Volume 01 - 17

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17 APLICAÇÃO DA PENA

____________________________ 17.1 NOÇÕES GERAIS Instaurado o processo penal, por meio do qual se busca descobrir a verdade, e assegurado o mais amplo direito de defesa, o juiz, se concluir que o acusado praticou um fato típico, ilícito e culpável – um crime –, deverá prolatar a sentença, condenandoo a sofrer a pena criminal, a mais grave das sanções do direito. A aplicação da pena não é tarefa fácil, nem simples, e constitui a mais importante das fases da individualização da pena, garantia constitucional de todo cidadão, segundo a qual a reprimenda penal deve ser particularizada, adaptada ao condenado, conforme suas características pessoais e as do fato praticado. Aplicar a pena é dar, ao condenado, a pena justa, que deverá ser aquela suficiente e necessária para a reprovação e a prevenção do crime. A cada fato definido como crime, numa norma penal incriminadora, corresponde uma sanção, que pode ser a privação de liberdade – detenção ou reclusão – e multa, ou apenas aquela ou somente esta. A pena privativa de liberdade é cominada, para cada tipo legal de crime, num grau mínimo e num grau máximo, como, por exemplo, consta da sanção do tipo de estupro, do art. 213 do Código Penal: “reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos”. Já a pena de multa é, em regra, de no mínimo 10 (dez), no máximo 360 (trezentos e sessenta) dias-multa. Como deve proceder o juiz, após reconhecer que o acusado praticou mesmo um crime, para determinar a pena, em qualidade e em quantidade? Tem ele a liberdade total para fixar a pena que considerar justa? Ao deixar margem para fixação, a lei quer conferir ao juiz o arbítrio para impor a pena que bem entender? Se não, quais são os critérios, as regras, os parâmetros, enfim, as normas que regulam essa importante atividade jurisdicional?

2 – Direito Penal – Ney Moura Teles Para que a pena possa ser individualizada, a lei possibilita ao juiz oportunidade para particularizá-la a cada um dos condenados, de tal modo que, ainda que duas pessoas tenham concorrido para um mesmo crime, com igual intensidade de vontade, executando ações materiais idênticas ou semelhantes, a pena que uma receberá não será, necessariamente, igual à da outra, porque outras circunstâncias podem levar à diferenciação da quantidade da sanção. É de todo claro que não pode ficar ao arbítrio do juiz a aplicação da pena. Se ele tem a liberdade para determiná-la, tal liberdade, todavia, há de ser exercida com a estrita observância de um conjunto de regras claras, que presidem essa tarefa do julgador. Em vez de arbítrio, fala-se em poder discricionário do juiz, pelo que não há arbitrariedade. Tanto que o juiz é obrigado a motivar a aplicação da pena, externando as razões que o levaram ao quantum estabelecido. Este dever de motivar decorre do preceito constitucional inserto no art. 93, IX, da Constituição Federal, que diz: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade”. A motivação da aplicação da pena elimina qualquer possibilidade de arbítrio. “A motivação da sentença é exigência de todas as legislações modernas, onde exerce, como diz Franco Cordero, função de defesa do cidadão contra o arbítrio do juiz. De outra parte, a motivação constitui também garantia para o Estado, pois interessa a este que sua vontade superior seja exatamente cumprida e se administre corretamente a justiça. O juiz mesmo protege-se, mediante a obrigação de motivar a sentença, contra a suspeita de arbitrariedade, de parcialidade, ou de outra qualquer injustiça (Manzini).”1 Se o juiz não fundamentar a decisão, ela será nula. Se não explicar o porquê e o como chegou à pena aplicada, sua decisão contraria a ordem constitucional e processual. O condenado tem o direito de saber não apenas por que foi condenado, mas, principalmente, porque recebeu essa ou aquela pena, exatamente para poder verificar se ela é justa, vale dizer, se ela foi aplicada levando em conta os fins a que se destina: reprovar e prevenir o crime. A pena justa é aquela que será apenas suficiente e necessária para a reprovação e para a prevenção do delito, nem além, nem aquém. Direito também do acusador, de saber o motivo da qualidade e quantidade da pena aplicada.

1

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p. 320.

Aplicação da Pena - 3 Ambas, acusação e defesa, para, se quiserem, pleitearem a reforma da decisão na instância superior, necessitam saber os motivos que levaram o julgador a optar pela pena aplicada.

17.2 CÁLCULO DA PENA O art. 68 do Código Penal estabelece o caminho que o juiz deve seguir para encontrar a pena justa a ser aplicada ao condenado. Com base nele e no disposto no art. 59 pode-se construir o seguinte roteiro, ao qual o juiz está necessariamente vinculado. O primeiro passo a ser dado é o da fixação da pena-base, devendo o juiz fazê-lo observando minudentemente as circunstâncias judiciais estabelecidas no art. 59 do Código Penal. Depois de encontrar a pena-base, o juiz deverá considerar a existência de circunstâncias atenuantes (descritas nos arts. 65 e 66, CP) e de circunstâncias agravantes (definidas nos arts. 61 e 62, CP), com observância da regra do art. 67 do Código Penal. Depois, deverá verificar a presença ou não das chamadas causas de diminuição e das causas de aumento de pena, previstas tanto na parte geral, quanto na parte especial do Código Penal. Finalmente, se se tratar de pena privativa de liberdade, o juiz deverá verificar a possibilidade de sua substituição por pena restritiva de direitos ou de multa, e, caso não o possa fazer, fixará o regime inicial de cumprimento da privação de liberdade. Em síntese, a pena é determinada, assim, em quatro etapas, bem distintas: (1ª) Pena-base. (2ª) Atenuação e agravação. (3ª) Diminuição e aumento. (4ª) Substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, ou Fixação do regime inicial de seu cumprimento. Estabelecido o roteiro, vai-se percorrê-lo, um a um, com todos os detalhes considerados importantes.

17.3 FIXAÇÃO DA PENA-BASE A primeira etapa a ser percorrida e concluída pelo juiz é a da fixação da penabase, durante a qual deverá observar as regras estabelecidas no art. 59 do Código Penal. O princípio diretor da aplicação da pena nas quatro fases – mas que se

4 – Direito Penal – Ney Moura Teles manifesta de modo vigoroso na primeira etapa – é o seguinte: o juiz estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente, para reprovação e prevenção do crime, as penas aplicáveis, entre as cominadas, e sua quantidade, dentro dos limites previstos. Daí decorrem duas regras: (a) a pena, em qualidade e em quantidade, deve ser fixada com a finalidade de tão-somente reprovar e prevenir o crime; e (b) deve ser estabelecida dentro dos limites da necessidade e da suficiência para o alcance daquela finalidade. Essas duas bases devem orientar o juiz em toda a sua atividade de aplicar a pena, e, nesse primeiro momento, da fixação da pena-base, deve presidir sua opção pela pena a ser aplicada, e por sua quantidade. Delas decorrem algumas observações importantíssimas. O juiz não pode fixar pena sem aqueles objetivos de reprovar e prevenir o crime. Se a necessidade de reprovação for grande, a pena deverá ser, igualmente, mais severa. Se a necessidade da prevenção for pequena, a pena será menos severa. O juiz não pode fixar pena em quantidade além da necessária, nem mais do que o suficiente para a reprovação. Como proceder para atender ao preceito? Nortear-se pelos próprios parâmetros indicados no mesmo art. 59. O juiz fixará a pena com atenção “à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima”. Essas circunstâncias, chamadas judiciais, deverão ser analisadas pelo julgador, que, à vista de sua presença ou ausência, fixará a pena-base. É necessário, pois, falar sobre essas circunstâncias, uma a uma, cada qual com suas particularidades.

17.3.1

Culpabilidade

Culpabilidade é a reprovabilidade da conduta do agente imputável que, com potencial consciência da ilicitude, poderia ter agido de outro modo. É um juízo de reprovação, de censura, que o julgador faz, em nome da sociedade, ao imputável agente do fato típico e ilícito. É a valoração feita acerca do fato praticado, possível quando o agente tinha possibilidade de conhecer a proibição que recaía sobre seu comportamento, e quando se lhe podia exigir outra atitude. É de todo claro que algumas condutas típicas e ilícitas são mais reprováveis que outras, ainda que sejam igualmente ilícitas.

Aplicação da Pena - 5 Basta pensar: dois homicídios simples não são, necessariamente, censuráveis no mesmo grau, na mesma amplitude, dependendo das circunstâncias que cercaram a atitude de cada um dos seus agentes. Ou então: dois homicídios qualificados por terem sido praticados, ambos, por motivo fútil, não são reprováveis, obrigatoriamente na mesma intensidade, até porque dois motivos distintamente fúteis podem ser reprováveis em graus diferentes. Um será mais fútil que o outro. Mais insignificante que o outro. Um infunde maior revolta no que o vê. Outro merece maior compreensão. Dois crimes praticados mediante uso de meio cruel não serão, necessariamente, censuráveis na mesma medida, porque um meio pode ser um pouco mais cruel que o outro, ou porque o ânimo de um dos agentes pode repugnar mais que o do outro. A censurabilidade, a reprovabilidade, de cada fato, é graduável, mensurável. Um será menos ou mais reprovável que outro. Um será muito repugnante, outro, apesar de repugnante, um pouco menos. Os comportamentos humanos, todos, são analisáveis e valoráveis, merecendo graus diferentes de censura, de reprovação. Alguns atos são mais culpáveis que outros, que são merecedores de menor censura. Os homens são, uns em relação aos outros, ainda que por comportamentos idênticos ou assemelhados, mais ou menos culpados. O homem rico, instruído, intelectual, bem situado no meio social do ponto de vista econômico-financeiro, será mais culpado que o pobre, analfabeto, marginalizado, se ambos, em situações idênticas, reagirem de modo igual, por exemplo, diante da notícia de que a filha engravidou do namorado. Do primeiro se exigirá comportamento mais compatível com o direito do que do segundo. Se ambos reagirem com violência, matando, por exemplo, o namorado, o instruído, bem formado, será, a princípio, mais culpado que o segundo. Enfim, a culpabilidade, enquanto juízo de reprovação, é graduável, com base em seus dois elementos: a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa. Aquele que age com consciência real da ilicitude é mais culpado do que aquele que age sem a consciência, podendo alcançá-la. Basta pensar em dois homens distintos: um, advogado, conhecedor do direito, tem consciência real de que se encontrar sua mulher em flagrante de adultério, não lhe será lícito matá-la, nem o amante, e o outro, um rude lavrador, do interior de um Estado pouco desenvolvido do país, que, na mesma situação, considera que matá-la é “lavar sua honra com o sangue da adúltera”, conduta permitida pelo Direito. Evidente que ambos cometem fato típico e ilícito. O primeiro agiu com consciência real, atual, verdadeira. O segundo agiu sem essa consciência, mas podia, à

6 – Direito Penal – Ney Moura Teles evidência, tê-la alcançado. Ainda que o primeiro não tivesse agido com real consciência, dele se podia exigir, mais que do segundo, alcançar tal consciência. Por isso, o primeiro será mais culpado que o segundo. Do mesmo modo, aquele do qual se exige com grande intensidade comportamento diferente do que o realizado será, igualmente, mais culpado do que o outro, do qual se exige, de modo menos rigoroso, conduta diversa da praticada. Imagine-se duas situações idênticas, com dois cidadãos diferentes. Em ambas, um indivíduo invade uma casa, subjuga uma família, sob a mira de uma arma branca (faca da cozinha, que está sendo apenas portada, sem encostá-la em qualquer pessoa), e aguarda a chegada do chefe da família, marido e pai dos reféns. Quando este chega, é instado a retornar à empresa onde trabalha como tesoureiro e de lá trazer certa quantia em dinheiro, como condição para a cessação da ameaça que paira sobre seus familiares. Não há, nos dois exemplos, por parte do agressor, nenhuma outra atitude mais séria contra os familiares. As duas situações fáticas são quase idênticas, com uma única diferença: numa o pai é ex-policial, com larga experiência em lidar com seqüestradores, exímio atirador, praticante de artes marciais, negociador frio, ao passo que na outra o pai é um ex-seminarista, fisicamente frágil, sem qualquer experiência de vida no trato com acusados da prática de crimes etc. Tratando-se, à evidência, de duas situações de coações de natureza moral, plenamente resistíveis, e se nenhum dos pais a elas tiver resistido, mas atendido aos anseios dos seqüestradores, é de todo claro que o ex-policial é mais culpado que o ex-seminarista, pois que dele pode-se exigir mais do que do segundo. Em síntese, os que tiverem realizado o fato típico e ilícito com maior culpa, merecendo maior reprovação, haverão de receber maior resposta penal. Por outro lado, aqueles sob os quais incidirá censura normal, comum, terão menor, menos dura, mais branda, sanção penal. Na causação dos resultados danosos, lesivos dos bens jurídicos, as causas e seus causadores

são,

distintamente,

mais

ou

menos

eficazes

e

responsáveis,

respectivamente. Quem é o maior culpado pela derrota do Corinthians, no último jogo: o goleiro, que não segurou aquela cobrança de falta, o zagueiro, que não impediu o adversário, ainda que faltosamente, naquela arrancada fatal, o árbitro, que não viu aquele impedimento, ou o atacante, que cobrou mal o pênalti? A responsabilidade dos indivíduos pelos fatos da vida é mensurável, graduável, cada qual merecendo, de quem julga seus comportamentos, maior ou menor grau de censura. Isso é culpabilidade.

Aplicação da Pena - 7 A culpabilidade é, assim, não apenas fundamento da sanção penal, da pena, mas o principal fator de sua limitação. Vale dizer, sem culpabilidade, ainda que o fato seja típico e ilícito, não se aperfeiçoa o crime, e de conseqüência, não pode haver pena. Nesse sentido, a culpabilidade, tanto quanto a tipicidade e a ilicitude, é fundamento da pena. Em outras palavras, sem nenhuma culpa, em sentido amplo, sem culpabilidade, sem possibilidade de conhecimento da ilicitude, ou sem possibilidade de exigência de outro comportamento, não há a mínima culpabilidade. Logo, não há o crime, nem a pena. A culpabilidade, além de fundamentar a aplicação da pena, é seu elemento limitador. Quanto maior a culpabilidade, maior a pena. Inversamente, pequena culpabilidade, pena menor, mais branda. A tipicidade e a ilicitude constituem pressupostos indispensáveis à imposição da sanção penal, mas é a culpabilidade que, além de condicioná-la, limita-a e a gradua. Esta é a primeira das circunstâncias que o juiz analisa, quando vai fixar a penabase. É a mais importante delas, e por isso a que deve ser verificada com o maior cuidado. Não basta que considere ser ele culpável – imputável, com possibilidade de conhecer a ilicitude e do qual se pode exigir conduta diferente –, que isso é requisito para a condenação. Deve o juiz analisar e conhecer o grau da consciência da ilicitude, e o grau da exigibilidade de conduta diversa, para, então, concluir se o agente agiu com maior ou menor culpabilidade, merecendo, então, elevada ou pequena reprovação.

17.3.2

Antecedentes

Diz o art. 59 que o juiz considerará os antecedentes do agente do fato, como circunstância no momento da fixação da pena-base. Os antecedentes são, em síntese, a história do acusado, seu passado, o que lhe aconteceu, o filme de sua vida, antes do fato de que vai tratar a sentença. Quer a lei que o juiz pergunte quem é o acusado? Será que sua intenção é saber se o condenado é um homem que jamais esteve envolvido em qualquer outra história de fato típico, ou um indivíduo acostumado a envolver-se com violações de normas penais? O fim da norma é que sejam formuladas indagações dessa natureza? Um delinqüente contumaz, experiente, ou um cidadão que, pela vez primeira, se vê diante do julgamento do Poder Judiciário? O crime é mais um em sua vida, ou o primeiro evento dessa natureza?

8 – Direito Penal – Ney Moura Teles O agente, tendo cometido, pela vez primeira, um ilícito culpável, mereceria tratamento diferenciado do que aquele que reiteradas vezes tem sido chamado a responder perante a justiça criminal, e daquele que, inclusive, até cumpriu pena, ou que ainda está a cumpri-la? Os antecedentes que abonam, que enobrecem, seriam de molde a justificar menor reprimenda, ao passo que o mau passado, o rosário de incidentes, acidentes e, até, de crimes, apontaria para a necessidade de buscar maior prevenção? Em face da exigência de que a pena seja suficiente e necessária, para reprovar e prevenir o crime, é de se perguntar: qual a importância de o juiz saber quem está sendo julgado: um homem de passado limpo, ou um velho conhecido da justiça criminal? Existiria alguma relação entre o passado do agente e seu futuro? Seriam verdadeiras as afirmações: quem já delinqüiu tem maior probabilidade de voltar a delinqüir, e quem nunca delinqüiu, provavelmente não cometerá outros crimes? É evidente que tais assertivas não se sustentam em qualquer critério científico. O passado das pessoas não é indicador de seu futuro, nem um rosário de crimes indica, necessariamente, sua continuidade. Por isso, não se pode aceitar que aquele que já cometeu crime, só por isso, deverá merecer maior censura se vier a cometer outro crime. Por outro lado, tendo a Constituição Brasileira adotado o princípio da culpabilidade, e o da presunção da inocência, não se pode aceitar a inclusão, entre as circunstâncias que informam a fixação da pena, dos antecedentes do agente do crime, que são características ou componentes absolutamente estranhos ao fato típico e ilícito. Fixar pena com base no passado do agente é o mesmo que fixá-la com fundamento em sua raça, na religião que professa, na cor de seus olhos ou de sua pele, ou na textura de seus cabelos. É fixá-la com base em elemento completamente dissociado do fato criminoso por ele praticado. Os antecedentes, por isso, num direito penal de cariz democrático – o direito penal do fato –, não podem influir na determinação da qualidade e da quantidade de pena, da reprimenda, da resposta penal. Lamentavelmente, o art. 59 do Código Penal a eles faz expressa referência, mas tal referência colide frontalmente com o princípio da culpabilidade, daí por que os juízes, no momento da fixação da pena, não devem considerá-los enquanto circunstância judicial que prejudique o agente do crime. Parte da doutrina entende que os antecedentes do condenado poderiam, quando muito, servir como condicionante para a concessão de benefícios durante a execução da pena. Por exemplo: ao portador de maus antecedentes não se concederia a

Aplicação da Pena - 9 suspensão condicional da pena, nem o livramento condicional, bem assim, até mesmo, a progressão a regime mais brando, mas jamais servir como circunstância que eleve a pena, ou a torne distante do grau mínimo. “Importa perceber que um ordenamento jurídico-penal fundamentado no princípio da culpabilidade do agente, no fato concreto, é incompatível com a majoração da pena com base em fatos anteriores ao que se analisa no processo de referência. O Direito Penal moderno é um direito penal do fato e o agente deve ser punido pelo que efetivamente fez e não pelo que é. A consideração sobre os antecedentes não pode influir de maneira a agravar a pena do agente, transpondo os limites estipulados por sua culpabilidade no caso concreto que se analisa. Sustentar o contrário significa estabelecer dupla punição para o agente de um mesmo fato.”2 Em razão dessas considerações, a inclusão dos antecedentes no art. 59 só pode ser analisada e entendida no sentido positivo, o de que, sendo eles abonadores, tal circunstância é autorizadora de menor reprimenda. Ou seja, bons antecedentes implicam necessariamente sanção penal próxima do grau mínimo. Para os que não aceitam essas ponderações, e consideram certo levar em conta também os antecedentes desabonadores, dúvidas não podem restar de que, ao fixar a pena-base, deverá o juiz observar: a) inquérito policial arquivado ou em andamento, simples folha de antecedentes, informação sobre inquéritos, denúncia apenas oferecida, processos em andamento, ou sentença condenatória recorrível – porquanto não dizem respeito à condenação transitada em julgado, verdade processual definitiva –, não podem ser considerados maus antecedentes; b) condenação por fato posterior ao da condenação, igualmente, não pode ser levada em conta no momento da fixação da pena, pois que a expressão “antecedentes” deve ser entendida como “fato que antecede ao fato da condenação”.

17.3.3

Conduta social

Dispõe o art. 59 que o juiz analisará também a conduta do condenado em seu meio social: se ele está ou não adaptado em seu ambiente social, vale dizer, se ele é ou não bem aceito por seus concidadãos, seus semelhantes, seus iguais.

2

GALVÃO, Fernando. Aplicação da pena. Belo Horizonte: Del Rey. 1995. p. 146.

10 – Direito Penal – Ney Moura Teles Se se tratar de alguém harmonicamente integrado na vida de sua comunidade, a reprimenda deve ser minimizada, do contrário, elevada? O juiz deve verificar a integração do condenado no meio social em que ele vive, e não no meio social que o juiz considera adequado. Deve verificar se seu comportamento é compatível com o aceito no ambiente de seu estrato social, por exemplo, na favela, com todas as suas características. Se, em seu meio, o condenado cumpre seus deveres, suas obrigações sociais, respeita os valores ali cultivados, convive harmoniosamente com seus pares, tal circunstância lhe será favorável, militará em seu favor, beneficiando-o com pena-base próxima do mínimo. Se, todavia, o condenado não se ajusta às regras de sua comunidade – é por ela considerado um revoltado –, se a ela se opõe, se não a respeita, se é rejeitado, por suas atitudes, por seus concidadãos, então terá um comportamento social desajustado a seu meio, o que importará em considerar a circunstância desfavorável, tendente a autorizar o afastamento da pena do grau mínimo? Essa é outra circunstância que nada tem a ver com o fato criminoso praticado pelo agente e que diz respeito exclusivamente a seu passado anterior ao crime e à sentença. Tanto quanto os antecedentes, essa circunstância colide com o princípio da culpabilidade, e só pode ser examinada do ponto de vista positivo. Se o condenado tiver conduta social harmônica, ajustada a seu meio, será beneficiado por isso, mas, do contrário, a circunstância não deve ser levada em consideração no momento da fixação da pena, pois que representaria o julgamento do homem pelo que ele é, e não do homem pelo que ele fez.

17.3.4

Personalidade

Aqui, outra circunstância que não tem relação direta com o fato praticado, a personalidade, característica interna do homem, é incluída entre as circunstâncias judiciais. Deve o juiz, a teor do art. 59, considerá-la no momento da fixação da penabase? MIRABETE diz que, “quanto à personalidade, registram-se as qualidades morais, a boa ou má índole, o sentido moral do criminoso, bem como sua agressividade e o antagonismo com a ordem social intrínseco a seu comportamento”3.

3

Manual de direito penal. 6. ed. São Paulo: Atlas, 1991. v. 1, p. 277.

Aplicação da Pena - 11 Para DAMÁSIO E. DE JESUS, é o retrato psíquico do delinqüente, incluindo a periculosidade4. Ora, a personalidade não é um conceito jurídico, mas do âmbito de outras ciências – Psicologia, Psiquiatria, Antropologia –, e deve ser entendida como um complexo de características individuais próprias, adquiridas, que determinam ou influenciam o comportamento do sujeito. Considerá-la no momento da fixação da pena é considerar o homem, enquanto ser, e não o fato por ele praticado. Se, como já se observou, o elemento que fundamenta e limita a pena é a culpabilidade, e se essa é a reprovabilidade do comportamento, de todo óbvio que qualquer conduta é determinada também pela personalidade do homem. Por exemplo: um homem agressivo, que reage ao primeiro impulso, e agride um bem jurídico, tendo plena consciência da proibição, e não se tendo contido, podendo plenamente fazê-lo, será culpado em grau elevado, pelo que realizou e não exatamente por ser dotado de personalidade desequilibrada, violenta. Inegável, entretanto, que, quando o juiz examina a culpabilidade, estará examinando implicitamente a personalidade do agente. Não poderá fazê-lo outra vez, isoladamente, o que seria um verdadeiro bis in idem. O exame da personalidade, de outro lado, não pode ser feito a contento pelo juiz, no âmbito restrito do processo penal, sem o concurso de especialistas – psiquiatras, psicólogos etc. O magistrado não é formado e preparado para o exame aprofundado de características psíquicas do homem, e permitir-lhe exame apenas superficial, para um desiderato tão grave – perda da liberdade –, seria de uma leviandade inaceitável num ordenamento jurídico democrático e sério. Facultar ao juiz a consideração sobre a personalidade do condenado importa em conceder ao julgador um poder quase divino, de invadir toda a alma do indivíduo, para julgá-la e aplicar-lhe pena pelo que ela é, não pelo que ele, homem, fez. Por isso, ao fixar a pena-base, deve o juiz limitar-se – quanto às circunstâncias judiciais do agente – a examinar em profundidade o grau da culpabilidade – conceito jurídico – do condenado, não se detendo em exames superficiais, incompletos, para os quais nem está preparado, dos antecedentes, da conduta social e da personalidade. Essas circunstâncias, vale repetir, desde que positivas, devem ser levadas em conta no sentido de conduzir a fixação de uma menor pena-base, mais próxima do grau mínimo. Se negativas, não poderão fazer a pena-base distanciar-se do mínimo. 4

Direito penal: parte geral. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 484.

12 – Direito Penal – Ney Moura Teles A doutrina e a jurisprudência não têm tratado essa questão com o cuidado que ela exige. Talvez a insuficiente compreensão da culpabilidade – enquanto juízo de reprovação, puramente normativo – por grande parte dos operadores do direito penal tenha levado a que, na prática, se limitem os juízes, quando da fixação da pena-base, a analisar, isoladamente, cada uma das circunstâncias pessoais – antecedentes, conduta social e personalidade – referindo-se aos fatores conhecidos, e, em razão deles, fixando a pena-base, deixando de, como deve ser, aprofundar o exame da culpabilidade, para encontrar seu grau. Talvez seja mesmo, mais fácil, para o juiz, ao fixar a pena, verificar dois ou três fatos antecedentes, uma notícia de mau comportamento social, ou lembrar-se da atitude agressiva do acusado no interrogatório, para encontrar o quantum da pena. Até porque analisar o grau da reprovação – e, principalmente, fundamentar a opção – exige maior atividade intelectual, principalmente na formulação das idéias e em sua transposição para o papel. Essas dificuldades, todavia, não podem autorizar a inexistência de qualquer discussão a esse respeito, e tampouco impedir a busca de sua superação.

17.3.5

Motivos

Os motivos do crime, sim, devem ser considerados, na fixação da pena, e devem ser compreendidos não como um fator integrado na culpabilidade, e tampouco como o grau de culpa ou intensidade do dolo, de que tratava o antigo art. 42 do Código Penal de 1940. O homem, consciente das leis da natureza, capaz de prever os acontecimentos, e de dirigir sua atividade no rumo de alcançar esse ou aquele resultado, age, sempre, com uma finalidade. O fim da conduta, já se disse, pode ser exatamente alcançar o resultado proibido, que lesa o bem jurídico penalmente protegido. O dolo, já se explicou, é um dos elementos do fato típico, de modo que examiná-lo é verificar a existência da própria tipicidade do fato. A análise do comportamento negligente, igualmente, faz parte da valoração acerca do fato típico. No momento da fixação da pena-base, tais etapas já terão sido superadas, pois o juiz já terá concluído pela existência de um fato típico, ilícito e culpável. Trata-se, aqui, de fixar a pena-base; por isso, o exame dos motivos não se confunde com o exame do dolo ou da culpa, em sentido estrito, e tampouco de outros elementos subjetivos de

Aplicação da Pena - 13 alguns tipos, qualificadores ou privilegiadores (“por motivo fútil”, “por motivo de relevante valor moral ou social”), nem dos motivos que se encontram descritos nos arts. 61 e 65 do Código Penal, que tratam das circunstâncias agravantes e atenuantes, pois que serão considerados na segunda etapa da aplicação da pena. Igualmente, não se cuidará dos motivos que implicam causa de diminuição ou de aumento da pena, objeto da terceira fase. Nesse primeiro momento, os motivos que devem ser analisados dizem respeito aos antecedentes causais psicológicos que norteiam o comportamento do sujeito. Os motivos podem qualificar a própria conduta, no sentido positivo ou negativo, vale dizer, no sentido reprovador ou enobrecedor. Às vezes, o motivo não se ajusta perfeitamente a um elemento subjetivo privilegiador, nem a uma circunstância atenuante, mas, ainda assim, constitui-se em uma circunstância que atua em benefício do condenado. Por exemplo: João matou Fausto, porque este, ex-namorado de sua filha, enviou – sem nenhuma intenção de ofender – um convite de seu casamento com a rival para a ex-namorada, magoando-a, todavia, profundamente. Diante da tristeza da filha, o pai não relutou e matou o exnamorado, antes de seu casamento. A motivação do pai não pode ser considerada fútil, insignificante, diante do sofrimento de sua filha. Não pode, igualmente, ser considerada de relevante valor moral, nem social. Da mesma forma, podemos concluir que estamos diante de um homicídio simples, pois nem fora cometido sob influência de violenta emoção provocada por ato injusto da vítima, nem por motivo fútil. O motivo do crime – reagir ao sofrimento da própria filha –, se não qualifica, não privilegia, nem justifica a conduta do pai, haverá de ser considerado em seu favor no momento da fixação da pena-base, ainda porque não poderá ser compreendido como atenuante, na segunda etapa. Em outras oportunidades, o motivo que leva alguém a praticar um crime não se ajusta, exatamente, a uma circunstância qualificadora do tipo, nem a uma agravante da pena, e, ainda assim, merece ser considerado em prejuízo do condenado. Um motivo, às vezes, não atinge a qualidade da torpeza a que se refere o inciso I do § 2º do art. 121 do Código Penal, causando repugnância, mas, mesmo assim, merece ser desvalorizado, em menor grau que o da qualificadora. A vingança, por exemplo, entende a jurisprudência, não é, por si só, circunstância que torna torpe a motivação do agente. Em outras palavras, não é qualquer vingança que deve ser considerada torpe.

14 – Direito Penal – Ney Moura Teles Vinganças há que, apesar de não torpes, mas exatamente por serem vinganças, merecerão consideração em prejuízo do condenado, no momento da fixação da penabase. Em conclusão, a motivação do agente – os antecedentes psicológicos que impulsionam a vontade e que põem em movimento a conduta –, se merecedora de valoração negativa, militará em desfavor do condenado; caso contrário, o beneficiará, e deverá, em qualquer caso, ser considerada pelo juiz.

17.3.6 Circunstâncias do crime As circunstâncias do crime referidas no art. 59 não são as circunstâncias agravantes dos arts. 61 e 62, nem as atenuantes dos arts. 65 e 66, as quais serão examinadas na segunda fase da aplicação da pena, nem aquelas que importam em causas de aumento ou de diminuição, que serão objeto de consideração na terceira etapa, características de certas infrações penais, como “durante o repouso noturno”, “em lugar ermo”, “com o emprego de arma” etc. As circunstâncias de que trata o art. 59 são elementos acidentais outros que não integram os tipos, nem influem na agravação, atenuação, aumento ou diminuição expressamente previstos no Código Penal, mas que, nem por isso, deixam de importar para a busca da pena justa, necessária e suficiente, para reprovar e prevenir o crime. Se Antônio mata João, que sempre lhe devotara profunda amizade e respeito, essa é uma circunstância desfavorável ao condenado que o juiz deverá levar em conta no momento da aplicação da pena. Se, todavia, João, antes, traíra o antigo e fiel amigo, tal circunstância só poderá favorecer o condenado. ALBERTO SILVA FRANCO chama essas circunstâncias de “inominadas”; ensina que elas devem decorrer de uma avaliação discricionária do juiz e sugere que sejam “o lugar do crime, o tempo de sua duração, o relacionamento existente entre autor e vítima, a atitude assumida pelo delinqüente no decorrer da realização do fato criminoso etc.”5 De todo claro que se, no decorrer da execução do crime, o agente mostra profunda indiferença para com o resultado, essa é uma atitude interna que revela uma circunstância desfavorável. De outro lado, se ele, após desencadear o processo causal no rumo do resultado, se arrependeu e tentou evitá-lo, sem conseguir, tal circunstância,

5

Código penal e sua interpretação jurisprudencial. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 602.

Aplicação da Pena - 15 por si só, há de ser levada em conta para favorecê-lo no momento da fixação da pena. Enfim, é permitido ao juiz conhecer o fato, em sua integridade, e verificar quais as circunstâncias que, ainda que não definidas em lei, são de molde a beneficiar o condenado.

17.3.7

Conseqüências

Efeitos do fato típico, as conseqüências da conduta – nos crimes formais e de mera atividade – e as conseqüências do resultado – nos crimes materiais – devem ser consideradas pelo julgador, quando da fixação da pena-base. O resultado, é óbvio, não é conseqüência do crime, mas da conduta, e, como tal, é parte integrante do crime, e não seu efeito. Dois crimes de homicídio podem ter conseqüências absolutamente distintas, para terceiros e para a própria sociedade. O homicídio que tem como vítima o chefe de uma família de dez integrantes, quase todos menores de idade, que dependem do trabalho daquele, importa em conseqüências muito mais graves e danosas do que o homicídio perpetrado contra um andarilho na rodovia, que não tem ascendentes, nem descendentes. A morte de um cientista que trabalha na descoberta de uma importante vacina contra uma doença incurável, apesar de ser tão ilícita e injusta quanto a morte de qualquer recém-nascido, traz prejuízos indiscutivelmente maiores para a sociedade. As conseqüências de todo e qualquer crime são, por isso, graduáveis, e quando causadoras de grandes prejuízos aos homens ou à sociedade, importarão em reprimenda maior ao condenado.

17.3.8

Comportamento da vítima

Essa circunstância não é a que justifica a conduta do agente, pois, se o for, não terá havido o crime, mas apenas um fato típico lícito. A agressão injusta da vítima, repelida com o meio necessário, moderadamente, importa na exclusão do crime, por ser o fato lícito. Já o comportamento provocador da vítima que enseja a instalação de violenta emoção no íntimo do sujeito, de molde a inspirar seu comportamento, constitui circunstância privilegiadora, no homicídio – causa obrigatória de diminuição, a ser examinada na terceira etapa da aplicação da pena –, e atenuante em outros crimes, que

16 – Direito Penal – Ney Moura Teles será examinada na segunda fase. Aqui, cuidamos de outras atitudes das vítimas que, sem justificar, nem desculpar o comportamento do agente, e tampouco diminuir ou atenuar a pena, contribuem, de algum modo, para a ocorrência do fato e, se assim for, funcionará em favor do condenado, quando da fixação da pena. Algumas pessoas, por seu modo de vida, agem, cotidianamente, de modo a colocar-se em situação de receber ataques a alguns de seus bens jurídicos. Certos indivíduos costumam freqüentar bares de muito movimento, e ali se colocam nas mais diferentes situações de colidência com outros freqüentadores, discutindo com eles, posicionando-se de modo diametralmente oposto ao do outro, de tal modo que, invariavelmente, instala-se situação de conflito que acaba, inevitavelmente, em desforço físico. É, por exemplo, o caso do torcedor de certo time de futebol que, derrotado no último jogo, não se conforma e parte para a discussão e a “briga”. Há pessoas que têm enorme facilidade para discutir assuntos absolutamente complexos e apaixonantes, e por isso mesmo extremamente perigosos: religião, futebol, política são temas que, mal discutidos, podem transformar-se em situações de desavenças e conflitos. Pessoas que se colocam sempre nessa posição são consideradas alimentadoras, ou, no mínimo, atraidoras de conflitos. Não que devam ser responsabilizadas pelos acontecimentos, mas que, com seu modo de agir, favorecem, possibilitam certos acontecimentos típicos. É certo que o agente não será desculpado, mas o que tiver realizado comportamento injusto – típico ilícito –, em circunstância na qual se pode verificar o comportamento da vítima como elemento incentivador, favorecedor, haverá de merecer maior compreensão do julgador e, de conseqüência, menor reprovação. A vítima do furto que se apresentava coberta de jóias, em atitude de ostentação, numa rua deserta e durante a noite, com seu comportamento está favorecendo a subtração. O mesmo se diga do que deixa seu veículo aberto ou destrancado, em estacionamento de estádio de futebol. A jovem que, em trajes sumários, desfila provocantemente diante de homens desconhecidos, em lugares pouco recomendáveis, está, de certa forma, despertando neles a cobiça e o desejo libidinoso. Se chega a ser agredida em sua liberdade sexual, terá, para o fato, colaborado, ainda que não intencionalmente. O agressor merecerá, em seu favor, a consideração dessa circunstância, no

Aplicação da Pena - 17 momento da fixação da pena-base.

17.3.9

Conclusão da análise das circunstâncias judiciais

A missão do juiz, ao fixar a pena-base, é das mais difíceis, em toda a atividade jurisdicional. Os juízes das varas cíveis, de família, das fazendas públicas, enfim, das varas distantes da área criminal, não se defrontam com dificuldades tão cruciais quanto os que encaram a necessidade de decidir sobre o futuro de pessoas tão diferentes. São negros e pardos, em sua maioria, são pobres quase todos, invariavelmente marginalizados. E o que é mais grave: quase sempre sem informações precisas, sem muitas provas e com muitas dúvidas. Nem sempre os processos contêm os elementos indispensáveis à análise dessas circunstâncias; por isso, a tarefa do juiz se torna ainda mais difícil. Ao analisar as circunstâncias judiciais, o juiz não pode valer-se de qualquer critério de uso da aritmética, para encontrar o grau médio, o submáximo e o submédio. Tal processo aritmético consistia em achar o grau médio somando-se o mínimo e o máximo, o submáximo, somando o máximo com o médio, e o submédio, adicionando ao médio o mínimo, dividindo-se cada resultado por dois. O quociente encontrado era o grau da pena que se desejava. Verificadas as circunstâncias judiciais do art. 59, o juiz deve proceder a um raciocínio claro, preciso, sob a orientação do princípio diretor da individualização da pena: necessidade e suficiência para prevenir e reprovar o crime, tendo como fundamento e limite a culpabilidade do condenado. Se concluir por ter havido comportamento muito culpável, se entender que do agente se podia, em grau elevado, exigir conduta diversa, e se concluir que ele agiu com plena consciência da ilicitude, ou com grande possibilidade de alcançá-la, a pena-base deverá distanciar-se do grau mínimo. À medida que as outras circunstâncias ali referidas – motivos, circunstâncias, conseqüências, comportamento da vítima – igualmente se revelarem desfavoráveis ao condenado, mais se distanciará a pena-base do grau mínimo. Se o juiz verificar que o condenado laborou com pequeno grau de culpabilidade – se a possibilidade de conhecer a ilicitude fosse pequena, ou se menor fosse a exigência de outra conduta –, então a pena será próxima do grau mínimo. Considerará igualmente as outras circunstâncias que, se favorecerem o agente, importarão em penabase igual ao grau mínimo.

18 – Direito Penal – Ney Moura Teles Dificilmente haverá colidência entre a culpabilidade e as demais circunstâncias. Na maior parte das vezes, quando for elevada a culpabilidade, uma ou mais das circunstâncias estarão contra o agente. E quando a culpabilidade for pequena, a maior parte das circunstâncias igualmente será benéfica ao agente. Não deve o juiz elaborar duas colunas, de débito e crédito, com as circunstâncias do art. 59, somando-as e encontrando a média. Deve o juiz pensar: se há muita culpabilidade, a pena-base se afastará do grau mínimo, e à medida que outras circunstâncias prejudiquem o condenado, tal afastamento será maior, ou seja, a pena-base vai ser maior. Por exemplo: condenado que age com plena consciência da ilicitude e do qual se podia exigir, com grau elevado, um comportamento conforme o direito agiu com muita culpabilidade. Tudo indica a fixação de pena-base um pouco acima do grau mínimo. Se os motivos do crime forem igualmente reprováveis, será elevado o grau um pouco mais. Se as conseqüências forem ponderáveis, as circunstâncias inominadas não favorecerem, e a vítima não tiver se comportado de modo censurável, então a pena-base se distanciará ainda mais do grau mínimo. Dessa forma não há menor possibilidade de fixação de pena-base próxima do grau máximo. Somente com muita culpabilidade e com todas as circunstâncias do art. 59 militando contra o condenado é que deverá o juiz fixar pena-base bastante próxima do grau médio. Por uma razão muito simples: esta é apenas a primeira fase da aplicação da pena; somente podem ser admitidas penas próximas ou iguais ao grau máximo, após a conclusão das três fases, com a consideração das circunstâncias legais e das causas de aumento e diminuição da pena. Não seria harmônico o sistema legal da individualização da pena se, desde a primeira das três fases, já fosse possível a fixação de uma pena equivalente ao grau máximo. Se tal fosse possível, qual seria a razão de a lei mandar considerar uma segunda e ainda uma terceira etapas, em que outras circunstâncias devessem ser analisadas? Imaginar tal possibilidade seria concluir pela insuficiência da quantidade máxima de pena cominada. Se o limite máximo da cominação não há de ser ultrapassado, e se há um tempo máximo de duração do cumprimento das penas privativas de liberdade, não se pode aceitar a possibilidade de que o grau máximo seja alcançado apenas pela consideração das circunstâncias do art. 59. Se assim fosse possível, não haveria necessidade de realizar as duas etapas seguintes. Qualquer pena-base que se aproxime do grau máximo terá sido encontrada com

Aplicação da Pena - 19 total desrespeito às regras do art. 59. Indispensável que o juiz fundamente cada um dos passos dados no rumo da fixação da pena-base. Não basta que diga: “O réu era imputável, tinha consciência da ilicitude e dele se podia exigir conduta diversa. Os motivos do crime foram reprováveis, as conseqüências sérias, a vítima não se comportou de modo a facilitar sua ação; por isso, fixo a pena-base em ‘x’ anos, além do mínimo, mas aquém do máximo.” Tais assertivas não constituem fundamentação. O encontro da pena-base deve ser minuciosamente descrito, com a justificação do quantum encontrado, com base em elementos de prova que tenham sido carreados para os autos do processo. A fundamentação é indispensável para que o condenado saiba a razão por que recebeu aquela pena, em qualidade e quantidade, e possa, se considerá-la injusta, atacá-la por meio de recurso de apelação para a instância superior. Sem fundamentação, a sentença será nula.

17.4 CIRCUNSTÂNCIAS AGRAVANTES E ATENUANTES 17.4.1 Questões gerais Fixada a pena-base, o juiz deverá passar para a segunda etapa da aplicação da pena, verificando a existência das circunstâncias agravantes e das circunstâncias atenuantes para, em razão delas, proceder a um processo de agravação ou de atenuação, elevando ou decrescendo a quantidade da pena-base. Se houver circunstâncias agravantes, a pena-base será acrescida; se houver atenuantes, reduzida. A lei não estabelece um quantum de agravação ou de atenuação, devendo ele ser estabelecido pelo juiz que, com prudente arbítrio, fundamentando sua decisão, determinará a quantidade da diminuição ou do aumento que fará incidir sobre a penabase. Questão da mais alta importância é saber: se o juiz tiver fixado a pena-base no grau mínimo, diante de uma circunstância atenuante, poderia fazer incidir uma diminuição, trazendo a pena para um patamar abaixo do grau mínimo? A doutrina e a jurisprudência dominantes são no sentido negativo de que as circunstâncias atenuantes não têm o poder de trazer a pena aquém do grau mínimo. Anote-se a opinião de ALBERTO SILVA FRANCO: “O entendimento de que o legislador de 84 permitiu ao juiz superar tais

20 – Direito Penal – Ney Moura Teles limites encerra um sério perigo ao direito de liberdade do cidadão, pois, se, de um lado, autoriza que a pena, em virtude de atenuantes, possa ser estabelecida abaixo do mínimo, não exclui, de outro, a possibilidade de que, em razão de agravantes, seja determinada acima do máximo. Nessa situação, o princípio da legalidade da pena sofreria golpe mortal, e a liberdade do cidadão ficaria à mercê dos humores, dos preconceitos, das ideologias e dos ‘segundos códigos’ do magistrado. Além disso, atribui-se às agravantes e às atenuantes, que são circunstâncias acidentais, relevância punitiva maior do que a dos elementos da própria estrutura típica, porque, em relação a estes, o juiz está preso às balizas quantitativas determinadas em cada figura típica. Ademais, estabelece-se linha divisória inaceitável entre as circunstâncias legais, sem limites punitivos, e as causas de aumento e de diminuição, com limites determinados, emprestando-se àquelas uma importância maior do que a estas, o que não parece ser correto, nem ter sido a intenção do legislador. Por fim, a margem de deliberação demasiadamente ampla, deixada ao juiz, perturbaria o processo de individualização da pena que se pretendeu tornar, através do art. 68 do CP, o mais transparente possível e o mais livre de intercorrências subjetivas.”6 Igual é o entendimento de FERNANDO GALVÃO: “Inicialmente, cabe observar a inexistência de critérios legais que orientam o juiz quanto à dimensão da redução de pena decorrente da aplicação de uma atenuante. Enfrentando essa dificuldade, a doutrina e a jurisprudência predominantes posicionam-se no sentido de que uma circunstância atenuante somente poderá modificar a pena-base nos limites estabelecidos pela pena cominada ao tipo de injusto. Certamente, o posicionamento contrário leva à absurda possibilidade de, em face da consideração de determinada atenuante, o juiz diminuir a pena a zero.”7 No mesmo sentido são as lições de DAMÁSIO E. DE JESUS8, JULIO FABBRINI MIRABETE9 e HELENO FRAGOSO10.

6

Op. cit. p. 826.

7 Op. 8 Op. 9 Op.

cit. p. 195. cit. p. 501. cit. p. 290. cit. p. 339.

10 Op.

Aplicação da Pena - 21 O Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula nº 231: “A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal.” Penso diferente: a presença de circunstâncias atenuantes pode fazer com que a pena seja reduzida a quantidade abaixo do grau mínimo, o que deve ocorrer pelo menos em todas as situações em que a pena-base, fixada com atenção às circunstâncias do art. 59 do Código Penal, tiver sido fixada no grau mínimo, e estiver presente pelo menos uma circunstância atenuante, sem o concurso de qualquer agravante. Vale dizer, na segunda etapa, o juiz, tendo fixado a pena-base no grau mínimo, verificando a existência de pelo menos uma circunstância atenuante, deverá incidir, sobre o quantum fixado na primeira etapa, uma diminuição, fazendo com que a pena-base seja reduzida aquém do grau mínimo. Por que tal não poderia ser feito? Por que a lei não permitiria tal operação? Ora, a lei não a proíbe. Não há nenhuma norma afirmando tal impossibilidade, e, se não há vedação expressa, não se pode aceitá-la. FERNANDO GALVÃO afirmou que não há critérios legais que orientem o juiz quanto à determinação do quantum atenuador. Não é verdade. O critério é o geral inserto no art. 59, que deve presidir todas as etapas da aplicação da pena: a necessidade e a suficiência, da quantidade, para a reprovação e prevenção do crime. O juiz atenuará, conforme seja o necessário e suficiente, dentro de seu prudente arbítrio. Só não há um critério expressa e especificamente determinado, como nas causas de diminuição, mas nem por isso se pode afirmar a inexistência de critério. Imaginemos a seguinte situação: num crime de estupro, o juiz fixou a pena-base em nove anos de reclusão, incorretamente, pois muito próxima do grau máximo. Presente uma circunstância atenuante, por exemplo, a da idade do agente (19 anos), o juiz pode aplicá-la, reduzindo a pena de quanto tempo: seis meses, um, dois, ou três anos? Qual a orientação legal para o juiz? Não há, é claro, um quantum máximo ou mínimo de redutor, mas, nem por isso, se pode afirmar inexistir qualquer critério. Este é o da necessidade e suficiência para a prevenção e reprovação do crime. Para os que entendem impossível uma atenuante fazer a pena ficar aquém do mínimo, o critério orientador do quantum da atenuação é o grau mínimo legal contido na norma penal incriminadora, daí que, se o juiz reduzisse aquela pena-base ao mínimo, de seis anos, não teria violado qualquer norma legal. Todavia, é claro que a simples idade do agente não pode fazer uma pena-base ser diminuída em um terço. A falta de critério fixo de determinação do redutor não significa ausência de

22 – Direito Penal – Ney Moura Teles qualquer critério, que será sempre a necessidade e suficiência da pena, para a reprovação e prevenção do crime. Não pode prosperar o argumento de que, se possível a queda da pena-base abaixo do grau mínimo, poderia ocorrer o absurdo de uma pena igual a zero, porque a lei manda a pena ser atenuada, e não ser reduzida a zero. Atenuar significa abrandar, diminuir, e, é de todo muito óbvio, abrandar uma reprimenda jamais vai significar a eliminação da repreensão. As observações do sempre respeitado ALBERTO SILVA FRANCO, do mesmo modo, não podem ser aceitas. A primeira, de que, se aceitarmos a redução da pena abaixo do mínimo, pela presença de atenuante, deveremos, necessariamente, aceitar seu aumento além do máximo, diante de agravante, não faz sentido. Primeiramente, de ver que, como pensamos, nenhuma pena-base pode ser fixada acima do grau médio, sob pena de violação do art. 59. Assim, com pena-base próxima do grau médio, muito provavelmente jamais haveria tantas agravantes capazes de fazer a pena chegar próxima do grau máximo. Se, todavia, tal ocorresse, não haveria qualquer violação ao princípio da legalidade, até porque as normas dos arts. 61 e 62 são igualmente legais. Quanto ao perigo de ficar o condenado à mercê dos humores e preconceitos do magistrado, este não ocorre apenas na segunda etapa, mas em todo o processo, passível, é óbvio, de correção pela instância superior. Não importa qual tenha sido a vontade do legislador, importa a da lei, e a norma do art. 65 é precisa: “São circunstâncias que sempre atenuam a pena.” O advérbio sempre é induvidoso. Presente uma atenuante, ela sempre atenuará a pena. Sempre, em qualquer situação, em qualquer hipótese, mesmo que a pena-base tenha sido fixada em quantidade igual ao grau mínimo, a presença de uma circunstância descrita no art. 65 importará no abrandamento do grau da pena, em seu decréscimo, mesmo que seja necessário fazê-la transitar para uma quantidade abaixo da quantidade mínima. Essa é a vontade da norma do art. 65, e não há nenhuma norma que desautorize essa interpretação. Imaginemos a seguinte situação: dois partícipes de um mesmo crime, um de 19 anos, outro de 22 anos de idade, irmãos, condenados, recebem do juiz a mesma penabase, igual ao mínimo legal, porquanto teriam agido com reduzidíssima culpabilidade, e todas as circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal militavam em seu favor. Se o juiz não puder reduzir a pena do primeiro, pela idade, apenas para não reduzi-la abaixo do mínimo, estará cometendo profunda injustiça com ele, e desobedecendo ao comando do art. 65, I, que manda o juiz sempre atenuar a pena do que tiver menos de

Aplicação da Pena - 23 21 anos na data do fato. Não terá havido individualização da pena, para o primeiro. MIGUEL LOEBMANN ensina: “O advérbio ‘sempre’ não deixa nenhuma margem de dúvida quanto ao seu significado” e “a não-redução abaixo do mínimo legal, em presença de atenuantes nos coloca à frente de um verdadeiro absurdo jurídico: a redução da pena na presença de atenuantes só se aplica aos réus que, pelas circunstâncias judiciais, tenham a sua pena-base fixada acima do mínimo legal, isto é, em face de sua culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade, motivos etc., apresentem maior reprovabilidade.”11 A observação é da mais alta importância. Um condenado merecedor de maior pena-base, por ter agido com maior culpabilidade, vai ser beneficiado com a redução da pena, pela presença de uma atenuante, ao passo que outro condenado que, por ter agido com menor culpabilidade, e, por isso, recebeu pena-base igual ao mínimo, não merecerá qualquer benefício, qualquer vantagem por ter agido sob o pálio de uma circunstância atenuante, por exemplo, por ter “procurado, por sua espontânea vontade e com eficiência, logo após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as conseqüências”. Essa atitude concreta desse condenado em nada o beneficiará, exatamente porque ele recebeu pena-base igual ao mínimo. Esse é, sim, um verdadeiro absurdo jurídico. Por essas razões, correto é o entendimento segundo o qual as circunstâncias atenuantes autorizam a redução da pena-base aquém do grau mínimo, desde, é evidente, que estejam presentes e, fundamentadamente, o juiz demonstre que, assim decidindo, o faz para encontrar a pena necessária e suficiente para reprovar e prevenir o crime. Examine-se agora cada uma das circunstâncias agravantes e, depois, as atenuantes.

17.4.2

Agravantes

As circunstâncias agravantes estão definidas nos arts. 61 e 62 do Código Penal. O art. 61 esclarece que tais circunstâncias sempre agravarão a pena, quando não constituírem ou qualificarem o crime. É dizer, só serão consideradas, nesta segunda

11

As circunstâncias atenuantes podem sim fazer descer a pena abaixo do mínimo legal, RT, nº 676, p. 391, 1992.

24 – Direito Penal – Ney Moura Teles fase, circunstâncias que não integram os tipos legais de crime, como um de seus elementos, nem as que constituem uma de suas formas qualificadas ou agravadas. Igualmente, não se trata, nesta segunda etapa, de qualquer das circunstâncias já examinadas na primeira, da fixação da pena-base, quando se examinam as chamadas circunstâncias judiciais, nem daquelas constantes das causas de aumento que serão objeto de análise na terceira etapa da aplicação da pena. A seguir, as circunstâncias legais agravantes.

17.4.2.1

Reincidência

Esta é outra circunstância – tal qual os antecedentes, conduta social e personalidade – cuja inclusão como informadora da quantificação da pena merece profundas críticas, porquanto absolutamente estranha ao fato criminoso. Nem é certo referir-se a ela como “circunstância do crime”, porque se trata de uma particularidade que diz respeito exclusivamente ao agente e nenhuma relação tem com o fato. A razão de sua consideração pela lei, diz a doutrina tradicional, estaria em que o indivíduo, tendo sido condenado por um crime e posteriormente cometido outro, mereceria maior censura por não ter correspondido às exigências do direito. Raciocínio absolutamente inaceitável, como, igualmente incoerente aquele oposto, segundo o qual a reincidência deveria ser levada em favor do condenado que, por não ter-se redimido, revelaria, com isso, possuir menor capacidade de correção e, por isso, menor culpabilidade. Nem uma coisa, nem outra. A reincidência, por si só, não implica necessariamente inadaptação ao meio social, e tampouco falta de capacidade de adaptação que signifique menor capacidade de culpa, em sentido amplo. Além disso, diante do princípio da culpabilidade, e tratando-se o nosso de um direito penal do fato, não se pode aceitar que a reincidência conduza à necessidade de maior agravação da pena. Conquanto seja uma circunstância exclusivamente ligada ao indivíduo, a seu passado, e, assim, absolutamente independente do fato criminoso, não deve sequer ser considerada no momento da fixação da pena. LUIZ VICENTE CERNICCHIARO não chega a esse extremo que defendemos, pugnando, todavia, por uma interpretação diferente da esposada pela doutrina dominante. Para o grande penalista, “só há uma forma de conciliar, no particular, à Constituição: conjugar os crimes.

Aplicação da Pena - 25 A reincidência somente poderá agravar a pena se entre os delitos houver conexão que recomende recrudescer a sanctio juris. (...) A reincidência, assim, não é imperativo de aumento, baseada em dados meramente objetivos. Afetaria até o princípio da individualização da pena. (...) A reincidência, assim, há de ser analisada pelo juiz; decidirá ser ou não, no caso em julgamento, causa de majoração da pena”.12 ALBERTO SILVA FRANCO considera duvidosa a constitucionalidade da agravante da reincidência, dizendo que “não se compreende como uma pessoa possa, por mais vezes, ser punida pela mesma infração. O fato criminoso que deu origem à primeira condenação não pode, depois, servir de fundamento a uma agravação obrigatória da pena, em relação a um outro fato delitivo, a não ser que se admita, num Estado Democrático de Direito, um Direito Penal atado ao tipo de autor (ser reincidente), o que constitui uma verdadeira e manifesta contradição lógica”.13 O Código, infelizmente, inclui a reincidência entre as circunstâncias que, por si sós, importam em majoração da pena-base, posição adotada e aceita pela doutrina e jurisprudência predominantes. O conceito de reincidência encontra-se no art. 63 do Código Penal: “Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior.” Só é reincidente o agente que, antes da prática do crime, já estivesse condenado definitivamente – com sentença transitada em julgado – por outro crime. A norma fala em condenação definitiva anterior por fato definido como crime, pelo que não se pode falar em reincidência se a condenação anterior tiver sido por contravenção penal. Não há critério legal para a fixação do quantum do aumento da pena-base em razão da reincidência, como, de resto, não o há para qualquer agravante ou atenuante, ficando ao prudente arbítrio do juiz. É nesse ponto que a agravação da pena, pela reincidência, gera as mais profundas injustiças. Imagine-se a seguinte situação: João foi condenado definitivamente, pelo crime do art. 348 do Código Penal – favorecimento pessoal – a uma pena de l (um) mês de detenção. Tempos depois,

12

Reincidência. Correio Braziliense, 13 maio 1996. Caderno Direito & Justiça.

13

Op. cit. p. 781.

26 – Direito Penal – Ney Moura Teles comete um homicídio simples, e, após fixar a pena-base em seis anos de reclusão, o juiz, verificando a reincidência, deve, segundo manda o art. 61, I, combinado com o art. 63, agravá-la. De quanto o fará? De seis meses ou de apenas um mês? Na primeira hipótese, a agravante significará tempo de pena maior do que a pena pelo crime anterior, e na segunda, tempo igual ao da condenação anterior, o que, em qualquer dos casos, constitui verdadeiro absurdo. Conforme determina o art. 64, I, do Código Penal, não se considerará o indivíduo reincidente se entre a data do cumprimento ou extinção da pena pelo crime anterior e a data do crime posterior tiver decorrido tempo superior a cinco anos. Nesse lapso temporal, será computado o tempo do período de prova de suspensão condicional da pena ou do livramento condicional, desde que não tenha havido revogação. Para efeito de reincidência, não se considerarão os crimes militares próprios e os crimes políticos (art. 64, II, CP). A reincidência, como posta no direito penal positivo, tem outros reflexos na situação do condenado: a) influi na determinação do regime de cumprimento da pena (art. 33, § 2º, b e c); b) impede a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos ou pela de multa (arts. 44, II, e 60, § 2º); c) proíbe a concessão da suspensão condicional da pena (sursis), se em crime doloso (art. 77, I); d) aumenta o prazo de cumprimento de pena como requisito para obtenção do livramento condicional (art. 83, II e V); e) é causa de revogação da reabilitação (art. 95); f) interrompe a prescrição (art. 117, VI); g) impede a incidência de causas de diminuição da pena (arts. 155, § 2º, 170 e 171, § 1º); h) aumenta o prazo prescricional da pretensão executória (art. 110).

17.4.2.2

Motivo fútil ou torpe

Fútil é o motivo ínfimo, mesquinho, vazio, leviano, insignificante, frívolo, extremamente desproporcionado, de somenos importância, revelador da intensa insensibilidade do agente para com o bem jurídico atacado. Tendo realizado o crime

Aplicação da Pena - 27 movido por uma motivação banal, além de ter agido com muita culpabilidade, merecerá, em razão dessa atitude interna para com o bem alheio, uma reprimenda agravada. É verdade, a futilidade do motivo importa na necessidade de maior reprovação do condenado, pois reflete um comportamento ditado por um elemento psíquico censurável em grau elevado. Duas questões particularmente interessantes, quanto à futilidade: (a) ciúme é um motivo fútil? (b) a embriaguez é compatível com a futilidade? Inclinaram-se, desde muito, a doutrina e a jurisprudência predominantes de nossos tribunais por entenderem que o sentimento de ciúmes não é fútil, porquanto um dos que perturbam de modo mais intenso o espírito do homem, levando-o a desatinos e a atitudes incontroláveis. É certo que é injusto, mas, pensamos, nem por isso frívolo ou insignificante. Há até quem veja no ciúme um motivo de relevante valor moral, posto que exteriorização do sentimento de amor, ou de bem-querer. Modernamente, entretanto, surgem decisões no sentido de que os ciúmes não decorrem do amor, mas de um atrasado sentimento de propriedade ou de posse sobre o outro – mulher ou homem, companheiro ou companheira, amante, cônjuge. Cremos que em nenhuma hipótese se pode considerar privilegiado, ou atenuado, o crime cometido exclusivamente por ciúmes, que é, verdadeiramente, um sentimento que não há de ser cultivado, pois, efetivamente, reflete aquela idéia atrasada e retrógrada de dominação, de propriedade ou de posse sobre pessoa. Mas, nem por isso, se pode afirmá-lo fútil, frívolo, mesquinho. Se não é um motivo nobre, que deve ser levado em favor do agente, nem por isso há de ser considerado insignificante, pois que, apesar de criticável, não perde sua qualidade, sua determinação psíquica que, mesmo inaceitável nos tempos modernos, é fruto de longos e longos anos de concepção utilitarista do relacionamento entre homem e mulher. Dividem-se os estudiosos do direito e a jurisprudência entre os que entendem compatível o estado de embriaguez do agente e a futilidade do motivo, e os que demonstram sua absoluta incompatibilidade. Não se pode, optar, a priori, por uma ou por outra posição. Tanto será possível agente embriagado cometer crime por motivo fútil, quanto, em razão da embriaguez, não poder, em face da perturbação mental, formular juízo de proporção entre o motivo e a conduta. É preciso, em cada caso, verificar o grau da embriaguez e as outras razões que levaram o agente ao cometimento do fato, para se concluir se era possível a convivência entre o estado de embriaguez e a motivação, fútil ou não.

28 – Direito Penal – Ney Moura Teles Não se podem igualmente considerar fúteis as agressões decorrentes de conflitos em razão de valores monetários, dinheiro, bens, propriedade, e tampouco aqueles relativos a sentimentos de paixão, especialmente decorrentes de separações judiciais. Já torpe é o motivo repugnante, imoral, abjeto, desprezível, vil, e que ofende a nobreza do espírito do homem e a moralidade das pessoas. O Código Penal, ao definir o primeiro dos homicídios qualificados, equipara o motivo torpe à paga ou promessa de recompensa. Com efeito, cometer um homicídio determinado por um pagamento, ou pela oferta de qualquer promessa, é de uma torpeza inominável, ensejando profunda e incontida revolta no espírito da maioria dos homens. Esse homicida revela profundo desprezo pela vida humana, privilegiando valores monetários ou econômicos. Muita discussão existe sobre a possibilidade de um crime ser cometido a um só tempo por motivo torpe e, ao mesmo tempo, fútil. De modo geral, a maior parte dos motivos fúteis, insignificantes, não se apresenta simultaneamente com um caráter de torpeza, mas nada impede a compatibilidade, bastando lembrar a hipótese de alguém cometer um homicídio, mediante paga, e portanto torpe, encomendado por um motivo fútil. Vingança não é sinônimo de torpeza, até porque pode haver crime cometido por vingança, e, ao mesmo tempo, por um motivo razoável, e, até mesmo, de relevante valor moral ou social. Basta lembrar a hipótese do homicídio cometido contra o estuprador, encomendado pelo pai da vítima de violência sexual. Tanto o motivo fútil, quanto o motivo torpe são circunstâncias qualificadoras do homicídio, daí que, se reconhecidas ao nível do tipo, não serão consideradas na aplicação da pena, pois o contrário seria bis in idem intolerável.

17.4.2.3

Finalidade de facilitar ou assegurar outro crime

Também é agravante da pena a finalidade de facilitar ou assegurar a execução, a ocultação, a impunidade, ou a vantagem de outro crime. Para Aníbal Bruno, essa é uma modalidade de torpeza, pois estaríamos diante de um agente que, após cometer um crime, ou prestes a cometê-lo, não reluta em cometer outro, para melhor possibilitar a vantagem, a impunidade, a ocultação e, até mesmo, a conclusão do outro crime. Não é necessário que o outro crime seja executado pelo agente do crime-meio, bastando a conexão teleológica de um crime, vale dizer, o elemento subjetivo finalístico

Aplicação da Pena - 29 consistente na obtenção de facilidade para a execução do outro crime. Por exemplo, João furta um veículo, a fim de com ele executar um assalto a mão-armada, um roubo num banco. O primeiro crime, furto, é cometido com o fim de facilitar a execução de um roubo. Supondo que o roubo seja apenas tentado, ou, executado, dele o agente do crime-meio não venha a obter qualquer vantagem, ou, ainda, venha a ser realizado por outro agente, mesmo assim a pena do crime de furto, provando-se a conexão teleológica, deverá ser agravada na forma do art. 61, II, b, do Código Penal. Se o crime-fim se consuma, ou se é apenas tentado, somente será agravada a pena do crime-meio. No homicídio, esta circunstância é qualificadora e não agravante.

17.4.2.4

Recursos que dificultam ou impossibilitam a defesa do

ofendido Todos os crimes cometidos à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação, ou com a utilização de qualquer outro recurso que torne mais difícil ou, até mesmo, impossibilite qualquer defesa do ofendido, merecerão maior reprimenda penal. Em qualquer dessas hipóteses, o comportamento do agente é merecedor de resposta penal mais severa em face do uso de meio que diminua ou elimine a capacidade de vigilância e, de conseqüência, de reação da vítima, colocando-a em situação inferiorizada, o que facilita enormemente a execução material do crime. É o que ocorre na traição e na emboscada, quando o agente, súbita ou sorrateiramente, coloca-se em posição de extrema vantagem. O mesmo ocorre quando o fato é cometido de “surpresa”, quando a vítima jamais esperava fosse o agente atingi-la. Inegável que tal conduta é fator de agravação da pena-base. Tanto quanto as agravantes anteriores, esta é qualificadora do homicídio, e só será considerada como tal uma única vez.

17.4.2.5

Meios insidiosos ou cruéis, ou dos quais resulta perigo

comum Do mesmo modo, a utilização de meios insidiosos ou cruéis, como veneno, fogo, explosivo ou tortura, ou dos quais possa resultar perigo comum, importa na agravação da pena.

30 – Direito Penal – Ney Moura Teles Meio cruel é o que impõe ao ofendido sofrimento maior do que o necessário para a execução do crime, é o sofrimento desnecessário. Insídia é a perfídia, o uso de estratagema, para ludibriar a vítima que não se apercebe do mal que vai lhe ocorrer, ou já está acontecendo, e, por isso, não esboça qualquer reação defensiva. O veneno pode ser, a um só tempo, insidioso, no primeiro momento à medida que dele e dos efeitos de sua ingestão não se apercebe a vítima, nada realizando no sentido de evitar-lhe as conseqüências, e cruel, no momento posterior, em que se instala profundo sofrimento físico e moral no ofendido que, ao descobrir-lhe a ingestão e antevendo as conseqüências, nada mais pode realizar, a não ser abreviar o sofrimento, pelo suicídio. A crueldade não está na reiteração, nem na quantidade de golpes, ferimentos, mas no excesso de sofrimento imposto à vitima. Também essa circunstância, no homicídio, é qualificadora do crime, e não agravante da pena.

17.4.2.6

Ascendente, descendente, irmão ou cônjuge

A qualidade do sujeito passivo é motivo de maior resposta penal. Trata-se de circunstância objetiva, reveladora de atitude extremamente insensível do agente, para com a preservação do respeito entre as relações com as pessoas mais íntimas, inclusive as que com ele guardam laços sangüíneos. Praticar o crime contra o próprio pai, ou contra a mãe, ou o filho, o irmão, ou o cônjuge é voltar-se contra as pessoas mais importantes na vida do agente, as mais benquistas, queridas, amigas, exatamente aquelas que, em tese, só deveriam receber gestos de amor, de paz, de solidariedade. Essa agravante não diz respeito ao fato em si, mas à qualidade do sujeito passivo, que, como tal, integra a relação jurídica que é o crime. Se é justa a agravação, em face da maior censurabilidade do comportamento praticado contra pessoas íntimas, estimadas, não se pode aplicá-la se o crime é cometido contra o cônjuge do qual o outro já se encontrava separado, ainda que tãosomente de fato, porquanto entre eles já não existiam relações cuja agressão autoriza a majoração da reprimenda. Por essa mesma razão, não se irá exigir, para a incidência da agravante, a existência de casamento civil, bastando que haja união livre entre os sujeitos do crime, concubinato, companheirismo, vida em comum, qualquer que seja o nome dado. Se a Carta Magna, no § 3º do art. 226, reconhece, para efeito de proteção estatal, como

Aplicação da Pena - 31 entidade familiar, a união estável entre homem e mulher, não há por que se recusar a incidência dessa agravante, pela simples razão da inexistência de casamento civil.

17.4.2.7

Abuso de autoridade, de relações domésticas, de coabitação

ou de hospitalidade ou com violência contra a mulher Em algumas relações de natureza privada, existe um poder de autoridade, como nos casos de tutela e curatela, bem como em organizações religiosas e civis, em que há hierarquia semelhante à que ocorre no âmbito do direito público. O abuso de autoridade referido na alínea f do inciso II do art. 61 é o exercício arbitrário, indevido, ilegítimo, desse poder de autoridade, por meio da força moral que decorre da posição do agente nessas relações privadas. Nas de natureza pública, tem incidência a alínea g do mesmo inciso II, objeto de nosso comentário da seção seguinte. Aqui, alcança-se o tutor, o curador, o dirigente religioso, o cardeal, o bispo, o pastor, o diretor do clube, em relação ao tutelado, ao curatelado, ao subordinado hierárquico na igreja e ao associado. Tais pessoas, pelo poder que desfrutam perante outras, se contra essas cometem esse ou aquele delito, devem merecer maior reprimenda, exatamente porque abusam do poder que detêm, aproveitando-se dele para cometer o crime. A maior resposta penal decorre da maior exigibilidade de conduta diversa que se faz a quem detém poder diante da vítima. O poder legítimo há de ser exercido de modo a não ser transformado em opressão, agressão, dominação, exploração. Entre os homens, exigem-se solidariedade, colaboração, amistosidade, e não agressão. A agravante aplica-se também nos casos em que o agente se prevalece de relações domésticas, da coabitação, bem como de hospitalidade. Relações domésticas são aquelas existentes no meio familiar, entre pais e filhos, irmãos, empregados domésticos e amigos que convivam no ambiente da família. A intimidade entre as pessoas conduz a maior confiança mútua, que produz comunhão de interesses no meio familiar, de modo que a prática de crime entre elas merece reprovação maior, também porque de cada um mais se exigirá comportamento conforme o direito. O mesmo ocorre na coabitação, que “significa a convivência em um mesmo espaço físico e pressupõe uma relação mais restrita e próxima do que as relações domésticas. Na verdade, nem todas as pessoas que freqüentam uma mesma casa residem ali. A coabitação é, assim, um estado de fato em que duas ou mais pessoas se acham reunidas para a vida em

32 – Direito Penal – Ney Moura Teles comum, no mesmo lugar, por qualquer tempo”14. Hospitalidade difere da coabitação pela temporariedade. É o que ocorre quando alguém recebe uma pessoa para um almoço, um jantar, um final de semana, um churrasco, um pernoite, férias etc. Existe a confiança, exigindo-se de ambos – convidado e anfitrião – comportamentos amistosos, nunca violações de normas penais. Por isso, impõe-se a agravação da pena para aquele que se prevalecer dessas relações para cometer um crime. A Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, alterou a redação da alínea f do inciso II do art. 61 do Código Penal, para acrescentar a expressão “ou com violência contra a mulher, na forma da lei específica.” O acréscimo nada acrescentou ao preceito, uma vez que a referência à mulher já se encontrava alcançada pelo texto original.

17.4.2.8

Abuso de poder ou violação de dever inerente a cargo,

ofício, ministério ou profissão O que se disse anteriormente ao abuso de poder nas relações privadas reitera-se aqui relativamente aos que exercem cargo público, ofício, ministério ou profissão. A primeira hipótese é daquele que comete o crime com abuso de poder inerente ao exercício de cargo público. Não se cuida dos crimes de funcionários públicos, já que essa é uma circunstância elementar aos crimes próprios, dos arts. 312 a 326 do Código Penal. Nesses casos, a agravante não incide, pois que, sendo a condição de funcionário público um elemento daqueles tipos, seria um inadmissível bis in idem. A agravação impõe-se quando o funcionário público prevalecer-se de sua condição, para a prática de qualquer outro crime, furto, homicídio, lesão corporal, estelionato etc. Por exemplo, o policial que, com abuso do poder que detém, mata, rouba, enfim, comete qualquer crime. O mesmo se dará com o que violar dever inerente a ofício, ministério ou profissão. Por ofício, deve-se entender uma arte, um trabalho manual, o artesanato, o pequeno manufatureiro. Por ministério, entende-se apenas o ministério religioso de qualquer culto, o padre, o pastor. E por profissão, qualquer atividade de natureza intelectual, por exemplo, o médico, o advogado, o engenheiro, o contador etc.

14

GALVÃO, Fernando. Op. cit. p. 176.

Aplicação da Pena - 33 Exemplos de situações em que essa agravante vai incidir: (1) o ourives que, encarregado de fabricar o anel, com os brilhantes fornecidos pelo freguês, troca-os por pedras falsas, apropriando-se daqueles; (2) o padre ou o pastor que, tornando-se confidente da mulher, mantém conjunção carnal com ela mediante fraude; (3) o médico que pratica atos libidinosos com a cliente, sem sua permissão. A razão da agravação decorre da extremada confiança que a vítima deposita no agente, em razão do cargo, do ofício, do ministério e da profissão por ele exercido. Nesse caso, maior deve ser a resposta, em face do abuso cometido, pois que desses agentes se exige, com maior intensidade, comportamento conforme o direito.

17.4.2.9

Criança, maior de 60 anos, enfermo ou mulher grávida

Crianças, maiores de 60 anos, enfermos e mulheres grávidas, por serem mais frágeis, com menor capacidade de resistência e de defesa, merecem maior proteção do Direito Penal; daí que a agressão a seus bens jurídicos mais importantes merecerá, só por sua condição físico-biológica, maior reprimenda penal. Criança, segundo determina o Estatuto da Criança e do Adolescente, é a pessoa até 12 anos de idade incompletos. A Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003, publicada no DOU de 3-10-2003, com vigência 90 dias após a publicação, deu nova redação à alínea h do inciso II do art. 61 do Código Penal, substituindo a expressão “idoso”, por “maior de 60 (sessenta) anos”, dispensando-se, a partir daí, qualquer consideração acerca do vigor físico da vítima. Assim, ainda que ela seja fisicamente robusta, mas tendo 61 anos de idade, incidirá a agravante. Enfermo é a pessoa acometida de moléstia que lhe altere a saúde física ou mental, tornando-a deficiente, temporária ou permanentemente. Não será qualquer doença, moléstia, enfermidade, que autorizará a agravação da pena, mas apenas aquela que conduzir o agente a uma situação de clara superioridade de forças. Não se agravará a pena do que matar alguém portador de câncer, ainda que em estágio avançado, se a doença não tiver ainda afetado as condições e a aparência física da vítima, nem era do conhecimento do agente. Necessário que este se aproveite da condição de enfermidade da vítima, para mais facilmente realizar o crime. A Lei nº 9.318, de 5-12-1996, alterou a alínea h do art. 61 do Código Penal, para incluir a expressão mulher grávida, suprindo, assim, uma omissão do sistema anterior. Importante a inovação, já que a grávida também oferece menor capacidade de

34 – Direito Penal – Ney Moura Teles resistência a seu agressor. Maior deve ser a reprovação de quem comete crime contra vítima com capacidade de resistência ou defesa indiscutivelmente inferior.

17.4.2.10

Ofendido sob imediata proteção da autoridade

Todos nós, cidadãos, estamos sob a proteção das autoridades, a quem o Estado incumbe o dever de proteger todos os bens jurídicos. Aqui se trata de uma agravação da pena se a vítima estiver sob proteção imediata, vale dizer, direta, próxima da autoridade pública. O crime praticado contra o preso, o submetido à medida de segurança ou socioeducativa, a criança ou o adolescente conduzido por um policial, a testemunha protegida, enfim, toda e qualquer pessoa que estiver diretamente sob a proteção de qualquer agente estatal, será reprovado de modo mais severo, exatamente pela maior reprovabilidade do comportamento daquele que, extremamente audacioso, não se detém nem diante da presença do Estado que protege a vítima, e prossegue em seu desiderato, violando a norma penal.

17.4.2.11

Incêndio, naufrágio, inundação ou qualquer calamidade

pública, ou desgraça particular do ofendido Em algumas situações concretas da vida, as pessoas atravessam enormes dificuldades, exigindo-se, de todos os seus semelhantes, os cidadãos, atitudes solidárias, de modo a receber apoio, moral, material, enfim, colaboração para a superação daquelas situações indesejáveis. É o que acontece nos momentos de calamidade pública, nos momentos em que irrompem os incêndios, as inundações, os naufrágios, enfim, situações em que as pessoas se encontram diante das chamadas “desgraças”. Tais momentos, essas situações, por suas características próprias, impõem solidariedade entre os homens, de modo que aquele que comete crimes contra pessoas que passam por tais dificuldades revela insensibilidade altamente reprovável, para alguns até mesmo um desvio de personalidade conhecido por sadismo, ou perversão, razão da necessidade da agravação da pena.

17.4.2.12

Embriaguez preordenada

Aplicação da Pena - 35 No Capítulo 11 deste manual, abordou-se a actio libera in causa, oportunidade em que se mostrou que a culpabilidade daquele que comete crime em estado de embriaguez completa constitui verdadeira e indesejável responsabilidade objetiva. Nessas hipóteses, o agente realiza o fato típico sem nenhuma consciência do fato ou da ilicitude, não podendo alcançar tal consciência. Aqui, manda a lei agravar a pena, se ele se embriaga com a intenção deliberada de, no estado de ebriez, realizar o procedimento típico. Se essa norma busca conferir maior proteção aos bens jurídicos, nem por isso deixa de constituir grave violação ao princípio da culpabilidade, já que significa punir quem não sabe, nem podia saber, o que realiza. A solução é a tipificação da ação material de se embriagar, que deverá ser punida mais rigorosamente se o agente o fizer com o fim de cometer determinado crime. Por enquanto, a embriaguez deliberada com o fim de animar-se ou desinibir-se, encontrando coragem ou eliminando timidez ou temor para cometer o crime, constitui circunstância agravante, indispensável prova robusta de que o agente se embriagou com esse objetivo.

17.4.2.13

No concurso de pessoas

Dispõe o art. 62 do Código Penal que, no caso de concurso de pessoas, seja nas hipóteses de co-autoria, seja nas de participação, a pena será agravada para o agente que tiver: a) promovido ou organizado a cooperação no crime, ou dirigido os demais concorrentes; b) coagido ou induzido algum deles a executar o procedimento típico; c) instigado ou determinado alguém sujeito a sua autoridade, ou algum inimputável ou impunível, a cometer o fato típico. A primeira das hipóteses diz respeito à autoria intelectual do crime, à qual vai corresponder agravação da pena. O chefe, o organizador, o líder, aquele que organiza, planeja, enfim, dirige a atividade criminosa de outras pessoas, terá sua pena agravada. A segunda é a da coação resistível, física ou moral. É de todo claro que não se trata da coação irresistível, pois na coação física absoluta o coagido nem realiza conduta, e na coação moral irresistível, o coagido terá

36 – Direito Penal – Ney Moura Teles certamente se conduzido sem qualquer culpabilidade, devendo, por conseguinte, ser absolvido e indenizado. Nesses dois casos, o coator responderá pelo crime realizado com a interveniência do coagido, e, além disso, pelo crime de constrangimento ilegal, de modo que, se se fizer incidir a agravante, estaríamos diante de inaceitável bis in idem. Essa agravante refere-se àquela coação a que o sujeito podia resistir, desde que tivesse exercido pelo menos influência positiva na consecução do crime pelo coagido. Nesses casos, o autor da coação responderá com pena agravada. Também terá pena agravada aquele que tiver induzido outrem a executar materialmente o crime. Por indução entende-se a implantação, na mente de alguém, da idéia de cometer o delito, o que pressupõe sua inexistência anterior. Vale dizer, o indutor faz surgir, na cabeça do outro, a idéia de delinqüir, quando nem lhe passava esse pensamento. Outra hipótese de agravação é a da instigação ou determinação dirigida à pessoa subordinada, ainda que a relação hierárquica seja de natureza privada, à pessoa inimputável ou ao impunível. É outra modalidade de autoria intelectual, com a diferença de que existe a relação de autoridade, pública ou privada, entre quem instiga ou determina e o que comete o fato, ou este é inimputável ou impunível. Instigar é incentivar, reforçar na mente alheia o propósito de comportar-se de determinada maneira. Determinar é impor essa mesma conduta. Finalmente, repete-se a agravação para o que tiver participado do crime, mediante paga ou promessa de recompensa, torpeza à qual já nos referimos. As agravantes somente incidem no caso de prática de crimes dolosos. Parte da doutrina e da jurisprudência admite a possibilidade da agravação, nos crimes culposos, apenas pela presença da reincidência, com o que, como é de todo óbvio, não se pode de nenhum modo concordar.

17.4.3

Atenuantes

As circunstâncias atenuantes estão enumeradas nos arts. 65 e 66 do Código Penal. Incidente uma delas, impõe-se a diminuição da pena aplicada, em quantidade que o juiz determinar, conforme entenda necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime. Não há, como já se disse, determinação legal sobre o quantum da atenuação, e, como entendemos, pode ser a pena fixada abaixo do grau mínimo. Analisamos, a seguir, as circunstâncias legais atenuantes.

Aplicação da Pena - 37

17.4.3.1

Menor de 21 anos e maior de 70 anos

O agente que tiver praticado crime quando tinha idade entre 18 e 21 anos, exatamente por se encontrar naquela fase transitória entre a menoridade penal, a inimputabilidade, e a maturidade, a plena capacidade, necessita de menor reprovação, em face de sua menor capacidade de discernimento. Essa é a razão pela qual a lei manda que a pena seja atenuada, se o agente, no momento da conduta, tinha menos de 21 anos de idade. Algumas vozes levantam-se, aqui e ali, tanto contra a menoridade penal até os 18 anos, quanto contra essa atenuante do art. 65, I, do Código Penal, brandindo com a norma constitucional do art. 14, § 1º, II, c, que faculta ao menor de 18 anos e maior de 16 o alistamento eleitoral e o voto. Afirmam que, ao permitir o voto ao jovem de 16 anos, a Carta Magna manifesta o entendimento de que, nessa idade, dispõe ele de capacidade de discernimento. Se a mesma Constituição que permite ao adolescente maior de 16 anos o exercício do direito de voto considera-o inimputável penalmente (art. 228), só podemos compreender a concessão daquela faculdade como incentivo ao exercício da cidadania, e não como definição de capacidade de compreensão da ilicitude. Nem se venha, ademais, argumentar com o crescimento da delinqüência juvenil, apontando para a necessidade de diminuir o limite da menoridade penal e eliminar essa atenuante, pois que o Direito Penal não é, nem será jamais, instrumento eficaz de combate da criminalidade ou da marginalidade, nem o purificador das almas, educador dos homens, aperfeiçoador das personalidades, mas tão-somente o protetor de bens jurídicos. A tarefa de combate ao crime, de educação dos jovens, de eliminação da exploração é de toda a sociedade, por seus organismos vivos e democráticos, e não será um direito penal mais severo, com a menoridade penal reduzida, ou com a extinção dessa atenuante, que se irá resolver mais esse grave problema social brasileiro. A idade do condenado, entre 18 e 21 anos, é atenuante que não se afasta pela emancipação ou pelo casamento. A pena será, ainda, atenuada se o condenado tiver, na data da sentença, mais de 70 anos, tenha ou não condições físicas ou psíquicas debilitadas, pois o critério é objetivo. A razão, para a doutrina dominante, é de natureza humanitária, pois evitaria a privação da liberdade de alguém no fim da vida, o que seria extremamente doloroso.

38 – Direito Penal – Ney Moura Teles A atenuante é inspirada pelo princípio diretor da aplicação da pena: necessidade e suficiência, para reprovar e prevenir o crime. Ora, quanto mais idoso o condenado, mais próximo estará do final de sua vida. A necessidade de pena para alguém com mais de 70 anos é cada vez menor, em termos de prevenção, podendo-se mesmo chegar à conclusão de que é quase nenhuma, quanto mais velho o agente. Imagine-se um condenado a pena de 12 anos de reclusão – mínima para o homicídio qualificado – que tenha, no momento da sentença, 75 anos de idade. Dificilmente, cumprirá a pena; por isso, melhor será mesmo a aplicação de uma pena abaixo do mínimo, que, executada, poderá efetivamente cumprir sua função de reprovação e prevenção. A idade do condenado, além de atenuante da pena, vai influir na contagem dos prazos de prescrição, reduzindo-os de metade, como veremos adiante.

17.4.3.2

Desconhecimento da lei

Ignorância legis neminem excusat é o princípio por todos conhecido, segundo o qual ninguém pode eximir-se da responsabilidade penal sob a alegação de que não conhecia a lei. Vale dizer, ninguém será absolvido, desculpado, pelo fato de não ter conhecimento da prévia existência de uma lei; por isso, o art. 21 do Código Penal afirma que o desconhecimento da lei é inescusável. Esse princípio assenta-se sobre uma presunção absoluta do conhecimento da lei. Todos os cidadãos estariam obrigados a conhecer todas as leis, a partir do momento de sua publicação no órgão oficial, de modo que, vindo a infringir uma delas, por não ter conhecido seu mandamento, essa circunstância não lhe beneficiaria, de nada valendo tal alegação. Essa presunção absoluta, todavia, torna-se uma presunção de culpabilidade, que modernamente não se pode aceitar. A culpabilidade não pode ser presumida, mas deve restar evidenciada no momento da realização da conduta, pela possibilidade de conhecimento do injusto e pela exigibilidade de conduta diversa. Nos dias de hoje, principalmente, convivemos com verdadeiro e imenso cipoal de leis e normas, que diariamente se avolumam, cada qual mais complexa que a outra, de tal modo que é absolutamente impossível o conhecimento pleno de toda a legislação vigente no país. Raras são as pessoas, verdadeiros experts, que podem assegurar ter pleno conhecimento de todas as leis em vigor no país e, se pensarmos nos problemas acerca da interpretação das leis, chegaremos à conclusão de que já não se pode

Aplicação da Pena - 39 compreender o princípio como uma presunção absoluta, sob pena de se cometer profunda injustiça para com os indivíduos. Em determinadas circunstâncias, não se pode exigir de alguém o conhecimento total de certa norma jurídica, e, se esse conhecimento participa do processo de formação da consciência da ilicitude, a presunção do conhecimento da lei só poderá ser relativa. Assim, na situação concreta, o desconhecimento da lei pode, excepcional e inevitavelmente, conduzir à ignorância da ilicitude, ou à impossibilidade de conhecê-la, o que importará em exclusão ou diminuição da culpabilidade, conforme seja o erro invencível ou vencível. Noutras hipóteses, em que não se verificar a ausência ou diminuição da consciência da ilicitude, o desconhecimento da lei, se efetivamente demonstrado e se presente relação causal dele com o fato praticado, poderá atenuar a pena imposta ao condenado. Em conclusão, o desconhecimento da lei é, a princípio, e por si só, inescusável. Sendo elemento tributário da formação de um atuar em erro de proibição, inevitável ou evitável, haverá exclusão ou diminuição da culpabilidade. Ausente o erro de proibição, o desconhecimento da lei será apenas atenuante da pena a ser imposta ao agente.

17.4.3.3

Motivo de relevante valor social ou moral

Se o agente se tiver comportado sob inspiração de motivação relevante do ponto de vista social ou moral, a pena será igualmente atenuada. Valor socialmente relevante é o que, interessando a toda sociedade, se volta para o benefício de uma coletividade, da comunidade. De relembrar que tal motivo não justifica o fato típico, e tampouco desculpa o agente que o praticar, pelo que não se confunde com motivo justo ou desculpável. Mesmo havendo o crime, a circunstância de ter sido cometido sob a inspiração de um motivo socialmente relevante importará na atenuação da pena, em face exatamente de sua orientação em prol da sociedade. Assim, merecerá atenuação da pena aquele que cometer o crime de esbulho possessório – invade, com violência à pessoa ou grave ameaça, ou mediante concurso de mais de duas pessoas, terreno ou edifício alheio, para o fim de esbulho possessório – a fim de no imóvel promover o assentamento de trabalhadores desempregados e a produção de alimentos destinados ao sustento desse grupo de marginalizados sociais. Valor moralmente relevante é o que, interessando a um ou mais indivíduos, ajusta-se razoavelmente a conceitos morais cultivados pela sociedade. Não é valor que

40 – Direito Penal – Ney Moura Teles justifica nem desculpa o crime, mas que, por sua consonância ou harmonia com a moralidade normal das pessoas, autoriza menor reprovação. Merece ter sua pena atenuada por esse motivo aquele que dolosamente causou lesões corporais no caluniador de seu velho e honrado pai. Essas atenuantes devem ser apreciadas segundo critérios objetivos, de acordo com a consciência da sociedade, com seus valores éticos, e não de acordo com particular compreensão do agente. Tratando-se de homicídio, de ver que essas atenuantes guardam proximidade com a causa de diminuição prevista no § 1º do art. 121, o chamado homicídio privilegiado. Ali, se o agente tiver cometido o crime “impelido por motivo de relevante valor social ou moral”, a pena será reduzida de um sexto a um terço. Há diferença entre a causa de diminuição – objeto da terceira etapa da aplicação da pena – e a atenuante do art. 65, III, a. Na primeira, é necessário que o agente tenha sido impelido, é dizer, impulsionado, premido, dominado, por um motivo de relevante valor moral ou social, ao passo que na atenuante basta que tenha praticado o fato inspirado por tal motivo. A diferença está em que, na circunstância privilegiadora, o valor, moral ou social, exerce preponderante papel na determinação da vontade do sujeito, ao passo que na atenuante o grau de eficiência é menor. Por essa razão, pode ocorrer um homicídio cometido sem que o agente tenha sido impelido por um motivo relevante, mas que mereça ter sua pena atenuada, por ter sido praticado sob a inspiração do mesmo motivo relevante. Ou seja, o valor moral ou socialmente relevante terá exercido influência na formação da vontade do sujeito, não a ponto de impeli-lo, impulsioná-lo, empurrá-lo na direção da realização do tipo, mas apenas de instigá-lo ou induzi-lo, sugerindo-lhe a prática do fato. Seria, assim, diferença idêntica a que existiria entre resistir e não resistir a um impulso. Se a força do impulso for irresistível, incidirá a causa de diminuição; se resistível, presente apenas a atenuante. É óbvio que, no homicídio, se reconhecida a causa de diminuição, não se aplicará a atenuante, pois que uma mesma causa não pode servir duas vezes para minorar a reprimenda, tanto quanto não o pode para majorá-la.

17.4.3.4

Evitar ou minorar eficientemente as conseqüências do crime

Aplicação da Pena - 41 Consumado o crime ou só apenas tentada sua prática, tem lugar, imediatamente, a instalação de suas conseqüências, seus efeitos naturais e normais. Se o agente, logo em seguida ao crime, voluntariamente, comportar-se de modo a, pelo menos, obter a diminuição da gravidade das conseqüências, ou, se possível, evitar os efeitos de sua ação, e, evidentemente, se conseguir esse intento, merecerá menor reprimenda, mediante a atenuação da pena-base, porque nesse caso terá revelado um arrependimento concreto capaz de demonstrar seu maior senso de justiça e de humanidade, que impõem a necessidade de menor reprovação social. Essa é uma espécie de arrependimento – não o eficaz, do art. 15, Código Penal, em que o agente impede que o resultado ocorra, e que altera a tipicidade do fato, e algumas vezes até a exclui; nem o posterior, do art. 16, Código Penal, que é causa de diminuição da pena, e diz respeito apenas aos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, bem assim à reparação do dano antes do recebimento da queixa ou denúncia. Esse é o arrependimento que pode acontecer em todo e qualquer delito e também nas tentativas de crimes.

17.4.3.5

Reparação do dano

Essa atenuante do art. 65, III, b, parte final, não se confunde com a causa de diminuição do art. 16 do Código Penal, que trata do arrependimento posterior, por uma única razão: nesse, a reparação do dano deve ser promovida antes do recebimento da denúncia ou da queixa, ao passo que nessa atenuante a reparação do dano pode ser feita até o momento imediatamente anterior ao do julgamento do processo. Indispensável que a atitude do agente seja espontânea e que o dano seja integralmente reparado. A expressão antes do julgamento não quer dizer que só incidirá a atenuante se a reparação tiver sido feita antes da decisão do juiz de primeiro grau, pois que, se realizado posteriormente à sentença, o tribunal, ao conhecer do recurso, deverá promover a atenuação da pena.

17.4.3.6

Coação resistível e cumprimento de ordem

Já foi explicado, no Capítulo 11 deste manual, que, se o crime tiver sido cometido sob coação moral irresistível, ou em cumprimento de ordem não manifestamente ilegal de superior hierárquico, estará ausente um dos elementos da culpabilidade. No primeiro caso, a exigibilidade de conduta diversa, e no segundo, a potencial consciência

42 – Direito Penal – Ney Moura Teles da ilicitude. O agente será absolvido, por não ser culpado. Se a coação moral for, todavia, resistível, ou se a ordem do superior hierárquico não for daquelas não manifestamente ilegais, o agente será culpado; todavia, o grau de censura poderá ser menor, incidindo, por isso, a atenuação da pena-base. Só poderá incidir a atenuante, se a coação, embora resistível, for suficientemente eficaz para exercer sobre o agente uma força que lhe diminua a capacidade de resistência. Examinando-se-lhe a conduta, verificará o juiz a possibilidade de exigir comportamento outro, mas deverá estar certo de que tal exigibilidade não é plena e total. Se o agente comete o crime em obediência a ordem ilegal do superior hierárquico, responderá pelo crime, porquanto se pode exigir-lhe a desobediência, mas, conquanto esteja sob a pressão psicológica do superior, pode-se compreender o comportamento do agente que merecerá menor reprimenda.

17.4.3.7

Violenta emoção

Em algumas situações, o agente realiza o crime influenciado por uma emoção violenta, resultante de um comportamento injusto da vítima. Não se pode confundir essa situação com aquela outra, definida no § 1º do art. 121, em que o homicídio é cometido sob o domínio de violenta emoção, logo após injusta provocação da vítima, que é uma causa de diminuição da pena, objeto da terceira etapa da aplicação da pena, no caso específico do homicídio. Esta atenuante, que se aplica a todo e qualquer crime, difere da causa de diminuição, porque aqui, diferentemente, o agente realiza o fato influenciado pela violenta emoção, ao passo que lá sua vontade é dominada pela emoção. Ali, a vítima realiza uma provocação injusta, e aqui basta qualquer ato injusto. Além disso, naquela situação, a conduta do agente deve ser realizada logo após a provocação, e nessa atenuante não está presente o requisito da imediaticidade. Se, no homicídio, tiver incidido a causa de diminuição do § 1º do art. 121, configurando-se o privilégio, não poderá incidir a atenuante, pois que se consideraria duas vezes a mesma ou assemelhada circunstância, o que não se admite.

17.4.3.8

Confissão espontânea

No direito anterior, na Parte Geral do Código de 1940, só incidiria essa atenuante se o

Aplicação da Pena - 43 agente confessasse o crime cuja autoria fosse ignorada ou estivesse sendo atribuída a outra pessoa. Com a nova redação, dada pela Lei nº 7.209/84, é preciso que o agente confesse ser autor do fato, para incidir, obrigatoriamente, a atenuante, não importando tenha sido ele preso em flagrante, nem que haja provas robustas de autoria, muito menos que a confissão seja feita apenas perante o juiz. “Mas a confissão, só por si, não é suficiente. É necessário que seja espontânea, isto é, que a vontade do confitente seja determinada sem a intervenção de fatores externos. A confissão forçada ou induzida não serve para efeito de caracterização da minorante”15 porque a intenção da lei é estimular o agente a reconhecer seu comportamento, oferecendo-lhe a atenuante, como prêmio.

17.4.3.9

Multidão em tumulto

Se o crime tiver sido cometido sob a influência de multidão em tumulto não provocado pelo agente, é de ver que as condições determinantes do comportamento são diferentes das que, normalmente, atuam sobre a psique do homem, impondo-se, de conseqüência, tratamento diferente para o que, em tais circunstâncias, vier a delinqüir. É que a formação da vontade da pessoa, sob a influência do tumulto provocado por multidão em conflito, se dá sob a interferência de uma série de outros fatores externos que podem alterar, sensível ou pelo menos razoavelmente, a capacidade de entendimento ou de determinação do indivíduo, razão por que, em certas situações, não se pode exigir dele, como normalmente e na mesma intensidade, comportamento conforme o direito. Se é certo que o tumulto não justifica, nem desculpa, às vezes pode significar menor reprimenda penal, incidindo pois a atenuante.

17.4.3.10

Outra circunstância relevante

O art. 66 do Código Penal manda atenuar a pena “em razão de circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei”.

15

FRANCO, Alberto Silva. Op. cit. p. 176.

44 – Direito Penal – Ney Moura Teles Essa inovação do legislador da reforma penal de 1984 constitui um dos mais importantes avanços no campo do Direito Penal da aplicação da pena, pois que torna o juiz mais do que um simples decodificador das normas positivas, transformando-o no verdadeiro operador do direito, com a responsabilidade de distribuir a justiça penal, reprovando e prevenindo o crime, dentro dos limites da suficiência e da necessidade. Imaginem a seguinte situação: determinado sujeito, condenado por certo crime, é portador do HIV, está em estado de saúde terminal e deverá, a princípio, receber uma pena-base de quatro anos de reclusão. Inexistente qualquer causa de diminuição da pena, esta seria, a princípio, a pena definitiva, mas o juiz pode considerar a situação do condenado, que é posterior ao crime, uma circunstância atenuante relevante, que poderá, tranqüilamente, fazer a pena ser atenuada em dois anos, podendo, após tal atenuação, o juiz suspender a execução da pena, na forma do art. 77, livrando o aidético do encarceramento e os outros presos do convívio com ele na prisão. Essa, aliás, é mais uma das razões para se admitir a possibilidade de que as atenuantes possam fazer a pena ser fixada aquém do mínimo legal. Para reconhecer uma circunstância atenuante inominada, o juiz poderá ainda levar em conta o grau de exigibilidade de conduta diversa e terá, sempre, como diretriz o princípio de aplicação da pena que lhe impõe verificar a necessidade e a suficiência para os fins de reprovação e prevenção do crime.

17.4.4

Concurso de agravantes e atenuantes

No momento da aplicação da pena, o juiz, depois de ter fixado a pena-base e verificado a existência das circunstâncias agravantes e atenuantes, depara-se, muitas vezes, com a presença de mais de uma dessas circunstâncias. Havendo duas circunstâncias agravantes, a pena será agravada duas vezes, uma para cada fator reconhecido, o mesmo se dando em relação às atenuantes, quando a pena será tantas vezes diminuída quantas forem as circunstâncias presentes. Noutras oportunidades, incidem uma agravante e uma atenuante, tornando mais complexa a tarefa do julgador. A solução desses problemas deve ser encontrada com atenção ao disposto no art. 67 do Código Penal: “No concurso de agravantes e atenuantes, a pena deve aproximar-se do limite indicado pelas circunstâncias preponderantes, entendendo-se como tais as que resultam dos motivos determinantes do crime, da personalidade do agente e da

Aplicação da Pena - 45 reincidência.” As circunstâncias são subjetivas e objetivas, devendo prevalecer, no caso de concurso, as primeiras, não se podendo esquecer que, segundo já defendido, circunstâncias que decorrem da personalidade e dos antecedentes do agente só podem ser compreendidas no sentido de favorecê-lo, nunca de conduzir à agravação da reprimenda. Por essa razão, a reincidência não pode preponderar sobre nenhuma circunstância atenuante. As atenuantes da motivação preponderam sobre todas as agravantes, e a menoridade, é entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência, por se tratar de circunstância relativa à personalidade do agente, preponderará sobre qualquer agravante, inclusive sobre a reincidência. Na fase de aplicação da pena, o juiz não pode utilizar raciocínio aritmético, por exemplo, assim: “há duas atenuantes, e duas agravantes, que se anulam, pelo que mantenho a pena-base”. Em qualquer das hipóteses de concurso de agravantes e atenuantes, haverá prevalência das circunstâncias subjetivas. Apenas na hipótese de não se caracterizar nenhuma dessas circunstâncias é que se manterá a pena-base. Em qualquer hipótese, a decisão do julgador deverá ser convincentemente motivada, sob pena de nulidade.

17.5 CAUSAS DE AUMENTO E DE DIMINUIÇÃO Vencida a segunda etapa da aplicação da pena, que é a consideração das circunstâncias legais atenuantes e agravantes, deve o juiz percorrer a terceira fase, consistente na análise das causas de aumento e das causas de diminuição de pena. Após atenuar ou agravar a pena-base, deve o julgador verificar se existem causas de aumento e de diminuição, procedendo, em seguida, à operação correspondente, nos limites fixados pela norma.

17.5.1

Causas de aumento

As chamadas causas de aumento são circunstâncias legais às quais corresponde a majoração da pena, em quantidade determinada, fixa ou variável, estabelecida na norma, encontrando-se tanto na parte geral, quanto na parte especial do Código Penal. Exemplo: “Art. 121, § 4º No homicídio culposo, a pena é aumentada de um terço, se o

46 – Direito Penal – Ney Moura Teles crime resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima, não procura diminuir as conseqüências do seu ato, ou foge para evitar prisão em flagrante. Sendo doloso o homicídio, a pena é aumentada de um terço, se o crime é praticado contra menor de 14 (catorze) ou maior de 60 (sessenta) anos.” Neste caso, a pena é aumentada de uma quantidade fixa. Outro exemplo: “Art. 157, § 2º A pena aumenta-se de um terço até metade: I – se a violência ou ameaça é exercida com emprego de arma; II – se há o concurso de duas ou mais pessoas; III – se a vítima está em serviço de transporte de valores e o agente conhece tal circunstância. IV - se a subtração for de veículo automotor que venha a ser transportado para outro Estado ou para o exterior; V - se o agente mantém a vítima em seu poder, restringindo sua liberdade.” Neste exemplo, o aumento é determinado em quantidade variável, observados os graus, mínimo e máximo. Como se vê, a lei define a circunstância, com todos os seus elementos, impondo o aumento da pena, ora numa quantidade fixa, ora variável, que incidirá sobre a quantidade da pena encontrada pelo juiz após a segunda fase da aplicação.

17.5.1.1

Da parte geral

Na parte geral do Código Penal, encontram-se definidas várias causas de aumento. No art. 29, § 2º, cuida-se do aumento da pena nos casos de cooperação dolosamente diversa, para o concorrente que, desejando crime menos grave do que o praticado pelo outro, poderia ter previsto o resultado mais grave. Sendo condenado, ser-lhe-á aplicada a pena do crime menos grave, que era o que desejava fosse realizado, aumentada de até metade. No Capítulo 8 deste manual, essa hipótese é tratada detalhadamente. Outra causa de aumento da parte geral encontra-se no § 1º do art. 60, e diz respeito à pena de multa: “A multa pode ser aumentada até o triplo, se o juiz considerar que, em virtude da situação econômica do réu, é ineficaz, embora aplicada no máximo.” Trata-se, como se vê, de uma causa de aumento determinada em quantidade

Aplicação da Pena - 47 fixa, o triplo, que poderá ser aplicada até mesmo sobre o grau máximo da cominação. Esse aumento se dará quando o juiz verificar que a pena cominada é insuficiente para alcançar os fins constantes da diretriz maior da aplicação da pena: suficiência e necessidade para reprovar e prevenir o crime. Ainda na parte geral, os arts. 70, 71, 73 e 74 mandam o juiz impor aumentos nas penas, mas, por se tratar de institutos da mais alta importância, concurso formal, crime continuado, aberratio ictus e aberratio delicti, serão estudados mais detalhadamente em páginas seguintes.

17.5.1.2

Da parte especial

Na parte especial do Código Penal, ao lado de cada tipo legal de crime, podem existir, e existem muitas, causas de aumento de pena. Após definir a conduta proibida, a lei manda aumentar a pena na presença das circunstâncias que descrever. O estudo detalhado de cada uma delas, com todos os seus elementos, será feito quando do estudo dos crimes em espécie, nos volumes II e III deste manual. Nesta oportunidade, é importante, a título ilustrativo, mencionar algumas causas de aumento da parte especial. No crime de violação do domicílio, tipificado no art. 150 do Código Penal, a pena será aumentada de um terço, se o fato tiver sido praticado por funcionário público, fora dos casos legais, ou com inobservância das formalidades legais, ou, ainda, com abuso de poder (art. 150, § 2º, CP). No delito de furto, a pena será aumentada de um terço, se o fato tiver sido praticado durante o repouso noturno (art. 155, § 1º). No estelionato, o aumento de pena, também de um terço, incidirá na hipótese de o crime ter sido cometido em prejuízo de entidade de direito público ou de instituto de economia popular, assistência social ou beneficência. Como se vê, a quantificação do aumento deverá ser feita, prudentemente, pelo julgador, que se orientará: (a) pelas circunstâncias judiciais do art. 59, observando-se as restrições feitas às de natureza pessoal; (b) pelas circunstâncias específicas de cada causa de aumento; e (c) pelo princípio diretor da aplicação da pena: a suficiência e a necessidade para reprovar e prevenir o crime.

17.5.2

Causas de diminuição

48 – Direito Penal – Ney Moura Teles As causas de diminuição são, também, circunstâncias definidas na lei, às quais, todavia, correspondem a diminuição da pena, em quantidade fixa ou variável, entre graus máximo e mínimo. Exemplo clássico é o do § 1º do art. 121 do Código Penal: “Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.” Como se vê, neste exemplo, a diminuição é determinada no intervalo entre um sexto e um terço da pena encontrada pelo julgador até a segunda etapa da aplicação da pena. As causas de diminuição, igualmente, estão definidas tanto na parte geral, quanto na parte especial do Código Penal.

17.5.2.1

Da parte geral

No parágrafo único do art. 14 do Código Penal, está escrita a regra geral da punibilidade das tentativas de crime, determinando que, se o procedimento típico não se tiver completado por circunstâncias alheias à vontade do agente, a pena será diminuída de um a dois terços. Outra causa de diminuição obrigatória é a hipótese do arrependimento posterior, definido no art. 16 do Código Penal: “Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços.” Os requisitos para esta diminuição são: (a) não ser o crime praticado com violência ou grave ameaça à pessoa; (b) a reparação do dano ou a restituição da coisa devem ser promovidas voluntariamente pelo agente e ter ocorrido antes do recebimento da inicial de acusação. Não será contemplado com essa causa de diminuição o agente do furto, cuja res furtiva tiver sido recuperada pela polícia ou pela própria vítima. Ocorrendo erro de proibição evitável – erro sobre a ilicitude do fato que poderia, com a devida cautela, ter sido evitado –, a pena será igualmente diminuída de um sexto a um terço, como manda o art. 21 do Código Penal. Trata-se de situação em que o agente age sem consciência da ilicitude, quando lhe era plenamente possível alcançar

Aplicação da Pena - 49 essa consciência. No § 2º do art. 24 do Código Penal, encontra-se outra causa obrigatória de diminuição da pena que se aplica nas hipóteses em que o agente, inicialmente, encontrava-se em estado de necessidade. “Embora seja razoável exigir-se o sacrifício do direito ameaçado, a pena poderá ser reduzida de um a dois terços.” Cuida-se da hipótese em que, numa situação de perigo para um bem jurídico, o agente sacrifica outro bem de maior valor ou importância. Não incidirá, como é claro, a excludente da ilicitude definida no art. 24, porque não satisfeito o pressuposto da proporcionalidade que deve existir entre os bens em colisão, mas o grau de exigibilidade de conduta diversa é reduzido, em virtude do perigo para o bem afinal salvo, em detrimento do outro. É o que ocorre em certas situações em que o sujeito furta para se alimentar, em situação que não autoriza a exclusão da ilicitude pelo furto famélico, eis que poderia, nas circunstâncias, ter realizado outro comportamento, por exemplo, pedindo o alimento à vítima. Responderá pelo delito, porém, com a diminuição da pena. Outras duas causas de diminuição da parte geral que se assemelham são as contidas no parágrafo único do art. 26 e no § 2º do art. 28 do Código Penal, e que tratam da capacidade diminuída, respectivamente, por perturbação da saúde mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado, e por embriaguez incompleta, proveniente de caso fortuito ou força maior. São aqueles estados intermediários entre a plena capacidade de discernimento e de determinação, e a ausência dessa capacidade, em que o agente, mesmo capaz, não o é em sua plenitude, razão por que se impõe menor reprimenda, com a obrigatória diminuição da pena. Finalmente, ao tratar do concurso de pessoas, dispõe o § 1º do art. 29 do Código Penal que “se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de um sexto a um terço”. Trata-se da menor eficiência causal da participação em crime alheio, que enseja menor reprovação em face da pequena significação do comportamento do partícipe. Relativamente às expressões pode e poderá, referindo-se à diminuição, o entendimento unânime é o de que a faculdade diz respeito à quantificação da redução, sendo, assim, dever do juiz operar a minoração da pena se estiverem presentes seus pressupostos, pois que se trata de direito subjetivo do condenado.

17.5.2.2

Da parte especial

50 – Direito Penal – Ney Moura Teles O estudo das causas de diminuição previstas na parte especial será feito, detalhadamente, quando da análise de cada crime em espécie nos

volumes II e III

deste manual. Nesta quadra, devem-se apenas mencionar, de modo sucinto e genérico, algumas causas de diminuição da parte especial. Além do homicídio (art. 121, § 1º) e da lesão corporal privilegiada (art. 129, § 4º) – cometidos por motivo de relevante valor social ou moral ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima –, importa falar do furto, do estelionato e da receptação dolosa privilegiados. Como se vê, são todos crimes contra o patrimônio cometidos sem violência, real ou moral contra a pessoa, sobre os quais vai incidir uma causa de diminuição, desde que, entre outras condições, o agente for primário, vale dizer, não reincidente. No caso de furto, se, além de primário o agente, for de pequeno valor a res furtiva, a pena pode ser diminuída de um a dois terços. O juiz poderá, em vez de diminuir a pena privativa de liberdade, aplicar somente a pena de multa (art. 155, § 2º). No estelionato e na receptação dolosa, o agente primário merecerá a redução da pena, de um a dois terços, se pequeno o prejuízo da vítima, facultado ao juiz, igualmente ao furto, aplicar apenas a multa (art. 171, § 1º). Em qualquer das hipóteses de causas de diminuição da pena, seja da parte geral, como da parte especial, quando o juiz determinar redução mínima, deverá, necessariamente, motivar circunstanciadamente a sua decisão, a fim de que o condenado possa saber por que não foi contemplado com a redução máxima. A exigência é inarredável, sob pena de nulidade da decisão. Os critérios para a determinação do quantum redutor são os mesmos do art. 59, as circunstâncias judiciais ali descritas, com as observações feitas acerca das de natureza pessoal – personalidade, antecedentes e conduta social – e, principalmente, a observância da diretriz superior da aplicação da pena: conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime.

17.5.3

Concurso de causas de aumento e de diminuição

Pode ocorrer a incidência, num mesmo fato, de mais de uma causa de diminuição, de mais de uma causa de aumento, bem assim de duas de aumento e uma de diminuição, ou de duas de diminuição e uma de aumento; é possível ainda que umas sejam da parte geral, outras da especial.

Aplicação da Pena - 51 Por exemplo, João, de 19 anos, tendo capacidade diminuída (art. 26, parágrafo único), realiza tentativa (art. 14, II, parágrafo único) de homicídio privilegiado (art. 121, § 1º), contra Marco, de 13 anos de idade (art. 121, § 4º). Na hipótese, haveria três causas de diminuição, duas da parte geral (tentativa e capacidade diminuída) e uma da parte especial (privilégio) e uma causa de aumento, da parte especial (contra menor de 14 anos). Como proceder o juiz diante de situações como essas? A primeira indagação, no que diz respeito ao concurso homogêneo das causas, aquele que se dá entre apenas as de aumento ou entre apenas as de diminuição, é: (a) a incidência da segunda causa se dará sobre o resultado da operação realizada na apreciação da primeira causa; ou (b) sobre a pena encontrada na segunda etapa da aplicação da pena, isto é, sobre a pena-base atenuada ou agravada? No exemplo apresentado, suponhamos que a pena-base tenha sido fixada em seis anos e seis meses, e, diante da idade do agente, atenuada em seis meses, concluída a segunda etapa com uma pena de seis anos de reclusão. A primeira causa de diminuição a ser aplicada é a relativa à tentativa, que, será, por exemplo, de 2/3, ou seja, de quatro anos, ficando a pena em dois anos de reclusão. Em seguida, como deve proceder o juiz, para aplicar o redutor do parágrafo único do art. 26 (capacidade diminuída), que ele pretende determinar em 2/3? Tomará como base a pena de seis anos, determinada na segunda etapa, ou a pena de dois anos, já modificada nessa terceira etapa? Se partisse da pena-base atenuada, de seis anos, a nova redução seria de quatro anos, e como já tinha sido reduzida a dois, ficaria igual a zero, o que seria um absurdo; por isso, o correto é fazer incidir a nova redução sobre o resultado da operação imediatamente anterior, ou seja, sobre dois anos, reduzindo-se, de conseqüência, de 16 meses, ficando a pena em oito meses de reclusão. Aplicadas todas as causas de diminuição, concluída está a operação relativa ao concurso homogêneo. A partir daí, o juiz deve tratar do concurso heterogêneo, agora com as causas de aumento. No exemplo, incidirá a causa de aumento do § 4º do art. 121, devendo a pena ser aumentada em um terço, mas a pergunta é: um terço de quanto, da pena-base atenuada ou da pena já reduzida? Se se seguir o mesmo critério anterior, a pena seria aumentada em pouco mais de dois meses, o que parece injusto, e se se tomar como base de cálculo a pena-base atenuada, de seis anos, encontrada na segunda etapa, a pena seria aumentada em dois anos e fixada definitivamente em dois anos e oito meses, mais compatível com o fato

52 – Direito Penal – Ney Moura Teles praticado. ALBERTO SILVA FRANCO, abordando o problema, mostrou: “O legislador de 84 não solucionou a divergência jurisprudencial no caso de concurso homogêneo de causas de aumento ou de diminuição. Sobre a matéria, formaram-se, de início, duas posições. De um lado, a corrente que defendia a tese da incidência cumulativa das causas de aumento ou de diminuição. Assim, a segunda causa de aumento ou de diminuição deve recair sobre a pena já acrescida ou reduzida pela primeira causa de aumento ou de diminuição. De outro lado, a corrente que pugnava pela incidência isolada das causas de aumento ou de diminuição. Assim, a segunda causa de aumento ou de diminuição deve incidir sobre a pena-base, e não sobre a pena já acrescida de causa de aumento ou de diminuição anterior. Evitava-se, deste modo, que as causas de aumento sucessivas, operando sobre a pena já aumentada, crescessem progressivamente, e que as causas de diminuição sucessiva, atuando sobre a pena já reduzida, diminuíssem progressivamente. Tal posição mereceu, no entanto, séria crítica na doutrina, acentuando-se que a incidência isolada, principalmente em relação às causas de diminuição sucessiva, seria inaceitável. ‘Isto porque, havendo duas diminuições, por exemplo, de dois terços e de metade, a pena resultante seria inferior a zero, o que, evidentemente, é absurdo (Julio Fabbrini Mirabete, Manual de direito penal, 1989, p. 309). Para atalhar a objeção, Celso Delmanto (Código penal anotado,1984, p. 58) sugeriu o critério de incidência diferenciada, pelo qual as causas de aumento incidiriam independentemente,

enquanto

as

causas

de

diminuição

recairiam

cumulativamente. Esta parece ser, realmente, a melhor solução, máxime em face do tresdobramento do processo individualizador da pena. Caso contrário, na segunda incidência de causa de aumento estaria embutido, de novo, nessa operação, o quantum da pena relativo às agravantes e às atenuantes legais, num intolerável bis in idem.”16 Em conclusão: a) as causas de diminuição incidem, cada qual, sobre a pena encontrada na operação imediatamente anterior, cumulativamente, de conseqüência. A segunda causa de diminuição incidirá sobre a pena obtida após a incidência da primeira causa de diminuição, e assim sucessivamente;

16

Op. cit. p. 829-830.

Aplicação da Pena - 53 b) em regra, as causas de aumento incidem, cada qual, sobre a pena-base atenuada ou agravada, isto é, sobre a pena encontrada na segunda etapa da aplicação; c) a exceção refere-se ao concurso formal e ao crime continuado (item 5.7), em que o aumento incidirá sobre a pena-base atenuada ou agravada já acrescida de qualquer outro aumento ou reduzida em razão de qualquer causa de diminuição. Se o concurso for de causas, de aumento ou de diminuição, todas previstas na parte especial, o juiz poderá aplicar apenas uma delas, a que aumentar ou diminuir mais (art. 68, parágrafo único). Também nessa oportunidade, a decisão do juiz deverá ser fundamentada, com a explicação de suas razões, sob pena de nulidade.

17.6 SUBSTITUIÇÃO POR PENA RESTRITIVA DE DIREITO OU FIXAÇÃO DO REGIME INICIAL DE CUMPRIMENTO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE Concluída a terceira etapa, determinada a qualidade e a quantidade da pena privativa de liberdade, o juiz terá a oportunidade de: (a) substituí-la por pena restritiva de direito; ou, se incabível a substituição, (b) fixar o regime inicial de cumprimento da pena. A substituição, abordada no Capítulo 15, será possível quando for aplicada pena privativa de liberdade de até quatro anos, se o crime for doloso e praticado sem violência ou grave ameaça à pessoa, e qualquer que seja no caso de crime culposo. Em ambas as hipóteses, as circunstâncias mencionadas no art. 44, III, do Código Penal devem ser razoavelmente favoráveis, indicando a substituição, que poderá ser concedida até mesmo ao reincidente, desde que a reincidência não seja específica. A fixação do regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade, abordada com detalhes no Capítulo 14, se fará com observância das normas do art. 33. Em qualquer dessas situações, o juiz deverá motivar sua decisão, atento, sempre, ao princípio diretor da aplicação da pena, que determina que ela será, sempre, apenas o suficiente e o necessário para a reprovação e prevenção do crime.

17.7 CONCURSO DE CRIMES

54 – Direito Penal – Ney Moura Teles Um dos temas mais importantes do direito penal é o do concurso de crimes, que, rigorosamente, deveria ser examinado no âmbito da teoria geral do crime, mas, em razão de sua colocação topográfica no Código Penal brasileiro, é estudado juntamente com a aplicação da pena. Os arts. 69, 70 e 71 cuidam, respectivamente, do concurso material, do concurso formal e do crime continuado, determinando as regras de aplicação da pena em cada uma dessas hipóteses. Conquanto essas normas conceituam o concurso, material e formal, de crimes, bem assim o crime continuado, é evidente que são normas gerais integrantes da teoria geral do crime. Para DAMÁSIO E. DE JESUS, “a questão deveria ser tratada pelo Código na teoria geral do crime, pois são mais relevantes os problemas relacionados com o delito em geral que com a pena em geral. É mais importante estabelecer a forma dos fatos puníveis que estabelecer a quantidade da pena aplicável em caso de concurso, pois a pena pode variar em face de circunstâncias, enquanto que a forma dos fatos puníveis é básica, tanto na determinação da figura típica, quanto no tocante às condições que modificam a imputação e a responsabilidade”17. Como, porém, a lei incluiu a matéria no âmbito da teoria da pena e não há, na prática, nenhum prejuízo para seu estudo, por questões didáticas também se faz o exame do concurso de crimes nesta parte do estudo.

17.7.1

Concurso material

Diz o art. 69 do Código Penal: “Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de reclusão e de detenção, executa-se primeiro aquela.” Há concurso material ou real de crimes quando o agente, por meio de mais de uma conduta, isto é, quando realizando mais de um comportamento, praticar mais de um crime, idênticos ou não. Exemplo: Pedro mata Cláudio, depois comete lesões corporais em Alfredo, e, por último, realiza o crime de calúnia contra Maria. Foram três as condutas, três os fatos; por isso, três os crimes. Um homicídio, uma lesão corporal e 17

Op. cit. p. 520.

Aplicação da Pena - 55 uma calúnia. O concurso real deriva da existência de condutas distintas, isoladas, separadas, autônomas. São fatos diferentes; por isso, crimes diferentes, ainda que realizados em momentos próximos. São as seguintes as regras para aplicação das penas. Se se tratar de penas privativas de liberdade, serão aplicadas cumulativamente, o que significa dizer que as penas de cada crime serão simplesmente somadas umas às outras. No exemplo apresentado, o juiz aplicará uma pena para o homicídio, outra para a lesão corporal e, por último, uma pena para a calúnia. Deve o juiz, todavia, individualizar a pena para cada um dos crimes, com observância rigorosa das normas pertinentes – art. 59, atenuantes, agravantes, causas de diminuição e de aumento – e, só após cada uma das individualizações, proceder à cumulação das penas definitivas. Se for possível a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos, deverá o juiz observar o seguinte: se a pena privativa de liberdade aplicada para um dos crimes não tiver sido suspensa, na conformidade do que dispõe o art. 77 do Código Penal (sursis), não poderá ser substituída por restritiva de direitos a pena para o outro crime concorrente. Em outras palavras, somente é possível a substituição de uma das penas privativas de liberdade aplicadas, se a pena aplicada para o crime concorrente tiver sido suspensa, pela concessão do sursis. É a regra do § 1º do art. 69 do Código Penal. Se for possível a substituição das várias penas privativas de liberdade cabíveis por penas restritivas de direito, poderá o condenado, se compatíveis, cumpri-las simultaneamente. Se não, o cumprimento será sucessivo. Uma pena de prestação de serviço à comunidade pode ser compatível com uma pena restritiva de direito, como, por exemplo, a suspensão da habilitação para dirigir veículo automotor. Já duas penas de limitação de fim de semana só podem ser cumpridas sucessivamente.

17.7.2

Concurso formal

No art. 70 do Código Penal, encontra-se a definição do concurso formal de crimes, assim: “Quando o agente, mediante uma só ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplica-se-lhe a mais grave das penas cabíveis ou, se iguais, somente uma delas, mas aumentada, em qualquer caso, de um sexto até metade. As penas aplicam-se, entretanto, cumulativamente, se a ação ou

56 – Direito Penal – Ney Moura Teles omissão é dolosa e os crimes concorrentes resultam de desígnios autônomos, consoante o disposto no artigo anterior.” O concurso formal, também chamado concurso ideal, vai acontecer quando o agente, com apenas uma conduta, uma ação em sentido estrito, ou uma omissão, consegue realizar dois ou mais crimes. Em outras palavras, aqui há apenas um comportamento, um fazer ou um não fazer, uma só atitude, mas serão dois ou mais os fatos tipificados no Código Penal, como, por exemplo, dois ou três homicídios provocados por um único agir, um só atuar do sujeito ativo do crime. Como na seguinte situação: João provoca a explosão de uma bomba dentro de uma sala de aula, causando a morte de 25 estudantes. Há um único comportamento humano, uma só conduta, que dá causa, todavia, a 25 resultados morte de alguém. São 25 homicídios causados por uma única ação, stricto sensu. O mesmo acontece num atropelamento de pessoas por um veículo que invade o ponto do ônibus. Uma só conduta que causa várias lesões corporais culposas em diversas pessoas. Haverá concurso formal quando se estiver diante de uma só conduta, um só comportamento, e de vários crimes. Os requisitos para a existência do concurso formal são: unidade de conduta e pluralidade de crimes. O concurso formal pode ser: homogêneo e heterogêneo, perfeito e imperfeito. Diz-se homogêneo o concurso formal quando os crimes praticados são definidos na mesma norma legal, contra vários sujeitos passivos, como no exemplo da explosão e morte de várias pessoas. Vários homicídios dolosos contra pessoas diferentes. Ou três homicídios culposos cometidos mediante uma só ação. Se os crimes praticados estiverem definidos em tipos distintos, há concurso formal heterogêneo. Exemplo: a mesma explosão dá causa à morte de uma pessoa e produz lesões corporais em outra. Serão dois crimes definidos em normas diferentes, cometidos por uma única conduta. A definição da primeira parte do art. 70 corresponde ao chamado concurso formal perfeito: quando, mediante uma só conduta, o agente pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não. Nesse caso, será aplicada apenas uma das penas, a mais grave, se o concurso for heterogêneo, ou uma delas, se homogêneo, aumentada, todavia, em ambos os casos, de um sexto até metade. Exemplos: (a) Eduardo atropela e mata, culposamente, Valdir e Flávio. Trata-se de um concurso formal perfeito homogêneo de dois homicídios culposos. Aplicar-se-á a pena de um deles, aumentada

Aplicação da Pena - 57 de um sexto até metade. O juiz deverá individualizar cada uma das penas, e supondo que tenha chegado, após considerar atenuantes, agravantes e causas de diminuição e aumento, se houver, à pena de um ano de detenção, deverá em seguida, também motivadamente, aumentá-la, por exemplo, no grau mínimo, de 1/6, do que resultará uma pena de um ano e dois meses de detenção; (b) Jaime atropela um casal, matando o homem e produzindo lesões corporais na mulher, culposamente. Aplicar-se-á a pena do homicídio culposo, aumentada de 1/6 até 1/2. A pena pode ser, inclusive, igual à do exemplo anterior, apesar de haver apenas um homicídio.

“No concurso formal é necessário realizar juízos da culpabilidade, distintos em relação a cada uma das infrações penais, e, em muitos casos concretos, é exatamente a variação da culpabilidade que possibilitará identificar a infração mais grave.”18 A pena aplicada pela regra do art. 70 – do concurso formal – não pode exceder a pena que seria cabível pela regra do art. 69 – do concurso material. No exemplo anterior do homicídio e lesão corporal culposos, se o juiz tivesse aplicado a pena máxima, de três anos de detenção, pelo homicídio culposo, e resolvesse aumentá-la de metade, a pena definitiva seria de quatro anos e seis meses. Ora, se se aplicasse a regra do art. 69, cumulando as penas do homicídio culposo e da lesão corporal culposa, ainda que aplicasse, para cada um, o grau máximo, a pena somada, cumulada, seria de quatro anos. Nesse caso, mesmo havendo concurso formal de crimes, aplica-se a regra do concurso material, somando-se as penas dos dois crimes. É o que pode ocorrer também quando há concurso formal perfeito entre um homicídio qualificado e uma lesão corporal simples. Se se aplicar pena mínima para o homicídio, 12 anos de reclusão, e aumentá-la do mínimo, 1/6, ter-se-á uma pena de 14 anos de reclusão, ao passo que, se forem acumuladas as penas para os dois crimes, a pena seria de apenas 13 anos de reclusão. A doutrina denomina essa situação de concurso material benéfico, o que é incorreto, pois não há, verdadeiramente, concurso material, mas formal, apenas não se aplicando a regra de aplicação da pena desse, mas a daquele. É que a regra de aplicação da pena no concurso formal perfeito visa beneficiar o acusado, em face de que, apesar de ter cometido mais de um crime, realizou, na realidade, apenas uma conduta, com um único fim, merecendo, em razão disso, reprimenda bem menos severa do que se

18

GALVÃO, Fernando. Op. cit. p. 231.

58 – Direito Penal – Ney Moura Teles tivesse realizado dois comportamentos distintos, aperfeiçoadores de dois crimes diversos. A parte final do art. 70 define o concurso formal imperfeito: quando, mediante uma só conduta dolosa, o agente pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, resultantes de desígnios autônomos. Nesse caso, as penas serão aplicadas cumulativamente, como se faz no concurso material. As diferenças entre o concurso formal perfeito e o concurso formal imperfeito são duas: (a) só há concurso imperfeito se a conduta tiver sido dolosa, ao passo que o concurso perfeito pode resultar de conduta dolosa ou de comportamento culposo; (b) só há concurso formal imperfeito quando os crimes praticados, mediante única conduta dolosa, resultarem de desígnios autônomos. A primeira diferença dispensa comentários. A segunda impõe a compreensão do significado da expressão desígnios autônomos. Desígnio é desejo, é pretensão, vontade, fim, objetivo. Dois crimes derivados de uma só conduta que resultam de desígnios autônomos são crimes que estiveram, previamente, ideados ou idealizados pelo agente, vale dizer, crimes desejados, pretendidos, objetivados pelo agente que, para alcançá-los, realizou uma só e única conduta. Há autonomia de desígnios se o agente, ao acionar o mecanismo de disparo da bomba instalada no escritório, tinha a vontade de, com a explosão, matar os dois sócios da empresa que estavam presentes naquela sala. Era intenção do agente alcançar a morte de ambos. Terá havido uma única conduta que deu causa a duas mortes, dois homicídios, os quais, todavia, resultaram de desígnios autônomos, de desejos autônomos. Diferente é a conduta do que instala e faz disparar o artefato no mesmo lugar, sem saber se, além da vítima que desejava matar, estaria também ali outra pessoa. Neste último caso, serão dois crimes resultantes de um só desígnio, um concurso formal perfeito. Haverá desígnios autônomos quando o agente realizar uma só conduta dirigida, todavia, a dois fins distintos. Com sua ação, quer alcançar a morte de João e a morte de Pedro. Ou pretende, com seu comportamento, matar um e ferir o outro. Mantida a unidade de ação ou de omissão, nela, desde sua fase interna, psíquica, ressaltam contudo dois fins precisamente diferenciados. Por essa razão, mesmo sendo una a conduta, as penas serão aplicadas cumulativamente,

como

se

os

dois

resultados

tivessem

derivado

de

dois

Aplicação da Pena - 59 comportamentos diferentes, como ocorre no concurso material. Quer a lei, assim, reprovar de modo mais severo aquele que, mesmo com uma única conduta, realizou-a, todavia, com a vontade de alcançar os dois resultados. Equipara-se à situação daquele que, para alcançar dois resultados diferentes, realizou dois comportamentos diversos, a daquele que, para alcançar os mesmos dois resultados, realizou apenas uma conduta. Na verdade, são ambos, igualmente, reprováveis, pois o que mais importa no crime é o desvalor da ação, e não o do resultado, que não é, como já dizia WELZEL, o elemento diversificador dos crimes.

17.7.3

Crime continuado

A definição do crime continuado é extraída do art. 71 do Código Penal: “Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.” O chamado crime continuado é outra criação jurídica que, tanto quanto o concurso formal, resulta numa punição menos severa do agente que comete mais de um crime. No concurso formal perfeito, praticando o agente mais de um crime é, em regra, punido com a pena de um deles, a mais grave, se distintas, aumentada, todavia, de 1/6 até metade, em vez de, como no concurso material, receber as penas de ambos, simplesmente somadas. No crime continuado, em vez de cumular as penas dos vários crimes, manda a lei seja aplicada a pena de um dos crimes, a mais grave, se diversas, aumentada, todavia, de 1/6 a 2/3. Vê-se que a punição é mais severa que a do concurso formal perfeito. Para existir crime continuado, será necessário que: (a) o agente realize mais de uma conduta; (b) seja praticado mais de um crime; (c) os crimes sejam da mesma espécie; (d) exista um nexo de continuidade entre os crimes, que se materialize por meio de certa homogeneidade ou uniformidade de suas circunstâncias de natureza objetiva. Explicando de outra forma: por meio de mais de um comportamento, mais de uma ação ou omissão, o agente realiza mais de um crime. Esses crimes devem ser da mesma espécie, existindo entre eles um nexo de continuação. Importa responder,

60 – Direito Penal – Ney Moura Teles então, a essas duas questões: o que são crimes de mesma espécie? O que é nexo de continuação?

17.7.3.1

Crimes da mesma espécie

Para DAMÁSIO E. DE JESUS são crimes da mesma espécie os “previstos no mesmo tipo penal, i. e., aqueles que possuem os mesmos elementos descritivos, abrangendo as formas simples, privilegiadas e qualificadas, tentadas ou consumadas”19. Por essa forma de pensar, somente haveria crime continuado entre um homicídio simples e um privilegiado, ou uma tentativa de homicídio, ou um homicídio qualificado. Igualmente haveria entre um furto simples e um furto qualificado. E não seria possível falar em crime continuado na hipótese de um estupro e um atentado violento ao pudor. Nem entre um crime de estelionato e um de apropriação indébita. E tampouco entre uma calúnia e uma difamação. Deve-se pensar diferente: são crimes da mesma espécie aqueles cujos tipos tiverem o mesmo objeto jurídico. A idéia de espécie pressupõe a existência de gênero. Não se pode falar em gênero de furto, do qual seriam espécies o furto simples e o qualificado, mas em gênero de crimes contra o patrimônio, do qual são espécies o furto, simples e qualificado, o roubo, próprio e impróprio, a extorsão, o estelionato, a receptação, dolosa e culposa etc. Poderá haver continuidade entre quaisquer crimes contra o patrimônio, ou entre mais de um dos crimes contra a pessoa, ou entre os vários crimes contra a administração pública, enfim, poderá haver continuação entre todos os crimes que tiverem como objeto o mesmo bem jurídico, desde que os demais pressupostos sejam realizados. Logo, será possível continuidade entre estupro e atentado violento ao pudor, ou entre roubo e estelionato. ALBERTO SILVA FRANCO explica: “O gênero contém potencialmente as diferenças. As espécies expressam-no na realidade. Assim, por exemplo, furto, roubo, apropriação indébita, estelionato, extorsão, dano etc. são todos espécies diversificadas que se congregam na proteção do ‘gênero’ patrimônio. E, como espécies, destacam o gênero que está presente em cada uma delas. As diferenças entre as espécies guardam, no 19

Op. cit. p. 526.

Aplicação da Pena - 61 entanto, gradações, umas maiores, outras menores. É, de conseqüência, sob o ângulo dessas gradações que umas espécies se aproximam e outras se distanciam.”20 Em conclusão, são da mesma espécie os crimes que tiverem como objeto o mesmo bem jurídico e que guardem, entre si, semelhança em seus elementos objetivos e subjetivos.

17.7.3.2

Nexo de continuação

Para haver crime continuado, é preciso que, além de se tratar de crimes de mesma espécie, exista entre eles nexo de continuação. Essa continuidade deverá ser verificada com base na análise das seguintes circunstâncias: tempo, lugar, maneira de execução e outras condições assemelhadas, que deverão guardar, entre si, certa homogeneidade. Por condições de tempo semelhantes é de se entender que os crimes em continuidade devem situar-se proximamente no tempo. Os crimes que serão considerados continuação do primeiro devem ter ocorrido dentro de algum tempo depois. Como mensurar essa quantidade de tempo, com base em quais critérios? Esse é problema de

solução não tão simples. Não se pode realizar análise meramente

aritmética, mas entre os crimes deve mediar tempo que indique a persistência de certo liame psíquico que sugira uma seqüência entre os dois fatos. Não se deve estabelecer critério rígido, fixando prazo máximo entre um e outro crime – por exemplo, um mês, dois meses ou três meses –, mas analisar essa circunstância em conjunto com as demais, de lugar e, principalmente, de forma de execução, para se verificar a caracterização da continuidade. Por exemplo, haverá nexo entre três homicídios praticados pelo mesmo agente, contra três padres, nas três últimas sextas-feiras santas, apesar de entre cada um mediar aproximadamente um ano, e entre o primeiro e o último ter decorrido cerca de dois anos. Igualmente, deverá o crime que se quer continuação do primeiro ter acontecido em lugar próximo dele. Também aqui não se podem definir critérios rígidos como: no mesmo bairro, na mesma cidade, ou apenas em cidades limítrofes. Outra vez se deve analisar essa circunstância em conjunto com as demais, para se encontrar o nexo

20

Op. cit. p. 866.

62 – Direito Penal – Ney Moura Teles seqüencial indispensável ao reconhecimento da continuação. Poderá haver continuação entre dois crimes praticados no mesmo bairro, na mesma cidade, em cidades vizinhas, mas não haverá, necessariamente, continuação tão-somente pelo fato de terem sido praticados na mesma região, ou na mesma rua. A maneira de execução deve ser aproximada ou, em outras palavras, assemelhada. Entre os dois crimes, deve ser possível verificar a semelhança do modus operandi, seja no que diz respeito aos instrumentos utilizados, seja na atividade solitária ou conjunta do condenado, seja no que tange ao horário em que atua, ou no modo de atacar as vítimas. Por exemplo, ainda que praticados em condições semelhantes de tempo e espaço, não haverá continuação se o primeiro foi um furto noturno em residência, com arrombamento, praticado exclusivamente pelo agente, ao passo que o segundo foi um furto durante o dia, em concurso com dois outros autores, em estabelecimento comercial, e com destreza. A maneira de execução foi diferente no segundo, pelo que não será reconhecida a continuação. A lei é clara: só haverá continuidade delitiva se as circunstâncias objetivas dos crimes que se desejar continuados forem harmônicas entre si. É necessária certa homogeneidade das circunstâncias de todos os crimes. Parte da doutrina exige que, além das semelhanças entre as circunstâncias objetivas, haja, também, certa semelhança no que tange às razões de natureza subjetiva do agente. Apesar de ter o Código Penal adotado a teoria objetiva, que não exige um único dolo, uma única resolução criminosa, ou unidade de desígnio para todos os crimes, defendem respeitáveis doutrinadores, como DAMÁSIO E. DE JESUS, que, para o reconhecimento da continuidade, o agente deve ter agido num único contexto, ou em situações que se repitam ao longo de uma única relação prolongada no tempo. Para essa corrente, só haverá continuidade delitiva se os crimes resultarem de um único desígnio do agente21. A jurisprudência uniforme do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de se exigir, para o reconhecimento do crime continuado, a unidade de desígnios (REsp 742402; HC 46903; HC 60695; REsp 820633 etc.), mas o Supremo Tribunal Federal, em

acórdão relatado pelo Ministro Sepúlveda Pertence, tratou assim a matéria: “Crime continuado: conceito puramente objetivo da lei brasileira. Relevância de dados subjetivos restrita à fixação da pena unificada. O direito brasileiro, no

21

Op. cit. p. 527.

Aplicação da Pena - 63 art. 71 da nova Parte Geral, de 1984, do Código Penal, persistiu na concepção puramente objetiva do crime continuado: a alusão, na definição legal do instituto, a outras circunstâncias semelhantes àquelas que enumerou – ‘tempo, lugar, e modo de execução’ – só compreende as que, como as últimas, sejam de caráter objetivo, não abrangendo dados subjetivos dos fatos. Viola o art. 71 o acórdão que, embora reconhecendo a concorrência dos elementos da caracterização objetiva do crime continuado, que nele se adotou, nega, porém, a unificação das penas, à base de circunstâncias subjetivas, quais os antecedentes do acusado ou a ausência da unidade de desígnio.”22 Correta, ao meu ver, é a posição do acórdão da Suprema Corte brasileira, pois, efetivamente, a norma do art. 71 não pode ser interpretada extensivamente, porque não é essa a vontade da lei que, para exigir elementos subjetivos, deveria, expressamente, mencioná-los. Já se aprendeu que uma interpretação teleológica extensiva deve necessariamente resultar harmônica e coerente com o sistema, e que, se dúvidas restarem, jamais se interpretará em desfavor daquele que estiver sendo perseguido: o acusado.

17.7.3.3

Aplicabilidade do crime continuado a bens personalíssimos

Duas são as correntes doutrinárias acerca da aplicabilidade do instituto do crime continuado quando se tratar de crimes que se voltam contra bens personalíssimos. Para a primeira, não seria possível a continuidade quando os crimes, voltando-se contra bens jurídicos personalíssimos, são praticados contra vítimas diferentes. Antes da reforma de 1984, esse pensamento era majoritário e contava com a maioria da jurisprudência, inclusive do Supremo Tribunal Federal. Os argumentos eram ponderáveis: tratando-se de ataques a bens personalíssimos, não se poderia considerar o ataque à segunda pessoa continuação da agressão à primeira; ao dirigir a conduta contra pessoa distinta, alterada estava a resolução criminosa, pelo que impossível considerar a continuação. Para a outra corrente, era possível a continuidade entre crimes que atingissem bens pessoais, mesmo que de vítimas diferentes, porque nenhuma restrição legal havia a esse respeito, nem se exigia unidade de desígnio para o reconhecimento do crime continuado.

22

Apud FRANCO, Alberto Silva. Op. cit. p. 858.

64 – Direito Penal – Ney Moura Teles Com a reforma do Código Penal, de 1984, a discussão ficou encerrada, uma vez que o novo texto legal admite a continuidade delitiva quaisquer que sejam os crimes, inclusive contra vítimas diferentes. A norma do parágrafo único do art. 71 veio solucionar a antiga polêmica. Está assim redigida: “Nos crimes dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, poderá o juiz, considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, aumentar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, até o triplo, observadas as regras do parágrafo único do art. 70 e do art. 75 deste Código.” Se a norma do parágrafo único do art. 71 permite a continuidade para crimes dolosos contra vítimas diferentes e cometidos com violência ou grave ameaça, deve-se entender que a norma do caput do art. 71 aplica-se a todos os crimes, dolosos ou culposos, praticados contra a mesma vítima, ainda que com violência ou grave ameaça à pessoa, bastando que sejam da mesma espécie e entre eles haja nexo de continuação. A partir de então, tem-se o seguinte: aplica-se a continuidade delitiva a quaisquer crimes, desde que – da mesma espécie – haja nexo de continuação entre eles, verificável pelas circunstâncias objetivas, de tempo, lugar, modo de execução etc. Não importa sejam os bens atingidos personalíssimos, aplicando-se ainda que cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, e mesmo quando contra vítimas diferentes. As penas serão aplicadas, da seguinte forma: a) se o crime é cometido contra a mesma vítima, com ou sem violência ou grave ameaça, aplicar-se-á apenas uma pena, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços; b) se os crimes são dolosos, contra vítimas diferentes, cometidos com violência ou grave ameaça, aplicar-se-á apenas uma das penas, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto até o triplo, com atenção a culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade, motivos e circunstâncias do crime. A propósito da aplicabilidade da continuidade delitiva quando se tratar de crimes de homicídio, o Superior Tribunal de Justiça, em acórdão relatado pelo eminente Ministro Assis Toledo, assim enfrentou a matéria: “EMENTA: Crime continuado. Duplo homicídio contra vítimas diferentes. Possibilidade de reconhecimento da continuidade delitiva, diante da norma

Aplicação da Pena - 65 expressa do parágrafo único do art. 71 do Código Penal, acrescentado pela reforma penal de 1984 (Lei nº 7.209/84). Matéria de competência do Juiz, não dos jurados, razão pela qual não deve ser objeto de quesitação. Pena. A aplicação do critério do parágrafo único do art. 71 não pode elevar a pena além do máximo do concurso material e, por razão lógica, não deve igualmente rebaixá-la aquém do que seria cabível pelo concurso formal, na hipótese de desígnios autônomos, dada a identidade de situações. Recurso especial de defesa conhecido e provido para, reconhecida a continuidade delitiva, reduzir-se a pena aplicada” (RSTJ 78/358). Em qualquer das hipóteses, a pena não pode ser superior à que seria cabível caso fosse aplicada a regra do concurso material, nem superior a 30 anos.

17.8 ERRO

SOBRE

A

PESSOA

E

ERRO

NA

EXECUÇÃO

(ABERRATIO ICTUS E ABERRATIO DELICTI) Muitas vezes, o agente comete um crime laborando em erro sobre a pessoa que desejava atingir. Em algumas situações, por falha na execução do procedimento típico, ofende pessoa diferente da que pretendia. Outras vezes, obtém, por acidente ou erro na execução, um resultado diferente do que desejava. São três modalidades de erro que, diferentemente do que acontece no erro de tipo – que exclui o dolo, permitindo a punição por crime culposo, se tipificado – e no erro de proibição – que exclui a culpabilidade, se inevitável, ou a diminui, se evitável –, não isentam o agente de pena, porquanto não se trata de erros essenciais, mas puramente acidentais. Nos três casos, o agente culpado será punido, com observância de regras específicas, como se vê adiante.

17.8.1

Erro sobre a pessoa

Essa modalidade de erro deveria ter sido analisada no Capítulo 9, deste manual, logo após o estudo do erro de tipo. Preferiu-se, todavia, abordá-lo nesse momento, ao lado do aberratio ictus, em razão da referência expressa que o art. 73 faz ao § 3º do art. 20, muito embora as modalidades de erro não se confundam. Dispõe o § 3º do art. 20: “O erro quanto à pessoa contra a qual o crime é praticado não isenta de pena.

66 – Direito Penal – Ney Moura Teles Não se consideram, neste caso, as condições ou qualidades da vítima, senão as da pessoa contra quem o agente queria praticar o crime.” Como se sabe, um tipo é “matar alguém”, outro, “ofender a integridade corporal de outrem”, vale dizer, a pessoa humana pode ser sujeito passivo de vários crimes. Se alguém quer matar Paulo e mata João, não poderá ser desculpado, porque o crime é matar alguém, e não “matar Paulo” e, nesse caso, terá o agente realizado o tipo de homicídio doloso, mesmo quando sua vontade era dirigida para a morte de outra pessoa e não para a morte da pessoa efetivamente atingida. Ocorre o chamado erro sobre a pessoa quando o agente, desejando matar certa pessoa, erra sobre sua identidade, sua identificação. Tal erro decorre de falsa representação da realidade, e não de falha na execução. Exemplo: Cláudio, querendo matar Sálvio, mata Sílvio, por estar escuro e não ter observado que Sílvio era muito parecido com a vítima que desejava matar, aliás, seu irmão-gêmeo. Não se trata de erro na execução. Conquanto o dolo, segundo Welzel, abrange o fim pretendido, os meios escolhidos, e os efeitos secundários, não podia o Direito deixar de levar em conta a hipótese desse erro. Manda o § 3º do art. 20 que o agente responda penalmente como se tivesse praticado o crime contra a pessoa que desejava atingir, e não contra a que, efetivamente, atingiu. Assim, se alguém, querendo matar o próprio pai, mata, todavia, o tio, irmão-gêmeo do pai, responderá como se tivesse matado o pai, o que importará na incidência da circunstância agravante do art. 61, II, e, do Código Penal. Todavia, se desejando matar um estranho, vem, pelo erro, atingir e matar o pai, a agravante não incidirá.

17.8.2

Aberratio ictus

O erro na execução está assim definido no art. 73 do Código Penal: “Quando, por acidente ou erro no uso dos meios de execução, o agente, ao invés de atingir a pessoa que pretendia ofender, atinge pessoa diversa, responde como se tivesse praticado o crime contra aquela, atendendo-se ao disposto no § 3º do art. 20 deste Código. No caso de ser também atingida a pessoa que o agente pretendia ofender, aplica-se a regra do art. 70 deste Código.” Esta modalidade de erro não decorre de falsa representação do agente, mas de acidente ou ineficiente utilização dos meios de execução do procedimento típico. Por exemplo: Ciro está com a arma apontada em direção a Juarez, a quem pretende matar,

Aplicação da Pena - 67 e no momento em que dispara a arma, Sebastião atravessa a linha de tiro e recebe o projétil, morrendo em conseqüência do ferimento. O erro na execução do homicídio pretendido contra Juarez decorreu de um acidente, que foi a colocação de Sebastião no espaço por onde a bala passava. Haverá erro na execução também quando, utilizando uma arma defeituosa, dispara o agente contra a vítima pretendida, desviando-se o projétil do alvo e atingindo a pessoa que se encontrava próxima. O mesmo ocorre quando o agente erra o alvo, por sua imperícia no manejo de arma de fogo. São duas as espécies de aberratio ictus: aquele com resultado único e o que produz mais de um resultado.

17.8.2.1

Aberratio ictus com resultado único

Com resultado único é o que acontece na seguinte situação: Fábio, desejando matar a Celso, dispara contra o mesmo, atingindo e matando Arlindo, que se encontrava nas proximidades de seu desafeto, que nada sofreu. Rigorosamente falando, teria havido uma tentativa de homicídio, contra Celso – não consumado por circunstâncias alheias à vontade do agente –, e um homicídio culposo contra Arlindo, pois que Fábio não tinha vontade de matá-lo, mas, negligentemente, causou-se a previsível e evitável morte. A solução que o direito dá, todavia, não é essa, mas a de considerar a existência de um único homicídio doloso. Ou seja, o agente responderá como se tivesse praticado um só homicídio doloso contra Celso, e não o homicídio realmente ocorrido contra Arlindo, que, aliás, não foi doloso, mas culposo. Essa solução decorre da vontade da lei de que o agente responda “como se tivesse praticado o crime” contra quem pretendia praticar. Considera a lei o dolo do agente – vontade de matar – e o resultado “morte” alcançado, embora esta tenha sido de pessoa diversa, construindo assim uma ficção jurídica. Esta solução, inegavelmente, é prejudicial ao agente, pois, se se aplicasse a regra do concurso material para os fatos realmente ocorridos, receberia ele pena por uma tentativa de homicídio (com diminuição máxima no homicídio simples: dois anos) somada com outra por homicídio culposo (mínima: um ano), inferior à pena de um só homicídio consumado (mínima: seis anos). Outro exemplo: se, desejando matar a Silas, Arnaldo dispara e acerta Nelson, produzindo-lhe lesões corporais, haveria na realidade uma tentativa de homicídio contra Silas e um crime de lesões corporais culposas, mas a solução que a lei manda adotar é outra: responderá Arnaldo puramente por uma tentativa de homicídio, que,

68 – Direito Penal – Ney Moura Teles nesse caso, absorverá as lesões culposas. Como o resultado morte desejado não ocorreu, não seria justo que se considerasse consumado o crime, em face de que não ocorreu a morte da vítima efetiva. Vale repetir, deve-se considerar como praticado o crime contra a pessoa pretendida, não contra a atingida.

17.8.2.2

Aberratio ictus com resultado duplo

Aberratio ictus com resultado duplo ocorre quando, além da pessoa visada, é atingida outra pessoa. Juvenal, querendo matar a Paulo, atira e, além de atingi-lo, atinge também Mauro. Manda a parte final do art. 73 que, nesse caso, se deve aplicar a regra do art. 70, que define o concurso formal de crimes. Podem ocorrer as seguintes situações e soluções: a) Paulo é morto e Mauro também. b) Paulo é morto e Mauro sofre lesões corporais. c) Paulo sofre lesões corporais e Mauro é morto. d) Paulo sofre lesões corporais e Mauro também. No primeiro caso (a), em que ocorrem a morte desejada de Paulo e a morte indesejada de Mauro, forma-se um concurso formal, entre um homicídio doloso e um culposo, devendo Juvenal responder por um homicídio doloso, com pena aumentada de um sexto até metade. No segundo caso (b), em que acontecem a morte pretendida de Paulo e lesões corporais involuntárias em Mauro, terá havido concurso formal entre um homicídio consumado e um crime de lesões corporais culposas, com o aumento da pena do homicídio doloso, de um sexto até metade. No terceiro caso (c), a solução será considerar o homicídio como se tivesse sido consumado contra a vítima pretendida, Paulo, embora este só se tenha ferido, em atenção ao preceituado na primeira parte do art. 73, devendo Juvenal receber a pena por homicídio consumado, aumentada, todavia, de um sexto até metade, em obediência à determinação da parte final do art. 73, que manda aplicar a regra do concurso formal. No último caso (d), com uma tentativa de homicídio contra Paulo e uma lesão corporal culposa contra Mauro, novo concurso formal, devendo Juvenal receber a pena pela tentativa de homicídio, aumentada de um sexto até metade. Apesar de não haver regra expressa, vale a observação do parágrafo único do art. 70, segundo a qual a pena não pode exceder a pena pertinente, caso fosse aplicada a

Aplicação da Pena - 69 regra do concurso material. Em todos esses casos, é de ver que, no segundo resultado, a morte ou a lesão da pessoa que o agente não desejava atingir decorre de sua negligência, configurando, assim, crime culposo. Por isso, a solução correta é compreender os dois crimes como formando um concurso formal, pois que, mediante uma só ação, lato sensu, realizamse, todavia, dois crimes. É claro que, em qualquer dessas hipóteses, se o agente tiver previsto o outro resultado – matar ou ferir Mauro – e, em face desse previsível resultado, tiver se portado com atitude interna de aceitá-lo, estarão presentes desígnios autônomos, impondo-se, de conseqüência, a aplicação da pena cumulativamente, pela regra do concurso material, segundo determina o art. 70, última parte. A aceitação do resultado não desejado constitui outro desígnio.

17.8.3

Aberratio delicti

Essa modalidade de erro na execução do procedimento típico, também chamada aberratio criminis, encontra-se regulada pelo art. 74 do Código Penal, assim: “Fora dos casos do artigo anterior, quando, por acidente ou erro na execução do crime, sobrevém resultado diverso do pretendido, o agente responde por culpa, se o fato é previsto como crime culposo; se ocorre também o resultado pretendido, aplica-se a regra do art. 70 deste Código.” No erro anterior, aberratio ictus, o processo de execução se desvia de uma pessoa para outra de tal modo que, apesar de possibilitar a ocorrência de um crime, em lugar de outro, ambos tinham como objeto a pessoa humana, ainda que num caso sua integridade física, e noutro a própria vida. Em vez de homicídio contra Tiago, cometiase lesão corporal contra Mateus, ou vice-versa. Enfim, no aberratio ictus é persona in personam. No aberratio delicti, o desvio na execução alcança o bem jurídico e, em vez de uma lesão corporal, realiza o agente um crime de dano. Em vez de atingir uma pessoa, atinge uma coisa material ou, ao contrário, em vez de atacar o objeto, o agente fere ou mata uma pessoa. Pode ocorrer que: a) Ibrahim, desejando quebrar os vidros de uma casa, atira uma pedra em direção a ela, vindo a atingir a pessoa de Miguel, que estava próximo. Quis cometer o crime de dano, e realizou uma lesão corporal culposa. Responderá por lesão corporal culposa. Se

70 – Direito Penal – Ney Moura Teles tivesse matado a Miguel, responderia por homicídio culposo. b) Ibrahim, desejando matar a Miguel, erra e atinge a vidraça da casa. Não há crime de dano em sua modalidade culposa; por isso, não responderá por nenhum crime em relação à coisa atingida. Apenas estará, civilmente, obrigado a reparar o dano. Conquanto queria matar a Miguel, responderá por tentativa de homicídio. Se sua intenção fosse apenas a de ferir a Miguel, responderia apenas por tentativa de lesão corporal. Se o tivesse atingido, por lesão corporal consumada. c) Ibrahim, querendo danificar a vidraça da casa do vizinho, atira uma pedra contra ela, vindo a acertá-la e, também, o rosto de Maria, produzindo-lhe lesões corporais. Nesse caso, há um concurso formal de crimes, entre um crime de dano, doloso, e um crime de lesão corporal culposa. Aplicar-se-á a pena do crime mais grave, aumentada de um sexto até metade. A regra só poderia ser, mesmo, a adotada pelo Código, posto que, efetivamente, o agente não deseja o outro resultado e, é óbvio, age negligentemente com relação ao bem que não deseja atingir. Se, todavia, ficar evidenciado que o resultado diverso do pretendido decorreu pura e simplesmente de nexo causal, sem qualquer negligência, imprudência ou imperícia do agente, ou, ainda, numa situação absolutamente imprevisível – um caso fortuito –, não terá havido culpa, em sentido estrito, não respondendo o agente pelo resultado diverso do pretendido. Se o agente tiver agido, com relação ao outro resultado com dolo eventual – prevendo e aceitando o outro resultado –, dever-se-á aplicar a regra do concurso material de crimes, porquanto os crimes terão decorrido de desígnios autônomos (art. 70, caput, parte final).

17.9 LIMITE DAS PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE Por força do princípio constitucional inserto no art. 5º, XLVII, são proibidas as penas de caráter perpétuo, inclusive e principalmente as privativas de liberdade. No ordenamento jurídico-penal brasileiro, verificando-se o conjunto das normas penais incriminadoras, não serão encontradas penas privativas de liberdade que tenham grau máximo superior a 30 anos, o que, todavia, não impede venha alguém a ser condenado a pena superior a esse limite. Basta lembrar o crime do art. 159, extorsão mediante seqüestro, em razão do qual sobrevenha a morte (§ 3º), cuja pena cominada é reclusão, de 24 a 30 anos. Essa cominação é fruto das pressões movidas sobre o legislador brasileiro pelos adeptos do movimento da Lei e da Ordem, que

Aplicação da Pena - 71 pregam a exacerbação das reprimendas, como forma de iludir a opinião pública sobre a presença do Estado na luta contra o crime. Muito provavelmente, alguém condenado por esse crime, presentes algumas circunstâncias agravantes, ausente qualquer atenuante, mais uma causa de aumento, acabará por receber pena superior a 30 anos. Ocorrendo o concurso material de crimes, não será impossível, como não é mesmo, alguém ser condenado a pena cujo tempo seja superior a 100 anos de privação de liberdade. Havendo vários processos, então, a hipótese é muito provável, e, lamentavelmente, não é rara no Brasil, como não o é noutras partes do planeta. Ora, um homem condenado a cumprir mais de 30 anos, muito provavelmente, deveria passar o restante de sua vida encarcerado, o que tornaria absolutamente inócuo o princípio constitucional. Seria, então, o preceito constitucional letra morta, ou mera proclamação retórica? Para dar efetividade ao preceito é que o art. 75 do Código Penal estabelece: “O tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser superior a 30 (trinta) anos. § 1º Quando o agente for condenado a penas privativas de liberdade cuja soma seja superior a 30 (trinta) anos, devem elas ser unificadas para atender ao limite máximo deste artigo. § 2º Sobrevindo condenação por fato posterior ao início do cumprimento da pena, far-se-á nova unificação, desprezando-se, para esse fim, o período de pena já cumprido.” Ainda que o agente seja condenado a penas superiores a 30 anos, num ou em mais processos, por mais de um crime, não cumprirá nem um dia a mais que os 30 anos, pois todas as suas penas serão unificadas em 30 anos. Há, porém, uma situação concreta em que alguém pode cumprir mais de 30 anos, que vem contemplada no § 2º do art. 75. Cuida-se ali da hipótese de que o condenado, após o início do cumprimento da pena, venha a cometer outro crime, sendo, por isso, condenado. Quando da nova condenação, repita-se por fato posterior ao início da execução penal – e não por fato posterior ao da primeira condenação –, será feita nova unificação, desprezando-se o tempo de pena já cumprido. A unificação será feita com o restante da pena que estava sendo cumprida, somando-se a ele a nova pena. Por exemplo: Jorge está, há oito anos, cumprindo uma pena, já unificada, de 30 anos de reclusão, quando comete outro fato típico, dentro da

72 – Direito Penal – Ney Moura Teles penitenciária ou fora, após ter empreendido fuga do presídio. Sobrevindo, um ano depois do fato, a condenação definitiva a 16 anos de reclusão, quando o condenado já cumprira nove anos, será feita nova unificação, desprezando-se esse tempo de pena cumprido. Restarão, assim, 21 anos da primeira pena, que serão somados com os 16 anos da nova pena, perfazendo-se 37 anos, os quais serão novamente unificados em exatos 30 anos. Nesse exemplo, Jorge terá cumprido nove anos e irá cumprir mais 30 anos de reclusão. Possível, assim, alguém cumprir tempo superior a 30 anos. Não fosse a norma do § 2º, não haveria, efetivamente, pena para os condenados a penas superiores a 30 anos que cometessem crimes nos presídios. Questão polêmica é saber se o limite de 30 anos determinado pelo art. 75 refere-se exclusivamente ao cumprimento da pena, ou se também serve para o cálculo dos vários benefícios incidentais à execução das penas privativas de liberdade, como, por exemplo, a progressão ao regime semi-aberto e o livramento condicional. A posição de DAMÁSIO E. DE JESUS e HELENO FRAGOSO é no sentido de que a unificação se refere exclusivamente ao cumprimento da pena, pois, se a admitíssemos como parâmetro para a concessão de benefícios, estariam colocados no mesmo patamar, em condições de igualdade, o condenado a 30 e o condenado a 300 anos, o que seria um absurdo23. Para MIRABETE, a unificação serve aos dois propósitos: fixar o cumprimento da pena durante, no máximo, 30 anos, e ser a base para a verificação das condições objetivas de concessão dos benefícios previstas na lei, como o livramento condicional, a progressão a regime mais brando, a remição etc24. Qual posição é correta? ALBERTO SILVA FRANCO bem responde: “Se o intento do legislador fosse exclusivamente o de fixar o limite máximo de cumprimento das penas privativas de liberdade, o § 1º do art. 75 da PG/84 não teria razão de ser. Tais penas, sem necessidade de nenhum tipo de formalidade, já estariam, por força do caput do art. 75 da PG/84, englobadas no montante de 30 anos. Além disso, constituiria um verdadeiro contra-senso unificar penas privativas de liberdade para um só fim e, ao mesmo tempo, manter uma dualidade de penas (pena unificada e soma de penas não unificadas) para os demais fins. ‘Unificar’, como observa Julio 23

Op. cit.

24

Execução penal. Op. cit. p. 297.

Aplicação da Pena - 73 Fabbrini Mirabete, ‘quer dizer transformar várias penas em uma só’. Ademais a unidade de parâmetro cronológico não constitui apenas uma postura dogmática: encontra, em verdade, consagração legal. Se a pena progressiva de liberdade é executada numa forma progressiva, com a transferência sucessiva do preso de um regime penitenciário mais rigoroso para outro mais brando, e se tal transferência só pode ser efetuada após o cumprimento ao menos de um sexto da pena no regime anterior, é óbvio que, no caso de ocorrerem diversas condenações, as penas devem ser unificadas para tal fim (art. 111 da LEP).”25 É verdade, não faria nenhum sentido que o condenado a 180 anos de reclusão, mesmo tendo o direito ao cumprimento de apenas 30 anos, não pudesse obter a progressão ao regime mais brando após cumprir 1/6 de 30 anos, ou seja, após cinco anos. Seria um contra-senso devesse ele cumprir 1/6 de 180, vale dizer, 30 anos para então progredir ao regime semi-aberto. Ora, o cumprimento dos 30 anos que lhe asseguraria a progressão é o mesmo tempo suficiente para a obtenção da plena liberdade. Não se pode, ademais, esquecer que o cumprimento de 1/6 da pena é apenas o requisito objetivo para a concessão da progressão, bem como o cumprimento de 1/3, metade ou 2/3 da pena é tão-somente requisito objetivo para o livramento condicional. Para a concessão desses dois benefícios, é imprescindível o preenchimento de outra condição, de natureza subjetiva, o bom comportamento carcerário do condenado para a progressão, e os bons antecedentes, a reparação do dano, comportamento satisfatório e até mesmo outras condições de natureza pessoal que indiquem uma “presunção” de que não voltará a delinqüir – nos casos do livramento condicional. Dessa forma, não haverá nenhuma incoerência, e, principalmente, nenhum prejuízo para a sociedade, se for considerada, como base de cálculo para a concessão de benefícios ao condenado, a pena unificada, porque o tempo de cumprimento da pena não é o único requisito para a obtenção do benefício. Por último, de ver que o cumprimento de qualquer pena privativa de liberdade só faz sentido se existir, na mente do condenado, a perspectiva de alcançar a liberdade. Aquele que tiver a certeza de que somente ganhará a liberdade após 30 anos de reclusão, vivendo nos promíscuos e inumanos ambientes prisionais, não terá nenhuma razão para respeitar, no presídio ou fora dele, qualquer dos valores protegidos pelo

25

Op. cit. p. 929.

74 – Direito Penal – Ney Moura Teles direito. Se, com o sistema progressivo de cumprimento de penas privativas de liberdade, com a possibilidade concreta e real de alçar regimes mais brandos, as penitenciárias são verdadeiras escolas de aperfeiçoamento do crime, muito mais o seriam se uma parcela considerável dos condenados não tivesse a perspectiva de obtenção de liberdade. Por isso, melhor, por plenamente coerente com o sistema progressivo brasileiro e, principalmente, por atender aos interesses democráticos da sociedade, a pena de 30 anos, unificada, destina-se não só ao efetivo cumprimento, mas também ao cálculo dos diversos benefícios permitidos aos condenados.

17.10 APLICAÇÃO DA PENA DE MULTA Também a pena de multa será individualizada, particularizada, adaptada, com observância dos critérios estabelecidos no art. 59 do Código Penal. Enquanto pena considerada alternativa, pode ganhar importância efetiva, se aplicada com atenção ao princípio diretor da aplicação de toda e qualquer pena criminal: conforme seja necessário e suficiente para reprovar e prevenir o crime. A pena de multa é cominada tanto para crimes de menor gravidade como pena simples ou alternativa, quanto para crimes mais graves, quando é cominada cumulativamente. Na primeira hipótese, tem-se o uso da pena como substituição da privação da liberdade. Na segunda, há uma medida que visa tornar mais severa a resposta penal em que, além da privação da liberdade, o condenado sofrerá, com a pena pecuniária, uma nova aflição, o que vai acontecer, em geral, nos crimes contra o patrimônio. A aplicação da pena de multa deve ser feita inicialmente com obediência às mesmas regras destinadas à aplicação da pena privativa de liberdade. Segundo manda o art. 68, primeiro o juiz fixa a pena-base, com atenção ao disposto no art. 59, depois leva em conta as circunstâncias atenuantes e agravantes e, finalmente, as causas de diminuição e de aumento. Deve o juiz, primeiramente, fixar o quantum da pena de multa, observado o mínimo de 10 e o máximo de 360 dias-multas – excetuados os casos em que a cominação é específica, como no caso do art. 33 da Lei nº 11.343/2006 –, atendendo às circunstâncias do art. 59 do Código Penal. De notar que essa cominação, mínima e máxima, vale para todos os crimes em que é cominada, de modo genérico, a pena de multa, pelo que deve levar em conta que

Aplicação da Pena - 75 o mínimo, de 10 dias-multas, é a menor quantidade para o crime menos grave, ao passo que 360 dias-multas é a maior quantidade dessa espécie de pena. Alguns juristas alertam para que não se façam comparações entre o crime de roubo e o de calúnia, em que a multa é cominada, exigindo cuidado, porquanto os graus mínimos das penas de multa cominadas para esses dois não poderiam ser iguais. Explicam que não é válido raciocinar como se faz com as penas privativas de liberdade, pois que essas são cominadas para cada crime – em cada um com uma pena quantitativamente diferenciada, segundo a importância do bem e a gravidade da lesão – e não genericamente, como na pena de multa. Essas ponderações não fazem sentido, porque a pena de multa – enquanto substitutiva ou alternativa da privativa de liberdade – não pode ser comparada com a pena de reclusão ou de detenção. Mesmo quando cominada isoladamente, pois que, nesse caso, será a pena única e não se pode compará-la com penas privativas de liberdade. Para aplicar a pena de multa, mesmo devendo o juiz obedecer às mesmas normas de aplicação da pena privativa de liberdade, não poderá fazê-lo sem algumas modificações. Incidirá aí a norma do art. 60 do Código Penal: “Na fixação da pena de multa o juiz deve atender, principalmente, à situação econômica do réu. § 1º A multa pode ser aumentada até o triplo, se o juiz considerar que, em virtude da situação econômica do réu, é ineficaz, embora aplicada no máximo.” O sistema das três etapas, do art. 68 do Código Penal, aplicado às penas privativas de liberdade, deve ser observado, com essas duas modificações e com as particularidades do sistema da multa penal, pelo que devem ser observados os seguintes passos. Na primeira fase: 1º) O juiz, atendendo às circunstâncias do art. 59, fixa a pena-base com estrita obediência aos limites de, no mínimo, 10 e no máximo 360 dias-multas, conforme seja necessário e suficiente para reprovar e prevenir o crime. 2º) O juiz considerará as atenuantes e agravantes presentes, diminuindo, aumentando ou mantendo a pena-base, podendo vir aquém do mínimo. 3º) O juiz verificará a existência de causas de diminuição e de aumento, como fixadas na parte geral e na parte especial do Código Penal, e aplicará as diminuições e aumentos dentro dos limites determinados em cada causa. Vencida esta fase, em que o juiz terá fixado a quantidade da pena, em dias-

76 – Direito Penal – Ney Moura Teles multas, passará à segunda fase, fixando o valor do dia-multa. Por exemplo, tendo chegado na primeira fase ao resultado de 80 dias-multas, deverá em seguida, na segunda fase, fixar o valor de cada dia-multa, com observância do § 1º do art. 49 do Código Penal, em no mínimo 1/30 e no máximo cinco vezes o valor do salário mínimo mensal. Para fixar o valor do dia-multa, deverá estar atento à regra do art. 60 do Código Penal: “atender, principalmente, à situação econômica do réu”. Fixado esse valor, tendo em conta a capacidade de pagamento do réu, sob a orientação da “suficiência e necessidade para a reprovação e prevenção”, poderá ainda, excepcional e justificadamente, aumentá-la até o triplo, se “considerar que, em virtude da situação econômica do réu, é ineficaz, embora aplicada no máximo”. Essa é uma causa de aumento específica, que incidirá apenas quando, mesmo que aplicada, embora não necessariamente, no grau máximo, que é de 360 dias-multas, e no valor máximo de cada dia-multa, o juiz concluir que, para os fins de prevenção e reprovação, será a pena ineficaz. Num país que viveu, principalmente nos anos 80 do século XX, tempos de indomável e arrasadora inflação, e onde impera a cultura da prisão como única pena criminal, é comum ouvir-se: “lugar de bandido é na cadeia”. A pena de multa não pôde, infelizmente, mostrar sua importância e sua eficácia, como instrumento efetivo de proteção do bem jurídico e, até mesmo, de prevenção e repressão do crime. Almejando todos uma economia com inflação suportável, é possível verificar alguma efetividade na pena de multa e, principalmente, sua aplicação mais consentânea com os interesses de um direito penal de intervenção mínima, o que só será possível se, além da correta aplicação, houver sua efetiva execução.

17.11 CONCLUSÃO Num tempo em que a totalidade dos estudiosos e operadores do direito penal, a mídia eletrônica, as entidades vivas da nação, nelas incluídos os poderes representativos da República, discutem o problema da criminalidade e a intrincada questão

do

sistema

penitenciário,

com

misérias,

sofrimentos

indizíveis

e,

conseqüentemente, rebeliões e mais violências nos presídios, não se pode esquecer que com o direito tal qual posto, vigente hoje no Brasil, é possível avançar na busca de muitas soluções. Basta que os operadores do direito se apartem de alguns preconceitos e procurem interpretar o ordenamento jurídico com a utilização do método finalístico, a

Aplicação da Pena - 77 fim de romper com concepções absolutamente atrasadas e autoritárias, divorciadas de qualquer raciocínio científico, e que apenas rezam por uma cartilha que não é a dos interesses de toda a nação brasileira, ávida por melhores dias e condições dignas para todos os seus cidadãos. Se mudar a lei é importante para o encontro de novas fórmulas de melhor proteção dos interesses de todos, interpretá-la conforme esses mesmos interesses é tarefa imediata que não pode ser desprezada, nem relegada aos mais corajosos. Algumas questões postas neste capítulo, da aplicação da pena, como a da possibilidade de as atenuantes levarem a pena aquém do mínimo legal, e como a da impossibilidade de a reincidência, os maus antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente influírem para que a pena se afaste do mínimo, precisam ser enfrentadas e discutidas abertamente, sem nenhuma formulação dogmática e autoritária, para que, verificando-se sua coerência dentro do sistema punitivo do Código Penal, possam todos viver, juntos, nesse novo milênio, no encontro do novo Direito Penal, o justo.

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