. -Eu prometi que encontraria a irmã dela e farei isso, não se preocupe conosco. Do lado de fora do bueiro, o mundo há tanto tempo conhecido por todos havia desaparecido e dado origem a um lugar completamente diferente, não era possível ver nitidamente o que estava diferente devido neblina de poeira que se formou com a explosão das bombas dispersa por toda a cidade, mas não era preciso ver, apenas sentir.

-Você tem alguma idéia do local onde sua irmão poderia estar? -O porão da confeitaria na rua K...... -Os soldados já devem ter vasculhado o local. -Mas há um quarto escondido, que só eu e minha irmã sabemos. -Então não percamos tempo. Os soldados vasculhavam todos os locais, porém os dois conseguiram chegar à confeitaria, achar a menina foi fácil, o difícil foi sair com ela, não podiam voltar para o cinema, então só havia uma solução atravessar o rio e tentar encontrar refugio na cidade vizinha. Já havia passado da hora de eu ir embora, despedi-me da cidade, não sabia se retornaria, talvez tenha sido por isso que ela deixou a maior das surpresas para o final. Ao dobrar uma esquina, já de partida, vejo alguém saindo de um prédio em ruínas do lado oposto ao que estava. Era Dolores, parecia mais velha, talvez fosse por ser a primeira vez que a via sob a luz do sol. Ela também me vê, sua primeira reação é me encarar incrédula como se estivesse a ver um fantasma, mas logo percebe que sou real e corre em minha direção de braços abertos.

-Articus, como é possível, eu ouvi os tiros, o barulho do seu corpo caindo na água. O que aconteceu naquela noite? Ela me abraçava com força, para ver se assim conseguiria provar com os sentidos o que a lógica negava. -Eu também gostaria de saber, respondi. -Lívia venha aqui, Dolores gritou. A porta por onde ela tinha saído, abriu-se novamente e uma moça apareceu, era a pequena Lívia, que desde aquela noite havia crescido muito, seu corpo começava a perder a forma de criança. Ao ver-me abriu um sorriso e correu para abraçar-me também, e ali durante muito tempo ficamos, e ficamos, e ficamos. Os três chegaram à margem do rio, uma pequena jangada estava amarrada a uma árvore, era a jangada de Pedro o pescador da cidade, a casa dele próxima ao rio estava em chamas, os soldados deviam tê-lo pego. Articus soltou a corda, a puxou até a água e pediu que elas subissem. Os soldados se aproximavam. -Você não vem, Dolores perguntou. -Não, a jangada não nos agüentaria. Vocês duas precisam ir, eu ficarei bem... -Você precisa vir conosco. Articus empurra o barco para que este pegasse impulso, era sua vez de ser deixado para trás.

-Eu nunca te esquecerei, ela gritou. -Por enquanto não, mas o tempo se encarregará disso. -Parados, alguém atrás de Articus gritou. Ele virou-se, uma fila de soldados com fuzis na mão miravam no barco. -Continuem, Articus gritou. -Se não voltarem vamos atirar. Molhado Articus correu em direção aos soldados, fazendo de seu corpo escudo das garotas. As duas chegam ao outro lado, Dolores olha para a escuridão sobre o rio, nada vê por algum tempo, até que um clarão seguido de um barulho de tiros dissipa a noite por alguns segundos. Foi um fuzilamento, ela sabia ao ouvir o som de um corpo caindo na água. Seu coração quer voltar, mas precisam partir. -Enquanto a quem estava no barco, um dos soldados perguntam. -Depois os pegamos. Um corpo alvejado por sete tiros resta boiando sobre as águas calmas do rio. Sem tumulo, sem testemunhas, fuzilado sem direito à defesa, a julgamento.

A morte observa a tudo sentado em uma pedra, vira Articus sacrificar sua vida para que as irmãs ficassem juntas. Sacrificar-se por alguém é uma coisa rara hoje em dia, principalmente quando é por alguém que mal se conhece. E um milagre ocorreu, a morte espantada com o ato de bravura não teve coragem de levá-lo para o outro mundo e o traz de volta a vida, uma gota de esperança em meio ao caos, mas que ninguém nunca ficará sabendo.

“It's still the same old story, a fight for love and glory, A case of do or die, The world will always welcome lovers As time goes by.”

Conto 2 Ele encarava o touro sem desviar o olhar, sem piscar, ambos estavam tensos, um procurava a confiança do outro para poder aproximar-se cada vez mais, porém do centro daquela arena, rodeados por dez mil pessoas, apenas um sairia vivo. A respiração ficava mais difícil, o lombo do touro sangrava, entretanto bastava apenas uma chifrada para que o toureiro também o fizesse, os dois continuavam parados esperando para ver quem faria o primeiro movimento, o barulho da multidão era ensurdecedor. A capa que o toureiro segurava a sua frente com uma das mãos tremulava com o vento, desafiando, atrás, esperando escondida, a outra mão segurava a espada que poderia terminar com a vida do adversário caso acertasse exatamente no coração, ou com a sua caso errasse. Muito tempo se passa e os dois cavaleiros continuam com seu teste de resistência, quem faria o primeiro movimento, quem cairia primeiro no solo, eram as questões que se passavam pelas mentes das pessoas que assistiam àquela batalha. O mundo ficou em silêncio, um movimento rápido com os pés, uma corrida desenfreada, um esquivo, uma respiração profunda, um luzir de metal, um erro, um acerto, os dois caem, os dois sangram, apenas um vive. Eram dezoito anos contra seiscentos quilos, o toureiro tem ajuda para levantar-se, olha para a perna que sangra e olha

para o touro caído, foi um bravo guerreiro, podia ter me derrotado e derrotaria, porém ele abaixou a cabeça, ao invés de me derrotar, quis me deixar uma marca, por que todos gritam meu nome o vencedor não sou eu e sim aquele que está ali caído, humilhado. Os homens vieram com uma carroça para puxar a carcaça do touro ao redor da arena, estavam para amarrar suas patas traseiras quando o toureiro gritou para deixar o animal onde estava. A platéia ficou sem entender, esperavam ver o bicho sendo arrastado, entretanto o toureiro disse que não, de quem eles iriam rir agora, perguntavam-se. Retirou a espada que fora cravada no coração do bicho, retirou o casaco dourado que vestia e depositou sobre o corpo do animal, ajoelhou-se e prestou uma homenagem ao verdadeiro vencedor do duelo, colocou a mão sobre a cabeça do touro, obrigado. -Queimem, ele gritou. -O que você disse, perguntou o homem ao seu lado que esperava para amarrar os pés do touro. -Queimem, o público sem entender começou a vaiar. -Não podemos, não vê, o público ficará furioso se não fizermos o que a tradição manda.

-Eu não vou deixar este touro ser humilhado por esse bando de ignorantes, ele tem que ser queimado como eram os grandes guerreiros no passado. -Se você fizer isso, sua carreira como toureiro estará acabada. -Eu não ligo, faça o que eu estou mandando. E assim foi feito, um enterro digno àquele que venceu ao perder. O toureiro ficou presente enquanto o fogo queimou, o público deixou as arquibancadas, acharam tudo aquilo uma palhaçada, por pouco não entraram na arena para se vingar daquele que acabou com sua diversão. Quando o fogo terminou de queimar, o toureiro recolheu a capa que jazia caída no chão e retirou-se. Observou que na porta de saída do estádio, uma mulher aparentando ter a mesma idade que ele, o esperava. Aproximou-se, não a conhecia, fez uma reverência com as mãos, fora a única pessoa que o esperara. -Não se envergonhe do que fez, disse a ele. Você fez o que era certo, o que tinha que fazer. Disse e foi embora, o toureiro parou, admirando a imagem que ficou na memória da beleza da moça. -Qual o seu nome, ele perguntou em voz alta, mas ela estava longe, não o ouviu ou simplesmente não quis responder.

Ele abrira os olhos, a manhã estava fria. Ela virá, ela virá, pensou consigo. Desde que recebeu aquela carta, ao acordar tinha o mesmo

pensamento,

a

mesma

esperança

que

nunca

se

concretizava, talvez fosse realmente amor? Mas até quando esperar por um amor? Ele não sabia responder, ninguém sabia responder. Se ao menos tivessem ficado muito tempo juntos, mas foram menos de três meses, por que aquela saudade? Houve tantas outras, por que aquele aperto no coração? Era só o que ele queria entender, mas nem tudo pode ser entendido, é o mistério da vida. Levantou-se com dificuldade, não tinha mais idade para levantarse da cama com um pulo por estar-se atrasado, na verdade não tinha mais idade para estar-se atrasado, com exceção para a morte, que esta parecia ter-se esquecido dele ou apenas o deixava viver por dó, ao ver que ele nunca perdia a esperança, sua luta para viver era travada por amor, aquele amor. Pegou a bengala colocada ao lado da cama e mancou até o guardaroupa. Estava frio, retirou um longo casaco, que estava ao lado do seu antigo uniforme, do tempo que era jovem, lembrou-se dos gritos do público, da chuva de rosas, do calor da vitória. Fechou o

guarda-roupa com violência, quando outras lembranças juntaramse às primeiras, lembranças como o grito das pessoas agonizando, a chuva de sangue ao levar um tiro, o frio da derrota. Tudo tem duas faces e Juan Marco conhecia ambas, a vida e a morte, a paz e a guerra, a tristeza e a ... talvez não conhecesse todas. Saiu do apartamento, acompanhado da solidão, eterna amiga, que não quis deixar-se ficar sozinha porque teve medo do escuro. Na rua as pessoas passavam sem o notar, sem notar umas as outras, cada qual perdida em seu próprio mundo. A estação aparece no horizonte e pergunta ao homem, você sabe que ela não virá hoje, não virá amanhã, então por que continua a retornar todos os dias. O homem não escuta, a rua grita, de um lado pastores pregando a vida eterna e o fim do mundo sempre tão próximo, porém nunca chega, e do outro ciganos, cartomantes, videntes, trocando uma breve visão do futuro de cada ser humano por algumas moedas. Encontra-se de pé à espera da velha Maria Fumaça, esta quando passa o vê naquele mesmo lugar em que esteve parado nos últimos meses e pergunta, por que você continua. Ele não a ouve, está absorto, perdido em pensamentos abstratos. A velha Maria pára, descansa, pessoas descem de seus vagões confortáveis e solitários, por que você continua, ela pergunta ao velho novamente, mas ele

não ouve ninguém. Como era esperado ela não veio, porém ele não deixa a estação imediatamente, fica mais um pouco, aproveitando o doce gosto da ilusão por mais alguns instantes antes que ela morra apenas para renascer na manhã seguinte como uma fênix condenada eternamente à morte. Deixou na estação os pedaços do seu coração partido e voltou para a rua. Com a ajuda de sua bengala caminhou por mais uns dez minutos até chegar à bela casa de portões dourados, onde lecionava piano a uma menina de doze anos sem muito talento, porém Juan acreditava nela, era seu ponto fraco, acreditar no impossível. Entrou na casa de estilo clássico, branca e telhado pontiagudo. Dirigiu-se a sala no final do corredor no segundo andar, onde encontrava-se a menina em seu vestido branco de renda e flores de tricô, sentada em frente do piano. -Bom dia professor, disse a menina. -Bom dia, respondeu. Começou a ensinar alguns acordes fáceis a Laura, este era o nome da menina, uma hora depois pediu que ela tocasse a música que havia ensinado. A pequena começou bem, porém seus dedos começaram a errar.

-Professor, ela disse com aquela voz doce. Não estou conseguindo venha ensinar-me. Ele o fez, deixou a bengala ao lado do piano e sentou-se com Laura, mostrando-lha o que fazia de errado. -Veja Laura tente abrir mais os dedos neste ponto, porém ela não prestava atenção à mão do professor, estava com o olhar fixo no rosto de Juan, a menina levantou-se e enquanto ele estava absorto com sua música, aproximou-se e encostou seus lábios nos dele por alguns instantes. A música cessou, ele afastou-se dela perguntando por que ela tinha feito aquilo, ela simplesmente respondeu, (beijar-te-ei agora, hoje é festa e eu te amo) por que eu te amo. -Adeus, ele disse pegou sua bengala e deixou a casa. Nunca mais viu Laura. Durante o caminho de volta para casa, Juan sentia-se imundo por ter permitido a menina sujar seus lindos e virgens lábios nos seus velhos e amargurados. Porém ele não pode enganar a si mesmo com seu próprio pensamento, por que em um canto bem escondido do coração ele estava feliz com o ocorrido, exatamente nos poucos instantes em que Laura repousava seus lábios sobre os dele, Juan teve a impressão de que o tempo havia voltado 50 anos, como se aquele baile a fantasias estivesse ocorrendo outra vez. E foi desta forma que Laura com

seu inocente amor de menina virando moça, proporcionou ao velho passar um curto e infinito instante com sua amada.

Anoitecia, no salão da cidade ocorria o baile anual de máscaras, o festival era organizado para manter vivo uma das poucas tradições daquela cidade. Fantasias antigas eram obrigatórias e o tema era livre, porém mesmo com tamanha liberdade, desconhecida até hoje por alguns países, grande parte dos homens estavam fantasiados de arlequim, variando apenas as cores e os detalhes; eram cerca de oitocentos, mil palhaços quase idênticos sob o mesmo salão. Porém não foram apenas os homens que estavam idênticos, as mulheres também foram ao baile com fantasias praticamente iguais, havia algumas centenas de princesas, outras de donzelas e em menor número condessas, talvez o povo não fosse criativo, porém o real motivo das coincidências era culpa da liberdade, quando se pode fazer tudo as pessoas têm medo de perder-se no abismo das escolhas e preferem limitar suas opções o máximo possível. De fato era uma imagem interessante de ser visto.

No centro do salão uma máscara negra brilhava, todos os palhaços olhavam àquela mulher de

corpo

atraente, fantasiada

de

Colombina, a única Colombina do lugar, linda. Apesar de atrair olhares de dezenas de arlequins, seus olhos profundos e belos sob a máscara estavam fixados em alguém sentado em um canto, onde encontrava-se um Pierrô triste e solitário, com uma lágrima de desenho escorrendo pela face da máscara. Fazia três meses que Juan não toureava, fora proibido por ter quebrado o ritual, apesar de que sua perna, depois do ferimento que sofreu do touro também não lhe proporcionaria a agilidade de outrora. Uma dura pena para quem fora criado desde pequeno na arena, um lugar dividido entre glórias e derrotas, medo e coragem, morte e... Porém neste instante no canto do salão, trajando uma fantasia de Pierrô, estava preocupado com outros assuntos, seus olhos treinados para perceber o menor movimento realizado pelo touro, agora procuravam avidamente por aquela garota, cujo nome desconhecia, mas sentia sua presença no salão. Tentava olhar através das máscaras, tentativa inútil, todos tinham a mesma face, imutável, olhava para todas as direções, até que percebeu que era observado por alguém do outro lado do salão. Era uma

Colombina, máscara negra, roupa de um lado preta e do outro branca. Ao ver que ele a encontrou, ela aproxima-se, percebe que sua perna continua ferida, ajuda-o a levantar-se. -Eu sei que és tu, tu sabes que sou eu, ela diz. Ele apóia-se nela para permanecer de pé, ela levanta a mascara dele, deixando apenas a boca à mostra e faz o mesmo com a sua. Ela aproxima-se do ouvido dele, beijar-te-ei agora, hoje é festa e eu te amo, diz baixinho. Eles se beijam apaixonadamente por um longo tempo. O Pierrô e a Colombina há muito tempo esperavam por isso. Separam-se, ela coloca um papel amassado na mão dele e afasta-se, sumindo em meio à multidão. Ele desamassa o papel, está escrito: ''Encontre-me no relógio da torre da estação de trens dentro de dois dias, às 8 horas da noite".

Juan esperou ansiosamente por dois dias para rever a moça misteriosa. Estava dentro do relógio da torre, era um lugar escuro, a única iluminação era a que entrava pelo vidro que formava o número 12, estava rodeado por engrenagens, havia algumas quebradas no chão, outros girando no alto, algumas pequenas

outras com o dobro do seu tamanho, tudo para movimentar o tempo e caso uma delas deixasse de funcionar o tempo pararia, eternamente estático, até que um anjo relojoeiro viesse do céu e o concertasse. O chão de madeira começou a ranger, alguém se aproximava, era a moça caminhando hora pela luz, hora pela sombra. -Pensei que você não viria, disse Juan mancando ao encontro dela. -Eu vim isso é o que importa. -Estava ansioso por te ver, por que me fez esperar tanto tempo? -Para que nós sentíssemos saudades, foi muito nobre o que fez na última tourada, desistir de sua carreira para homenagear um animal. -Às vezes a vida faz de amigos inimigos e inimigos amigos, aquele touro era um guerreiro. -Você também é, há muito tempo assisto suas touradas, desde que me apaixonei por você. -Não, você se apaixonou pela fama que eu tinha, agora não passo de um inválido. -Você está errado, eu me apaixonei pelo seu coração, ela aproxima-se e o abraça. -Ainda não sei o seu nome, ele disse.

-Dolores, estamos juntos agora, Juan e Dolores, vamos deixar este lugar rodeado de tempo.

Dolores o levou até seu pequeno apartamento no centro da cidade. O prédio ficava em uma viela imunda, na esquina uma criança vendendo drogas, queiram perdoar-me, no tempo em que essa história se passa ainda não existe tráfico de drogas, porém como já foi escrito acho melhor complementar a frase dizendo, na esquina em que uma criança, que mal chegará a tornar-se adulta, estará vendendo drogas dentro de vinte anos. -Lugar horrível não acha? Perdoe-me. -Tudo bem, a culpa não é sua. -Então de quem é? Ele não respondeu. Subiram até o segundo andar, ela abriu a porta, o apartamento estava desarrumado, roupas pelo chão, caixas, parecia que ela havia acabado de se mudar. -Acho que isso é culpa minha disse em um tom irônico, ele riu. Quer beber algo, perguntou. Sente-se aqui, ela retirou um lençol que cobria uma poltrona velha e dirigiu-se à cozinha.

Na manhã seguinte ela acordou, olhou para o relógio e percebeu que estava atrasada para o serviço.

-Juan, ela chamou, porém ele continuava dormindo abraçado a ela. Juan, eu tenho que ir trabalhar. -Fica um pouco mais. -Eu preciso ir, não nasci rica. Ela finalmente consegue soltar-se, levanta-se e fica admirando um pouco seu reflexo no espelho, olha o tigre tatuado nas costas, há muito tempo não se via nua, sentiu-se mais bonita do que nunca, talvez apaixonar-se tivesse feito bem para ela, porém ela não era mulher de paixões. Vestiu-se, olhou uma última vez para Juan e saiu.

Quando Dolores abriu a porta do bar o dono a esperava em frente ao caixa com uma expressão irritada na face. Olhava fixamente a moça. -Outra vez atrasada dona, com quem foi dessa vez? -Deixe-me em paz Alberto. -Vou deixar assim que eu te demitir, ou seja, se você chegar outra vez atrasada nunca mais trabalha nesse bar, entendeu? -Entendi. Ela foi para a cozinha vestir o avental que usava de uniforme, o tal de Alberto que era gordo, barba grande, usando uma camisa

engordurada, continuou observando-a até desaparecer pela porta da cozinha. Dirigiu-se ao telefone e discou um número.

Com dois meses de namoro, Juan finalmente conseguiu levar Dolores para conhecer a fazenda que herdara dos pais. Ficava a poucos minutos da cidade, era linda a fazenda, uma enorme plantação e um estábulo com belos cavalos. -Olhe aquele é Rufos, ele disse apontando para um touro, preso em um cercado no horizonte. Vamos chegar mais perto. Ele fez um gesto com a mão e o animal aproximou-se. -Foi com ele que aprendi a tourear, em sua juventude era bravo e persistente. -Ele te ensinou a matar outros touros? -Não, ele me ensinou que morrer numa arena é glorioso. -Para quem? -Para os dois, só depende de quem a sorte escolhe. Ele a pegou pela mão e a levou para dentro da casa grande, tudo ali era um mundo completamente novo para ela acostumada com seu pequeno apartamento. Na sala de estar havia um quadro de cerca de dois metros de altura com a imagem dos pais de Juan, sob ele um belo piano.

-O que acha deste piano, Dolores? -Lindo. -Deste de que me machuquei venho pensando em lecionar musica nele. -Acho uma ótima idéia, ela respondeu impaciente. Você precisa encontrar algo em que gastar seu tempo. -Por que você está nervosa? -Está anoitecendo, eu preciso ir. -Por que você não passa a noite aqui? -Não posso.

Chovia muito aquela noite, por mais que o limpador de pára-brisa tentasse proporcionar a visão da estrada, o fluxo de água era mais forte. Eram três os ocupantes do carro, um casal na parte frontal e uma criança de aproximadamente dez anos no banco de traseiro. Um barulho de freios sendo acionados pôde ser ouvido por alguns quilômetros, em seguida fogo lutando contra a água da chuva, gritos. Foi tudo o que José ouviu e viu antes de parar no acostamento e aproximar-se da labareda, olhou com dificuldade, sua roupa ficava cada vez mais encharcada, era um carro capotado e dentro havia movimento. Pela janela do banco de trás uma mão

se mexia, José foi em direção a ela, viu que se tratava de uma criança, com cuidado abriu o cinto de segurança e retirou o garoto; olhou para o banco da frente e viu que os dois adultos estavam parados. Levou o garoto nos braços e o colocou sobre o banco da sua caminhonete, em seguida pegou o extintor e apagou o fogo que consumia o carro cada vez mais. Minutos depois os bombeiros chegaram, constataram que por proteção de algum ser místico-astrológico o menino sofreu apenas alguns ferimentos leves. É um menino forte, falou o bombeiro. Realmente por que no dia que se seguiu lá estava ele entre dois caixões negros, o funeral dos pais, uma forma dura de ser apresentado à morte. Durante o enterro podia ouvir-se conversas como: Que pena, logo agora que eles haviam comprado aquela fazenda enorme, iam mudar-se no próximo mês. Que fatalidade. Era um casal tão apaixonado, tão jovem e bonito. Pobre menino, agora ficou sozinho como a maioria das pessoas. Porém o menino ficou forte até o último punhado de terra jogado para cobrir os caixões, com um corte no rosto e outro na alma ele resistiu, era o que eles gostariam que ele fizesse.

A campainha tocou, Juan estranhou afinal não tinha nenhum amigo naquela cidade e também não lembrava de ter dado o endereço do seu novo apartamento para nenhum conhecido. Foi até a porta com o auxilio da sua bengala companheira inseparável nos dias atuais, abriu e deparou-se com o carteiro. Este o entregou um envelope que estava meio amassado, sujo e não havia remetente, porém Juan não questionou e deixou o homem ir. Sentou-se no sofá e abriu o envelope.

“Juan,

Quem escreve essa carta é Dolores, lembra-se de mim? Eu sei que as coisas não acabaram bem entre nós, sei que foi culpa minha, porém gostaria de reencontrá-lo. Caso você tenha ficado magoado comigo, ao menos realize o último desejo desta velha, nem que seja por dois minutos. Desembarcarei na estação de trens pela manhã, espero encontrá-lo lá, caso você não esteja eu compreenderei e partirei, não se preocupe que não te perturbarei mais.

Dolores.”

Era tudo o que dizia a carta, sem data, sem carimbo, apenas essas palavras que inquietaram Juan. Pensava que nunca mais a veria e agora sem nenhuma explicação recebe uma carta dela dizendo que necessita vê-lo. Pegou o envelope outra vez, achava estar vazio, entretanto havia outra coisa, retirou. Uma lágrima escorreu-lhe a face, era uma foto em preto e branco, que tirara com Dolores quarenta e sete anos atrás, no parque da cidade. Ele não a deixaria esperando, afinal ele também precisava reencontrá-la. Aquela noite ele não dormiu, se revirava na cama com a mesma ansiedade de um adolescente um dia antes de começar as aulas, sonhando em ver passar aquela menina bonita novamente.

Ela não devia ter saído daquele jeito, era o que pensava. Juan merecia uma explicação, explicação que talvez não entendesse. Descobriu que um fantasma que ela pensava ter desaparecido foi solto após tanto tempo, ela não tinha medo dele, afinal não poderia fazer mais mal do que já havia feito, o problema era que ele machucaria não só a ela, mas também a quem ela amava. Ele a encontraria mais cedo ou mais tarde, por isso deixou o extoureiro daquele jeito. O motorista de Juan havia a deixado na

estação de trens e agora caminhava de volta para casa chorando, as ruas estavam escuras, ao chegar no apartamento percebeu que a porta estava destrancada, entrou. -Olá amor, ela ouviu ao entrar no apartamento. Olhou para o sofá, lá estava um homem que parecia ser alto, sua cabeça estava raspada e era forte, tinha uma tatuagem de dragão no braço direito que era visível, pois vestia uma camisa regata. -Como você conseguiu esse endereço? -Recebi um telefonema, alguém me disse, alguém que me devia um favor, eu ia vir para cá antes, porém tinha que fazer uns serviços, passar três anos na prisão não é fácil, mas agora eu voltei e estou com saudades. -Quantas vezes eu vou ter que te dizer que nós terminamos há muito tempo. -Nós só vamos terminar quando eu disser isso, ele disse furioso. O homem levantou-se e foi em direção a ela, a agarrou, ela resistia, tentava soltar-se dos braços dele. Jogou-a no sofá, ela não tinha forças para se soltar. ......................................................................................................... ........................... Quando Dolores acordou, pela manhã, o homem havia partido, porém ela sabia que voltaria ao anoitecer, pensou em pedir ajuda

para Juan, entretanto ele nada poderia fazer. Resolveu tomar uma decisão desesperada, foi até o guarda-roupa e colocou o máximo de roupas que conseguiu na mala que ficava ao lado do armário, vestiu-se rapidamente e foi até criado mudo ao lado da sua cama. Abriu a gaveta e retirou um envelope. Dentro havia fotos que ela tirara com Juan, queria guardar como recordação. Pegou a mala, saiu do apartamento deixando a porta aberta devido a presa, dirigiu-se à estação de trens, mas antes passou no bar onde trabalhava. -Está atrasada, o gordo dono do bar disse. -Seu cretino, ela falou caminhando em direção a ele, ao chegar bem perto socou o olho do homem que inchou e começou a sair sangue. Na estação comprou uma passagem para o local mais distante que conseguiu, o trem partiria às onze horas, faltava ainda uma hora, seu maior arrependimento era partir sem se despedir de Juan, porém ela estava fazendo aquilo para protegê-lo.

Juan acordou inquieto, não conseguira dormir pensando na estranha maneira que Dolores o deixou na noite anterior. Ela estava preocupada com algo muito grave, ela estava distante de

mim, por que será? Eu preciso falar com ela, tenho que ir até o apartamento dela. Eram nove e meia da manhã, ele dirigiu-se à garagem da fazenda, ligou um dos carros que também herdara dos pais e foi até a cidade. Chegando ao prédio, onde Dolores morava, percebeu que a janela do apartamento dela estava aberta, significava que ela estava lá. Foi até o apartamento, a porta estava entreaberta, entrou. -Dolores, ele chamou. Observou que o guarda-roupa estava revirado, espalhadas pelo chão varias peças de roupa feminina, a cama estava desarrumada, a mala que ela sempre deixava ao lado do armário havia sumido. Para onde ela foi, ele se perguntava. Olha para o relógio que marca dez e quarenta, nesse instante o alto e longo apito de um trem chegando à estação pode ser ouvido, se ela fez as malas aquele era o único local que ela poderia ter ido. Ele encarava o touro sem desviar o olhar, sem piscar, ambos estavam tensos, um procurava a confiança do outro para poder aproximar-se cada vez mais, porém do centro daquela arena, rodeados por dez mil pessoas, apenas um sairia vivo. Deixa o carro na porta da estação, com a presa esquece a bengala e tenta correr mancando o mais rápido que pode, afinal a qualquer

momento o trem partirá. A respiração ficava mais difícil, o lombo do touro sangrava, entretanto bastava apenas uma chifrada para que o toureiro também o fizesse, os dois continuavam parados esperando para ver quem faria o primeiro movimento, o barulho da multidão era ensurdecedor. Como sua entrada na estação fora suspeita,

dois

policias

passaram

a

persegui-lo

até

que

conseguiram alcançá-lo. Parado senhor, gritaram. Desculpe-me seus policias, mas eu preciso chegar à plataforma antes que o trem parta. E por que o senhor tem tanta presa? Por que a mulher da minha vida pode estar nele e eu preciso encontrá-la. A capa que o toureiro segurava a sua frente com uma das mãos tremulava com o vento, desafiando, atrás, esperando escondida, a outra mão segurava a espada que poderia terminar com a vida do adversário, caso acertasse exatamente no coração, ou com a sua, caso errasse. Olhou para a tabela de horários fixada na parede da estação, faltavam cinco minutos para a partida do trem. Muito tempo se passa e os dois cavaleiros continuam com seu teste de resistência, quem faria o primeiro movimento, quem cairia primeiro no solo. Os policias o liberam, finalmente consegue chegar à plataforma, há muita gente fora do trem, pessoas que ficarão vendo os vagões partir para o desconhecido, sonhando em estar dentro deles, enquanto são deixados para trás com suas vidas que continuarão

iguais sempre foram, eternamente. Há horas que simplesmente precisamos partir, sem olhar para trás ou para os lados, em direção ao desconhecido como fazem os vagões. O mundo ficou em silêncio, um movimento rápido com os pés, uma corrida desenfreada, um esquivo, uma respiração profunda, um luzir de metal, um erro, um acerto. Um apito, o trem partirá em menos de um minuto, seus olhos treinados para perceber o menor movimento realizado pelo touro, agora procuravam avidamente aquela garota, a dor na perna cada vez maior limitava seus movimentos, porém continuava a procurar dentro de cada janela, de cada vagão. O trem inicia lentamente seu movimento sofrido, com muita força ele começa a pegar velocidade, ele a encontra, em um dos últimos vagões, lá está ela chorando, sozinha. Um grito, ela olha, um sorriso, não há tempo, Me desculpe, Não se envergonhe do que fez, disse a ela. Você fez o que era certo, o que tinha que fazer. O toureiro para, admirando a imagem que fica na memória da beleza da moça. Para onde você vai, ele pergunta em voz alta, mas ela está longe, não o ouve ou simplesmente não quer responder.

Conto 3

A tarde trazia um aroma de passado e amoras muito peculiar ao final do outono, um acontecimento inesquecível para quem vivencia, pena que só havia uma única pessoa caminhando pela rua naquele instante. Não era a primeira vez que ele sentia o tal aroma, as solas de seus sapatos haviam percorrido terras, pedras, pedregulhos, lama, grama, incontáveis folhas secas, vidro, ferro, poeira do fim do mundo, objetos perdidos, objetos encontrados, água doce e salgada, metros e quilômetros de distâncias inimagináveis. Por que caminhar tanto não é muito difícil de responder, ou para perder-se de si mesmo ou parasse encontrar caso ainda não tenha se achado. Vira a oitava face do mundo e por isso perdeu a vontade falar, trinta anos sem uma palavra dita ou não dita, muitas vezes pensada, mas entre o cérebro e a boca um longo caminho é percorrido, logo a força física do inicio é a metafísica do final, metapalavras. Nascera seu neto, um mês, nunca foi visitá-lo, não irá, o céu está verde, mal sinal. Pobre criança, nunca ouvirá a voz do avô, nem seus ensinamentos, nunca saberá que a lua é a parte

oposta do sol, uma união eterna, etérea. Aprenderá a observar, mas nunca o além da visão, o além-intra-extra-entre-outro-lado das coisas. Pobre criança. O velho continua seu caminho de opalas, não se importa com o tempo, ele é o tempo, escravo, amigo, carrasco, enquanto todos são perseguidos, ele persegue. Senhor do mundo, porém um mero humano. Nada pode ser perfeito. Nem eu, nem você, nem o velho. A imperfeição que escorre do azul no quadro de Picasso, mancha o chão do museu e se desdobra em cores anti-azul, a destruição que nasce com a construção, logo as paredes, o teto, tudo é tomado por quadrados triangulares, círculos irregulares, onde um raio é a poeira deixada por um cavalo veloz, uma gota é a lágrima laranja do escultor maneta, e o lugar torna-se uma capela cistina, sem a perfeição das personagens de Rafael, contudo com o mesmo esplendor. A cegueira de Rafael por não ver como Picasso, ou do espectador por tudo ver sem saber o que é, ou de Picasso que não leu as regras, talvez cega seja a Arte, assim como a Justiça que ao velho concede o mundo, enquanto a vida lhe tira. Esse é o contrato a que assinamos ao nascer sem tê-lo lido, pelo ínfimo tempo ou pelas pequenas letras, o mundo em troca da sua vida, felizmente o primeiro é concedido por completo e o segundo

é tirado aos poucos, o contrário seria completamente injusto, ou absolutamente puro. A sua frente os gira-sóis iluminam o mundo, e o sol é apenas enfeite. O caminho se faz, e não é feito. O homem vai para onde é levado sem se cansar, uma vez deixou sua sombra, exausta, descansar um pouco, distraíu-se com o horizonte, ao olhar de volta ela havia fugido, nunca mais a viu. Nas mãos levava uma pasta recheada de ilustrações, tinha em sua capa uma auto-caricatura. Na cabeça levava um chapéu castigado por anos

debaixo de chuva e girassol. Nos bolsos

apenas lembranças de dinheiro, um lápis, uma foto e bastante espaço vazio. A foto era de uma mulher, não era sua esposa, já que era solteiro, mas de um amor de juventude, cujo nome não lembrava, em todo caso nem amor era mais, apenas um pedaço de papel, carrega por que dava sorte (ao menos é o que dizem os soldados, sempre levam a foto de uma mulher no bolso). Um dia ele passava por um cemitério e resolveu enterrar todas as memórias de relacionamentos que tivera e assim continuar sua andança livre de arrependimentos e nostalgias, foram doze cruzes (jaziam sob cada cruz cor de limão três grandes amores, sete amores e dois de momento). Não lembrava o nome de nenhuma,

como o da moça da foto, e a vida tornou-se muito mais suportável. Nunca tirou uma fotografia, guarda tudo que é atemporal em suas gravuras, em seus desenhos, não que não soubesse manipular a máquina, e sim por que na gravura o mundo retratado à visão do artista e com muito mais poesia que a dura realidade registrada pela câmera. Como o escritor que ao ver pela janela um senhor passar na rua, escreve um conto sobre ele.

Conto 4 Sentei-me na beira de um muro para esperar o bonde da vida chegar, completavam vinte anos desde a última vez que ali sentei e era a última vez que ali sentaria pelo resto da minha vida. Há vinte anos viver era possível, meu universo podia ser resumido em correr atrás de pipas, brincar no meio da rua, ilusões existenciais, efusões de alegria, lembro-me de quando sentei neste exato lugar pela primeira vez, criança sentada na beira do muro, sem trabalho a cumprir, caminho a seguir, pensa. Menino sentado em cima do muro não sabe a sorte que tem. Daqui de cima o mundo passa, atravessa, a Morte caminha pela calçada, fita-me com seus olhos tristes por ter tido que carregar a alma da mulher que amava para o outro mundo, no

qual é proibido de entrar. Não chegou sua vez, ele diz sem parar de andar. Não chegou minha vez, será que chegará algum dia? Menino sentado na beira do muro não pensa na morte, mas em jogar bolas-de-gude. Um casal se aproxima do muro, esperam o bonde rodeados pela eterna poesia dos enamorados, perdendo-se um nos braços do outro, não são dois, são um. Hoje, cinqüenta e sete anos depois, estão separados há muito tempo, mal se lembram que um dia estiveram juntos, porém continuam naquele mesmo lugar abraçados, torcendo para que o bonde não chegue nunca. Contudo para o menino sobre o muro, amores, memórias, eternidade, são palavras amorfas, sem nenhum significado, o menino pensa no dia que será astronauta. Estou com oitenta e quatro anos, mergulhado em uma solidão intransponível, desejando todas as manhãs que nunca tivesse descido do muro, daquela primeira vez setenta e sete anos atrás, e às vezes tenho a impressão de, realmente não ter descido. Naquele tempo de infância ao ver um homem sentado no muro sobre o qual costumava ficar, perguntei como seria o meu futuro, ao ouvir a pergunta do menino respondi serenamente, Será maravilhoso, ao ver aqueles olhos sonhadores mirando os meus,

não tive coragem de dizer a verdade, menino sentado em cima do muro não sabe a sorte que tem.

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