Conto No Interior De Uma Alma Corrida

  • October 2019
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  • Words: 1,795
  • Pages: 5
CONTO NO INTERIOR DE UMA ALMA CORRIDA. Ele tinha nome agora.Ele se chamava Martins.Ele se mexia com certa desenvoltura. Martins gostava de tomar remédios para tosse.Não chegava a ser um hipocondríaco de plantão.Tinha o hábito de falar com as plantas quando adoecia.As plantas regadas diariamente à mesma hora. Martins resolveu então comer aquele peixe de rio e regar as plantas ao mesmo tempo.As longas espinhas do tal peixe em sua boca faminta.As tais plantas agitadas pelo vento da noite. Uma tal espinha agora entalada em sua garganta.As dificuldades respiratórias e a constatação de que não há ninguém em casa. Martins tenta se controlar.Tenta engolir a tal espinha.Tenta uma ou duas ou dez vezes.Martins com os olhos esbugalhados e a tal espinha em sua garganta inflamada.Lembra-se daquele tal conhaque e da queimação na tal garganta. Lembra-se da tal palavra garganta. Lembra-se do substantivo garganta, lembra-se do interior do interior da tal palavra garganta. Martins no interior daquele bar qualquer. O cheiro de fritura em suas narinas, o dono do bar com um olhar de coisa alguma. .Lembra-se daquele beijo apressado de sua amante balconista.Aquela saliva com gosto de café com leite.Aquela saliva com gosto de bala de menta barata.Aquele corpo perfeito e provocante a se insinuar de forma única. Ele tenta engolir novamente o que quer que seja naqueles míseros instantes.O pedaço de peixe triturado já no seu estômago acostumado à destruição sistemática pelo óleo de girassol.Ele beija violentamente aquela mulher que geme e geme e o excita.Sua bermuda está rasgada.Ela segura o seu membro e o aperta com precisão.Ele gosta daquilo.Ele a imprensa,do verbo imprensar, contra a parede.Ela pede para que ele a possua ali mesmo.Ele se lembra da tal espinha e se afasta. Tenta,do verbo tentar,não perder a compostura ou a calma. Ele agora transpira loucamente.Suas axilas fedem como tudo aquilo que fede.Ele nunca conseguiu, do verbo conseguir,evitar o odor insuportável de seus pés.Ele gosta de cremes para a pele em promoção nas lojas especializadas.A faina diária obscurece um pouco este seu refinado passatempo.Ele sabe que aquela tal espinha agarrada em sua garganta o incomodará por alguns dias. Ele respira e sente sempre uma espécie de pontada quando engole aquele tanto de feijão com farinha e carne seca. Ele tinha o hábito de regar as tais plantas.Tinha o estranho hábito de tirar pequenos pedaços das mesmas e mastigá-los avidamente.

Ele e aquelas plantas na solidão do tal apartamento tarde da noite. Uma enorme sensação de cansaço se apossa do mesmo subitamente.Ele se esquece estirado na poltrona durante algumas horas. Ele se levanta de madrugada e conversa com as tais plantas que o ignoram.Ele espalha essência de eucalipto pela casa.Gosta do cheiro de mato e de terra batida.Lembra-se de um tempo qualquer no qual parecia feliz. Martins põe-se a andar pelo apartamento à procura de uma tal chave.Abre e fecha gavetas, abre e fecha o armário da cozinha, abre e fecha o armário do quarto e abre e fecha tudo aquilo que possa ser aberto ou fechado. Ele não acha o que procura.Todos os amigos fora naquele feriado modorrento.O seu cão de estimação entregue aos cuidados de uma tia distante.Sua mulher está a viajar com as crianças e a tal espinha em sua garganta, aquela mísera espinha, o faz lembrar do fato de que não fazem amor há três anos. Restam as plantas que o ignoram e a tal espinha de peixe a irritar sua garganta.O tal peixe de rio que luta desesperadamente para se livrar daquela isca agarrada em sua boca.A luta entre o peixe e o pescador que o arrasta lentamente para aquele barco de dimensões mínimas. Martins,que nunca foi pescador, a comer,do verbo comer,o tal peixe à beira do rio em companhia do tal ou dos tais pescadores.As plantas verdes à beira do rio e a farinha branca e o peixe-peixe e a tal espinha e as gavetas e os armários e as camisas e as calças e as bolsas de couro e os sacos plásticos e as caixas de papelão e as caixas de plástico e a caixa de Pandora aberta para que todos os males venham ao mundo. Martins agora se delicia com a visão daqueles fantasmas noturnos que desfiam estórias fascinantes.Estórias de pescador naqueles rostos envelhecidos e esbranquiçados.Martins fecha os olhos e adormece sempre à beira do velho rio.Ele agora pode ter bons sonhos ou pesadelos inigualáveis. Ele ronca discretamente sem incomodar tanto os seus amigos.Sua leve protuberância estomacal torna o seu corpo um tanto esquisito. O barulho das águas encontra nos tímpanos de Martins o canal através do qual estranhas lembranças penetram nos meandros de seus sonhos. Aquele tal clube com um preço mais do que barato era bastante atrativo naquele momento.Lembra-se bem de que mal tinha o dinheiro da passagem e que precisava nadar por recomendação médica.Ele tornou-se o sócio de número 534 num clube que já existia há 60 anos.Ele agora está sentado à mesa com uma porção de churrasco de alcatra à sua frente.O guardanapo de papel mistura-se à gordura de suas mãos calejadas.A porção de calabresa com farofa e as tais garrafas de cerveja são agora suas companheiras inseparáveis.

Olha ao redor e pode ver uma centena de corpos ou massas disformes se deslocando à beira da antiga piscina.Ele então nada faz e ali permanece no inútil daquela hora.Sua mente se transforma num abismo profundo quando ele percebe,do verbo perceber, que envelheceu.Ele olha para aqueles seres que se sentam ostentando os odiáveis pneus na cintura e bebem e comem tudo aquilo que pode ser bebido ou comido. Ele percebe que há um tanto de farofa feita com azeite de dendê entranhada na barba daquele indivíduo com cara de policial fracassado. Ele se mexe com dificuldade e fala cuspindo o tanto de farofa.Algumas partículas naturalmente se amontoam em sua barriga.Ele se imagina entranhado naquele tanto de coisa alguma que se coça indefinidamente. Lembra-se ainda de uma sensação de extremo prazer que há muito não experimentava. Ele esfrega,do verbo esfregar, a sola do pé direito no chão lentamente.Ele esfrega a sola do pé direito no chão e olha fixamente para a cara ou para a barba repleta de farofa da massa disforme com cara de policial fracassado.Ele continua a esfregar a tal sola de seu pé direito no chão. Ele continua a fazer o que está fazendo. Ele esfrega a sola do tal pé no chão até que a mesma sangre. Ele vai comendo a tal porção de calabresa e se lembra da espinha em sua garganta.Imagina que a tal quentura da tal calabresa vai eliminar aquela espinha em sua garganta.Ele bebe cerveja e se entope da tac calabresa..Engole em seco mais uma vez e nada.Sente ainda o algo pinicando em sua garganta.Ela lá está, firme e intacta como uma torre qualquer na Europa.Resiste ao tempo,pois já faz algumas horas que ela o tortura. Ele tenta se controlar e pensa novamente nas plantas e nas gargalhadas frenéticas daqueles pescadores à beira do rio.Ele ouve um tiro seco naquela noite e percebe aqueles semblantes inalterados a tomar o tal gole de café fresco. Trata-se de uma noite quente de verão.Ouve-se um estrondo bem adiante.Alguém deve ter sido executado em função de um velho acerto de contas,pensa Martins.Os fantasmas pescadores se entreolham e continuam gargalhando e comendo os tais peixes com as mãos. Martins percebe ao fundo uma mudança súbita na paisagem.Percebe que as plantas se movem rapidamente na direção do rio.Estas plantas crescem de tamanho e começam a gargalhar freneticamente cobrindo o rio de um verde escuro sem igual.Tem-se a nítida impressão de que a água está parada.Um grupo de seis ou sete pessoas despidas agora circula por sobre aquele caminho de uma margem à outra.Caminham na direção dos pescadores fantasmas,mas nenhuma delas têm um rosto definido.Os pescadores fantasmas oferecem o

tanto de peixe e elas prontamente aceitam a comida.Vejo apenas bocas que sussurram algo em seus ouvidos.Eles,os pescadores, balançam a cabeça afirmativamente e cortam levemente os pulsos daquelas massas disformes.. Os pescadores fantasmas sugam aquele tanto de sangue daquelas entidades sem rosto.Começam a falar uma língua desconhecida pelo mesmo.O tal café que não era café, mas outra coisa de que mal se tem idéia. O primeiro deles toma a faca nas mãos.Arranca o rosto num só golpe.Passa a referida para o segundo que arranca o seu rosto que passa para o terceiro e assim sucessivamente. As plantas abraçam completamente o rio e a floresta é agora o que resta daquela paisagem sufocante.Martins pode agora sentir o cheiro do mato em sua alma que rasteja.Os fantasmas trocam de rosto e Martins não sabe mais quem é quem à beira daquele tal rio.Tudo agora gira com uma rapidez avassaladora em sua mente afetada por aquele líquido escuro. Ouve-se mais um estrondo e mais um e mais um e mais gargalhadas e mais um e a barba repleta de farofa daquele homem no clube e aquele barulho de sirenes à sua volta e aquelas massas disformes que dançam freneticamente e aqueles dedos gordurosos que fazem bolinhos de arroz passados de mão em mão e aqueles murmúrios intragáveis que se misturam ao ruído da urina naqueles banheiros fétidos apesar do fortíssimo detergente utilizado e aquele ruído de talheres e de gente que vai e vem tropeçando e caindo no chão e aquele barulho de gente mergulhando na piscina e os gritos estridentes das crianças pulando na água e o barulho irritante de uma obra qualquer próxima ao clube e a constante flatulência daqueles indivíduos próximos a ele. O clube com a tal água agora meio esverdeada devido à falta total de limpeza periódica.Aquelas massas disformes que sorriem por entre os buracos de suas arcadas dentárias.Uma mulher qualquer perde a linha e se deita no chão e esperneia e se debate como se houvesse se transformado em qualquer outra coisa que não ela mesma. O sócio de número tal se lembra do rio quando se encontra à beira da piscina com os pés na água.O gosto de lingüiça calabresa em sua boca e também a tal espinha que o incomoda agora cada vez menos.Ele engole em seco e cospe um tanto de farofa que agora bóia na tal água meio esverdeada.Ele estica os braços e as pernas e flutua como uma planta qualquer ou como um peixe morto ou como um barco vazio no abandono daquela tarde. Ele engole em seco.A espinha se foi,não se sabe bem como.Restou apenas aquele hálito insuportável de gordura saturada em sua boca.Aquela distância enorme entre suas palavras e as coisas ao seu redor. Aquele apartamento naquele feriado sem graça.

Ele precisa levantar daquele sofá para não sucumbir de vez.Precisa lavar o rosto e escovar os dentes e tomar café com pão e queijo.Precisa mastigar aquele pão lentamente e sentir a textura das coisas.Precisa definitivamente estar, mesmo que por alguns instantes, aqui. Foi uma noite difícil.

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