Brincar Na Rua

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34 » noticiasmagazine 10.DEZ.2006

TodasAsPalavras »nm#759»entrevista

Brincar na rua

A era da aventura e do joelho esfolado está em vias de extinção.Cidades hostis à natureza e às brincadeiras livres e espontâneas empurram as crianças para dentro de casa,apesar do «fabuloso clima» para turista ver.Carlos Neto,professor na Faculdade de Motricidade Humana,fala do crescente analfabetismo motor e explica por que razão brincar na rua tem um papel insubstituível.Para todos.

ENTREVISTA Carla Maia de Almeida

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FOTOGRAFIA Rafael Antunes

É na rua, entendida num sentido lato, que brincar é uma experiência melhor e mais completa?

Primeiro, há que distinguir o que se entende por «rua». Uma coisa são crianças de rua, outra crianças na rua. Quando falo do jogo na rua, estou a falar dos grandes movimentos – o saltar, o correr, o trepar… –, mas também da possibilidade de as crianças poderem perceber as características do espaço físico e da própria natureza. Que repercussões têm essas experiências no desenvolvimento da criança?

Primeiro, essas actividades físicas – jogos com bola, jogos de corrida e perseguição, jogos simbólicos, jogos de salto e locomoção… – implicam um dispêndio de energia essencial para o desenvolvimento. Segundo, são importantíssimas para a capacidade adaptativa, do ponto de vista motor, emocional e afectivo. A vivência do território é fundamental para a estruturação de mapas mentais que dêem à criança uma identidade de lugar e uma identidade de si capaz de perdurar até à idade adulta. Todos nós tivemos, nas nossas infâncias, uma série de conquis35 » noticiasmagazine 10.DEZ.2006

tas progressivas que vão da casa até à escola e da escola até à cidade em geral. Hoje isso não se faz. As crianças estão remetidas para dentro de casa. Brincar na rua nunca pode ser substituído por brincar dentro de casa, mesmo que não seja em frente a um ecrã?

Não, é impossível. As actividades fora de casa são de outra natureza, têm outra estrutura lúdica, outro tipo de regras e de risco. O que se passa na sociedade actual é que nós temos uma margem de risco muito aquém do que as crianças precisariam. Elas estão a ter uma protecção tão elevada que não permite desenvolver uma coordenação motora adequada, uma capacidade de discriminação perceptiva e uma capacidade de estruturação da sua imagem corporal, do seu esquema corporal. Se as crianças não estiverem habituadas a actividades ao ar livre, continuam a preferi-las?

Todos os estudos de investigação até ao momento dizem-nos que as crianças preferem sempre brincar fora de casa, mesmo naqueles países que têm um clima muito austero.

Agora, é claro que há constrangimentos enormes… Aumento do trânsito rodoviário, racionalização do espaço público, diminuição do tempo livre... Pode resumir?

Penso que o constrangimento mais importante é a falta de sensibilidade aos direitos da criança. Não há legislação suficientemente robusta, nem consciência, paraque quando se faz a planificação urbana e se definem as políticas habitacionais se pense na necessidade de a criança brincar na rua. Outro factor de constrangimento é ela não ser ouvida. Ao contrário da Europa do Norte, onde os projectos têm uma participação comunitária elevadíssima, em Portugal os cidadãos não são ouvidos, e principalmente as crianças. Esquecemo-nos do que é brincar A Câmara de Lisboa tem a funcionar desde Outubro um órgão consultivo chamado Gabinete da Criança… É por aí que se deve ir?

É, é por aí. Espero que tenha grande sucesso. Pelos estudos que temos feito, sabemos que as crianças têm uma visão e uma aderência muito maiores, até na preservação dos próprios espaços. Porque um dos problemas que também temos é o do vandalismo do espaço público. E depois temos a apropriação do espaço público pelos automóveis, que é outra espécie de vandalismo…

O trânsito automóvel retirou todas as possibilidades de as crianças poderem ter uma verdadeira autonomia de mobilidade na cidade. Isso levou a outro constrangimento que, em Portugal, é paradoxal: sendo nós um dos países com mais segurança em toda a Europa, no sentido geral, não se explica porque é que os pais têm tanto receio de as crianças andarem na rua. As nossas percentagens de crianças que vão para a escola a pé ou de transportes públicos, fazendo esses percursos com os amigos, são das mais baixas da Europa. Só o podem fazer através do vidro do automóvel. Isso tem repercussões enormes no seu desenvolvimento, a psicologia ambiental explicao. Eu penso que se conseguiu criar – e aqui os media têm grande influência – uma série de medos na cabeça dos pais que valeria a pena estudar com mais profundidade. Os nossos subúrbios são o paradigma do desaparecimento do espaço de jogo e aventura. Para uma criança, é diferente viver num segundo ou num sétimo andar. Quer explicar essa ideia?

Os dados que temos dão-nos essa indicação: as crianças que vivem em andares mais altos brincam menos do que as que vivem em andares mais baixos. Estas estão mais perto dos passeios, mais perto da rua, e têm a possibilidade de os pais as poderem controlar. Inclusivamente, conhecem-se melhor. Outra situação interessante é verificar que as crianças que vivem junto às estradas, em habitações horizontais, têm maior conhecimento do espaço físico que

rodeia a casa e melhor estruturação dos seus mapas mentais. Se o brincar na rua está em extinção, onde é que as crianças vão buscar substitutos equivalentes?

Dentro de casa e no recreio da escola, que ainda é o único espaço que lhes resta para poderem brincar em liberdade. A sensação que dá é que mantêm o mesmo aspecto de há trinta anos.

Eu gosto de ser optimista, mas costumo dizer que os recreios, na maioria das escolas, são «territórios de ninguém». Os recreios escolares têm de ser vistos sob outra óptica, têm de ter mais qualidade física e ambiental. Um corpo necessita de alternar dinâmicas de con-

BI

Professor catedrático e presidente do Conselho da Faculdade de Motricidade Humana, em Lisboa. Foi membro do Conselho Coordenador do Instituto de Apoio à Criança e fundador e presidente da Sociedade Internacional para Estudos da Criança. Representa Portugal na International Play Association (IPA). É autor dos livros Jogo e Desenvolvimento da Criança e Motricidade e Jogo na Infância.

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centração e de dispêndio energético, nem que seja passear, ou estar sentado a conversar. A criança tem direito a ter intervalos escolares, a ter um recreio com qualidade, a participar em brincadeiras e em jogos que sejam próprios da sua idade. E se ela o fizer, várias vezes por dia, de certeza que terá melhores condições de aprender na sala de aula. Parece que esta regra está a ser esquecida. Estamos a ir na direcção oposta?

Estamos a ir numa direcção de estruturar os currículosde uma forma absolutamente obsessiva. Não sei se é esta medida dos tempos complementares que vai resolver o problema. Há um esquecimento daquilo que é brincar e aprender de forma espontânea. Nem tudo pode ser sério, na escola. Nem tudo tem de ser aprendizagem formal, manipulação subtil do tempo. Manipulação que também existe em casa, com uma formatação de estilos de vida onde não há tempo para estar sem fazer nada…

A impressão de não ter nada para fazer é fundamental no desenvolvimento. O jogo, o brincar, é uma actividade inútil, no sentido em que não é produtiva. E, sendo uma actividade inútil, é uma das mais importantes para o homem. Somos a única espécie animal que às vezes se esquece de brincar?

Exactamente. Esquecemos, sobretudo, que temos um corpo. A escola anda muito esquecida de que as crianças têm um corpo. Corpo num sentido monista, de unidade, não estou a falar de mente para um lado e corpo para o outro. O corpo é só um. Se retirarmos certas vivências da infância, não sei exactamente o que estamos a criar. Quero dizer

CASA DA IMAGEM

que há uma pressão enormíssima da sociedade e da escola, hoje, para actividades estruturadas e formais; e há um desequilíbrio enorme naquilo que é a importância de uma estimulação ocasional, livre, espontânea… «A vivência do espaço físico é essencial na estruturação dos afectos» Está a falar das crianças cheias de agendas superocupadas, como os adultos?

Exacto. Eu não quero dizer que a criança não deva ter uma actividade para além do período escolar, mas nós encontrámos, principalmente na cidade de Lisboa, crianças que, em certos casos, têm mais do que três e quatro actividades organizadas por dia, sejam religiosas, desportivas ou artísticas. É uma coisa inconcebível! E há uma dependência perversa: pais que andam «a reboque» dos interesses e das actividade dos filhos, já quase sem vida própria enquanto casal. Não sente isso?

É verdade. A vida na cidade, para muitas famílias, tornou-se um inferno. E a tendência dos pais para institucionalizarem as actividades dos filhos para além da escola é outro constrangimento ao brincar. No fundo, ao sobrecarregarmo-nos com «agendas», todos estamos a perder autonomia, espírito de aventura…

Eu diria que a vivência do espaço físico é fundamental na estruturação dos afectos. E há um esquecimento sobre isso. Os adultos já esqueceram o que é a aventura e o risco, duas categorias que fazem parte da infância. É um fenómeno do nosso tempo haver pais que monitorizam os filhos através dos tele37 » noticiasmagazine 10.DEZ.2006

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móveis, o que quer dizer que as crianças não têm a possibilidade de aceder a uma categoria fundamental da infância, que é «o local secreto». Muitas não sabem responder a isso quando lhes perguntamos. Outras dizem que é a arrecadação ou debaixo da cama…

pais. Isso leva a que fiquem com um padrão extraordinariamente sedentário, criando todas as condições para uma das maiores epidemias do século XXI: a obesidade infantil.

E não dizerem que é um jogo qualquer de computador…

De algum modo, sim. É preciso reparar que, no ciclo da evolução humana, o momento em que o Homem atinge o maior nível de energias físicas é por volta dos cinco/seis anos. Ora, é justamente nesse momento que actualmente se exerce mais pressão na manipulação das energias das crianças e, por outro lado, na sua condução para níveis aceitáveis – aceitáveis na concepção dos adultos, claro.

Esse é outro constrangimento: o aparecimento das novas tecnologias e a cultura de ecrã. Televisão, telemóvel, computador, playstation… Grande parte do tempo, hoje, é dividido em frente a um ecrã. Não temos nada contra as tecnologias, têm imenso valor no desenvolvimento perceptivo e cognitivo; mas têm também inconvenientes, porque nas idades em que as crianças mais necessitam de despender energia é exactamente a altura em que passam mais tempo frente a um ecrã, muitas vezes por comodismo dos

Absurdo

Crianças que não brincam são potenciais adultos doentes?

Diz num dos seus estudos que «nas crianças não é clara a relação entre actividade física e saúde». Confesso que não percebi.

Eu explico. Em princípio, as crianças, pela energia que despendem, teriam todas as

«Pôr uma criança no ginásio a fazer passadeiras rolantes para perder peso é não ter qualquer noção do que é a infância.»

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condições para ser saudáveis. Mas essa regra básica e histórica da humanidade já está a ser quebrada. Com todos os constrangimentos de que temos vindo a falar, as possibilidades de estimulação pelo envolvimento físico entram em decadência. E existe um défice entre a quantidade e a qualidade da alimentação e a energia que não é despendida. Termos hoje cerca de trinta por cento de crianças com excesso de peso é um assunto muito importante. Teremos imensos custos para a saúde pública sem uma estratégia que eu considero absolutamente urgente. O que é que propõe?

Temos de ter políticas ousadas de prevenção da saúde pública, que passam por fazer actividade física regular. Claro que a educação física e o desporto escolar é muito importante, os clubes desportivos são importantes, mas eu vejo a questão da promoção de estilos de vida activos e saudáveis para as crianças numa perspectiva mais aberta, numa visão mais urbana. Tem de passar pela casa, pela escola, pela rua, pela comunidade. Temos de ver o problema de forma mais ecológica, não é só resolver pontualmente as situações. É absurdo aquilo que vi recentemente publicado no suplemento de educação do jornal SundayTimes[mostra a página], as crianças nos ginásios a fazer passadeiras rolantes para perder peso! Estamos a transformar as crianças em adultos peque-

CASA DA IMAGEM

com os escorregas, os baloiços, etc. Temos depois os parques de jogo, onde há grandes equipamentos de módulos interligados… Está a referir-se aos parques temáticos, género Aquaparque?

Não, isso é outra coisa. Estou a falar de parques já com outra cor e materiais mais robustos, mas onde a criança ainda não é protagonista, só pode fazer aquilo que o espaço permite. E depois temos os parques de aventura, que já existem nos países nórdicos há muitos anos, espaços onde as crianças podem conviver com a terra, sujarem-se, fazer fogueiras… São um sucesso absoluto. Nós não temos nada semelhante nem há legislação para esses espaços, que implicam animadores formados. E os parques temáticos, que qualidade de estímulos oferecem às crianças? São, como diz, lugares da «infância inventada por adultos»?

Oferecem coisas absolutamente espantosas. A Disneylândia ou qualquer outro parque desse tipo oferece aventuras absolutamente fantásticas. Está a ser irónico…

nos, a não olhar para as suas culturas e a não perceber as necessidades de um corpo. Estamos a colocá-las em cima de uma máquina, sem qualquer noção do que é a infância! É óbvio que se trata de uma nova forma de comércio, de indústria… Eu vou ser crucificado por dizer isto, porque muitas empresas já estão a pensar nesta história… Ou seja, cria-se os problemas para depois se lucrar com as «soluções».

Exacto. E não é assim que se combate a obesidade. Combate-se com cidades saudáveis e com programas adequados do ponto de vista de políticas municipais. Valeria a pena, como alguns países já têm feito, pensar a cidade e a política habitacional retomando a mobilidade da criança de uma forma mais activa. Para isso, é necessário começar pela rua. Está a pensar em quê, concretamente?

Em criar condições para aumentar a vivência do território, a criação de espaços com mais interesse, a participação comunitária e das crianças… E, por outro lado, apostar na formação de animadores, de modo a potenciar as características que a cidade oferece. Por exemplo, atravessar o rio Tejo em barcos-piratas seria uma iniciativa óptima. Ou os chamados play-buses, «autocarros do jogo», como se vê em quase todos os países nórdicos: autocarros com animadores que percorrem as escolas e os jardins públicos com imensos materiais lúdicos. Por exemplo, fechar ruas ao trânsito em certas zonas e em certos momentos do dia, para que as crianças possam vir brincar livremente. Mais: implementar o Dia do Jogo na cidade. Não é fazer actividades desportivas ou artísticas para os pais verem e ficarem deslumbrados, não é isso... É o dia do jogo, o dia do brincar. Imagine a zona da Torre de Belém, um dia por mês, para os pais vi40 » noticiasmagazine 10.DEZ.2006

rem brincar com os filhos, cada um traz dois ou três brinquedos e todos se encontram. Veremos se não há uma festa fantástica. São coisas simples que nos falta fazer. Falta-nos a tomada de consciência de que a cidade é nossa e que podemos partilhá-la e vivê-la com mais prazer. Além de iniciativas localizadas, segundo entendi, o que propõe é uma articulação integrada dos vários poderes…

Sim, é uma articulação partilhada e coordenada entre as políticas dos vários ministérios: da Saúde, da Educação, da Ciência, do Trabalho e Solidariedade Social... Há um desfasamento enorme entre aquilo que são as políticas para a família e as políticas para a infância. Porque nós não podemos ter crianças activas sem pais com tempo para estar com os filhos. É preciso que os cidadãos tenham mais qualidade de vida, e isso significa também ter mais tempo para o seu próprio corpo, incluindo o corpo interior. Deixem-nos brincar! Ainda não abordámos outro aspecto, que é a qualidade dos nossos parques infantis…

Aí temos de distinguir três categorias: os parques tradicionais, chamados «infantis»,

Ideias

Um pouco. Essas indústrias lúdicas para infância têm tendência a desenvolver-se, e eu não tenho nada contra, mas tem de haver, paralelamente, projectos centrados nas crianças e feitos pelas crianças. Isso leva-nos a outra questão: fazer os próprios brinquedos já é uma brincadeira. Além de uma conquista enorme da capacidade simbólica. Agora que vem aí mais um Natal, o que lhe apetece dizer sobre isso?

Provavelmente os pais têm de ser informados sobre o que significa essa cultura do brinquedo em épocas sazonais. Qual seria o resultado se eu informasse um pai que uma bola e uma playstation têm efeitos de estimulação completamente diferentes? Aparece nas caixas de correio tanta publicidade, por que não aparece um folheto a dizer «cinco sugestões para oferecer bons brinquedos aos seus filhos»; ou «dez locais adequados para fazer actividades com os seus filhos»? Há muitos países onde isto é corrente, mas nós ainda não entrámos nessa era de informação. A verdade é que, sem saberem, os pais estão a roubar a infância aos seus próprios filhos quando compram os brinquedos mais elaborados. Chegar a casa e fazer com eles um avião de papel pode ser tão ou mais importante. O problema está em achar o equilíbrio.

«Por exemplo,fechar ruas ao trânsito para as crianças poderem brincar livremente.Temos de tomar consciência de que a cidade é nossa.»

Essencial

«Na infância brinca-se para adquirir técnicas e ferramentas úteis para se sobreviver e adaptar-se à vida adulta.»

O problema está no facto de as crianças serem como que colocadas à guarda de uma multidão de brinquedos?

Exactamente. Eu tenho a noção de que, quando era criança, tudo aquilo que eu ia buscar ao sapatinho nunca satisfazia a minha expectativa. E portanto tanto vale um pequeno objecto de arame como a coisa mais sofisticada. Normalmente, a coisa mais sofisticada acaba por se usar duas ou três vezes e estragar-se ao fim de outras tantas, enquanto um objecto feito pela própria criança é preservado durante muito mais tempo. Por isso sou um apologista dos brinquedos de construção, os mecanos, os legos… E dos jogos electrónicos?

Não tenho nada contra os brinquedos electrónicos, desde que partilhados com os pais de uma forma equilibrada. O que é lamentável é que as crianças têm tudo isso, hoje, num corpo frágil e inactivo. Observamos, dia a dia,

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um aumento significativo do analfabetismo motor do povo português, que vai aumentando à medida que as crianças têm cada vez menos direitos de brincar e, principalmente, de brincar na rua. Este analfabetismo motor está a corroer parte desta população que tem um país fantástico, com um clima fantástico, com uma mentalidade de aventura – e não estamos a respeitar isso porque queremos modernizar-nos sem atender à nossa história e à nossa cultura. Somos um povo que se aventurou, que caminhou, que descobriu, e estamos a ficar perfeitamente sedentários. Vejo com muita tristeza crianças que têm um reportório paupérrimo da estruturação da sua motricidade, e isso é resultado de um corpo quieto, com um controlo inaceitável por parte dos adultos; um corpo aprisionado, de algum modo. Não se pode admitir que haja crianças que apresentem níveis de energia perfeitamente naturais e que sejam conside-

radas crianças hiperactivas! Não quero ir mais longe, porque não sou médico, mas seria preciso fazer um bom diagnóstico do que é uma criança hiperactiva. Que podemos fazer pelas nossas crianças?

Deixá-las correr, deixá-las lutar, saltar, nadar, dançar… Nós temos uma infância para viver, e é longa. Andamos vinte anos sem fazer nada para sermos alguém, e andamos trinta anos para ter um lugar na sociedade. Este corpo tem necessidades. Começa por brincar. Não queiram eliminar essa primeira categoria, é só o que eu peço. Porque é ela que estrutura todas as outras, isto é claríssimo em toda a investigação científica sobre o comportamento animal. Na infância brinca-se para adquirir técnicas e ferramentas que são úteis para se sobreviver e adaptar-se à vida adulta. Se esta adaptação não se faz criam-se desvios e riscos ainda maiores que, mais tarde, se tornam tragédias. É preciso haver um equilíbrio entre ensinar a criança depressa – que é o que se está a fazer actualmente – e esperar que as crianças brinquem o suficiente para depois aprenderem bem. Porque brincar é ensaiar o erro. O Eduardo Sá diz que «brincar é o aparelho digestivo do pensamento», e eu gosto muito dessa expressão. O que é lamentável é que a maioria dos adultos não sabem brincar, são demasiado formais, têm uma má criança dentro de si. E se não sabem amar a sua criança, dificilmente têm condições para poder amar bem os seus próprios filhos.«

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