Bergson e a filosofia – EPOG Crítica de Politzer: mitologia, psicologismo... Bergson mostra que os pares contrários (dicotomias como unidade – multiplicidade, quantidade – qualidade, e dualidades mais radicais como o dualismo substancial – separação corpo-espírito) servem como “conceitos” auxiliares de teorias e metodologias que procuram dar conta do “misto” que caracteriza a realidade concreta, concebendo assim uma explicação filosófica. Daí o uso das metáforas por parte de Bergson; para não cair nas “armadilhas da linguagem”. A filosofia tradicional e, por conseguinte, a psicologia clássica abusou das categorias (sujeito – objeto, extenso – inextenso, interior – exterior) e perdeu o contato imanente que consiste em viver, agir ou deixar que a vida aja (“haja hoje para tanto ontem” – grafitti inscrito nas proximidades da rua da Consolação com a avenida Paulista). A proposta bergsoniana constitui uma filosofia integral que se nutre continuamente da ciência como uma planta de seiva e cujo fruto é um feedback filosófico, uma visão móvel e espelhada como uma sombra que acompanha as descobertas científicas e lhes mostra que o nosso saber é gradual, isto é, se acumula virtualmente à medida que essas descobertas se avolumam e acreditamos que, assim, nosso conhecimento sobre nós mesmos e sobre o mundo “aumentou”. Um filhote de cachorro apreenderá, em vida, tudo aquilo que seu progenitor, um cão já moribundo, apreendeu ao longo da sua; talvez, uma memória genética, simplesmente desenvolva de forma instintiva seu processo da aprendizagem: nisso consistirá sua vida! Mas para nós, seres humanos, o mundo está grávido de significação e não podemos ignorar que as manifestações do mundo preenchem mais nosso ser que a vida instintiva, o animal que nós habita. Assim, as diferentes “formas simbólicas” (Cf. Cassirer) se nos oferecem como “o ser que exige de nós criação para que tenhamos dele experiência” (Cf. Merleau-Ponty). Não só a ciência, que nós dá as coordenadas mais sólidas do nosso conhecimento é suficiente para viver a plenitude, por isso não nos satisfaz (a “pura insatisfação” da que fala Barbaras), por que sentimos um êxtase (ou angústia), um “excesso” (Cf. Barbaras) ou uma carência total, enfim, a alegria e o sofrimento que significa viver, então, precisamos lançar mão de toda nossa humanidade, de todo nosso ser, para atingir um certo equilíbrio que, em seguida, desequilibramos.
No limite, precisamos coincidir com a duração, porém, sem fundir-nos completamente nela, pois isso deverá ocorrer, naturalmente, no momento da nossa morte. Em vida, precisamos compreender todas as manifestações da vida para agir no sentido da nossa alegria e afastar-nos do sofrimento, embora ambos compõem uma dialética marcada pela temporalidade que se apresenta como uma relação de causa e efeito, impedindo uma liberdade absoluta que nos permita atingir de um só golpe a felicidade – “perceba a alegria como alegria e o sofrimento como sofrimento” (Nitiren Daishonin). A liberdade absoluta é um sonho, que deu origem à política como uma maneira de dirigir a sociedade que nós mesmos constituímos. Nossa história mostra, claramente, alguns resultados dessa política – guerras, ditaduras, burocracia e corrupção para citar os menos perversos, sendo o racismo, herança contemporânea do nazismo e da escravidão, um dos mais nocivos, levando-se em conta não só o extermínio de vidas humanas senão também a destruição do patrimônio cultural da humanidade –, acentuados progressivamente pela alienação econômica dessa mesma política. A política é também uma ciência, todavia existem outras manifestações humanas que não são tão “científicas” assim; talvez por isso sejam, então, “mitológicas” (como quer a sátira que Politzer fez do bergsonismo). A arte (sempre é bom lembrar: música, poesia, pintura, escultura, literatura, arquitetura, fotografia, cinema, dança, teatro, circo, capoeira, jardinagem e – por que não? – filosofia), a religião, seja mitológica, primitiva, tribal, oriental, mas não as de cunho expressamente político-financeiro, as atividades esportivas praticadas regularmente tendo em vista o bem-estar e a saúde não somente física, mas também psíquica, exigindo, por sua vez, uma alimentação adequada e um equilíbrio afetivo e social, enfim, as diferentes atividades que podemos designar como “culturais” que constituem, também, facetas importantes do nosso conhecimento da Natureza, seja humana, seja bruta, mesmo porque não há como fazer essa separação na prática. Essa visão móvel que transita pelas facetas através das quais se mostra – e se dá – a vida é uma intuição quando não se limita a descrever, isto é, a criar conceitos dispersando assim uma energia vital que nos convida primeiramente a viver, a conhecer o mundo mergulhando nele, promovendo uma manifestação da própria Natureza que logo se extinguirá sem deixar rastro, exceto pelas suas ações, que também são as nossas. Filosofar de maneira excessivamente teórica (analítica, conceitual, descritiva, normativa, dedutiva)
com uma pretensão obsessiva pela verdade não pode dar lugar a uma intuição que, embora sem perder o rigor da reflexão, esteja baseada numa experiência viva, que se sabe de posse de um conhecimento, mas reconhece que esse conhecimento é válido enquanto a experiência dura – pois, como viu muito bem Bergson, a vida é como um vento (EC, p. 55). A filosofia de Bergson nos convida, portanto, a procurar essa intuição, agora sim, não obsessivamente, mas com certa determinação e com a convicção de que se duramos com ela é porque somos “imanentes” à Natureza e podemos ter ainda uma experiência da coincidência plena e não uma “coincidência parcial”, como sublinha Barbaras. Porém, o que de fato não podemos é fixar à vontade a permanência dessa coincidência, isto é, fazer com que se estabeleça um contato, uma tensão mais duradoura entre nós e o absoluto. A isso poderíamos chamar, talvez junto com os lógicos, de “paradoxo Bergson”. Obviamente, a vida excede a nossa linguagem, toda e qualquer linguagem, principalmente a da lógica, que não se preocupa com o mundo e sim com a estrutura interna dos sinais, procurando descrever com regras gramaticais as diferentes “formas de vida” (Wittgenstein?). Se bem que Berkeley, antes dele, já havia apontado para essa “analogia mística” entre a linguagem humana (alguns sinais que exprimem, pela sua combinatória e pela regras que entre eles mesmos se estabelecem, uma infinidade de sentenças que definem nossa relação com o mundo). La grammaire de la nature ou a gramática divina é, para Berkeley, dada na percepção sensível; algo assim como “a língua em que Deus nos fala” (Cf. Bergson, PM). Temos, então, flashes da duração, que devem servir-nos para estabelecer essa convicção que não deve dobrar-se ante a tendência natural da nossa inteligência, fruto da duração, toda ela voltada para a ação – sobretudo, útil e, porque não, lucrativa – que nos faz esquecer que somos livres para direcionar nossa ação para os demais âmbitos, por assim dizer, inúteis, onde importa mais a “intuição da duração” do que o resultado prático que era visado. Essas ações que visam uma coincidência com a duração, entretanto, não são completamente livres, na medida em que são parcialmente determinadas pelo nosso passado (hábitos adquiridos, condições físicas e psíquicas de nascença e do nosso desenvolvimento, vícios, referências, ambiente, circunstâncias, contexto, etc). Talvez nesse sentido, o “desejo” (que Barbaras aponta como uma “ausência” no pensamento de Bergson), deixe de ser, a meu ver, um aspecto da nossa vida passada que se configura como expectativa futura, senão que constitui um “excesso” em relação à
totalidade dada, o acréscimo que, enfim, nós podemos aportar e que poderia representar algum grau de emancipação. Todavia, esse “excesso” pode também limitar, na medida em que ao extravasar, perde-se gradativamente a capacidade de fruição vital (capacidade de desfrutar, de admirar-se e de surpreender-se com o simples – o insólito); isso nos leva rápida e univocamente à ruína emocional. Ficamos desmotivados, angustiados, ao ver que não compreendemos o ser que nos habita e nos ultrapassa, até sermos seduzidos novamente pela expectativa de um “novo” desejo mundano, ignorando que a verdadeira “experiência integral” e, por assim dizer, “mística” à qual deseja elevar-nos a filosofia de Bergson não existe separada da nossa experiência carnal e terrena, ou seja, como mortais comuns. Por isso, o tempo de nossa duração é o que importa; nele devemos encontrar o sentido da experiência da duração, isto é, o sentido da nossa vida. E a filosofia, agora que não é mais científica, pode espalhar-se como uma epidemia, num mundo onde não há mais tempo para reflexionar sobre a própria vida, estabelecendo um diálogo com outros filósofos, homens de ciência, artistas e artesãos, místicos e sábios que conhecem o mundo porque o viveram e porque, como cachorros velhos, não aprenderam nem mais nem menos que os novos indivíduos que perpetuarão a espécie (senso comum), senão que transitaram por outros caminhos, diferentes sim, mas certamente muito familiares. No final das contas, se a proposta de Bergson traz alguma novidade, esta consiste em dissolver as separações radicais, mostrando onde há diferenças de grau e onde diferenças de natureza1 no extenuante debate da história da filosofia. Não obstante, ele mesmo terá que passar por todas elas para acentuar, não mais os pólos da oposição, senão a relação que mantém o vínculo entre eles e que garante a continuidade, a unidade e, ao mesmo tempo, a multiplicidade como processo de diferenciação constante (como não ver aí um “excesso” invés da suposta separação da “coincidência parcial”); isso é o que caracteriza a “identidade” da mudança qualitativa, sempre traduzida em quantidade homogênea para medirmos a nossa vantagem, nossos acertos e nossos erros, nossas verdades e nossas ilusões, enfim, a nossa própria loucura, que nos afasta da fruição simples da vida – “la vida es lo que te passa mientras tu estás empeñado em realizar outros planes”, cartão do meu avô com a célebre frase de John Lennon.
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Ver Montebello, in: La durée et la nature.
Seja como for, não devemos levar as dualidades bergsonianas até às últimas conseqüências, já que estas não são reais; são ideais, idéias reguladoras que permitem graduar a realidade, como um afinador eletrônico de guitarra que, conforme a vibração e a tensão de uma corda, marca a nota mais próxima da escala, na qual deve precisamente soar essa corda se quisermos que o instrumento esteja afinado, isto é, em harmonia com o conjunto das demais cordas / notas. Julgamos que essa harmonia não depende de divindades nem do Ser supremo, muito menos da totalidade, já que esta é desprovida de qualquer finalidade e tampouco pode ser preestabelecida pelo legislador (embora ele se aproxime bastante desse ideal – em teoria); a harmonia deve ser conquistada pelas ações que realizamos cotidianamente e pelo esquema geral de ação que consolidamos ao cabo de alguns anos, do qual seremos cada vez mais dependentes e por isso mesmo incapazes de livrar-nos quando nos for mais conveniente. Do grau de flexibilidade ou de rigidez que tenhamos atingido dependerá nossa adaptação às mudanças (internas como o envelhecimento, externas como uma crise financeira). Compreende-se, portanto, que a “intuição da duração” constitui um verdadeiro mélange entre atividade e passividade, na medida em que não se trata apenas de uma atividade e na medida também que, contra Bergson, essa intuição não deixa de ser, de certo modo, uma maneira de contemplação. Se Bergson opõe a “ação” à “contemplação” para desqualificar o misticismo oriental, elevando o misticismo cristão à categoria de “misticismo completo”, então, sua filosofia acaba, de fato, traindo-se a si mesma, visto que não consegue livrar-se das “novas” oposições (sociedade aberta – fechada, religião e moral estática – dinâmica, etc). Sendo mais fiéis ao bergsonismo que o Bergson das Duas fontes (por mais bizarre que essa afirmação possa parecer), pensamos que, hoje em dia, os místicos orientais (budistas, por exemplo) encontram-se muito mais próximos do misticismo completo que os cristãos, sobretudo nas formas que atualmente exaltam as manifestações messiânicas2 (evangélicos e católicos não-praticantes, estes últimos carregando sua crença mais como uma medalha do que como uma convicção religiosa – prática concreta da fé, que é posta a prova nas ações da vida e aprofundada constantemente pelo estudo). 2
Historicamente, as religiões baseadas na transcendência do Criador e na volta de um messias [mashiah em hebraico, christós em grego]. Ver Chauí, M. Aula inédita sobre o rompimento de Espinosa com as religiões de Deus: muçulmanos e judaico-cristãos. (ver também A nervura do real).
Em outras palavras, essa prática da fé que procura coincidir com a própria duração para transcendê-la e obter, desse modo, uma experiência integral, uma intuição da “imanência transcendental”, consiste precisamente numa atividade contemplativa, ou antes, na contemplação ativa da vida enquanto nos toca vivê-la, enquanto esta dura. Talvez assim, quando compreendamos que a vida é como um vento, consigamos impulsionar nossos desejos como um barco à vela, na direção da nossa felicidade, sabendo que esta não se encontrará jamais num suposto porto de chegada, senão que estará aí, camuflada no próprio caminho, na duração, que não é outra coisa senão a nossa própria vida. E até mesmo quando fizermos algum redemoinho, ou precisamente nesses momentos, saberemos que fomos capazes de sentir, ou melhor, de intuir que a vida posou em nós e se apossou de nossa duração ao passo que nós agimos nela (“Em quem vivemos, nos movemos e temos nosso Ser” – epístola de São Paulo citada por Berkeley e também por Bergson).