Artigo - 2001 - Aquisicao Da Linguagem Scarpa

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AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM SCARPA, Ester Mirian: Aquisição da Linguagem. In.: MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Anna Christina (Orgs.). Introdução à lingüística: domínios e fronteiras. São Paulo: Cortez, 2001. pág. 203-232.

Conteúdo 1. AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM: BREVÍSSIMO HISTÓRICO E ABRANGÊNCIA ............................................ 1 2. TEMAS E ABORDAGENS TEÓRICAS SOBRE A AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM .......................................... 3 2.1. O velho debate pendular sobre nature (natureza) versus nurture (criação, ambiente). O inato e o adquirido. O biológico e o social ....................................................................................................... 3 2.2. O cognitivismo construtivista: Piaget, Vygotsky ............................................................................ 6 2.3. 0 interacionismo social .................................................................................................................. 8 3. A QUESTÃO DO "PERÍODO CRÍTICO" .......................................................................................................... 12 4. ESTÁGIOS DE DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM .......................................................................... 15 5. ALGUMAS CONCLUSÕES ........................................................................................................................... 18

1. AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM: BREVÍSSIMO HISTÓRICO E ABRANGÊNCIA A linguagem da criança sempre provocou especulações diversas entre leigos ou estudiosos do assunto. Seja essa linguagem a manifestação imperfeita de um ser incompleto, seja a expressão primitiva da palavra de Deus, o fato é que relatos mais ou menos esparsos, porém constantes, têm sido registrados ao longo dos séculos e chegaram até nós. Tais relatos dizem respeito às primeiras palavras emitidas pelas crianças, ou a que condições a criança deveria ser exposta para aprender a falai-. Heródoto, por exemplo, narra que, no século VII a.C, o rei Psamético do Egito ordenou que duas crianças fossem confinadas desde o nascimento até a idade de dois anos, sem convívio com outros seres humanos, a fim de se observarem as manifestações "lingüísticas" produzidas em contexto de privação interativa. Sua hipótese era que, se uma criança fosse criada sem exposição à fala humana, a primeira palavra que emitisse espontaneamente pertenceria à língua mais antiga do mundo. Ao cabo de dois anos de total isolamento, as crianças emitiram uma seqüência fônica interpretada como "bekos", palavra frígia para "pão". Concluiu, então, que a língua que o povo frígio falava era mais antiga que a tios egípcios. Estudos sistemáticos sobre o que a criança aprende e como adquire a linguagem, porém, foram feitos, como tais, apenas mais recentemente. Desde o século XIX, alguns lingüistas, guiados tanto por interesse paterno quanto profissional, elaboraram diários da fala espontânea de seus filhos. Algumas das amostras mais abrangentes da fala infantil foram registradas nas primeiras décadas deste século pelos chamados "diaristas", que eram lingüistas ou filólogos estudando seus próprios filhos. Os mais interessantes deles são um estudo do francês por Antoine Grégoire, um 1

sobre a aquisição bilíngüe alemão-inglês de Wcrner Leopold (1939), além do trabalho de Lewis (1936), sobre a descrição de uma criança aprendendo o inglês. São trabalhos descritivos e mais ou menos intuitivos, que, ao contrário das pesquisas aquisicionais das últimas décadas, não se voltam à procura, nos dados da criança, de evidência em prol de alguma teoria lingüística ou psicológica, embora se insiram nas teorias lingüísticas e psicológicas da época (como o de Lewis, com tendência behaviorista). Esses trabalhos são do tipo longitudinal, uma das metodologias de pesquisa com dados de desenvolvimento hoje já bem estabelecidos, iniciada exatamente pelos diaristas. Trata-se do estudo que acompanha o desenvolvimento da linguagem de uma criança ao longo do tempo. As anotações, em forma de diário, do que a criança diz, em situação naturalística (isto é, em ambiente natural, em atividades cotidianas), foram posteriormente substituídas por registros em fitas magnéticas, cm áudio ou vídeo. Assim, grava-se a fala de uma criança por um período de tempo preestabelecido (por exemplo: meia hora, 40 minutos, 1 hora etc), em intervalos regulares (sessões semanais, quinzenas, mensais etc), dependendo do tema a ser pesquisado. Esse material é posteriormente transcrito da maneira mais apropriada para a pesquisa em pauta (transcrição fonética, prosódica, cursiva, codificada segundo orientações sintáticas, semânticas etc). A suposição é que. registrando-se uma quantidade razoável da fala da criança de cada vez. pode-se ter uma amostra bastante representativa para se estudar como o conhecimento da língua pela criança é adquirido e/ou como muda no tempo. A partir da metade dos anos 1980, bancos de dados da fala de várias crianças do mundo todo têm sido formados, seguindo codificações informatizadas. Uma outra metodologia de pesquisa em aquisição da linguagem, a de tipo transversal, baseia-se no registro de um número relativamente grande de sujeitos, muitas vezes classificados por faixas etárias. Embora não exclusivamente, a pesquisa de tipo transversal geralmente também é do tipo experimental (por oposição a naturalístico), em que os fatores e as variáveis intervenientes no fato analisado são isolados e controlados e depois testados. Dados naturalísticos destinam-se sobretudo à análise da produção; os experimentais prestam-se mais à observação e análise da percepção, compreensão e processamento da linguagem pela criança. De qualquer maneira, deve-se sempre ter cuidado com a visão ingênua de que os dados aquisicionais "falam". A metodologia adotada e a própria seleção dos dados dependem da postura teórica que norteia a pesquisa. A Aquisição da Linguagem é, pelas suas indagações, uma área híbrida, heterogênea ou multidisciplinar. No meio do caminho entre teorias lingüísticas e psicológicas, tem sido tributária das indagações advindas da Psicologia (do Comportamento, do Desenvolvimento, Cognitiva, entre outras tendências) e da Lingüística. No entanto, na contramão, as questões suscitadas pela Aquisição da Linguagem, bem como os problemas metodológicos e teóricos colocados pelos próprios dados aquisicionais, têm, não raro, levado tanto a Psicologia (sobretudo a Cognitiva) como a própria Lingüística a se repensarem c a se renovarem. Por isso é que se diz que a Aquisição da Linguagem tem sido uma arena privilegiada de discussão teórica tanto da Lingüística quanto da Psicologia Cognitiva3. Hoje em dia, a Aquisição da Linguagem alimenta os tópicos recobertos pela Psicolingüística,4 além de ser de interesse central nas ciências cognitivas e mesmo nas teorias lingüísticas, sobretudo 2

nas de inspiração gerativista, como veremos mais detidamente adiante. A área recobre muitas subáreas. cada uma formando um campo próprio de estudos. Eis algumas delas: a) aquisição da língua materna, tanto normal quanto "com desvios", recobrindo os componentes "tradicionais" dos estudos da linguagem, como fonologia, semântica e pragmática, sintaxe e morfologia, aspectos comunicativos, interativos c discursivos5 da aquisição da língua materna. Sob a égide de "desvios", contam-se: aquisição da linguagem em surdos, desvios articulatórios, retardos mentais e específicos da linguagem etc; b) aquisição de segunda língua, quer como bilingüismo infantil ou cultural, quer na verificação dos processos pelos quais se dá a aquisição de segunda língua entre adultos e crianças, seja em situação formal escolar, seja informal de imersão lingüística; c) aquisição da escrita, letramento, processos de alfabetização, relação entre a fala e a escrita, entre o sujeito e a escrita nesse processo etc.

2. TEMAS E ABORDAGENS TEÓRICAS SOBRE A AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM 2.1. O velho debate pendular sobre nature (natureza) versus nurture (criação, ambiente). O inato e o adquirido. O biológico e o social

Os estudos sobre processos e mecanismos de aquisição da linguagem tomaram um grande impulso a partir dos trabalhos do lingüista Noam Chomsky, no fim da década de 1950, em reação ao behaviorismo vigente na época. O quadro científico era na época dominado pela corrente behaviorista ou ambientalista, dominante exatamente nas teorias de aprendizagem. A aprendizagem da linguagem seria fator de exposição ao meio e decorrente de mecanismos comportamentais como reforço, estímulo e resposta. Aprender a língua materna não seria diferente, em essência, da aquisição de outras habilidades e comportamentos, como andar de bicicleta, dançar etc, já que se trata, ao longo do tempo, do acúmulo de comportamentos verbais. Skinner (1957), psicólogo cujo trabalho foi o mais influente no behaviorismo, parte de pressupostos tanto metodológicos (como ênfase na observabilidade de manifestações comportamentais, externas, mensuráveis, da aprendizagem) quanto teóricoepistemológicos 'como a premissa da inacessibilidade à mente para se estudar o conhecimento, postura contrária à mentalista e idealista nas ciências humanas) e propõe, então, enquadrar a linguagem (ou "comportamento verbal") na sucessão e contingência de mecanismos de estímulo-resposta-reforço, que explicam o condicionamento e que estão na base da estrutura do comportamento. Chomsky adota uma postura inatista na consideração do processo por meio do qual o ser humano adquire a linguagem. A linguagem, específica da espécie, dotação genética e não um conjunto de comportamentos verbais, seria adquirida como resultado do desencadear de um dispositivo inato, inscrito na mente. Tornou-se famosa esta polêmica criada pela publicação, em 1959, da devastadora resenha, de autoria do então jovem Chomsky, do livro Comportamento verbal, de Skinner. Nela, o lingüista posiciona-se contra a visão ambientalista de aprendizagem da linguagem. Chomsky começa por rejeitar a projeção das evidências skinnerianas, provenientes de experimentos laboratoriais com animais, para a linguagem humana, específica da 3

espécie, resultado de dotação genética e inscrita na mente do sujeito falante. E continua argumentando que as estruturas de condicionamento e de aprendizagem, segundo as quais um modelo A é reproduzido, pelo aprendiz, por mecanismos de contingenciamento ou imitação, como A', nem de longe começa a explicar a complexidade e a sofisticação do conhecimento lingüístico (na primeira versão da teoria chamado de competência lingüística) que tem bases biológicas (porque genéticas) e, portanto, universais. Os enunciados produzidos pelo falante e as próprias línguas do mundo são manifestações da faculdade da linguagem. Assim, a criança que aprende a sua língua nativa é uma imagem a que Chomsky retorna repetidamente, desde seus primeiros escritos, de maneira que se torna difícil discriminar sua teoria da linguagem de sua visão da aquisição da linguagem. O argumento básico de Chomsky é: num tempo bastante curto (mais ou menos dos 18 aos 24 meses), a criança, que é exposta normalmente a uma fala precária, fragmentada, cheia de frases truncadas ou incompletas, é capaz de dominar um conjunto complexo de regras ou princípios básicos que constituem a gramática internalizada do falante. Esse argumento, constantemente reafirmado, é chamado de "pobreza do estímulo". Um mecanismo ou dispositivo inato de aquisição da linguagem (em inglês, LAD, language acquisition'device), que elabora hipóteses lingüísticas sobre dados lingüísticos primários (isto é, a língua a que a criança está exposta), gera uma gramática específica, que é a gramática da língua nativa da criança, de maneira relativamente fácil e com um certo grau de instantaneidade. Isto é, esse mecanismo inato faz "desabrochar" o que "já está lá", através da projeção, nos dados do ambiente, de um conhecimento lingüístico prévio, sintático por natureza. No bojo de modificações e reajustes que a teoria gerativa sofreu num segundo momento, introduzindo a chamada Teoria de Princípios e Parâmetros, o argumento da "pobreza do estímulo" foi retomado e refraseado com uma atitude francamente platonista ante a linguagem. A "pobreza do estímulo", um dos mais importantes argumentos em prol do inatismo, vincula-se à metáfora do problema de Platão, ao qual, segundo o lingüista, filiam-se as questões centrais relativas à linguagem. O problema de Platão coloca-se da seguinte maneira: como é que o ser humano pode saber tanto diante de evidências tão passageiras, enganosos e fragmentárias? Transferindo para a linguagem, essa questão quer dizer que o conhecimento da língua é muito maior que sua manifestação. Assim, a linguagem está vinculada a mecanismos inatos da espécie humana e comuns aos membros dessa espécie, daí a idéia de universais lingüísticos. Esta visão, que coloca a linguagem num domínio cognitivo e biológico, admite que o ser humano vem equipado, no estágio inicial, com uma Gramática Universal (GU), dotada de princípios universais pertencentes à faculdade da linguagem, e de parâmetros "fixados pela experiência", isto é, parâmetros não-marcados que adquirem seu valor (+ ou -) por meio do contacto com a língua materna. Essa teoria de aquisição tem sido chamada de "princípios e parâmetros" ou "paramétrica". Alguns dos parâmetros que têm sido estudados são: se a língua opta por sujeito nulo ou por sujeito preenchido, por objeto nulo ou objeto preenchido, pela colocação dos clíticos, pelo tipo de flexão ou estrutura temática do verbo etc. A separação estrita entre conhecimento e uso é decorrência direta da postulação de conhecimento tácito, prévio, biológico, de cunho lingüístico, in4

dependente dos fatores ambientais, culturais, psicológicos ou histórico-sociais determinantes da aquisição da língua materna. Oposto ao "problema de Platão" está o "problema de Orwell/Freud", apropriado, segundo o lingüista, para questões sociais, históricas e políticas, ou para os desdobramentos sócio-histórico-psicanalíticoideológicos do uso da linguagem, que fogem à alçada da teoria lingüística. Este "problema de Orwell/Freud" parafraseia-se assim: como pode O ser humano saber tão pouco diante de evidências tão ricas e numerosas? Em suma, no processo de aquisição da linguagem, a criança c exposta a um input (conjunto de sentenças ouvidas no contexto), sendo o output um sistema de regras para a linguagem do adulto, a gramática de uma determinada língua. 1. Numa primeira versão da teoria, postulava-se a existência de uma série de regras gramaticais, mais um procedimento de avaliação e descoberta, presentes no Dispositivo de Aquisição da Linguagem (LAD); ao confrontá-las com o input, a criança escolhe as regras que supostamente fariam parte de sua língua (Chomsky, 1957, 1965). Num segundo momento, postula-se que a criança nasce pré-programada com princípios (universais) e um conjunto de parâmetros que deverão ser fixados ou marcados de acordo com os dados da língua à qual a criança está exposta. A criança não escolhe mais as regras, nesta versão de princípios e parâmetros, mas valores paramétricos. A que tipo de dados ou a que quantidade de dados lingüísticos a criança deve ser exposta? Trabalhos recentes (Lightfoot, 1991) afirmam que a criança precisa ser exposta a uma quantidade relativamente pequena de linguagem, meramente a algum gatilho crucial, como pequenas cláusulas simples, a fim de descobrir que caminho sua língua materna tomou. Uma vez descoberto tal caminho, ela já sabe, automaticamente, por meio de pré-programação, um bom tanto sobre como funcionam as línguas daquele tipo. A aprendizibilidade é, assim, uma questão teórica central da teoria paramétrica de aquisição da linguagem. Como é a linguagem aprendível, se pode só contar com as migalhas de fala ouvidas pelas crianças, que não fornecem pistas suficientes para o estado final da língua a ser aprendida? Este c também chamado de "problema lógico da aquisição da linguagem": como, logicamente, as crianças adquirem uma língua se não têm informação suficiente para a tarefa? A resposta lógica ç que trazem uma enorme quantidade de informações a que Chomsky chama de Gramática Universal (GU), que é "uma caracterização destes princípios inatos, biologicamente determinados, que constituem o componente da mente humana — a faculdade da linguagem". Deve ainda ser lembrado que. de acordo com os princípios chomskianos, as diferenças entre as línguas do mundo não são assim tão grandes do ponto de vista sintático, gramatical, o que ajuda a explicar o universalismo (Chomsky, 1993). Uma outra decorrência do inatismo lingüístico é a modularidade cognitiva da aquisição da linguagem: o mecanismo de aquisição da linguagem é específico dela, não exibindo interface óbvia com outros componentes cognitivos ou comportamentais. A relação entre a língua e outros sistemas cognitivos, como a percepção, a memória e a inteligência, é indireta, e a aquisição da linguagem — ou o desencadeamento da Gramática Universal junto com a fixação de parâmetros — não depende, necessariamente, de outros módulos cognitivos, muito menos de interação social. 5

As colocações inatistas de Chomsky suscitaram uma série de estudos, a partir dos anos 1960, que se concentraram sobretudo na chamada fase sintática, onde a prioridade de análise pendeu para o estudo da aquisição da gramática da criança por volta do seu segundo ano de vida, quando a criança já começa a produzir enunciados de mais de uma palavra. Tais trabalhos foram criticados e contra-evidenciados por duas vertentes teóricas que, junto com os trabalhos gerativistas, têm norteado os estudos na área. São elas: o cognitivismo construtivista e o interacionismo social, que veremos a seguir. 2.2. O cognitivismo construtivista: Piaget, Vygotsky

A idéia de que a aquisição e o desenvolvimento da linguagem são derivados do desenvolvimento do raciocínio na criança contesta a autonomia do chamado mecanismo de aquisição da linguagem ou da GU como domínio específico de conhecimento lingüístico. Em outras palavras, a aquisição da linguagem depende do desenvolvimento da inteligência na criança. A abordagem chamada de cognitivismo construtivista ou epigenético foi desenvolvida com base nos estudos do epistemólogo suíço Jean Piaget, segundo o qual o aparecimento da linguagem se dá na superação do estágio sensório-motor, por volta dos 18 meses. Neste estágio de desenvolvimento cognitivo, numa espécie de "revolução coperniciana", usando as palavras do próprio Piaget (1979), dá-se o desenvolvimento da função simbólica, por meio da qual um significante (ou um sinal) pode representar um objeto significado, além do desenvolvimento da representação, pela qual a experiência pode ser armazenada e recuperada. Essas duas funções estão estreitamente ligadas a outros três processos que ocorrem concomitantemente e que colaboram para a superação do que Piaget chama de "egocentrismo radical", presente no período sensório-motor, segundo o qual existe "uma indiferenciação entre sujeito e objeto ao ponto que o primeiro não se conhece nem mesmo como fonte de suas ações". Em outras palavras, o autor fala aqui da indiferenciação cognitiva entre o sujeito e o mundo ou pessoas que o cercam. Estes três processos são os relacionados a seguir: a) o da descentralização das ações em relação ao corpo próprio, isto é, entre sujeito e objeto (ou entre "eu" e "o outro" ou "eu" e "o mundo"); o sujeito começa a se conhecer como fonte ou senhor de seus movimentos; b) o da coordenação gradual das ações: "em lugar de continuar cada uma a formar um pequeno todo em si mesmo", elas passam a se, coordenar para constituir uma conexão entre meios e fins; c) o da permanência do objeto, segundo o qual o objeto permanece o mesmo e igual a si próprio mesmo quando não está presente no espaço perceptual da criança. Por meio de (a), (b) e (c), é possível o uso efetivo do símbolo, da representação de um sinal por outro, de exercer o princípio de arbitrariedade do símbolo. A criança passa, por exemplo, a ser capaz de usar uma caixa de fósforo para "fazer de conta" (representar) que é um caminhãozinho. Assim também, para a criança, um objeto, se deslocado do seu campo perceptual, continua existindo (isto é, o objeto torna-se permanente). Com a linguagem, o jogo simbólico, a imagem mental, as sucessivas coordenações entre as ações e entre estas e o sujeito, surge a possibilidade de internalizar e conceptualizar as ações: "... com mais capacidade de se deslocar de A para B, o sujeito adquire o poder de representar a si mesmo esse movimento AB e de 6

evocar pelo pensamento outros deslocamentos". Quando essas conquistas cognitivas se unem, na superação da inteligência sensória e motora, a caminho da inteligência pré-operatória de fases posteriores, surge a possibilidade de a criança adotar os símbolos públicos da comunidade mais ampla em lugar de seus significantes pessoais: em outras palavras, a linguagem se torna possível (já que a linguagem é entendida, por Piaget, como um sistema simbólico de representações), assim como outros aspectos da função simbólica geral, como é o desenhar. Em contraposição ao modelo inatista, a aquisição é vista como resultado da interação entre o ambiente e o organismo, através de assimilações e acomodações, responsáveis pelo desenvolvimento da inteligência em geral, e não como resultado do desencadear de um módulo — ou um órgão — específico para a linguagem. Daí se diz que a visão de Piaget sobre a linguagem é não-modularista. Assim também, a visão behaviorista é rechaçada, com a crença de que as crianças não esperam passivamente que o conhecimento de qualquer espécie lhes seja transmitido. As pesquisas de inspiração piagetiana floresceram nas décadas de 1970 e 80. As críticas ao modelo piagetiano, que criaram força também neste período, baseiam-se na interpretação de que Piaget avaliou mal e subestimou o papel do social e das outras pessoas no desenvolvimento da criança e que um modelo interativo social se fazia necessário para explicar o desenvolvimento nos primeiros dois anos, modelo esse que desse conta de como a criança e seu interlocutor exploram os fenômenos físicos e sociais. Aí é que surgiram nas elaborações teóricas ocidentais, as propostas de Vygotsky para melhor dar conta do alcance social da aquisição da linguagem. Psicólogo soviético, morreu prematuramente em 1934, mas o grosso de sua obra só começou a ser amplamente traduzido para o francês e para o inglês a partir dos anos 1960. Sua grande influência nos estudos de aquisição da linguagem começa efetivamente nos anos 1970, no bojo dos questionamentos ao inatismo chomskiano e como uma alternativa ao cognitivismo construtivista piagetiano. De orientação construtivista como Piaget, explica, porém, o desenvolvimento da linguagem (e do pensamento) como tendo origens sociais, externas, nas trocas comunicativas entre a criança e o adulto. Tais estruturas construídas socialmente, "externamente", sofreriam, com o tempo (mais ou menos por volta de 2 anos de idade), um movimento de interiorização e de representação mental do que antes era social e internalizado. Vygotsky (1984) parte do princípio de que os estudiosos separam o estudo da origem e desenvolvimento da fala do estudo da origem do pensamento prático na criança. Em outras palavras, o estudo do uso dos instrumentos tem sido isolado do uso dos signos. Vygotsky propõe, ao contrário, que fala e pensamento prático devem ser estudados sob um mesmo prisma e atribui à atividade simbólica, viabilizada pela fala, uma função organizadora do pensamento: com a ajuda da tala, a criança começa a controlar o ambiente e o próprio comportamento. O poderoso instrumento da linguagem é trazido pelo que chama de internalização da ação e do diálogo. Vygotsky entende o processo de internalização como uma reconstrução interna de uma operação externa, mas, diferentemente de Piaget, para a internalização de uma operação deve concorrer a atividade mediada pelo outro, já que o sucesso da internalização vai depender da reação de outras pessoas. Assim é que, entre criança e ação com o mundo, existe a mediação através do outro. São as seguintes as 7

transformações que ocorrem no processo de internalização: a) uma operação que, inicialmente, representa uma atividade externa é reconstruída e começa a ocorrer internamente, daí a importância da atividade simbólica através do uso de signos; b) um processo interpessoal é transformado num processo intrapessoal: as funções no desenvolvimento da criança aparecem primeiro no nível social e, depois, no individual. Em outras palavras, primeiro entre pessoas (de maneira interpsicológica) e, depois, no interior da criança (intrapsicológica). Assim, segundo Vygotsky, todas as funções superiores (memória lógica, formação de conceitos, entre outras) originam-se das relações reais entre as pessoas; c) a transformação de um processo interpessoal num processo intrapessoal é resultado de uma longa série de eventos ocorridos ao longo do desenvolvimento, isto é. a história das relações reais entre as pessoas são constitutivas dos processos de internalização. Segundo o autor, a internalização das atividades socialmente enraizadas e historicamente desenvolvidas é a principal característica da psicologia humana. Os trabalhos de inspiração vygotskiana entendem a aquisição da linguagem como um processo pelo qual a criança se firma como sujeito da linguagem (e não como aprendiz passivo) e pelo qual constrói ao mesmo tempo seu conhecimento do mundo, passando pelo outro. Esses trabalhos têm sido considerados parte do chamado "interacionismo social", que não se esgota nos trabalhos vygotskianos, como veremos a seguir. 2.3. 0 interacionismo social

Numa visão que se distancia em graus variados tanto do cognitivismo piagetiano quanto do inatismo chomskiano, está o interacionismo dito "social". Segundo esta postura, passam a ser levados em conta fatores sociais, comunicativos e culturais para a aquisição da linguagem. Assim, a interação social e a troca comunicativa entre a criança e seus interlocutores são vistas como pré-requisito básico no desenvolvimento lingüístico. Segundo essa abordagem, rituais comunicativos préverbais preparam e precedem a construção da linguagem pela criança. As características da fala do adulto (ou das crianças mais velhas) são estudadas e consideradas fundamentais para o desenvolvimento da linguagem na criança. Alguns estudos demonstram como esquemas de ação e atenção partilhadas pela criança e pelo adulto interlocutor-básico precedem categorias lingüísticas. A fala a que a criança está exposta (input) é vista como importante fator de aprendizagem da linguagem. A este respeito, uma das questões que se tem colocado é se o bebê será atingido por toda e qualquer amostra lingüística ou manifestações lingüísticas ao seu redor ou se as amostras que irão ter influência na aquisição têm um caráter seletivo. Embora essa questão não tenha ainda tido uma resposta definitiva, as pesquisas têm apontado para a segunda alternativa: a criança é afetada pela fala dirigida a ela. A afirmação inicial de Chomsky sobre o input degradado, composto de frases truncadas e agramaticais, foi desafiada por pesquisas subseqüentes, abundantes nos anos 1970 e 80, que examinaram dados naturalísticos da fala adulta dirigida à criança 8

(Snow, 1978, Bullowa, 1979). Tais estudos apontam, isso sim. para modificações que a fala adulta sofre quando dirigida à criança, em contraposição à dirigida ao adulto e a crianças mais velhas, além de características específicas de comunicação entre adultos e bebês que nada tinham de "agramatical" propriamente, como a hipótese de "pobreza do estímulo" sugere. Vejamos algumas das características mais reportadas na literatura sobre tais "modificações" que a fala dirigida à criança sofre, cm comparação com a fala dirigida a crianças mais velhas e a adultos. Trata-se de modificações fonológicas, morfológicas, sintáticas, semânticas e pragmáticas: a) entonação "exagerada", reduplicações de sílabas ("au-au", "papai", "dodói"), velocidade de fala reduzida, qualidades de voz diferenciadas, tendendo para o "falsetto": b) frases mais curtas e menos complexas: expansões sintáticas a partir de uma palavra dita pela criança ou "tradução" de gesto feito por ela; c) referência espacial e temporal voltada para o momento da enunciação; d) palavras de conteúdo lexical mais corriqueiro, mais familiares e freqüentes na rotina cotidiana da criança; e) paráfrases, repetições ou retomadas das emissões da criança. Desde o nascimento, o bebê é mergulhado num universo significativo por seus interlocutores básicos, que atribuem significado e intenção às suas emissões vocais, gestos, direção do olhar. Até mesmo os diversos tipos de choro são "interpretados", "significados" e "classificados" pelo adulto interlocutor. O bebê é assim, visto como potencial parceiro comunicativo do adulto, que empreende uma "sintonia tina" com as manifestações potencialmente comunicativas e significativas da criança, qualquer que seja seu conteúdo expressivo (gesto, voz, balbucios, palavras ou frases). Há um ajuste mútuo nas conversações entre adulto e criança, de maneira que as vocalizações infantis não caem num vácuo comunicativo. Segundo Ochs & Schieffelin, os adultos "respondem às ações de bebês muito pequenos como se fossem intencionalmente direcionadas a eles" e "esta prática de tratar o bebê como um autor corresponde a tratar o bebê como um destinatário, pois os dois papéis combinados instituem o bebê como um parceiro conversacional". Essas características foram encontradas numa variedade bastante grande de comunidades culturais e lingüísticas, de tal modo que a conclusão imediata é que são características universais. A suposta universalidade da fala modificada adulta dirigida à criança desencadeou reações opostas. Citarei duas delas. A primeira recrudesce o inatismo. Relaciona-se com a retomada, nos anos 90. de interpretações que nos anos 1970/80 tinham caráter cultural-comunicativo, mas, desta vez, com roupagem inatista. Assim é que propostas recentes têm visto a universalidade de modulações de voz da chamada entonação "afetiva" (negação, conforto, privação, atenção) como manifestações de comportamentos pré-adaptativos da criança, numa visão declaradamente neodarwinista. Segundo esta visão, a criança vem pré-programada, devido a processos de seleção natural, a reagir às curvas entonacionais próprias de situações de conforto, desconforto, privação etc. Tais modulações propiciariam a saliência prosódica de constituintes gramaticais que seriam, assim, desencadeados (Fernald, 1993). 9

A segunda reação desafia a visão universalista do tipo de interação adulto-bebê e explora diferenças culturais de interação e de transmissão cultural. Trabalhos de campo realizados com comunidades outras que não a branca, classe média, ocidental, mostram diferentes características na interação adulto-bebê que as até então reportadas na literatura. Os trabalhos mais famosos nesta direção são com os maias do grupo quiché da Guatemala (Pye, 1992), com os kaluli, povo de Papua-Nova Guiné (Schieffelin. 1990), e com os samoanos da Samoa Ocidental, na Polinésia (Ochs, 1988). Nessas comunidades, a interação verbal entre crianças e adultos é mínima, isto porque a criança não tem o papel de destinatário até que consiga pronunciar palavras reconhecíveis pela língua. As vocalizações do bebê são ignoradas pelos adultos e não há intenção atribuída a elas. Segundo Ochs & Schieffelin (1997), os kaluli adultos ficaram surpresos com o fato de os pais americanos (presentes na comunidade) utilizarem baby talk (fala infantilizada) para as crianças pequenas e se espantaram com o fato de as crianças americanas conseguirem aprender adequadamente uma língua sendo expostas a amostras "deturpadas" de fala segundo a visão de sua cultura. Dentro ainda de uma postura oposta ao universalismo da fala dirigida à criança, a proposta neodarwinista, exposta anteriormente, também tem sido questionada Cavalcante (1999), replicando os experimentos de Femald em duas díades brasileiras, também contesta a universalidade de marcas vocais interacionais e chega à conclusão de que nem as situações de "afetividade" são sempre assim tão marcadas como a que Fernald encontrou em seus sujeitos interagindo com os respectivos adultos, nem as modulações de altura, consideradas foneticamente recortadas e universais por Fernald, dos sujeitos brasileiros analisados seguem o mesmo padrão de contorno entonacional mostrado pela autora americana. Cavalcante chega igualmente à conclusão de que traços culturais e discursivos da interação adulto-criança contribuem para marcar lingüisticamente as interações entre mãe e bebê. A meio caminho entre propostas cognitivistas construtivistas (desenvolvimento da inteligência — e da linguagem — pela interação entre organismo e ambiente) e interacionistas sociais, Bruner (1975) pode nos fornecer um exemplo sobre como a aquisição do sistema de transitividade pode decorrer da construção e internalização de estruturas lingüísticas a partir da interação do bebê com o outro e com o mundo físico. A partir dos 6 meses de idade, a criança e o adulto engajam-se cm jogos (empilhar blocos, esconder o rosto atrás de um obstáculo e depois mostrar a face etc.) que patenteiam instâncias de atenção partilhada e ação conjunta. Tais esquemas interacionais formam o espaço da partilha com o outro, no qual a criança vai desenvolver determinadas funções, quer lingüísticas, quer comunicativas, primeiro em nível gestual e depois em nível verbal. Assim, pode-se traçar uma trajetória entre a ação conjunta adulto-bebê e o estabelecimento de papéis no discurso e no diálogo (pessoas gramaticais) mais ou menos da seguinte maneira: nos jogos referidos, o adulto instaura a brincadeira enquanto a criança observa (esconder o rosto, por exemplo). Assim, o adulto toma o papel do "agente" ou tomador do turno ("eu"), ao passo que a criança funciona como "paciente" e interlocutor ("tu"). Numa etapa posterior, a criança vai reverter os papéis: tomar a iniciativa de começar o jogo ou a etapa do jogo, isto é, tomar o papel do "falante", enquanto o adulto será o espectador, o "interlocutor". Esses esquemas gestuais, de início, serão lingüísticos quando a criança tiver meios expressivos para exprimir as funções. Essas funções primárias tem. 10

além disso, um papel na determinação das funções gramaticais de agente/ação/paciente, responsáveis, segundo modelos funcionalistas de gramática, pelos sistemas de transitividade nas línguas. Nos jogos descritos, a criança aprende uma espécie de embrião, na ação e interação, em fases pré-verbais, do que mais tarde emergirá como marcação lingüística. É primeiro "paciente" ou "objeto da ação" praticada pelo adulto, que é, neste momento, "agente" da ação instaurada por ele próprio. Numa etapa posterior, a estrutura se reverte, com a partilha de papéis: a criança aprende a ser "agente" da ação conjunta, isto é, da qual participam ela e o adulto interlocutor básico. A atenção partilhada, por sua vez, desenvolverá conceitos como tópico/ comentário, uma das maneiras de expressar sujeito/predicado. O adulto, numa fase pré-verbal, focaliza um ponto de atenção qualquer, espera que a criança acompanhe seu foco de atenção e comenta sobre ele. Isto é, a criança participa de esquemas em que se focaliza ou topicaliza para depois se comentar ou predicar. Já noções de ação completa ou realizada vs. ação não-completada que serão responsáveis pelas marcações de tempo e de aspecto nas línguas, seriam igualmente instauradas em esquemas interativos. Os pontos salientes de um evento são sempre marcados lingüisticamente (pelo adulto) ou vocal ou gestualmente (tanto pelo adulto como pela criança). O que é gesto ou balbucio da criança numa situação de troca comunicativa será verbal em etapas posteriores, por meio, neste caso de flexão verbal de tempo e uso de partículas temporais ou aspectuais. Um exemplo corriqueiro é "cai/caiu", que, tanto na fala do adulto, quanto na da criança observando ações ou eventos ou realizando ações, indica ação incompleta (ou em progresso) ação completada ou presente vs. futuro. As expressões "cai'"caiu", quando instauradas, são "coladas" à ação tanto realizada pela criança quanto pelo interlocutor e posteriormente se integram ao sistema temporal e aspectual do verbo na língua-alvo. Uma das vertentes do interacionísmo social é a que se convencionou chamar de "sociointeracionismo". Propostas sociointeracionistas afirmam que a linguagem é atividade constitutiva do conhecimento do mundo pela criança. A linguagem é o espaço em que a criança se constrói como sujeito; o conhecimento do mundo e do outro é, na linguagem, segmentado e incorporado. Linguagem e conhecimento do mundo estão intimamente relacionados e os dois passam pela mediação do outro, do interlocutor. Os objetos do mundo físico, os papéis no diálogo e as próprias categorias lingüísticas não existem a priori (isto é, não estão a priori segmentados, conhecidos ou interpretados), mas se instauram através da interação dialógica entre a criança e seu interlocutor básico. Esta interação vai proporcionar, ao mesmo tempo, a criação da criança e dó próprio interlocutor como sujeitos do diálogo, a segmentação da ação e dos objetos do mundo físico sobre os quais a criança vai operar, e a própria construção da linguagem, que por si é um objeto sobre o qual a criança também vai operar. Essa proposta não se centraliza sobre o produto lingüístico (o que a criança, de um lado, e a mãe, de outro e separadamente, dizem), mas no processo comum aos dois interlocutores. Segundo Lemos (1982), o objeto de estudo que se toma é a linguagem enquanto atividade do sujeito. Neste caso, enfrenta-se a indeterminação, a mudança e a heterogeneidade deste objeto. Os processos dialógicos são revalorizados. Há três processos básicos no diálogo: especularidade (identificação entre os sinais dos dois interlocutores), complementaridade (incorporação de parte ou de todo o enunciado,

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ou gesto, do interlocutor e complementação criativa) e reversibilidade de papéis (assumir o papel do outro e instituir o outro como interlocutor). 2.3.1. Facetas atuais do sociointeracionismo

Dando continuidade às suas indagações sobre como, através da interação com o adulto, a criança chegaria à língua. Lemos (1992, 1995, 1998, 1999) deu uma direção alternativa ao sociointeracionismo presente nos seus escritos até os anos 1980. preferindo, atualmente, chamar sua postura simplesmente de "interacionista". Inspirada em leituras de Saussure e do psicanalista Lacan. estuda as relações do sujeito com a língua e questiona as noções de desenvolvimento e conhecimento lingüístico que têm sido a base das teorias psicolingüísticas, psicológicas e lingüísticas. Posicionase contra a noção de conhecimento própria do "sujeito psicológico", que está presente nas noções de desenvolvimento, e de sujeito onisciente, e contra a noção de representação mental, que é a fonte e o alvo da aquisição do conhecimento lingüístico. Assim, recusa-se a ver a aquisição da linguagem como a aquisição ou construção de conhecimento da língua, concepção consagrada pela expressão "desenvolvimento lingüístico". A autora não mais assume que. num determinado momento, o conhecimento da língua permite ã criança passai de interpretado a intérprete, da incorporação da tala do outro à assunção da própria fala, tornando-se, assim, um falante em pleno controle de sua atividade lingüística. A presença de fragmentos da fala do outro na fala da criança, além de autocorreções e hesitações, não autoriza, segundo a autora, que se fale em "conhecimento pleno da língua" nem de um estágio estável final. Passa, então, de uma visão diacrônica para uma visão estrutural. Em vez de "construção" e "desenvolvimento", entende que a criança é colocada numa estrutura em que comparece o outro, como instância representativa da língua, a própria língua em seu funcionamento e a criança como sujeito falante. Essa estrutura é a mesma em que se move o adulto, daí que não há propriamente "desenvolvimento", nem "construção". O que identifica as mudanças no processo de aquisição são as diferentes posições da criança nesta estrutura, ou melhor, as diferentes relações do sujeito com a língua, em que o pólo dominante da estrutura pode ser o outro, a língua ou o próprio sujeito. O leitor é agora convidado a examinar uma ilustração da polêmica inato vs. adquirido ou natureza vs. ambiente: a questão popular e recorrente do período crítico de aquisição da língua materna e de segunda língua (L2). Vamos a ela.

3. A QUESTÃO DO "PERÍODO CRÍTICO" Todos sabemos como é difícil (tentar) dominar uma segunda língua em idade adulta, ainda mais em situação formal, escolar. Por mais brilhante e esforçado que seja o aprendiz, mesmo que a proficiência final seja bastante satisfatória, tanto em termos gramaticais quanto lexicais, e suficiente para atingir plenos objetivos de comunicação numa segunda língua, sempre ficam, na fala do aprendiz, certas construções gramaticais mal-ajambradas, erros fossilizados, ou, mais certamente, um sotaque "estranho" aos ouvidos dos falantes nativos. Segundo Pinker (1994), o sucesso total em aprender uma segunda língua em idade adulta, ainda mais em situação de sala de aula, existe, mas é raro e depende de "puro talento". Lenneberg (1967) buscou bases biológicas para argumentar em favor do 12

"período crítico" para a aquisição da linguagem. Eis suas palavras: Entre dois e três anos de idade, a linguagem emerge através da interação entre maturação e aprendizado pré-programado. Entre os três anos de idade e a adolescência, a possibilidade de aquisição primária da linguagem continua a ser boa; o indivíduo parece ser mais sensível a estímulos durante este período e preservar uma certa flexibilidade inata para a organização de funções cerebrais para levar a cabo a complexa integração de subprocessos necessários à adequada elaboração da fala e da linguagem. Depois da puberdade, a capacidade de auto-organização e ajuste às demandas psicológicas do comportamento verbal declinam rapidamente. O cérebro comporta-se como se tivesse se fixado daquela maneira e as habilidades primárias e básicas não adquiridas até então geralmente permanecem deficientes até o fim da vida. Pinker (1994) afirma que a aquisição de uma linguagem normal é garantida até a idade de 6 anos, é comprometida entre 6 até pouco depois da puberdade, e é rara daí para a frente. Este autor chega a especular que o período crítico se explica por mudanças maturacionais no cérebro, tais como o declínio da taxa de metabolismo e do número de neurônios durante a idade escolar e da diminuição do metabolismo e do número de sinapses cerebrais na adolescência. No entanto, nem mesmo essas justificativas biológicas têm sido explicações finais e convincentes para o fenômeno do "período crítico" de aquisição. Aitchinson (1989) aponta para a insuficiência explicativa dos argumentos arrolados em favor desta hipótese. Pelo menos quatro deles têm sido citados: a) casos de estudos de indivíduos que foram isolados de qualquer convívio social ou troca lingüística e adquiriram a linguagem tardiamente; b) o desenvolvimento da fala de crianças com síndrome de Down; c) a suposta sincronia do período crítico com a lateralização hemisférica; d) dificuldades de aquisição de segunda língua depois da adolescência. Vejamos mais detalhadamente cada um deles. Em relação às crianças isoladas lingüística e socialmente, os casos mais conhecidos, reportados neste século, são de Isabelle, Genie e Chelsea. Isabelle era a filha ilegítima de uma mulher surda e cérebro-lesada com a qual passava a maior parte do tempo, ambas enclausuradas num quarto escuro, na casa de seu avô, no interior do Estado de Ohio. Quando mãe e filha escaparam da prisão domiciliar nos anos 1930, Isabelle tinha 6 anos e meio e não falava; apenas emitia sons guturais. Mas, uma vez resgatada para o convívio social, seu progresso na aquisição da linguagem foi fantástico: em dois anos e meio, sua linguagem mal se distinguia da de crianças da mesma idade que tiveram condições normais de desenvolvimento. Ela dizia, por exemplo: "What did Miss Mason say when you told her I cleaned my classroom?" (O que a senhorita Mason disse quando você lhe contou que eu limpei minha sala de aula?) Genie, entretanto, não teve a mesma sorte. Descoberta em 1970, com quase 14 anos, tinha vivido toda sua vida em condições sub-humanas. Confinada a um cubículo desde a idade de 20 meses e agredida fisicamente pelo pai quando emitisse qualquer som, não falava nada. Apesar de, depois de resgatada, ter aprendido a falar de modo rudimentar, progredia mais lentamente do que uma criança normal. Eis um exemplo 13

do que ela conseguia dizer, depois de anos de aprendizado: "Mike paint" (Mike pintar); "Applesauce buy store" (Molho de maçã comprar loja); "Neal come happy. Neal not come sad" (Neal vir contente. Neal não vir triste). Genie demonstrava, porém, grande habilidade em memorizar vocabulário. No entanto, memorizar listas de itens lexicais não é evidência de saber falar uma língua. O caso mais recente foi o de Chelsea, deficiente auditiva, que fora incorretamente diagnosticada como mentalmente retardada e por isso criada numa cidade remota do norte da Califórnia. Aos 31 anos de idade, ela foi encaminhada para um neurologista, cuja primeira providência foi instalar um aparelho de audição, que fez melhorar muito sua capacidade auditiva. Foi só então que Chelsea começou a aprender sua língua materna, sob tratamento intensivo com uma equipe especializada. Ela tem um vocabulário razoável, lê, escreve, comunica-se e trabalha. Sua linguagem, porém, ficou "agramatical". Eis alguns exemplos: "The small a the hat" (O pequeno um o chapéu); "Banana lhe eat" (Banana a come). Aitchinson (1989) ressalta que tais casos, além de isolados, devem ser tomados com cautela quanto a representarem evidência cabal em prol da existência de um período crítico de aquisição da linguagem. E possível, lembra o autor, que a extrema privação física, comunicativa e emocional de Genie tenha propiciado um certo retardo mental: seu hemisfério esquerdo é levemente atrofiado. Genie c Chelsea têm. portanto, problemas não-língüísticos que podem explicar, pelo menos parcialmente, sua linguagem rudimentar. Em relação ao segundo argumento, é corrente na literatura a afirmação de que as crianças portadoras de síndrome de Down e de Williams seguem as mesmas trilhas na aquisição e desenvolvimento da linguagem que crianças não-portadoras desta deficiência, mas muito mais lentamente. O consenso, até pouco tempo atrás, era de que estas pessoas nunca conseguem alcançar a criança normal porque sua capacidade aquisicional diminui bastante depois da puberdade. Mais recentemente, esta explicação tem sido contestada pelo fato de que há grandes diferenças individuais no desenvolvimento lingüístico de portadores da síndrome de Down (Camargo & Scarpa, 1996), de tal maneira que há desde crianças que param num estágio estável de aquisição bem antes da puberdade até jovens que continuam seu processo de aprendizagem tanto de diferentes modalidades discursivas, como o desenvolvimento de processos bem criativos e autônomos de escrita. Já em relação ao terceiro ponto, até pouco tempo atrás, achava-se que o processo de lateralização cerebral ocorria aproximadamente dos 2 aos 14 anos de idade — período este estipulado como coincidente com o "período crítico" de aquisição da linguagem. Pesquisas neurolingüísticas mais recentes, porém, mostram, de um lado, que a lateralização começa na criança já a partir de alguns meses de vida. Assim, como não há evidências, em relação a este fenômeno, de um súbito começo do período crítico por volta dos dois anos, também não há evidências cabais de um súbito cessamento deste mesmo fenômeno depois da adolescência. Por outro lado. há cada vez mais evidências que contestam a especialização hemisférica compartimentada da linguagem. Por último, um argumento contencioso tem sido a contraposição entre o bilingüismo infantil, o bilingüismo sucessivo na infância ou adolescência e a aquisição de segunda língua na idade adulta. De acordo com interpretações inatistas, o que pode explicar a dificuldade do último em contraposição à facilidade e naturalidade dos dois 14

primeiros seria o acesso — ou a falta dele — á Gramática Universal por parte do aprendiz. Essa discussão tem servido de laboratório para teorias de aquisição. Apesar de haver discordâncias mesmo entre os adeptos da teoria gerativa, uma interpretação mais ou menos comum é que. nos dois primeiros casos, a GU está disponível e dela desenvolvem-se duas ou mais línguas. Já a disponibilidade à Gramática Universal não é tão óbvia em casos de aquisição de segunda língua por adultos. Segundo Meisel (1993), a aquisição de segunda língua depois da adolescência não é mais função de Gramática Universal, mas é um processo cognitivo, de aprendizagem de habilidades. Daí se explicam as fossilizações e julgamentos limitados de gramaticalidade. No entanto, explicações não-gerativistas desafiam esta explicação. A dificuldade de aquisição de segunda língua depois da adolescência tem sido revista e relativizada. Argumentos interacionistas são levantados com relação às diferenças entre a aquisição da língua materna ou estrangeira na infância e depois da adolescência. Contemplam diferentes fatores interativos e socioculturais de aquisição nas duas situações, o que explicaria a extrema diferença individual tanto no processo de aquisição de L2 em idade adulta, quanto no alvo a ser atingido: o grau de domínio do alvo pretendido é muito variado. Fatores interativos também contemplam as modificações e ajustes da fala simplificada, dirigida ao falante não-nativo da língua. Este tipo de fala (foreigner talk) é igualmente muito variado e de modo algum semelhante aos ajustes da fala dirigida à criança. Mais recentemente, as diferentes relações do sujeito com a língua na aquisição da língua materna e na aquisição de segunda língua ou língua estrangeira também têm sido invocadas como explicação para os casos em questão.

4. ESTÁGIOS DE DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM Antes de qualquer coisa, c preciso que se diga que o conceito de estágio é dinâmico e não estático, como aponta Perroni (1994). A autora afirma que a sucessão de estágios não se dá linearmente, e, para descrevê-la, a "metáfora da espiral (é) mais apropriada (...) que a dos degraus de uma longa escada. É um conceito intrinsecamente ligado ao de desenvolvimento; assim, os estágios "não são pedaços justapostos uns após os outros, mas cada um se enraiza no outro, precedente, e se prolonga no seguinte". Dito isso, o que segue é uma breve exposição sobre os estágios de desenvolvimento lingüístico por que passa a criança pré-escolar. Segundo Bates & Goodman (1997), a trajetória do desenvolvimento da linguagem parece ser, com algumas especificidades. universal e contínua. As crianças começam com balbucio, primeiro com vogais (cerca de 3 a 4 meses, em média), depois com combinações de vogais e consoantes de complexidade crescente (geralmente entre 6 e 12 meses). As primeiras palavras emergem entre 10 e 12 meses, em média, embora a compreensão de palavras possa começar algumas semanas antes. Depois disso, as crianças passam várias semanas ou meses produzindo enunciados de uma palavra. No começo, a taxa de crescimento de seu vocabulário é reduzida, mas há um súbito acréscimo nela mais ou menos entre 16 e 20 meses. As primeiras combinações de palavras geralmente aparecem entre 18 e 20 meses e. no começo, tendem a ser telegráficas. Lá pelos 24 a 30 meses, há outra espécie de explosão vocabular e aos 3 ou 3 anos e meio, a maioria das crianças normais dominou as estruturas sintáticas e 15

morfológicas de suas línguas maternas. O quadro anterior seria perfeito se não fosse tão polêmico e tão cheio de contra-exemplos, como as próprias autoras alertam. Para efeito deste texto, porém, vou limitar-me a apontar alguns aspectos do desenvolvimento da linguagem na criança, sobretudo baseada num prisma sociointeracionista, que pode acrescentar pelo menos certas nuances no quadro delineado. Desde que nasce, a criança já é inserida num mundo simbólico, em que a fala do outro a interpreta e lhe imprime significado. Por outro lado, segundo alguns trabalhos, com alguns dias de vida, a criança tem uma reação positiva aos sons da fala, que lhe são confortadores e gratificantes. A partir de algumas semanas de vida, a criança já consegue discriminar a fala de outros sons, rítmicos ou não. Com 3, 4 meses de idade, os bebês começam a balbuciar seqüências de sons que se aproximam da fala humana. A freqüência do balbucio aumenta e este começa a ser cada vez mais padronizado até cerca de 10 meses. O ritmo, a entonação, a intensidade, a duração da fala, que no início são assistemáticos, começam a ser recorrentes e estruturados. As sílabas começam a se estruturar (discriminação entre C e V) e se repetem (reduplicação). Aparentemente, os sons que a criança balbucia no começo são universais: os sons do balbucio inicial não são específicos de sua língua materna. As crianças surdas conseguem balbuciar nesta fase, embora, depois disso, não acompanhem o desenvolvimento normal da criança ouvinte. Conforme o balbucio se padroniza, antes do aparecimento das primeiras palavras, a seqüência e o acervo de sons passam a se assemelhar mais às características fonéticas da língua materna. Os elementos prosódicos, como ritmo e entonação, são bastante salientes tanto na fala da criança quanto na percepção que a criança tem da fala do adulto. São recursos expressivos muito importantes, na falta de recursos léxico-gramaticais do adulto. Vários trabalhos mostram o ajuste mútuo entre adulto e criança nesta fase e o papel fundamental que esses elementos prosódicos aí representam. Alguns trabalhos apontam para os processos dialógicos que se instauram já nesta fase. A contribuição da criança é gestual e vocal; a do adulto, gestual e lingüística, através da ação e atenção partilhadas. Os estudiosos adeptos desta visão afirmam que o adulto interpreta primeiro os gestos da criança, depois suas manifestações vocais, inclusive imprimindo-lhes intenção. Dessa maneira, a fala da criança se enquadra numa interpretação dada pela fala do adulto através de seus gestos e sons vocais e o próprio adulto se vê "interpretado" pela criança. Um rápido lançar de olhos aos dados de uma interação verbal entre adulto e criança nesta fase mostra os processos de especularidade e complementaridade que perpassam as emissões de ambos os interlocutores. Exemplo: (1) A criança estende a mão para um brinquedo e vocaliza algo; a mãe imediatamente interpreta o gesto e a voz da criança e responde com algo como: O auau! (nomeando)... K o au-au que você quer? (enquadrando o turno da criança em algum significado ou numa cadeia de signos lingüísticos). Isto é, a mãe parafraseia a suposta intenção da criança, por um processo de especularidade e complementa a paráfrase, expandindo seu enunciado. No fim do 16

período do balbucio, começam a aparecer na fala da criança as primeiras palavras reconhecíveis como tais pelo adulto. Para algumas crianças, o balbucio cessa quando as primeiras palavras aparecem, mas outras crianças continuam a produzir seqüências balbuciadas junto com as palavras. A produção das primeiras palavras e frases (incorporadas como um bloco do discurso do interlocutor básico) mostra indeterminação semiótica (o mesmo significado pode ser veiculado por um número bastante grande e variado de sinais), fonética (a variação fonética do sinal c grande) c categoria! (o mesmo significado pode ser expresso por uma boa variedade do que, na língua adulta, pertenceria a categorias diversas). O que também se observa, na transição de enunciados de uma ou mais palavras, é a não-segmentabilidade de seqüências de sons em palavras. Muitas vezes, frases inteiras são incorporadas da linguagem adulta, sem que haja nelas evidência de que a criança analisa o sinal em unidades discretas. í) que acontece é que a criança incorpora, junto com a seqüência fônica, o contexto específico que deu origem àquele enunciado, como se vê no exemplo a seguir, selecionado da fala de uma criança de 1; 7: (2) "Tatente" ("tá quente") para denotar café. Assim, as formas maduras aparecem, num primeiro momento, em contexto de especularidade imediata de algum item da fala adulta. Num momento posterior, ou a forma desaparece paia reaparecer adaptada ao sistema fonológico da criança muito tempo depois, ou sua forma "menos madura", variável, percorrerá vários meses de mudança até se tornar estável. A forma "desviante" indica reorganizações que a criança empreende na sua trajetória lingüística. Com as primeiras palavras aparece também a flexão ou a aparente flexão. Digo aparente porque em muitos casos não há ainda evidência de que realmente as flexões representam morfemas categoriais ou de classes gramaticais como na linguagem adulta. Exemplo: (3) O possível sufixo -eu, na fala de uma criança, por volta de 1 ;7 a 1 ;8 "sendeu" correspondente ao adulto "acendeu", não indica passado, nem pessoa. Pode denotar: (i) anunciar aos presentes que acabou de acender ou apagar a luz ou tocar a campainha de um telefone de brinquedo ou que está prestes a realizar uma dessas ações; portanto, neste caso, denota tanto uma ação completada quanto a intenção de realizar uma ação; (ii) pedir ao adulto que faça uma dessas ações?(iii) nomear o feixe de luz que entra pela janela. O que esse exemplo mostra é que não se pode considerar a desinência - eu como um morfema de tempo e pessoa. Mostra também que o que acontece com o significado nesta fase de aquisição é um fenômeno que na literatura é chamado de superextensão ou supergeneralização, segundo o qual a faixa semântica de uma palavra é alargada a limites muito mais amplos que na linguagem do adulto (é conhecido o exemplo, em português, da palavra "au-au", cujo sentido abarca pelo menos todos os animais de quatro patas, o bichinho de pelúcia e a figura de animais). Uma possível explicação para a superextensão semântica é aquela não restrita às propriedades componenciais do significado da palavra. A criança incorpora, via especularidade, todo ou parte do enunciado do interlocutor, emitido naquela situação específica. Dá-se, então, um processo chamado de recontextualização, isto é, a 17

extensão do item em questão para outras interações dialógicas, com a recorrência ou a associação a outros discursos. Em muitos casos, não há clara evidência, no começo, de segmentação ou análise gramatical propriamente dita. A análise (ou reanálise) se dá num estágio posterior, com a reorganização do sistema da criança, dentro de outros diálogos. Coincidentemente, as primeiras sentenças espontâneas da criança são justaposições de enunciados monovocabulares (de "uma palavra") que ela produz à maneira de fala telegráfica. Por exemplo, veja a seqüência de enunciados da fala de uma criança de 1:10; (4) Babadoi (gravador) Chão Põe badadoi chão (põe o gravador no chão). Os erros ou desvios da norma muitas vezes indicam, segundo alguns estudiosos, que um processo de análise e segmentação está se instaurando, pois revelam as hipóteses que a criança faz sobre o objeto lingüístico. Por exemplo, numa fase posterior à produção aparentemente "correta" do sufixo verbal de passado, a mesma criança, com 1;11, produz alguns itens que indicam a adição do sufixo a raízes nãoverbais. (5) Vai lá (observando o pica-pau de brinquedo descendo a haste, bicando-a). Vailô (observando a chegada do pica-pau na base da haste). Guarda (da cama) (observando a mãe baixando a guarda da cama). Guardo (emitido após a completude da ação por parte da mãe). A colocação do morfema fora de seu lugar usual indica que um processo de análise está se efetuando e que a criança reorganiza seu sistema para passar para outros níveis de análise e aquisição. A partir de 2 a 3 anos, a criança já começa a contar histórias. A produção do texto narrativo como tal exige descentração do contexto original da história, capacidade de compreender e expressar sucessão e concatenação de eventos (que implica, entre outras coisas, dominar lingüística e cognitivamente a categoria tempo), relação causai entre eventos e uma provável gramática do texto. No começo, a criança ainda não domina estas categorias — sua aquisição, de fato, é tardia. O que se dá é a construção conjunta de textos, num jogo instaurado pelo adulto e logo incorporado pela criança, que preenche os arcabouços ou "esquemas narrativos" subjacentes às histórias ou relatos narrados. A trajetória para a aquisição do discurso narrativo é longa: aparentemente, não é antes dos 5 anos que a criança se torna uma narradora proficiente. O quadro de desenvolvimento lingüístico aqui traçado obedece a uma determinada visão do problema, chamado, genericamente, de interacionista. Obviamente, o quadro seria outro se a interpretação seguisse outro programa científico ou outro enfoque teórico.

5. ALGUMAS CONCLUSÕES O que você leu nas páginas anteriores é apenas a eleição de alguns temas e o esboço de algumas posturas teóricas colocadas no campo da investigação sobre a aquisição da linguagem. Tal seleção não esgota absolutamente a eleição de temas, 18

metodologias e correntes de pensamentos que acompanham o recorte dos fenômenos que envolvem a área. É preciso, porém, deixar claro que as polêmicas que envolvem as grandes questões da área estão ainda em aberto. Se, por um lado, é pouco afirmar que a aquisição da linguagem se restringe à internalização de regras fonológicas, morfológicas, sintáticas, semânticas e pragmáticas da língua materna do aprendiz, por outro lado é ainda pouco clara a natureza da passagem entre estruturas interativas pré-lingüísticas e a gramática adquirida, a natureza do conhecimento lingüístico vinculado ou não ao conhecimento do mundo, a dificuldade metodológica causada pela falta de transparência da fala da criança (e da própria fala do interlocutor), entre tantos outros mistérios. Ainda mais, apesar de recentes avanços no estudo do cérebro, pouco se sabe hoje sobre a relação entre conexões neurais e o uso/conhecimento da linguagem ou sobre a relação entre mente e cérebro e seu papel nessa aquisição. Em outras palavras, o desafio ainda continua a ser a relação entre o inato e o adquirido, entre o biológico e o sócio-histórico, entre o lingüístico e o extralingüístico, entre o sujeito aprendiz e o objeto a ser aprendido. Felizmente, o campo continua aberto a uma gama bem variada de investigações. Uma coisa é certa, porém: quando vai para a escola, a criança já percorreu um longo caminho elaborando sua linguagem, inserindo-se na língua de sua comunidade. Lingüisticamente, a criança não é tabula rasa. Ela é perfeitamente proficiente em sua língua materna e continua a aprender outras formas pertencentes a outras modalidades da fala/linguagem, dentro e fora da escola. Isto é, a operar com objetos lingüísticos. Assim, a escola vai lhe proporcionar o acesso a outras "gramáticas" pertencentes a modalidades escritas.

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