A Justica Que Queremos Em Moc

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1

A JUSTIÇA QUE QUEREMOS EM MOÇAMBIQUE

Das fábulas de Fedro, retiro uma expressão para caracterizar o meu constrangimento aqui, hoje, onde me ponho em bicos de pés, atrevidamente, perante entidades para quem não estou habilitado a me dirigir. A fábula falava de um pintor que expôs a sua obra num local público para escutar as críticas de quem passasse. De entre muitos que teceram apreciações à obra, passou um sapateiro que começou, como era seu mister, por criticar a feiúra dos chinelos de uma figura de um dos quadros. O artista apreciou a crítica incisiva do sapateiro. Este porém, entusiasmou-se e passou a tecer comentários depreciativos sobre outros pormenores acima dos chinelos. O autor não gostou e encolerizado, afastou o nosso crítico com esta enfática frase: “Não suba o sapateiro para além

dos chinelos.” É com este

constrangimento que aqui venho falar-vos, tendo bem presente que não devo subir além dos chinelos, entenda-se a metáfora.

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Lei, direito e justiça são conceitos que ao longo da história dos grupos sociais organizados ganharam uma dependência entre si de tal forma que, não raras vezes, esbatem as suas fronteiras, compenetrando-se e influenciando-se reciprocamente. Não quero considerar um presente envenenado o convite que o Meretíssimo Juiz Presidente do Tribunal Judicial da província de Maputo me endereçou, pois a amizade Rosário, Lourenço. A Justiça Que Queremos Em Moçambique. Oração de Sapiência de Abertura do Ano Judicial , Província de Maputo, 01/03/2006.

2 que cultivamos assim não permite. Contudo, os amigos às vezes, por confiança inexplicada,

colocam em situações muito difíceis aqueles a quem

dedicam a sua

amizade. Pediu-me o Juiz Paulino que falasse perante platéia sabida, sobre “ a justiça que queremos em Moçambique”. Estou perante Juízes, Governantes, Magistrados, Agentes da Lei e Ordem e Investigadores Criminais. Com certeza que devem reconhecer que as minhas competências situar-se-ão apenas ao nível de uma reflexão académica eivada de algum sentimento empírico que o exercício da cidadania me concedem. Peço-vos pois indulgência e que o déficit do tempo que ireis dispender a ouvir-me seja debitado ao próprio Juiz Paulino.

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Minhas senhoras e meus senhores, Durante muitos séculos, ao longo da história retiraram dos códigos

da humanidade, os filósofos

ético e metafísico que de entre outros, sedimentam o

comportamento das sociedades, quaisquer que elas sejam, a substância reguladora, anichada nas mentalidades, a que designavam de Justiça, na acepção mais pura de “adequado”, “aceite”, “ajustado”, “consensual” para todos. Era essa substância aferitiva, retirada do conjunto de outras substâncias dos códigos sociais acima mencionados, tais como a moral, a virtude, o pudor e demais que sustentavam as regras de obrigação, interdição e punição, o que permitia que socialmente se garantisse a identificação dos

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3 limites até onde podia ir o comportamento

dos

elementos

da

sociedade,

reconhecidamente como adequado, não merecedor de punição ou censura.

Platão considerava que quem devia governar a cidade ideal eram os sábios, considerando ele sábio, o filósofo. Ora, numa sociedade estratificada como a preconizada por Platão, que ia dos

escravos que não contavam, passando pelos comerciantes,

militares até aos sábios, naturalmente que a justiça

que ele defendia, no plano da

filosofia, só podia recair de uma forma estratificada sobre os vários grupos por ele determinados. Por isso, quando Aristóteles, discípulo de Platão, caracteriza o cidadão justo, diz que é aquele que cumpre as leis e respeita a igualdade que deve existir entre os homens. De que igualdade falará Aristóteles? Sublinho aqui o alcance elástico do conceito igualdade. Certamente que em Aristóteles, a igualdade referida era de acordo com a condição de cada um, isto é, cada igual era igual ao seu igual e todos os iguais eram iguais entre si. Assim e logo à partida, se infere que a lei também era igual para os iguais. Deste modo, a justiça e a igualdade são conceitos que devem ser encarados numa perspectiva de constante movimentação, moldando e adaptando-se às filosofias e ideologias de cada momento histórico e cada conjuntura sócio-política.

Nas sociedades de poder horizontal, por exemplo, em que o Chefe é primus inter pares, isto é, o mais capaz de entre os pares, tal que só é chefe dos caçadores, o melhor caçador, ou seja, é chefe de cada sector de actividades sociais, económicas, culturais e até religiosas, o melhor desse sector e finalmente o chefe dos chefes, aquele que todos os chefes reconhecem como o melhor de entre todos. Aqui, a aplicação da lei é consensual,

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4 pois os iguais de cada sector de actividades e a seguir todos os iguais da cúpula participam na resolução dos pleitos e na interpretação dos valores transgredidos e na mensuração das penas em caso de punição. Por isso mesmo, neste tipo de exercício de poder, que não é nem virtual nem residual e arcaico, as igualdades são visíveis. Contudo, trata-se de organizações sociais de extensão limitada, longe da complexidade dos estados tal como hoje entendemos. Entretanto, quando o poder é vertical, é chefe não aquele que melhor faz, mas sim quem melhor discurso produz sobre como fazer. Do acto passou-se para a palavra. Se voltarmos o olhar, veremos que retomamos o discurso de Platão na sua forma simplificada. Este dizia que o poder devia ser exercido pelos sábios, agora o poder é exercido por aqueles que se organizam e avocam o direito de se considerarem sábios. São eles que constroem impérios, repúblicas ou monarquias, colónias ou protectorados, holdings, parcerias mais ou menos forçadas e para exercer o poder estabelecem regras, que vão desde simples regulamentos e outras disposições mais aprofundadas que se configuram em leis, com as mais diversas categorias. O poder vertical institucionaliza-se por áreas e sectores que concorrem para o mesmo fim, para comando do grupo social com a utilização

garantir a coesão de

de diversos estratagemas, normalmente

chamados de regime. O sábio de Platão confunde-se com o político de hoje, embora reconheçamos diferenças essenciais, pois o sábio de Platão efectivamente era filósofo e o político de hoje, nem sempre é sábio. Quando os estados se estabelecem e se organizam através de vários mecanismos institucionais sistémicos, ficam constrangidos a produzir leis que lhes permitem gerir as pessoas e bens que constituem a razão de ser desse mesmo estado. Ora, o conceito

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5 direito ganha semanticamente substância nestas condições, isto é, na presença de um ordenamento jurídico de que as constituições são o paradigma mais evoluído desse mesmo ordenamento jurídico. As constituições são a lei mãe, donde emanam todas as outras disposições legais que regulam o funcionamento das instituições, organismos e comportamento das pessoas singulares e colectivas. Sabemos da história que as constituições surgiram na Europa com as revoluções burguesas do capitalismo liberal emergente. Nestas condições uma questão se coloca: quando pronunciamos a palavra direito a que é que nos referimos? Recuando algumas linhas nesta dissertação, apresentei o que era o meu ponto de vista sobre a ligação sócio-cultural dos conceitos justiça e igualdade. Chegados aqui, importa fundamentalmente indagar se podemos continuar a naturalizar também uma continuidade conceptual desses dois conceitos face ao sentido filósfico que o termo direito pode possuir. À partida, direito pressupõe ordenamento, seja natural ou institucional, o que o anicha de imediato numa determinada organização, qualquer que seja a sua natureza, pressupondo sempre uma

cadeia de comando para administrá-lo. A justiça, porque

advém de uma sedimentação de códigos sociais, reveste-se de um sentimento sóciocultural consensual. Assim, as leis deveriam inspirar-se no sentimento de justiça que os grupos sociais têm para si de modo a garantir o direito de bem estar e de igualdade dos cidadãos; e nunca em leis constitucionais inspiradas em ordenamento jurídico de culturas e civilizações exógenas. Mas voltando ainda atrás, vimos que já Aristóteles ao levantar a questão da justiça e do respeito pela igualdade em sociedades estratificadas, de imediato se impunha a questão de que nestas condições, em termos de respeito pela igualdade,

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6 havia que considerar que alguns são mais iguais que outros, o que em última consequência, para todas as inferências filósoficas, como por exemplo a de liberdade, acesso à riqueza, à educação, à saúde ou até mesmo à habitação, para falarmos dos direitos mais básicos de que deve beneficiar-se um cidadão, alguns são mais iguais que os demais, no usufruto desses desideratos. Nestas circunstâncias, falar de Justiça torna-se um exercício de difícil abordagem. Em primeiro lugar devo inferir que a Justiça que se espera de que eu fale é aquela que se confunde com a ordem estatal e tribunalística existente no País. A minha tendência porém é a de forçar a aproximação do conceito Justiça ao sentimento de avaliação sócio cultural consensual sobre o comportamento dos cidadãos perante os códigos sociais tendo em conta duas facetas, uma a de prevenir transgressões dos valores e outra de natureza distributiva dos bens materiais entre os elementos da própria sociedade. Se bem que a Justiça tribunalística respaldada pelos códigos forenses possa eventualmente servir-se daquele pressuposto como fonte de inspiração, ela aparece na essência como suporte ao direito estabelecido pela legalidade avocado pelo estado através de leis por si estabelecidas. Paralelamente podemos dizer que apesar das diferenças na sua essência e natureza, a justiça tribunalística persegue a mesma metodologia da justiça sóciocultural, isto é, a prevenção, a punição e equidade na distribuição, mas perante leis estabelecidas pela cadeia de comando e não a partir do consenso garantido pela sedimentação dos valores sociais.

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Senhoras e Senhores, “Que Justiça queremos para Moçambique?” Só o facto de a questão ser colocada de uma forma plural e colectiva, denota uma demanda que exige uma reflexão aprofundada. Quem somos nós? A nossa existência como estado decorre de um processo de ocupação territorial de uma potência estrangeira. Somos um País de origem colonial. Os portugueses vieram e num processo histórico atribulado foram ocupando, de uma forma mais ou menos arbitrária, como aliás o fizeram todas as restantes potências coloniais, os territórios africanos, aglutinando igualmente, de uma forma

acriteriosa, grupos étnicos e linguísticos, por

um lado, como também

separando-os conforme os seus interesses estratégicos em face da correlação de forças então existentes, plasmando assim novas realidades de contornos difusos e destino imprevísivel. Estes episódios ocorreram há mais ou menos um século, isto é, nos finais do século 19. Com este facto da história da humanidade, a África sofria um segundo golpe profundo que marcará de uma forma essencial o devir do continente: refiro-me em primeiro lugar ao cruel e intenso tráfico de escravos que durou três séculos, que de África transferiu para as Américas, sobretudo, milhões dos mais activos e válidos filhos

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8 deste continente, cortando cerce as condições de uma normal evolução da capacidade organizativa e de produção. O impacto do tráfico de escravos no tecido sócio-económico africano não carece de comprovação. África debilitou-se tendo permitido que a segunda fase de desestruturação, o colonialismo,

tivesse penetrado facilmente, embora com

algumas bolsas de resistência. Não importa aqui referir que quer no tráfico de escravos quer no estabelecimento do colonialismo, os europeus contaram certamente com cumplicidades locais. Esta questão poderá merecer uma bordagem em outro forum que não este. No conjunto dos conceitos básicos da epistemologia das ciências sociais e antroplógicas, respiguemos a definição do que se entende como grupo social, isto é, uma colectividade que ocupa um espaço de uma forma mais ou menos permanente ou delimitada, que tendo criado alguma tradição de convivência comum, estabeleceu interesses colectivos solidários, redistribuindo tarefas para a sobrevivência colectiva e individual. Retiramos ainda que este desiderato permite que o grupo crie de uma forma natural, códigos de conduta que enformam o modo de pensar, de agir e de lidar com a natureza, estabelecendo um denominador comum de mundividência cristalizada a que chamamos de mentalidade. A mentalidade é o monitor do comportamento do indivíduo na colectividade. A forma como, colectivamente ou individualmente os elementos do grupo social exprimem a sua relação comportamental, permite fixar as marcas de identidade que quando cristalizadas determinam aquilo a que se designa de cultura. É assim que, num longo processo de sedimentação, se formam as sociedades e em última instância as civilizações. As ciências sociais e antropológicas procuram também definir quando é que com a ocorrência de

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9 fenómenos de grandes perturbações se manifestam sinais de interrupção do processo que garante a estabilidade dos grupos sociais mesmo conhecendo momentos de renovação de protagonistas decorrentes da natural condição de vida e morte do ser humano. Quando essa perturbação atinge níveis em que interrompem ou ameaçam garntir a continuidade do grupo social, estaremos perante fenómenos de genocídio. A África viveu pois, na sua história mais recente, dois momentos de genocício humano, económico, social e cultural, através do tráfico de escravos e depois com a implantação do colonialismo e a desestruturação das comunidades através dos fenómenos de assimilação, aculturação ou mesmo repressão. _______________ // _________________

Senhoras e Senhores, O Nacionalismo Africano tem o mérito de ter percebido que a reposição da nossa identidade e dos nossos valores não podia ser feita sem a eliminação do colonialismo, a causa principal da sua perturbação. Do ponto de vista da reflexão teórica, o Nacionalismo Africano movimentava-se

entre dois

pólos, um centrífugo e outro centrípeto. O

fenómeno centrífugo visava, em primeiro lugar, o afastamento do colonialismo e de todas as formas de dominação que o mesmo trouxe. E o centrípeto, em segundo lugar, visava o resgate, a busca de tudo quanto foi espezinhado pelo colonialismo, o retorno à africanidade. Ainda do ponto de vista teórico, era suposto que seria do equilíbrio entre o movimento de rejeição e o de busca das raízes que sairia o novo africano, pronto a gerir o que de melhor herdou da sua convivência com o dominador e o melhor que pode resgatar das suas raízes.

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10 No entanto, o que verificamos hoje em África é que ainda estamos a tentar encontrar esse ponto de equilíbrio entre o movimento centrífugo

e o movimento

centrípeto. Os países africanos que acederam à independência a partir da década de 60 do século XX seguiram diversos tipos de processos: uns negociaram com as potências coloniais as suas independências, outros ascenderam à independência porque as próprias potências coloniais se aperceberam da inevitabilidade das mudanças e apressaram-se a salvaguardar os seus interesses. Outros ainda, tiveram que encetar duras batalhas contra as suas potências coloniais, chegando mesmo a recorrer à luta armada. Assim, aquilo que em teoria poderia eventualmente ser visualizado como sendo um processo normal de busca de equilíbrio para o futuro de África, se verifica na prática que se tornou num processo deveras complexo. Se revisitarmos a história de África desde o final da Segunda Guerra Mundial, havemos de encontrar um sem número de debate de ideias que visavam a melhor forma de colocar a África no concerto das nações respeitadas no mundo. Desde as ideias panafricanistas, passando pelo negritudinismo, desembocando na autenticidade ou nas teorias assimilacionistas, o que se buscava não era mais do que os contornos da identidade Africana na modernidade. O surgimento de reflexões sobre os benefícios e ou malefícios trazidos pela Globalização, penso que o debate anterior não terminou, afunilou apenas o foco. O grande problema é que a política e o discurso político se sobrepuseram à reflexão cultural à volta deste debate. Assim, encontraremos nomes como Nkuame Nkuruma, Abdule Nasser, Julius Nyerere, Sekou Touré, Leopold Senghor, como os nomes mais citados na história de África, sendo todos eles politicos. Ouso desafiar os

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11 presentes a procurarem um antropólogo, um sociólogo, um historiador que tenha apresentado ideias de impacto continental e que tenha encontrado eco com a mesma dimensão e difusão. Teremos eventualmente também um Samir Amin, um Mazui, um KZerbo, que os próprios políticos mal conhecem, pois raramente citam ou referem as suas ideias. Já não falo dos escritores, de entre os quais temos três prémios nobel. ___________________ // ________________

Senhoras e Senhores, José Luís Cabaço, sociólogo moçambicano, na introdução

a sua tese de

doutoramento, narra a história de Jonasse Asslam, um quadro de sucesso sediado em Maputo e que tem o seu pai, o Sr. Asslam, algures na província do Niassa. Os nomes de Jonasse e Asslam remetem-nos para referência a judaísmo, Jonas, e islamismo, Asslam. Contudo, eles frequentam a igreja cristã. No entanto o pai de Jonasse, o Sr. Asslam, tem seis esposas. É um homem respeitado, considerado ancião da sua aldeia. Por outro lado, o Dr. Jonasse, pós-graduado nos EUA, é casado com uma nigeriana, tem uma casa na Sommerchield e uma quinta nos subúrbios da cidade de Maputo e goza de todos os confortos que a vida urbana de Maputo concede aos seus cidadãos mais abastados. Jonasse tem 2 filhos que estudam na Escola Americana. Quando a família Jonasse visita o velho Asslam na província do Niassa, toda a aldeia vai cumprimentar o menino Jonasse porque ele representa o orgulho e a projecção que todos eles desejariam para si e para os seus. Jonasse sujeita-se a todos os rituais de boas vindas, de visitas aos antepassados e de cumprimentos aos mais velhos da família uterina. Não sente nenhum constrangimento em se integrar neste processo, é como se tivesse encontrado o equilíbrio entre os dois

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12 mundos a e devemos pertencer, o

que os nacionalistas rejeitaram e o mundo que

tentaram resgatar. Os filhos do casal e a esposa nigeriana porém não se integram neste processo. Esta porque os seus valores não se cruzam com os valores da província de Niassa e as crianças porque consideram aquilo algo muito estranho e qu nada lhes diz. Com esta pequena história, pretende o socioólogo José Luís Cabaço discutir uma questão muito simples. Quando falamos de moçambicanidade, quais os contornos que pretendemos dar à ideia de se ser moçambicano? _________________ // ____________________

Senhoras e Senhores, Há diversos factores

que no seu conjunto concorrem para definir o ser

moçambicano. Do ponto de vista político e administrativo, ser moçambicano está consignado na Constituição. E duma forma geral é ter nascido em Moçambique, de pai ou mãe moçambicano. A lei da nacionalidade regulamenta a condição da aquisição ou perda da nacionalidade. Do ponto de vista geográfico temos um território com cerca de 800.000Km2, com recursos naturais, rios, montes, mares, cerca de 20 milhões de habitantes, com cidades, vilas ou aldeias e um determinado índice de riqueza ou pobreza. Do ponto de vista histórico, sabemos que resultamos como estado, da luta contra o colonialismo português e que temos 30 anos de independência, procurando consolidar a nossa identidade.

Do ponto de vista sociológico, sabemos

que

a maior parte da

população moçambicana vive nas zonas rurais, trabalha a terra, lida directamente com a natureza, extraindo dela a forma de sobrevivência, utilizando metodologias e técnicas

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13 básicas sem recurso às novas tecnologias. E finalmente, do ponto de vista antroplógico sabemos que

somos um país multi-étnico, multilíngue, multicultural, no qual o

denominador comum da maioria é ser negro de origem Bantu, havendo outros grupos minoritários quanto à origem ou raça. São estes elementos que deverão ser considerados

factores básicos que

qualquer actor que tenha intervenção activa na política, na ciência e em todos os outros sectores, incluindo o cultural e económico, deverão ter em conta quando quer se referir à questão da moçambicanidade. Todos estes factores congregando-se demonstram-nos que a moçambicanidade para ser sentida um dia por todos como um sentimento de identidade e factor de identificação deve passar por um processo de sedimentação cultural a partir do equilíbrio que se buca e que referi linhas atrás. Quando atingimos a independência, os contornos da moçambicanidade era a construção do homem novo. Num discurso neo-platônico, o homem real que viveu o colonialismo para atingir a perfeição que a justeza da luta lhe impunha, devia procurar o seu ideal num mundo livre de injustiças. A mudança para o neo-liberalismo da ordem política e económica propõe-nos uma moçambicanidade difusa, uma espécie de mito que só se concretiza no plano do discurso, do tipo “ Digo, logo existo”. E há de ser com a interiorização desses contornos que podemos voltar a falar de justiça sem que o tal conceito caia em saco roto. Se me permitirem, para tornar o meu texto menos denso utilizando as metodologias tradicionais de conto e proveito, deixemme narrar três histórias vividas moçambicanamente:

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14 1. Anita era uma rapariga pré-adolescente que nasceu e sempre viveu na sua aldeia no interior da província de Tete. Como todas as raparigas da sua idade, Anita acedeu às várias etapas da vida desde a fase familiar à socialização através dos ritos de passagem da sua comunidade. Aos 11 anos, o Governo da República, obedecendo ao seu plano, com base no programa estratégico da expansão da rede escolar, após a fase de reposição das escolas destruidas pela Guerra, implantou uma escola de nível básico na aldeia de Anita, com 8 salas de aulas, equipamento suficiente, bem como os professores necessários. Houve banjas com a comunidade para explicar as vantagens de os pais enviarem os filhos para a escola e encorajava-se também o envio das raparigas. Os pais da Anita aderiram e ela foi inscrita, assim como muitas outras jovens daquela aldeia, mas não todas, porque o número de salas e de professores não era suficiente para que isso acontecesse. Portanto, uma parte ficou de fora, seguindo o normal ciclo de passagem do dia a dia e a outra foi para a Escola, entre elas a nossa Anita. Acabado o ciclo básico impunha-se aos jovens irem para a sede do distrito em que aquela aldeia se inseria ou abandonar os estudos. A Anita não seguiu para o distrito. Voltou para o seio da sua família e da comunidade, procurando reintegrar-se nos ciclos da vida da aldeia. Naturalmente que estava desfazada e começou a sentir-se estranha. Aos quinze anos, não se sentindo totalmente membro da sua comunidade, Anita resolve por sua conta e risco ir atrás da Escola. Escalou o distrito e daqui aportou na capital da província. Mas Anita não encontrou a Escola que procurava, aquela Escola que conheceu lá na sua aldeia. Encontrou outra Escola, a Escola da vida. Entrou na prostituição e na droga. Caiu na malha da polícia, levada a tribunal e condenada nos termos da Lei.

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15 2. Sulemane vivia na aldeia do distrito de Meluco, Cabo Delgado. Sulemane era agricultor e comerciante. Funcionava também como grossista, comprando a produção dos camponeses seus vizinhos que depois vendia aos comerciantes de outras capitais dos distritos e até na capital, Pemba. Sulemane comprou uma camioneta em terceira mão, mas que o ajudou a fazer crescer o negócio, passando a ostentar alguns sinais de riqueza exterior. Começou a circular na aldeia que Sulemane estava a enriquecer, graças a feitiçaria. Os aldeões resolveram dissipar as dúvidas consultando um feiticeiro. Este confirmou que Sulemane utilizava artes mágicas que punham toda a gente da sua aldeia a trabalhar para si, durante a noite, e que era por isso que de dia toda a gente estava cansada, não rendendo nos seus próprios afazeres. Perante estas evidências foram consultados os líderes comunitários que decidiram que Sulemane devia pagar indeminização ao povo. Sulemane teve que se desfazer dos seus bens para pagar e hoje vive miserável na cidade de Pemba.

3. Alberto Campira era um aldeão

que vivia numa aldeia

de distrito de

Cheringoma, província de Sofala. Desempregado compulsivo dos Caminhos de Ferro, por força da Guerra, passou a trabalhar a terra com a sua família. Campira tinha cinco filhos menores. A partir de um determinado momento, o casal Campira perdeu três dos cinco filhos num espaço de seis messes. Os irmãos aconselharam-no a procurar as razões daquelas mortes junto do seu adivinho. Este apontou a sogra de Campira

como a

feiticeira que estava a dizimar os netos. Os irmãos de Campira foram e mataram a velha. O Secretário da aldeia reportou o caso do assassinato ao Administrador do Distrito, que

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16 levou os valentes irmãos ao tribunal, que por sua vez os julgou e condenou por homicídio voluntário. A população da aldeia achou a condenação injusta e uma afronta aos seus valores , enfurecida, voltou-se contra o Secretário da aldeia que teve de fugir para não sofrer consequências mais graves.

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Minhas senhoras e meus senhores, A Justiça que queremos em Moçambique exige antes de tudo que se enquadre em nós próprios. Começando com

as nossas Escolas de Direito, as nossas Escolas de

Formação Policial, que ainda não demonstraram que a fonte

do conhecimento da

essência de se ser moçambicano está no domínio de instrumentos que lhes permitam não ferir os códigos sociais que ao longo do tempo se sedimentaram nesta busca incessante do equilíbrio entre os dois pólos que constituem a nossa essência de sermos africanos na modernidade, isto é, com uma universalidade virada para a herança que transportamos das nossas origens coloniais e uma singularidade que é a de termos as raízes bem enterradas neste solo pátrio. ________________ //_______________

Senhoras e Senhores,

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17 É simples e reiteradamente um exercício preguiçoso repetir que a administração da Justiça no nosso País anda mal. O que em última análise aquilo que os analistas mais atentos têm compreendido é que nas condições em que está construído o nosso estado, outra coisa não seria de esperar. Não depende da competência nem da honestidade dos seus dirigentes. Tomemos como referência o que se diz de mal sobre a cadeia de comando do nosso estado, considerando os sistemas dos três poderes, o Legislativo, o Executivo e o Judicial, adoptados da ordem política saída da revolução burguesa europeia, de que a Revolução Francesa é o paradigma. Sem qualquer critério hierárquico, todos dirão que o sistema instituído no nosso país favorece a impunidade, o nepotismo, a corrupção, a incompetência e não serve os objectivos para o que

foi criado. Esta

assepção é consenual e os estudos de opinião pública feitos por entidades oficiais e privados assim o confirma. Quer isto dizer que o cidadão de uma forma generalizada não nutre respeito nem confia nas instituições estabelecidas para a governação da sua vida. Por outras palavras, estamos perante

um estado com instituições desmoralizadas.

Algumas mais, outras menos. Por isso, antes de perguntar que justiça queremos, por que não perguntar que Estado queremos? Se o discurso de base é promover a equidade, eliminar as desigualdades e promover a justiça como ponto de partida, a primeira etapa é não considerar que os males que grassam no sector da administração da justiça se devem à maldição que desabou sobre este sector, nem pensar que o grosso dos cidadãos desonestos deste País assaltaram e dominaram este sector de governação no nosso regime político. Olho para esta platéia e vejo pessoas que me merecem apreço e vislumbro semblantes de quem quer fazer algo que contribua para que, cada vez mais, o seu

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18 desempenho permita melhorar os resultados do seu trabalho, de modo a moralizar o sector. Contudo, o sistema foi montado de tal forma que adivinho, sem ser bruxo, que daqui a um ano, quando cerimónia semelhante for realizada, teremos provavelmente as mesmas apreensões, as mesmas promessas e as mesmas frustrações. Do meu ponto de vista, o mal é do sistema no seu todo. Estamos a vestir um fato que não foi devidamente confeccionado para nós. Volto às nossas Escolas de Direito. Vejamos os seus planos de estudo. Passemos aos Tribunais e analisemos os códigos aí aplicados e apreciemos o exercício dos seus actores, juízes, magistrados, advogados, réus, testemunhas, oficiais e outros. Olhemos para o nosso sistema prisional e não deixemos de apreciar as relações que os nossos agentes da Lei e da Ordem se estabelece com o público em geral. Permitam-me que adopte aqui a expressão popularizada pelo Presidente da República para vos dizer que para mim, os protoganistas de todos os sectores aqui apontados acabam por parecer que se movimentam num palco gigante onde representam uma peça sobre governação cujo título será exactamente “O espírito de deixa andar”. Mas este estado de faz de conta

não é exclusivo ao sector que aqui é matéria

da minha

intervenção. Um juiz que negoceia uma sentença fá-lo porque o sistema lhe permite e ao mesmo tempo não se identifica com o papel que lhe deram a desempenhar. Ele não é muito diferente daquele professor de direito que negoceia a nota da cadeira de Código Processual Penal ou Civil. Como não é diferente daquele polícia prisional que negoceia a soltura. E em última análise, não é diferente daquele ministro que só apõe a sua

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19 assinatura num negócio de estado após garantirem uma percentagem , posta na sua conta bancária no exterior. São todos actos da mesma natureza, são actos de profunda injustiça.

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Senhoras e Senhores, A minha dissertação vai longe e mais tempo poderia tomar-vos, mas no essencial aquilo que gostaria de deixar aqui, como resultado das minhas refelexões sobre a matéria, é o seguinte: 1. Todos sabemos que somos um país com dois ordenamentos sócio-culturais bem distintos, a ordem urbana que está no comando da governação e a ordem rural que representa o fundamental

da nossa natureza universal e singular, isto é, homens e

africanos.

2. Não temos sabido gerir com a devida competência as várias transições que se nos impõem como realidade sócio-cultural criada nas condições em que histórica, geográfica e sociologicamente surgimos, muitos de nós não sabe, não quer saber e nem se preocupa com isso, é como se vivéssemos num comboio que está a atravessar uma ponte interminavelmente e que entretanto, enquanto não chega ao outro lado, há que ir gerindo em permanente situação de transição. Aqui o fundamental do discurso sobre a governação das nossas vidas transporta um sentido de transição e mudança. Somos nómadas em nós próprios.

Rosário, Lourenço. A Justiça Que Queremos Em Moçambique. Oração de Sapiência de Abertura do Ano Judicial , Província de Maputo, 01/03/2006.

20 3.Somos tão transitórios que nos falta coragem de sermos menos radicais nas medidas que tomamos, mesmo para corrigir fenómenos muito graves nas nossas vidas, é como se quiséssemos deixar tudo para melhores tempos. Adiar tudo transformou-se numa forma de cultura. Aqui veremos disposições para aplicar mais tarde, adoptamos decisões que temos preguiça de implementar. Apontamos com clareza o que está mal, mas falta-nos o fôlego para agir em direcção oposta.

4.Duma forma ou doutra, estamos na governação deste país, com vinte milhões de africanos, cuja maioria não entende os nossos actos, a nossa fala, nem o rumo que traçamos. Não nos preocupamos em nos aproximar para criar o equilíbrio que libertará os nossos filhos desta trajectória. Em contrapartida, governamos este país com a cabeça em Paris, Londres ou Nova Yorque, em vez de a ter na Manhiça, Mopeia ou Macomia.

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Minhas senhoras, meus senhores,

A justiça que queremos em Moçambique vai resultar de uma nova atitude. Vamos conhecer o nosso país, o nosso povo, os seus valores, as adversidades que temos, mas que reforçam a nossa cidadania. Vamos transformar este conhecimento em escola que crie o tal cidadão não travesti. Que a liberdade democrática não seja uma dádiva, mas um direito de cidadania. Que as nossas escolas falem de nós e que a cadeia de

Rosário, Lourenço. A Justiça Que Queremos Em Moçambique. Oração de Sapiência de Abertura do Ano Judicial , Província de Maputo, 01/03/2006.

21 comando, ao governar os sistemas montados saibam que o cidadão sabe o que está a contecer. Enquanto isto não acontecer, quem se atreve a atirar a primeira pedra ao sistema de administração da Justiça em Moçambique?

Muito Obrigado!

Rosário, Lourenço. A Justiça Que Queremos Em Moçambique. Oração de Sapiência de Abertura do Ano Judicial , Província de Maputo, 01/03/2006.

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