Conto de vida e morte. . Tudo começou numa manhã de Domingo.O dia cinzento se arrastava e ainda era cedo para pular da cama.Os acessos de tosse cada vez mais freqüentes e a ineficácia do xarope ingerido seguidas vezes o esgotavam.Podia ver ainda a sua baba no travesseiro.Havia ainda o problema em suas gengivas que sangravam abundantemente. Ele,nosso pronome que já é funcionalmente substituto de um nome,emagrecia a olhos vistos.Vivia cada dia como se fosse o último e se calava cada vez mais. Ele queria morrer.Estava cansado de si e dos outros.Seus setenta anos traziam apenas esse câncer incipiente de fígado.Muito pouco e ainda passível de tratamento. Ele queria algo mais dramático e ao mesmo tempo extremamente discreto. Pensou que poderia viajar e morrer num país com pouca ou nenhuma projeção, mas o custo desta empreitada estava bem além de suas possibilidades financeiras. Talvez pudesse encontrar uma solução caseira para tal,mas tinha dificuldade em dar qualquer passo que fosse.Queria e não queria chamar a atenção sobre si mesmo. Era uma sensação estranha aquela.Sentimentos misturados e um extremo mal-estar matinal. Sabe-se que ele não teria a força necessária para se jogar da janela.Não cortaria os pulsos como os estóicos e se deixaria levar como um tronco de árvore arrastado pela correnteza impiedosa de um rio qualquer.Ele queria mais e menos.Queria,do verbo querer,alguma coisa que fosse o que não pudesse ser. Olhou demoradamente o seu rosto envelhecido no espelho.Sentiu nojo de si mesmo.Ele tinha o hábito de espremer as espinhas do referido.Sofria com a alergia irritante que deformava lentamente o seu nariz.Não gostava de suas orelhas pequenas e era grato pelo fato de que seu cabelo as escondesse parcialmente.A tal crosta esbranquiçada e oleosa que o atormentava todos os dias.Percebeu,do verbo perceber, que a caspa estava se acumulando em sua barba..Já havia tentado tudo. Ouviu falar de um tal vinagre de maçã que fazia milagres.Dirigiu-se ao supermercado rapidamente.Olhou ao redor e sentiu-se terrivelmente oprimido pelas prateleiras.A visão dos produtos multicoloridos atormentava-o. Um sem número de marcas de desodorantes e detergentes martelavam sua mente. Consta que ele quase desmaiou.Ventirex,Otherwise,kalibone e coisas do tipo, as tais marcas em sua mente.. Um cheiro estranho de perfume vencido e o spray utilizado para matar insetos com a tal eficácia garantida pelo fabricante.Nunca gostou de ler as instruções dos produtos.Há algum tempo atrás, quase ficou cego por causa do manuseio inconseqüente de um formicida. Sentiu sede,fome,dor de cabeça.Sentiu vontade de cuspir no chão e de vomitar.Sentiu vontade de ir ao banheiro.Sentiu vontade de já estar no banheiro.Sentiu-se ainda mais íntimo de si mesmo quando percebeu,do verbo perceber, que a urina já fustigava suas calças.Sentiu vontade de vomitar mais uma vez.Sentiu,do verbo sentir, que a hora se aproximava a passos largos. Deixou o supermercado atordoado. Conteve-se até chegar em casa e lá despejou sua bílis no chão indiferente do banheiro. Observou lentamente o seu corpo.Os pneus na cintura apontavam para o excesso de coisa alguma em sua vida.Gostava de pão doce.Gostava de tirar o creme amarelado com os dedos e tinha a mania de lambê-lo sofregamente.Limpava o resto do dedo lambuzado na calça jeans.Por mais que a lavassem, o acúmulo dos restos de creme amarelado durante anos ainda permanecia ali.Gostava de contar as moscas na padaria.Às vezes matava uma ou duas e deixava aquele mínimo de sangue na sua
mão durante algumas horas.O sabonete repleto de cabelos quando ele raramente fazia a barba.O sabonete azul e barato,o aparelho de barba descartável como quase tudo em sua vida. A caixa de leite desnatado, aquela caixa que já estava na geladeira há mais de vinte dias.Ele tomou aquele leite azedado misturado ao tal Ovomaltine.Ele sentia aquele gosto estranho na boca.Ele fazia barulho quando bebia aquele tal leite qualquer.Sentia-se deselegante por causa disto e pedia desculpas a todos que não o viam naquela cozinha. Ele,este pronome reto que nada mais era do que parecia ser,tinha o hábito de falar sozinho para aliviar a tensão.Sofria,do verbo sofrer, da doença do sono devido ao excesso de peso.Sofria com o tal excesso de peso e jamais ia,do verbo ir, a qualquer lugar por causa disto.O estranho temor em relação ao sexo feminino pelo fato das tais sedutoras figuras entenderem que ele era obeso.O temor de sufocálas durante o ato sexual.Não consegue enxergar o seu pênis na totalidade.Sua barriga impede,ainda que parcialmente,a visão panorâmica do referido.Ele se masturba e se imagina um ator de filme pornográfico.Novamente aquela baba fantasmagórica em sua boca. Ele então se dirige lentamente para o cômodo mais frio da casa.No meio do caminho, tropeça e cai.Ele se levanta e tropeça de novo e cai.Parece que não vai mais sair dali.Seus dois joelhos doem muito.Estica as pernas no chão frio.Ele se lembra do tempo no qual nadava freqüentemente onde quer que fosse.Estica os braços e os alonga demoradamente.Sua respiração ofegante agora encontrava a harmonia na vastidão dos oceanos.Está cansado da vida,seu coração pulsa talvez por teimosia, mas algo o mantém ali,naquele sala-dois quartos-cozinha-banheiro-banheiro de empregada e tudo mais.Duas baratas de porte médio correm por sobre seu corpo com muita propriedade.Ele não sua e apenas se confunde agora com aquela inigualável respiração compassada.Já pode ir embora ali mesmo. Seu corpo completamente relaxado, sua mente em qualquer lugar que não este. .Escorregando naquele vazio entre pensamentos,ele percebe,pela última vez,que pode não mais encontrar o seu lugar.Está onde está na vastidão deste verbo proferido.Ele se desintegra lentamente e aos poucos sua família entende,sem muito entender ,que ele não é mais ninguém. Ele foi tocado algumas vezes pelos entes queridos. Colocaram o isqueiro bem próximo aos seus olhos serenamente fechados.Sussurraram obscenidades em seus ouvidos.Um ou dois copos cheios de água gelada derramados no seu rosto.O tal escárnio,como forma de carinho da maioria dos parentes ,se perdia nas gargalhadas frenéticas dos mais velhos.Um cuspe no rosto por tudo o que ele havia feito de ruim para muita gente.Muitos abraços daqueles aos quais muito ajudou.Estranhos desejos naquele momento delicado.Alguém pensou em possuí-lo daquele jeito.Queria beijá-lo já que estava tão indefeso.Nunca havia atingido o orgasmo com o referido.Tiveram noites tórridas,mas sempre acabavam dormindo embriagados. Ela agora olha para aquele pênis inerte. Pensa em cortar o referido num recipiente especialmente preparado para tal.Ela se lembra daqueles momentos nos quais a penetração era um tanto dolorosa.Ela sempre pedia para que ele continuasse.Lembra-se dos gritos frenéticos e da constante reclamação dos vizinhos.Aquele homem envolvente a beijar sua boca carnuda e sempre apetitosa.A amante ou mais do que isto ou simplesmente ou talvez o além despercebido de qualquer grande paixão. O resto de hamburger de qualidade duvidosa em sua boca. Alguém o retira e finge que o joga na lixeira.Friamente este alguém devora aquele resto de coisa alguma quando se tranca no banheiro.Ajeita as calças e anda pela casa com um indisfarçável ar de satisfação.Os farelos no chão cinzento o denunciam aos fantasmas.Vai dormir muito bem de qualquer maneira.O hamburger digerido lentamente naquele estômago ordinário. Este alguém que arrota de forma discreta o que resta de sua alma. Retirada do seu dedo a tal aliança de casamento.Retirado do seu pulso o tal adorno de prata para futuro penhor.O relógio entregue a um parente mais próximo.
Ele completamente para dentro de si mesmo naquele local, naquele lugar ou em qualquer outro.Em qualquer um em ninguém que não pudesse estar ali. Quando pensaram em chamar um médico, alguém se meteu no meio e disse que não havia ,do verbo haver,necessidade para tal, haja vista o fato de que seu coração não havia parado de bater.A respiração estava normal e todos acataram aquela argumentação. Ele ,que poderia ser chamado por qualquer nome próprio,ouvia o que não diziam as palavras do que não mais estava ao seu redor.Ele, para fora de si mesmo, naquele chão frio que castigava suas costas nuas.Ouvia o fluxo do sangue que corria nas suas veias.Ouvia,do verbo ouvir, a batida de seu coração longínqua numa harmonia estranhamente familiar. Uma voz vinda de não sei onde falava em adagas,espadas e tesouras.A voz crescendo em seus tímpanos pedindo para que ele se fosse definitivamente. Ruídos de homens e mulheres agonizando num campo de batalha qualquer.O ranger de metais num crescendo assustador. Ele viu não vendo quando lhe deram uma faca para que ele aos poucos cortasse os dedos.Primeiro os da mão,depois os dos pés.Ele os decepou com uma inigualável precisão cirúrgica e pôs-se a arrastar pelos obscuros corredores de sua memória num rastro de melancolia e dor.