A Minha Paralisia Facial
Por Nuno Godinho em Junho de 2009 "Quando Gregor Samsa despertou uma manhã na sua cama de sonhos inquietos, viu-se metamorfoseado num monstruoso insecto " - Kafka em Metamorfose Não me sinto monstruoso nem sequer estou parecido com um insecto. Ainda assim, o início do conto "Metamorfose" ilustra bem o que senti na manhã do dia 15 de Maio, quando despertei de sonhos quietos e vi que a metade direita da minha cara tinha deixado de responder à minha vontade. Em rigor não vi logo ao acordar porque não doeu. O choque deu-se quando cheguei ao espelho e constatei que uma das portadas do meu frontispício tinha fechado. Seguiu-se o pânico. Que aquela estranha apatia estava já a alastrar para outras partes de mim era quase certo. Antevi-me hortaliça. Voei para as urgências do hospital e depois de uma hora de espera diagnosticaram-me uma paralisia facial, aquilo a que os médicos, quando falam uns com os outros, chamam de Paresia de Bell. Fiquei a saber que o meu cérebro não tinha coalhado e que a paralisia não ia alastrar. Fiquei também a saber que ela não mata, só mói. Os médicos, embora a conheçam de gingeira, dela pouco sabem dizer. Não conhecem a causa - virose? lufada de ar frio? - e tão pouco se entendem quanto à cura - agasalhar? fisioterapia? anti-inflamatório? acupunctura? simplesmente esperar? "Pelo sim pelo não, não apanhe vento frio, nunca se sabe" parece ser consensual. E é afinal tão comum: acontece a uma pessoa em cada 5000. 4999 pessoas podem já acordar descansadas: fui eu. Quando voltei para casa a pé constatei que o olho estava a arder cada vez mais. Que eu não o conseguia fechar já sabia, mas não imaginava o que isso implicava. Não sendo peixe, preciso da pálpebra para manter o olho molhado. Sem piscadelas o olho ardia cada vez mais. Não bastava ter-me transformado numa versão ambulatória de uma daquelas máscaras gregas trágico-cómicas. Nos dias seguintes foi uma luta para manter fechado um olho que não queria fechar. Comparado com isso, ter meio sorriso é canja. No segundo dia acordei um novo Nuno. Agora eu era assim, de cara entorpecida. E pensei: agora eu sou este, sou assim, de cara entorpecida. E fui. E fui indo. E começaram as descobertas. Nos primeiros dias foi o estranhamento. Cada expressão gera uma impressão, e eu tinha a forte consciência de, ao sorrir, exprimir não um sorriso mas um esgar cínico (um sorriso da Nike). Corrompia a intenção da expressão e assim distorcia a impressão. Era como se me visse de fora. E via. Via-me a ver-me. Via-os a ver-me. Revia-me a ver outros com expressões corrompidas e revivia a distorção da impressão que tinha tido desses outros. E assim se passaram os primeiros dias, dias muito confusos em que lá fui tentando reajustar o meu ser ao seu novo estar. Até que encontrei a pala.
Foi aí que tudo mudou. Quando meti pela primeira vez a pala de pirata senti uma força poderosa a reanimar-me. Com a pala encontrei o personagem que estava destinado a viver por mim esta aventura. Quando ele chegou, eu, o Nuno, saí de cena e tornei-me espectador. Por sua vez, ele, o Nunc, tomou conta da situação. Ter legitimidade para usar uma pala de pirata é um privilégio, uma oportunidade rara que, a saber aproveitar, tem imensas vantagens. É um direito que toca a poucos, e tocou-me a mim. Andar na rua de pala no olho é encarnar inúmeras personagens literárias fascinantes. É não ser já só eu, é ser um monte de gente que nunca existiu e que tem agora em mim uma oportunidade para existir. Pelo menos aos meus olhos. Aos meus e principalmente aos olhos das crianças. É através delas que posso dizer: Eu fui pirata. Juro. Munido da pala, atirei-me destemido à emocionante vida social de pirata figurativo. Pautada, claro está, pela fisioterapia, a acupunctura e os incontáveis exercícios de meias-caretas ao espelho. Nunca antes me tinha olhado tanto ao espelho. No início foi frustrante fazer todos aqueles exercícios sem ver um único movimento no lado direito da cara. Mas já fora avisado que durante uns tempos seria assim. Até que um dia algo mexeu. Era a bochecha. Passados uns dias foi a sobrancelha, primeiro para cima, depois para a esquerda. Hoje ainda nem tudo mexe, mas vai mexer. Ainda não rio como o Joker mas já sorrio como a Mona Lisa e já fecho o olho mais que os peixes. Há que ter paciência, ser pertinaz e pedir "espelho meu, quando me dás três quartos de careta?". Os médicos reconfortaram-me com uma previsão rigorosa do tempo que demora a recuperar totalmente: "não sei, entre duas semanas e dois anos ou talvez nunca, não sei, não sei...". Mas nem tudo são vantagens. Os obscuros efeitos nefastos das corrente de ar frio espreitam-me a cada esquina e há que evitá-los porque, mesmo que sem o saberem explicar, é este o único ponto em que tanto eso como exotéricos cantam em uníssono: "Nunc, evita o vento (pelo sim pelo não)". Logo agora que tiraram a tampa invernosa a esta panela que é a Noruega; logo agora que o céu já é azul e o sol já é brilhante; logo agora que o trotamundos que há em mim estava prestes a brotar e ia dar corda às botas de montanha e meter pilhas novas nos patins. A verdejante Noruega chamame e eu respondo que ainda não, que ainda não posso, que ela é ventosa, mas que está quase, que já vou.