CASA-MUSEU
O estranho mundo de
GOREY GETTY IMAGES
Tim Burton não seria o mesmo se antes não tivesse existido Edward Gorey. Dono de um humor negro erudito, malicioso e subversivo, deixou cerca de cem livros ilustrados,legando os direitos de autor a sociedades protectoras Considede animais. rado mais inglês do que americano,passou grande parte da vida em Cape Cod,onde está agora a sua casa-museu. Bem-vindo,Mr.E.
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TEXTO Carla Maia de Almeida
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FOTOGRAFIA Guto Ferreira
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«E» de Edward, claro, mas também porque «Mr. E» soa foneticamente como mistery, «mistério». Dificilmente se encontrará um nome mais apropriado para um gato.
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urante muitos anos, Edward Gorey foi uma figura inconfundível em Yarmouth Port. Alto, calvo e de barbas, brincos nas orelhas e largos anéis nos dedos, tinha um fetiche por casacos de peles compridos, que combinava com uns sapatos de ténis muito usados. Não se parecia com mais ninguém, excepto com ele próprio. Yarmouth Port é uma terra pequena e algo coquette, onde se respira a atmosfera veraneante de Cape Cod e as senhoras tomam o seu chá com bolinhos em lugares como The Optimist Café. É uma das paragens possíveis da cénica Route 6A, alinhada de ambos os lados com lojas de antiguidades, restaurantes e estalagens decoradas como caixas de bombons. No Optimist, porém, nenhum dos empregados sabia onde ficava a casa-museu de Edward Gorey, situada a menos de 500 metros dali. Indício de que ninguém é profeta na sua própria terra ou um sinal da ambígua popularidade do homem que adorava gatos mais do que tudo no mundo? Só a parte dos gatos é totalmente verdade. Edward Gorey não era natural de Yarmouth Port, muito menos quis ser profeta ou repre-
Em Yarmouth Port, a casa-museu de Edward Gorey fica em Strawberry Lane.
Imponente, independente, indiferente. Mr. E, o gato.
sentante de algum estilo, embora seja reclamado por muitos como «gótico». Quanto ao resto, quando a revista Vanity Fairlhe perguntou «qual é o grande amor da sua vida?», ele respondeu simplesmente: «Gatos.» E, mais à frente: «Se estivesse a morrer e pudesse voltar sob a forma de uma pessoa ou de uma coisa, o que acha que seria?» «Uma pedra.» «Qual é a sua viagem favorita?» «Olhar através da janela.» Eis o retrato abreviado de alguém que gostava de estar em casa, entregue ao seu pe46 » noticiasmagazine 23.DEZ.2007
A Casa do Elefante Nascido em Chicago a 22 de Fevereiro de 1925, numa família da classe média-alta, Edward St. John Gorey herdou o nome do pai, jornalista no Chicago Tribune. Os pais divorciaram-se quando ele tinha onze anos e voltaram a casar mais tarde. Pelo meio, enquanto vivia com a mãe, teve uma madrasta semifamosa: Corinna Mura, a actriz-cantora que brilhou por cinco minutos em Casablanca, ao entoar o hino nacional francês em despique patriótico com a clientela alemã que frequenta o bar de Rick Blaine/Humphrey Bogart. Mais influente em Gorey, todavia, terá sido a avó materna, no seu tempo bastante popular como ilustradora de cartões festivos, talento que o neto veio a aperfeiçoar com requintes de negra ironia. A única formação artística que se lhe conhece é um semestre no School of the Art Institute of Chicago, após o qual, acabado o serviço militar, se mudou para o estado de Massachusetts e entrou para Harvard. Aí, dedicou-se aos estudos franceses e fez dupla boémia e literata com o poeta Frank O’Hara, uma amizade dandy que não sobreviveu ao fim da universidade.
Os animais fazem parte do imaginário de Gorey.
culiar universo criativo. O passaporte exposto na vitrina guarda o carimbo da única viagem fora dos Estados Unidos, às ilhas escocesas de Orkney, em 1975. Porquê Orkney? Não se sabe. Gorey delirava com jogos de palavras e manteve uma série de pseudónimos, a maior parte anagramas do seu nome: Ogdred Weary, Raddory Gewe, Dogear Wryde, E.G. Deadworry, etc. Ele era suficientemente excêntrico para atravessar o Atlântico em busca do som de uma palavra como «Orkney».
Bem-vindo, Mr. E Existem muitas pedras na casa onde viveu Edward Gorey, hoje adaptada para receber um público ecléctico, desde pais com crianças pela mão até dignos representantes das mais radicais tribos urbanas. Existem pedras que parecem sapos, pedras que parecem ovos de avestruz, pedras que só parecem pedras. George, Alice, Jane e todos os outros gatos foram adoptados por amigos desde a súbita morte de Gorey por ata-
que cardíaco. Aconteceu poucos dias antes da chegada dos Tiger Lillies, uma banda com quem estava prestes a encetar mais uma parceria criativa. Foi tudo muito rápido. Os serviços de emergência vieram imediatamente, mas nada pôde ser feito para o trazer de volta. Permaneceu ligado às máquinas durante dois dias, mas tinha deixado escrito que não desejava ser mantido vivo «por circunstâncias artificiais», e as tomadas foram desligadas a 15 de Abril de 2000. Gorey foi cremado e parte das cinzas atiradas ao mar, junto com a única flor que havia na magnólia do jardim. Simbolicamente, a casa-museu reabre as portas ao público no mesmo dia do ano, depois de passar o Inverno em silenciosa hibernação. Agora, a casa é dominada por um felino preto e branco, cujos onze quilos se atravessam à entrada como uma imponente barreira de pêlo. Apareceu num dia em que a instituição promovia a adopção de cães e gatos; e há quem diga, por brincadeira (ou não), que esta presença solitária é a encarnação do próprio Gorey, empenhado em manter-se de vigia ao espaço que habitou. Convidados a sugerir um nome, os visitantes foram depositando papelinhos enrolados dentro de um frasco. Tudo parecia apontar para que Mr. E fosse o escolhido. 47 » noticiasmagazine 23.DEZ.2007
Mas o background literário de Gorey foi determinante para o que viria a seguir. Em 1953, mudou-se para Nova Iorque, onde durante os trinta anos seguintes foi visto a ocupar uma cadeira nos espectáculos de ballet do New York State Theater, envergando o traje de gala habitual: casaco de pele e ténis. Fã do coreógrafo George Balanchine, a quem venerava como um deus, raramente terá falhado uma apresentação. Ao mesmo tempo, trabalhava para uma editora na ilustração de capas de livros: Dracula, de Bram Stoker; The War of the Worlds, de H.G. Wells; e Old Possum’s Book of Practical Cats, de T.S. Eliot, figuram entre os mais conhecidos. Balanchine morreu em 1983. Pouco depois, Gorey meteu-se no seu Volkswagen amarelo e mudou-se definitivamente com os gatos para Cape Cod, sentindo que já nada o prendia a Nova Iorque. Ali encontrou aquela a que viria a chamar a «Elephant House», julga-se que por causa do aspecto velho e estalado da tinta, a lembrar a pele de um elefante. A decrepitude da casa combinava lindamente com a belíssima magnólia do jardim, capaz de resistir aos Invernos agrestes e ao ar do mar. Gorey ficou com ela. Tinha ganho dinheiro com o projecto de cenografia e figurinos na produção de Drácula para a Broadway; e a série de televisão Mistery!, onde assinou o genérico animado de abertura, também fez com que o seu trabalho chegasse a um grande número de pessoas. De resto, o dinheiro, como valor abstracto, não lhe dizia nada. Usava-o para comprar as coisas de que gostava: livros, filmes, CD, obras de arte, antiguidades, bonecos de peluche… Quando decidiu mandar arranjar o telhado da casa, pagou tudo num só cheque. O homem apareceu meia dúzia de vezes e depois desapareceu do mapa. Os amigos perguntaram-lhe por que tinha sido tão confiante. «Parecia-me mais prático pagar assim», foi a resposta. O gosto pelo insólito Aparentemente, não houve nada de dramático na infância e adolescência do autor de The Gashlycrumb Tinies, a história em forma de alfabeto em que 26 personagens de crianças são implacavelmente eliminadas com uma só frase mortífera – desde «A» de «Amy que caiu das escadas» até «Z» de «Zillah que bebia demasiado gin». As primeiras leituras de Gorey (que aprendeu a ler sozinho aos três anos e meio) terão preenchido, pela imaginação, o vazio da normalidade quotidiana. Drácula, Frankenstein, Alice no País das Maravilhas e toda a obra de Victor Hugo foram devorados até aos oito anos. Solitário, ma non troppo, ele próprio confessou depois a um jornal que, embora gostasse de se imaginar como um miúdo «sensível e pálido», era mais do género de brincar na rua e fazer coisas inesperadas. Uma colega da escola secundária contou co-
mo, um dia, Gorey pintou de verde as unhas dos pés e andou a passear descalço pela rua, causando o efeito que se imagina. Esse sentido de humor provocatório e totalmente nonsenseacompanhou-o a vida toda, entranhando-se nos mais de cem livros que escreveu e ilustrou. Combinado com um gosto pelo macabro e por um certo lirismo perverso e erudito, produziu uma obra difícil de classificar, que tem fascinado adultos e crianças. Na verdade, era justamente o que ele queria: baralhar as interpretações, causar perplexidade. Numa entrevista à Boston Magazine comentou assim os seus livros: «Tenho a teoria parva de que uma obra de arte criativa só é interessante se significa uma coisa e é realmente sobre outra coisa qualquer. Muitas vezes, quando escrevo ou desenho, o meu trabalho começa por ser uma paródia e às vezes transforma-se numa paródia de outra coisa.» Veja-se, por exemplo, o livro The Iron Tonic: Or, a Winter Afternoon in Lonely Valley, onde o esperado «tónico de ferro» nunca chega a aparecer no cenário do hotel de montanha em que os hóspedes vagueiam, soturnos e meio perdidos. Ou então a série Menaced Objects, em que dois objectos vulgares e inofensivos são perturbados pelas legendas: «Borboleta de papel apreensiva por ter entornado xarope de açúcar», «Carrinho de linha demasiado próximo de uma janela», «Roda de bicicleta rolando para um beco sem saída», «Uva em perigo de cair para uma gaveta aberta»… Parece não fazer sentido? Bem, parte da piada está aí. Sem se preocupar com definições, Edward Gorey via-se mais como um escritor que desenhava do que como um ilustrador
Gorey coleccionava bonecos de pano, muitos deles feitos por si. As pedras eram outro dos seus fascínios.
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Gorey escreveu The Doubtful Guest (O Hóspede Suspeito) em 1957. A Jim Henson Company vai adaptá-lo ao cinema.
Do mesmo modo que Edgar Allan Poe ou Henry James foram escritores de afinidades mais europeias do que americanas, criou-se o mito de que Edward Gorey era um obscuro autor inglês do século XIX. De facto, publicou o primeiro livro, The Unstrung Harp, em 1953, quando tinha 28 anos. O que não o impediu de cultivar o anacronismo, enquanto os da sua idade se preparavam para as andanças da Beat Generation ou viviam as delícias electrodomésticas do sonho americano. Muitas das suas personagens surgem em cenários vitorianos ou da belle époque, distribuindo tédio e melancolia – mas também um inconformismo que facilmente resvala para a pura subversão. Adultos alienados e crianças maliciosas encontram-se neste mundo de irrisória moralidade, sem verdadeiramente se tocarem. A «inquietante estranheza», como bem definiu Sigmund Freud, é talvez o estado de alma em que melhor flutuam. «Sei o que estou a fazer» Vivendo praticamente do dinheiro dos bilhetes, doações e quotas de associados, a Edward Gorey House é gerida por uma fundação que conserva quase todo o legado do escritor, desde os casacos de peles aos milhares de desenhos, textos e esboços que deixou. De vez em quando, são leiloados para se conseguirem fundos de manutenção;
que escrevia. A diferença é subtil, mas traduz-se pelo método: primeiro, surgia a história (ou o fragmento de uma história), em palavras; só depois as ilustrações, a maior parte a caneta de tinta preta ou aguarelas. O local de trabalho era outra das suas idiossincrasias. Com uma casa enorme e cheia de luz, Gorey preferia desenhar numa exígua sala interior, ao lado da janela encoberta pela magnólia, por ali conseguir obter maior concentração. Trabalhava constantemente. O facto de os gatos se passearem pelos papéis, por vezes arruinando horas de esforço, não o incomodava. Adorava animais e chegou a manter uma colónia de guaxinins debaixo do alpendre durante anos. Para quem se pergunte neste momento como é que esse afecto desmedido se concilia eticamente com o gosto por casacos de peles, esclarecemos: Gorey deixou de usá-los ainda nos anos 1980, guardou-os em caixotes e substituiuos por peles artificiais. No último leilão de angariação de fundos para a casa-museu, um dos seus casacos de raposa foi vendido por mais de 2500 dólares.
Melancolia e subversão Os animais tornaram-se os grandes beneficiários do testamento de Edward Gorey. O que inclui não só uma série de associações dedicadas a cães e gatos abandonados, como outras mais peculiares como a Xerces Society e a Bat Conservation International, protectoras de invertebrados e de morcegos, respectivamente. Mas não foi por qualquer espécie de misantropia que Gorey preferiu favorecer os animais em vez dos humanos. É certo que, exceptuando os primos com quem começou por partilhar a casa (e que inspiraram a história The Deranged Cousins), não tinha família próxima. Nunca casou nem teve filhos, e da sua vida sexual e amorosa pouco ou nada se sabe. No entanto, apesar do imaginário sombrio dos seus livros, era tido como um homem bem-disposto e afável, cujas excentricidades suscitavam mais ternura do que irritação. Era capaz de pedir explicações a um amigo sobre a melhor forma de plantar bolbos de flores e, depois, dar meia volta e deixá-lo a fazer sozinho o trabalho difícil, regressando aos seus desenhos. 49 » noticiasmagazine 23.DEZ.2007
O cemitério a brincar dos Gashlycrumb Tinies é um dos musts do jardim.
ou então para se darem a conhecer ao público em exposições temporárias. A última mostra os manuscritos e desenhos originais do livro The Doubtful Guest, um dos mais conhecidos, prestes a ser adaptado ao cinema pela Jim Henson Company, a mesma de Os Marretas. Encontra-se (não muito facilmente) em português, em excelente tradução de Margarida Vale de Gato, com o título O Hóspede Suspeito, numa edição da Errata (2003) que junta mais três histórias: O Casal Execrável, A Bicicleta Epiléptica e A Visita Relembrada. O que o visitante pode ver na Edward Gorey House é uma pequena mas representativa amostra da vida do autor de O Hóspede Suspeito. Expostas em vitrinas ou nos parapeitos das janelas (numa prova de confiança no ser humano digna de Gorey…), encontram-se muitos objectos que ele próprio fez, usou ou coleccionou. Tinha o hábito de trazer para casa tudo o que lhe suscitava interesse e curiosidade, independentemente da origem: podia ser um cata-vento centenário comprado por bom preço numa feira de velharias ou apenas um ninho vazio que encontrava por acaso. Há muito para ver, mas nada se compara com o caos original anterior, quando os gatos circulavam ostensivamente pelo meio dos milhares de livros que já não tinham lugar nas estantes. Entre trinta e quarenta mil, calcula-se, desde comicsda Marvel
até álbuns sobre arte japonesa, passando por histórias de mistério de série B e acabando nos clássicos da literatura inglesa e francesa. Como todos os espíritos livres, Gorey não estabelecia distinção entre «alta cultura» e «baixa cultura», quando se tratava de fazer aquilo que lhe agradava (e, basicamente, só fazia aquilo que lhe agradava). As leituras de Jane Austen e Anthony Trollope não eram incompatíveis com os Ficheiros Secretos e Buffy, a Caçadora de Vampiros, duas das séries de televisão que via e revia, enquanto costurava os seus grotescos bonecos de pano, que depois enchia de arroz. Dizia ele: «Parte de mim é genuinamente excêntrica, outra parte é um bocado a armar. Mas sei o que estou a fazer.» E dava uma das suas gargalhadas magistrais. É por estas e outras razões que em Yarmouth Port, ainda hoje, tanta gente lhe sente a falta.«