Antonio Candido A Vida Em Resumo 1.pdf

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A vida em resumo

Antonio Candido

Por defniição, o soneto deveria sempre sugerir um mundo fechado, cerceado pelos quatorze versos sem saída e o bloqueio da chave de ouro. Mas o fato é que alguns parecem menos auto-sufcientes, prolongando-se pelo eco dos seus problemas ou da sua sonoridade. O soneto camoniano, por exemplo, apesar do escorio inevitável, é mais aberto que o parnasiano: talvez porque nele predomine o caráter dialético, e a forma expositiva dê lugar a certos desenvolvimentos lógicos sob os quais sentimos um pensamento que se desdobra, uma sensibilidade que nção se aplaca na chave de ouro, multiplicando-se em ondas sucessivas no universo da natureza e do espírito. Seria pitoresco estabelecer alguns esquemas relativamente arbitrários, embora úteis, dizendo que na língua portuguesa o soneto passou por três momentos ideais e típicos: o da dialética mais ou menos pura; o da dialética mais pesadamente lastreada de realidade; o da realidade representada com predomínio sobre a dialética. Ou seja, respectivamente: o soneto aberto, o soneto entreaberto (ou entrefechado), o soneto fechado, - cujos representantes mais típicos poderiam ser (excluído qualquer intuito de comparaição valorativa) Camões, Bocáge e Francisca Júlia. No caso, o Parnasianismo representou uma funição importante, e já se pôde dizer, em relaição à literatura francesa, que o seu feito mais original, único realmente típico, é o soneto de Heredia, - de quem foi seguidora estrita a nossa poetisa. No Parnasianismo brasileiro o soneto adquiriu um caráter propriamente plástico, que ressaltou a sua capacidade de incluir, ou abranger. Daí uma estrutura que se poderia chamar de quadro, - estrutura de obra plástica fechando em si mesma um universo completo. O soneto pictórico dos parnasianos (como os de Heredia) chega de fato às consequências últimas e de certo modo naturais, ao encerrar hermeticamente um pedaio do mundo ou da vida na miniatura dos quatorze versos, como certos pintores encerravam no refexo polido dum pequeno espelho, ou num caixilho de janela, trechos autônomos do exterior. Em consequência impôs-se uma precisção estrita, um rigor em cada palavra, já que todas desempenham funição indispensável de sonoridade ou sentido. Vejam-se, a propósito, os escrúpulos de Alberto Faria, em Acendalhas, sobre a traduição dessa jóia de poesia plástica e descritiva dos Troféus, SUR LE PONTVlEUX. Olavo Bilac talvez seja o mais variado dos parnasianos no campo do soneto, recapitulando as suas possibilidades desde a marcha dialética até o cromo, desde a estrutura aberta até os pequenos esquemas cerrados. Mas de modo geral há nele inclinaição pelo cromo e o esquema, e embora segundo Péricles Eugênio da Silva Ramos a sua poética seja fortemente bocagiana, há nela as características básicas do Parnasianismo. Posto - em termos da classifcaição sugerida acima - entre o soneto entreaberto de Bocage e o soneto fechado de Francisca Júlia, na maioria das vezes o seu tem uma ressonância e um alcance humano reduzidos pela exiguidade do

gênero. Em alguns casos a beleza algo estrita, embora rutilante, é devida à brevidade lapidar com que sabe reunir uma grande soma de elementos. Veja-se SAHARA VITAE, nas Sarças de Fogo, diretamente inspirado, aliás, em La Caravane, do seu mestre Théophile Gautier: Lá vção eles, lá vção! O céu se arqueia Como um teto de bronze infndo e quente, E o sol fuzila e, fuzilando, ardente Criva de fechas de aio o mar de areia. Lá vção, com os olhos onde a sede ateia Um fogo estranho, procurando em frente Esse oásis de amor que, claramente, Além, belo e falaz, se delineia. Mas o simum da morte sopra: a tromba Convulsa envolve-os, prostra-os; e aplacada Sobre si mesma roda e exausta tomba... E o sol de novo no ígneo céu fuzila... E sobre a geraição exterminada A areia dorme, plácida e tranquila. A alegoria é clara, e o seu interesse do ponto de vista estético reside no fato de o tema central (a vida como luta do homem contra a adversidade de um mundo insensível) se desenvolver em três etapas descritivas, cheias de elementos alusivos. Os motivos, com efeito, sção uma caminhada, nos dois quartetos; uma hecatombe, no primeiro terceto; um panorama fnal, no segundo. Isto vivifca a alegoria, apresentando-a como aição, drama coletivo que se desdobra, rápida mas fortemente, nos versos breves. O efeito é reforiado pelo caráter antitético, pois o motivo da caminhada propõe uma realidade humana logo contrariada pela morte, resultando na desolaição de um mundo vazio, à espera de novas jornadas. Esta expectativa funciona como ressonância, que prolonga a foria de convicição do tema e, deste modo, apesar da estrutura completa em si mesma, deixa entrever, sob o epílogo destruidor, um retorno infndável de esforios estraialhados pelas mesmas catástrofes. Mas nção sção estes elementos de ordem geral os responsáveis diretos pelo impacto em nossa sensibilidade; eles sção apenas enquadramentos dos recursos particulares de que o poeta se vale para tal fm: vocabulário, imagens, versifcaição, que criam o universo poético dentro do qual a idéia parece essencial, ganhando realidade e efcácia. As imagens, pelas quais ela se exprime de modo imediato, sção aqui muito coerentes, formando um sistema de agressiva dureza. O céu, por exemplo, comparado a um teto de bronze, cuja ferocidade metálica se completa em nossa mente pelo sentimento de implacabilidade moral. Ou os raios de sol, equiparados a fechas de aio, materializando no seu caráter dilacerante a fereza das coisas e, por extensção, de todo o mundo. Note-se que estas e outras imagens sção simples e mesmo

banais, como o deserto-mar de areia, a ilusção-miragem, a morte-borrasca. No entanto, em conjunto, exercem efeito, devido à simplicidade forte do vocabulário que as apoia e se articula num sistema contundente e desolador. De fato, há neste soneto três tipos de substantivos virtuais, latentes por assim dizer nas locuiões, dotados de uma foria adjetiva de caracterizaição que os torna verdadeiros vocábulos-chave: metal, fogo e vento. Dada a sua consistência decrescente, dado o impacto maior ou menor com que se integram na nossa representaição, eles propiciam uma espécie de mobilidade no jogo dos tormentos, sendo os núcleos expressivos das três estrofes que os descrevem e se ordenam em torno dos sintagmas aludidos: "teto de bronze" e "fechas de aio"; "fogo estranho"; "simum da morte" e "tromba convulsa". Deste modo, forma-se no nosso espírito uma série de representaiões em cadeia, originando a sensaição de um mundo fechado, inelutável. Tanto mais quanto os verbos sção todos, ou quase, de tensção e violência: arquear, fuzilar, crivar, atear, soprar, envolver, prostrar, tombar, exterminar. Além disso, há contrastes entremeados com sutileza para reforiar o tom geral, como a ilusção da miragem, ou a doiura enganadora do deserto, mediante discretos efeitos aliterativos de consoantes líquidas: (...) claramente Além, belo e falaz, se delineia; (...) A areia dorme, plácida e tranquila, - (...) que aliás colidem com outros recursos do mesmo tipo, em sentido inverso de dureza arrasadora, zunindo nas sibilantes, batendo nas oclusivas: Mas o simum da morte sopra: a tromba Convulsa envolve-os, prostra-os; e aplacada Sobre si mesma roda e exausta tomba. Vistos deste modo, os recursos do poeta (e outros que nção foram discriminados) parecem bastante simples e quase elementares. No entanto, - é preciso insistir - a sua foria vem justamente da banalidade dessa atmosfera opressiva e dolorosa, que nção obstante é a da vida. Atmosfera que defne um mundo fechado, caro aos naturalistas, onde a existência é um ciclo sem perspectivas, que a estrutura do soneto permite confgurar. O terceto fnal que, retomando o panorama do início ("o ígneo céu fuzila") e apresilhando com ele o ambiente, acentua a insensibilidade da natureza em face da dor humana, poderia fazer lembrar o famoso verso das Destinées, de Vigny: Plus que tout votre règne et que ses splendeurs vaines, J'aime Ia majesté des souffrances humaines. [Mais do que qualquer coisa que seu reinado e seus esplendores vçãs Eu amo a majestade do sofrimento humano] No entanto, nesta alegoria de Bilac nção vislumbramos qualquer afrmativa da

grandeza do homem pelo sofrimento. Graias à técnica parnasiana do soneto fechado, temos uma atmosfera naturalista de passividade ante o esmagamento do ser pelas coisas, descartada a miragem fugidia da ilusção e reintegrada a natureza devoradora na sua insensibilidade. Filosofa aparentada à de Quincas Borba, mas sem o alívio aparente do humor. Filosofa de naturalista amargo, embora sereno sob a perfeiição formal, que nção consegue, porém, granjear a nossa adesção profunda; e isto ocorre na maioria dos versos desse admirável poeta superfcial. O motivo se encontra em parte no fato de nção ser ele muitas vezes capaz de ver mais que um espetáculo, um pretexto para "dobrar a estrofe cristalina". Nestes casos o seu timbre pessoal consiste em transferir o interesse da pessoa à coisa, já que para ele a pessoa é em grande parte uma coisa a ser manipulada pela arte, - nção obstante o esforio passional de alguns dos seus poemas. As virgens mortas sção estrelas e vção compor um Armamento de devaneio; o quarto, as jóias, as roupas da moia que volta do baile sção apresentados de modo a se tornarem tção importantes, tção vivos, que de repente as graias nuas parecem objetos, como eles; Frinéia, esta chega a ser tratada como peia de anatomia ou carne em retalho. No entanto, este empobrecimento relativo é condiição do poeta construir o seu universo, limitado, mas perfeito, pois a sujeiição à coisa leva muitas vezes a confar na foria própria da imagem que a exprime. A superioridade deste soneto sobre o de Gautier, que lhe serviu com certeza de modelo, provém da ressonância, indicada acima, e da confania na atuaição das palavras que descrevem o ambiente de modo concreto, sem necessidade de recorrer ao elemento discursivo para mostrar o seu caráter alegórico. Já o francês utiliza o elemento descritivo como ponte para a refexção sentenciosa, misturando-se ambas inextricavelmente nos tercetos fnais: L'on avance toujours, et voici que l'on voit Quelque chose de vert que Von se montre au doigt: Cest un bois de cyprès, semé de Manches pierres. Dieu, pour vous réposer, dans le désert du temps, Comme des oásis, a mis les cimetières: Couchez-vous et dormez, voyageurs haletants. [A caravana avania sempre, e logo se defronta Com algo de verde que apontam-se com o dedo: É um bosque de ciprestes semeado de pedras brancas. Deus, para vos dar descanso, no deserto do tempo, Como oásis, colocou ali os cemitérios: Deitem-se e durmam, ó viajantes sem fôlego. ] No soneto XII da Via Láctea, Sonhei que me esperavas, e sonhando Saí, ansioso por te ver - (...)

em que a natureza noturna conversa com o amoroso sem que vejamos a amada, ocorre no plano da euforia e do idílio o mesmo processo de SAHARA VITAE. Em ambos, o que importa é a elaboraição dum ambiente, onde as coisas de certo modo substituem o homem e adquirem, pela sua articulaição, um valor de expressção refexa. Este gosto pelo exterior permite miniaturas admiráveis de lugares-comuns, graias ao encanto específco do soneto, o "pequeno alaúde" do poeta inglês. É quanto basta para estimular o nosso desejo de sentir a vida em resumo, - isto é, a arte. Suplemento Literário d' O Estado de S. Paulo I 1958

CANDIDO, Antonio. O observador literário. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004, p. 21-6.

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