BREVE TEORIA GERAL DO INFERNO Por: Aloísio Maia Nogueira
Inferno, anónino, óleo s/ madeira, 119 x 217,5 cm , c. 1520
S
e há unanimidade teológica é a de que o Inferno é um sítio insalubre, quente e abafado, (embora ligeiramente mais fresco do que Beja em Agosto) e com um enjoativo e omnipresente cheiro a enxofre.
Contrariamente ao mito, estas condições infernais, não derivam de qualquer abundante combustão de almas – material reconhecidamente incombustível – mas antes da deficiente ventilação do local (uma cave na Damaia) e da sua preocupante sobreocupação, variáveis que originam o por demais conhecido “efeito de estufa”. Já as culpas pelo fedor sulfúrico recaem inteirinhas na falta de imaginação do pessoal da cozinha, gente aí geralmente madraça, que, por facilitismo e falta de vigilância, repete exageradamente no menu, o clássico culinário transmontano feijão com grelos. Estas lamentáveis condições físicas e estruturais do Inferno resultam da sua génese. E, não menos importante, da prolongada ausência de investimento em obras de manutenção. É geralmente aceite como verdade científica que coisa que nasce torta, tarde ou nunca se endireita. E nem mesmo o Inferno, apesar da sua mastodôntica importância, escapa a esse fado. Ora, sucede que o Inferno surgiu como solução de recurso para um problema não acautelado: Por puro devaneio de artista, a Criação veio acrescentada de Alma, matéria-prima ainda insuficientemente testada ao tempo, que, apesar de ter proporcionado um brilho inigualável à Obra, se veio a revelar um sarilho dos grandes devido à sua enorme
resistência à degradação, que a torna virtualmente imprestável para reciclagem. Tal como os isótopos radioactivos, as almas perduram muito tempo para além da sua vida útil. No caso vertente, uma verdadeira eternidade, conceito abstracto de difícil apreensão, mas que, para benefício de explanação, podemos calcular ter uma duração, média, 30 minutos superior à do Jornal da TVI, ou 2 minutos acima da duração de um episódio da Floribella. Estamos a falar, por isso, de uma porrada de tempo. Tal-qualmente sucede para o urânio enriquecido (que não sabemos como nos livrarmos dele), tem-se revelado insolúvel o problema logístico do destino a dar às Almas que sucessivamente vão sendo desmobilizadas por abate ao efectivo dos respectivos titulares. A política oficial tem sido a de “ir armazenando até ver”. Dessa política infeliz resultou a construção do Inferno. Como todas as soluções de recurso, o Inferno foi planeado à pressa, em cima do joelho e para servir provisoriamente, com a promessa que rapidamente seria substituído por modernas e modulares instalações, com horizontes despejados e dotadas de suficiente folga para nunca mais se ter que se pensar no assunto. Contava-se até, que já estariam asseguradas, com largueza inédita, dotações e cabimentações orçamentais para tal desiderato. Acresce a isto o facto da empreitada ter sido adjudicada a um mestre-de-obras português, que ganhou o concurso à custa de uma orçamentação irrealista e que, depois, como é dos usos da profissão, não teve outra alternativa senão ir poupando nos materiais e nas tubagens e motores de ar condicionado (os chineses faziam agora uns muito bons, dizia) que, como é público e notório, custam os olhas da cara. Particularmente os de melhor qualidade (os motores, não os olhos, que estes não têm preço). Como sempre sucede, o provisório foi-se tornando definitivo e, o que é pior, acabou instrumentalizado ao serviço dos defensores do politicamente correcto, travestindo-se de castigo supremo ao serviço da ortodoxia reinante. Nada de mais falacioso. Na verdade, o Inferno é simplesmente uma inevitabilidade e como tal deve ser prosaicamente encarado. Essa inevitabilidade não resulta de razões comportamentais ou de percursos reprováveis, mas porque, singelamente, não há alternativas, restando apenas lamentar que para tão prolongada estadia nos esteja reservada a completa ausência dos confortos mínimos da civilização ocidental. Os quais, diga-se, assim como assim, também andam cada vez mais arredios do nosso quotidiano. Quem nunca teve uma retrete entupida ou um treçolho? A verdade é que a esmagadora maioria, notoriamente os utentes habituais do Serviço Nacional de Saúde, nem notará a diferença. A propaganda oficial tem procurado fazer passar a ideia de que é falsa a ausência de alternativas ao Inferno, apontando, em sustentação da sua tese, a existência do Céu e do Purgatório, lugares marginalmente mais agradáveis, supostamente acessíveis através de um complicado sistema de créditos baseado no mérito individual, que, aliás, introduziria uma importante nota de Justiça retributiva - cá se fazem cá se pagam – que sempre cai bem. Porém, só na aparência tais realidades constituirão alternativas. É inegável que objectivos meritórios terão estado subjacentes à criação do Céu, mormente no que toca à distinção de carreiras relevantes. Tais objectivos, porém, rapidamente foram
subvertidos pelos primeiros ocupantes que, temendo que a massificação e a democratização do acesso lhes viesse a desvalorizar as propriedades, desde cedo aí instituíram uma espécie de condomínio fechado, com estatutos copiados do Conselho de Segurança da ONU: quem está, está e tem direito de veto; quem não está…. estivesse! Está assim inviabilizada à nascença qualquer pretensão de entrar para o Céu, por muito mérito que tenha o candidato. Já o Purgatório, não é, nem nunca foi, uma alternativa. Mais não é do que uma antecâmara do Inferno, separado deste por um simples reposteiro em damasco vermelho. Surgiu por razões de afluência em massa e por necessidades estatísticas, que impõem a catalogação e seriação prévia das almas que se apresentam em catadupa aos portões do Inferno. Técnica que, aliás, é largamente usada nas portas das discotecas da moda. Ou seja, há que gerir o ambiente, mas, mais hora menos hora, lá acabaremos por entrar. Até porque as instruções da gerência são claras: nem um cliente se pode perder. Estamos por isso conversados no que respeita a alternativas sérias ao Inferno. Muitos pensarão que dando-se o caso de ser o Inferno uma local sem reserva de admissão, existe uma probabilidade séria de ser um sítio mal frequentado, logo, a evitar a todo o custo. Daí a extrema popularidade do conceito “Inferno Privativo”, abraçado por muitos como projecto individual de vida. Geralmente, os mais ilustrados aplicam-se esforçadamente na criação de um Inferno privativo, convencidos que daí resultarão os benefícios geralmente associados ao adjectivo “privativo” quando usado em expressões como “estacionamento privativo” ou “sala privativa”. Puro engano: não existe Inferno mais miserável que esse. Dita a experiência que nada pior para o sossego do que passar a eternidade sozinho com a nossa própria consciência, que, aliás, foi criada precisamente para nos infernizar a vida. Além do mais, dado que vão todos lá parar, a frequência não é melhor nem pior do que a de qualquer outro lugar. Simplesmente é a mesma, só que concentrada. Na posse desta informação, mister é dela tirar alguma utilidade, que se pode resumir na resposta à questão seguinte: - demonstrada a inexistência de alternativas, o que fazer então para tornar menos desagradável a estadia? Uma única coisa: evitar a todo o transe o ostracismo. No Inferno não há muito o que fazer e, basicamente, conversa-se. É muito difícil matar o tempo e rapidamente se esgotam as novidades (afinal estamos a falar da eternidade). Daí que o povo local seja muito dado a grupinhos, cumplicidades e corporativismos; é muito “nós e os outros”. Torna-se, por isso, fundamental para quem aí se apresenta de novo cultivar as qualidades de socialização e ser rapidamente aceite nos grupos instituídos. É na integração que reside o segredo do sucesso (bom… sucesso é maneira de falar). Para isso, nada melhor do que levar da vida boas histórias para contar.
São extremamente valorizadas e de aceitação generalizada, como moeda de troca, no Inferno. Um pouco como sucede com o tabaco nas prisões.
Segunda Feira, 4 de Dezembro de 2006, pela manhãzinha.