11 CULPABILIDADE
____________________________ 11.1 CONCEITO 11.1.1 Noções básicas e algumas notas históricas Culpa, no sentido amplo, é o mesmo que culpabilidade. Não basta que o sujeito tenha violado o preceito, causando, ainda, a lesão ou expondo o bem jurídico a perigo. É preciso que esse fato tenha sido cometido culpavelmente. A história do Direito Penal revela, entretanto, que nem sempre foi assim, pois nos primórdios, e por muito tempo, para que se caracterizasse um crime, e, de conseqüência, se pudesse aplicar a pena, era suficiente que entre o comportamento do homem e o resultado houvesse apenas um nexo de causalidade. Tendo havido um resultado, e verificando-se que era conseqüência de um comportamento humano, então o homem cometera o crime e devia ser punido. Não se conhecia qualquer ligação entre o agente e o fato em si, além, é claro, da causalidade física. Esse era o Direito Penal do resultado, da responsabilidade objetiva, que predominava entre os povos bárbaros, como os germanos, e no Direito Romano primitivo. “Mas bem cedo, com o burilar do espírito humano, o legislador percebeu que era errado colocar, no mesmo plano, o dano ocasionado pelo raio ou pelo animal e o produzido pela ação do homem. Enquanto os dois primeiros devem ser considerados inevitáveis, o último, pelo contrário, é evitável porque o homem pode prever as conseqüências do seu atuar e abster-se assim de agir em face delas.”1 Já no Direito Romano clássico desenvolve-se a idéia de culpabilidade, que vai
1
BETTIOL, Giuseppe. Direito penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977. v. 2, p. 3.
2 – Direito Penal – Ney Moura Teles ser mantida e enriquecida no Direito Canônico. A evitabilidade dos fatos humanos é a idéia básica central sobre a qual vai ser construída a noção de culpabilidade. Só o homem, porque conhece as leis da natureza e porque é livre para agir, pode prever as conseqüências dos atos que praticar, e, prevendoas, pode desejar que elas se realizem ou querer que não aconteçam, evitando-as. Da mesma idéia de evitabilidade nasce o conceito de previsibilidade, que é a possibilidade de ser antevisto um resultado lesivo, uma conseqüência do comportamento humano. E, com base nessas duas noções básicas, constrói-se outro conceito fundamental, o de voluntariedade, a vontade que o homem tem de alcançar determinado objetivo. Tem início a elaboração do conceito de culpabilidade, que só existiria se o resultado fosse evitável, se houvesse previsibilidade, se o homem pudesse prevê-lo. Prevendo-o, poderia ter evitado, e tendo vontade de que ele acontecesse, era, por isso, culpado. Era o dolo. Não prevendo o que deveria ter previsto, o homem terá agido indevidamente, não evitando o errado porque não agiu como deveria ter agido. Deveria ter previsto o previsível, evitado o evitável. Era, por isso, culpado. Eis a culpa, em sentido estrito. Essas observações acerca do comportamento interno do sujeito constituem a subjetividade que se passou a exigir para a aplicação da pena criminal. Surgiu um novo Direito Penal, o da responsabilidade subjetiva, o Direito Penal da culpabilidade. FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO ensina: “Não se pode apontar com exatidão o momento histórico em que tal fenômeno ocorreu, mesmo porque a história do Direito Penal está marcada de retrocessos. Fora de dúvida, porém, é que, a partir de então, se começa a construir a noção de culpabilidade, com a introdução, na idéia de crime, de alguns elementos psíquicos, ou anímicos – a previsibilidade e a voluntariedade – como condição da aplicação da pena criminal – nullum crimen sine culpa.”2
11.1.2
Teoria psicológica da culpabilidade
Para a teoria psicológica, culpabilidade é a ligação psíquica entre o agente e o fato,
2
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 219.
Culpabilidade - 3 sendo suas espécies o dolo e a culpa, em sentido estrito. Essa teoria constrói a noção de culpabilidade com base nas duas idéias-básicas primitivamente construídas: a previsibilidade e a voluntariedade. Se houver previsibilidade e voluntariedade, haverá dolo. Se o agente previu o resultado e desejou alcançá-lo, agiu dolosamente. Sendo o fato previsível e o sujeito, prevendo ou não, não desejou o resultado, agiu com culpa, em sentido estrito. Não se pode olvidar que essa é uma construção que surge no alvorecer do Direito Penal da culpabilidade, e que vai imperar por muitos séculos, contando, até hoje, com adeptos. Culpabilidade é, durante muitos anos, dolo ou culpa, em sentido estrito. Como se viu, no estudo da teoria finalista da ação, essa noção já está superada, mas não se deve esquecer que essa idéia representou um grande avanço para o Direito Penal. A estrutura do crime, adotada a teoria psicológica da culpabilidade, mostra a conduta entendida do ponto de vista meramente causal, naturalístico, como simples causa do resultado; a ilicitude tal qual se a entende modernamente; mas a culpabilidade como o nexo psíquico entre o fato e o agente: dolosa ou culposa. Já então se exigia, como pressuposto da culpabilidade, a capacidade penal, ou seja, a imputabilidade do agente. Contra a teoria psicológica levantam-se duas críticas bastante firmes. O dolo, sabe-se, é, numa palavra, querer. A culpa, em sentido estrito, é o nãoquerer. Age dolosamente quem quer ou aceita o resultado. Age culposamente quem não quer o resultado, mas o causa, por negligência. Os conceitos de dolo e culpa são, portanto, antagônicos, já que o primeiro é positivo e o segundo negativo. A teoria psicológica, no entanto, afirma que dolo e culpa, stricto sensu, são espécies de culpabilidade. De conseqüência, duas noções opostas, antagônicas, seriam espécies de um mesmo denominador comum, o que é, no mínimo, incoerente, para não dizer, absurdo. Além disso, na culpa inconsciente, em que o sujeito, apesar da previsibilidade, não faz a previsão, nenhuma ligação psicológica existe entre o ele e o fato; todavia, a teoria psicológica afirma que a culpabilidade é um nexo psíquico entre o agente e o fato. Essa teoria, por essas razões, não podia ser aceita.
4 – Direito Penal – Ney Moura Teles
11.1.3
Teoria normativa ou teoria psicológico-normativa da culpabilidade
No início do século XX, o jurista alemão FRANK, estudando o caso do náufrago na tábua de salvação, que, para salvar-se, matava o companheiro, observou que ele era desculpado por estar em estado de necessidade, mas agia com dolo. Quando dirigia sua conduta para eliminar o outro, agia com vontade de alcançar o resultado. Todavia, o direito não lhe respondia com uma pena. Então, percebeu que a culpabilidade não podia ter como espécie o dolo, uma vez que, mesmo agindo com dolo, o náufrago não era culpado. Com base nessa constatação, verificou que o sujeito só podia ser considerado culpado e, de conseqüência, merecer a sanção penal quando seu comportamento tivesse sido reprovável, censurável, e isso só era possível quando tivesse possibilidade de conduzir-se de forma diferente. A conclusão foi a de que o elemento caracterizador da culpabilidade era um juízo de valor de reprovação que se fazia a respeito do fato praticado, dolosa ou culposamente, pelo agente. Quando se pudesse exigir do sujeito a realização de um comportamento de acordo com as exigências do Direito, poder-se-ia reprová-lo. Se, verificadas as circunstâncias em que ele se encontrava, fosse possível exigir dele um comportamento lícito, mereceria censura, reprovação. Aí, sim, estaria presente a culpabilidade. FRANK introduziu, no conceito de culpabilidade, uma exigência de caráter normativo: a exigibilidade de conduta diversa. Culpabilidade, portanto, não era apenas um liame psicológico entre o agente e o fato, mas também a reprovabilidade do agente, pelo fato que ele realizou, com dolo ou com culpa, em sentido estrito. Essa reprovabilidade só poderia ser feita, quando se pudesse exigir do agente conduta diferente da realizada. O dolo e a culpa, em sentido estrito, não são espécies de culpabilidade, mas seus elementos. A teoria recebeu a denominação de psicológico-normativa ou normativa, uma vez que, mantendo o dolo e a culpa, em sentido estrito, não como espécies, mas como elementos da culpabilidade, acrescentou um novo, de caráter normativo, que é o juízo de valor de reprovação que se faz sobre a conduta do agente, pelo fato praticado, quando presente a exigibilidade de conduta diversa. Em síntese, para a teoria psicológico-normativa, a culpabilidade é a
Culpabilidade - 5 reprovabilidade da conduta do agente pelo fato, doloso ou culposo, por ele realizado. O pressuposto da culpabilidade é a imputabilidade, e seus elementos são: o dolo ou a culpa, em sentido estrito (elemento psicológico-normativo), e a exigibilidade de conduta diversa (elemento normativo). Presentes o pressuposto – imputabilidade – e os elementos da culpabilidade, o agente teria sobre seu comportamento o juízo de censura, de reprovação; por isso, seria culpado, devendo, de conseqüência, aperfeiçoado o crime, receber a sanção penal.
11.1.4 A
Teoria normativa pura teoria
psicológico-normativa
da
culpabilidade
apresentava
algumas
incongruências. Para ela, o dolo continha um elemento normativo: a consciência atual da ilicitude, como já dizia a teoria da vontade, dos clássicos. FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO aponta, a propósito, um problema crucial: “Consideremos dois tipos criminológicos bem conhecidos – o do criminoso habitual e o do criminoso por tendência. Tentemos aplicar-lhes o dolo normativo. É discutível que isso seja possível. Raciocinemos com um exemplo bem brasileiro: um delinqüente profissional do sertão, ou um delinqüente habitual das favelas do Rio, ou de São Paulo. Esse tipo criminológico, em geral menor desamparado, ou nascido de família desajustada, é criado e educado, desde a mais tenra infância, em um ambiente social agressivo, onde a criminalidade é a tônica. Para ele, o furto, o roubo, os crimes contra a pessoa, é o normal, é o certo. Não chegou a formar em seu espírito uma consciência ética, nem teve oportunidade para isso. Os seus padrões de conduta são modelados segundo as regras do crime. Não sabe distinguir o certo do errado, o reto do torto, o lícito do ilícito. Como exigir-se de um desses seres humanos às avessas que tenha a exata ‘consciência atual da ilicitude’, quando jamais soube o que é ilícito? Mas, se a consciência atual da ilicitude é elemento constitutivo do dolo, a conclusão é a de que um tal tipo criminológico, quando comete crime, age sem dolo.”3 Já foi dito – quando do estudo acerca da conduta – que, para agir dolosamente, não é necessário que o sujeito tenha consciência atual de que age contra o direito, de
3
Op. cit. p. 225.
6 – Direito Penal – Ney Moura Teles que realiza um comportamento proibido. A exigir-se esse elemento normativo, então se chegaria à conclusão de que um ou outro daqueles delinqüentes mencionados por ASSIS TOLEDO, quando mata, ou furta, age sem dolo, posto que não tem consciência real da ilicitude. É de todo claro, o favelado, nascido em ambiente marginal, filho de delinqüente contumaz, de mãe alcoólatra, criado em ambiente agressivo, convivendo com a violência, que presencia diariamente, em seu lar e no vizinho, entre seus amigos, apreende, em seu dia-a-dia, valores exatamente opostos aos tutelados pelo direito. O dolo, portanto, deve ser natural, não contendo um elemento normativo. HANS WELZEL, quando formulou a teoria finalista da ação, como não poderia deixar de ser, apresentou nova concepção sobre a culpabilidade, fulminando a teoria psicológico-normativa e construindo uma nova estrutura do crime. Primeiramente, demonstrou que o dolo e a culpa, em sentido estrito, não são elementos da culpabilidade, porque se situam no interior dos tipos legais de crime, e, de conseqüência, integram a própria conduta e o fato típico. Todos os tipos ou são dolosos ou são culposos. Como verificado anteriormente, toda conduta humana é final, dirigida a determinada finalidade. Ao extrair a culpa, em sentido estrito, e o dolo, da culpabilidade, demonstrou, ainda, que o dolo não continha a consciência atual da ilicitude, pois é puramente psicológico. Dolo e culpa, stricto sensu, que se situavam no interior da culpabilidade, foram remetidos para o interior do fato típico, de onde, aliás, nunca saíram. Retirada do dolo, a “consciência atual da ilicitude” permaneceu no interior da culpabilidade, com substancial alteração. Demonstrou WELZEL que não se pode exigir do agente tenha atuado com consciência real, atual, mas apenas com a consciência potencial, a possibilidade de se conhecer a ilicitude. Esquematicamente: da culpabilidade psicológico-normativa foram extraídos o dolo e a culpa, em sentido estrito, remetidos para o fato típico. O dolo foi transportado sem o elemento normativo, “consciência real da ilicitude”, que permaneceu na culpabilidade alterado, assim: “consciência potencial da ilicitude”. De conseqüência, a culpabilidade, tendo como pressuposto a imputabilidade, ficou sendo a reprovabilidade da conduta do agente, com consciência potencial da ilicitude, que poderia ter agido conforme o Direito. Em síntese: seu pressuposto é a imputabilidade; seus elementos são: a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa.
Culpabilidade - 7 Culpabilidade, para o finalismo, é um puro juízo de valor, normativo, de reprovação da conduta do agente imputável, com consciência potencial da ilicitude, que poderia, nas circunstâncias, ter agido de outro modo. Com essas idéias, HANS WELZEL destruiu a teoria psicológico-normativa, passando, então, a culpabilidade a ser concebida como um puro juízo de valor de caráter normativo; daí o nome da teoria normativa pura ou teoria da culpabilidade, que é o finalismo que esclarece este conceito. Culpável, portanto, é o fato praticado por um sujeito imputável que tinha, pelo menos, a possibilidade de saber que seu comportamento era proibido pelo ordenamento jurídico, e que, nas circunstâncias em que agiu, poderia ter agido de modo diferente, conforme o direito. Se o fato for culpável, ter-se-á aperfeiçoado o crime, e deverá ser, de conseqüência, uma pena. Assim evoluiu o conceito de culpabilidade ao longo dos anos. Até hoje, ainda aparecem discussões novas a respeito do conceito, que, todavia, não cabem no âmbito deste manual. Necessária, agora, para a compreensão, em profundidade, da culpabilidade, a análise, separada e detalhadamente, de seu pressuposto – a imputabilidade – e de seus elementos – a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa.
11.2 IMPUTABILIDADE 11.2.1
Conceito
O homem é um ser inteligente e livre; por isso, é responsável pelo que faz. Inteligente, sabe o que é o bem e o que é o mal, sabe distinguir o certo do errado, o lícito do ilícito, o que deve e o que não deve fazer. Livre, pode escolher entre o torto e o direito, entre o justo e o injusto. Se sabia distinguir entre o permitido e o proibido, e se podia escolher entre uma e outra conduta, é responsável pelo comportamento proibido que realizou. Só se pode atribuir a um homem a responsabilidade por algo realizado, se ele for um ser inteligente e livre, se tiver condições pessoais que lhe assegurem a capacidade para lhe ser juridicamente imputada a prática do fato punível. Imputabilidade penal é a capacidade de ser culpável. Se um homem não for inteligente, ou, sendo, não for livre, se não souber distinguir entre o bem e o mal, ou sabendo, não tiver liberdade para escolher entre um
8 – Direito Penal – Ney Moura Teles e outro, nenhuma responsabilidade lhe poderá ser atribuída. Será ele incapaz de ser culpado. O Código Penal não diz o que é imputabilidade, dizendo, ao contrário, o que é inimputabilidade, nos arts. 26, 27 e 28, § 1º. Assim, para saber se o agente do fato típico e ilícito era imputável, é necessário verificar se não era inimputável, com base nas normas penais permissivas exculpantes mencionadas. Ali estão os requisitos para aferição da inimputabilidade. Ausentes, o agente será imputável, capaz de responder por seus atos, perante a justiça penal.
11.2.2
Inimputabilidade – espécies
São três as espécies de inimputabilidade, conforme seja seu requisito causal: a primeira é a decorrente de doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado; a segunda, causada pela menoridade do sujeito, e, finalmente, a proveniente de embriaguez completa, fortuita ou por força maior.
11.2.2.1
Inimputabilidade
por
doença
mental,
desenvolvimento
mental incompleto ou desenvolvimento mental retardado Dispõe o art. 26: “É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.” O Código Penal adotou o sistema biopsicológico de aferição da inimputabilidade, segundo o qual será inimputável o indivíduo que portar uma anomalia psíquica e, ao mesmo tempo, em decorrência dela, apresentar incapacidade de entendimento ou de determinação. O pressuposto biológico, que é o requisito causal dessa inimputabilidade, é ser o agente portador de uma doença mental, de desenvolvimento mental incompleto ou de desenvolvimento mental retardado. São doenças mentais as enfermidades que alteram as funções intelectuais e volitivas do indivíduo, entre outras, “as psicoses (orgânicas, tóxicas e funcionais, como paralisia geral progressiva, demência senil, sífilis cerebral, arteriosclerose cerebral, psicose maníaco-
Culpabilidade - 9 depressiva etc.), esquizofrenia, loucura, histeria, paranóia, etc.”4. Divergem os tribunais acerca de a epilepsia ser ou não doença mental. “Os
epilépticos
são
doentes
de
extrema
periculosidade.
Esta
periculosidade deriva de uma condição biológica: a facilidade de reacionar aos estímulos sensíveis e sensoriais, com perturbações humorais e afetivas e com uma atividade irritável, que predispõe a reação impulsiva. São doentes de mau humor, e muito irritáveis, disposição temperamental esta que conduz à criminalidade violenta. Ao menor motivo, ou mesmo sem motivo aparente, o doente explode em terríveis acessos de cólera violenta. A reação do epiléptico processa-se à margem da consciência, é automática, brutal, verdadeira carga energética concentrada.”5 O mesmo Tribunal de Justiça de São Paulo, em julgado mais recente, tratou diferentemente a matéria: “Ao epiléptico só falta a plena capacidade volitiva quando da ‘aura’. Fora da síndrome, é o portador do mal inteiramente responsável pelo delito cometido.”6 Desenvolvimento mental incompleto é o que ainda não se concluiu e desenvolvimento mental retardado é o que não se concluirá. No primeiro caso, encontram-se os menores e, para alguns, os silvícolas não adaptados. É certo que estes, pelo simples fato de não estarem, ainda, adaptados, não podem ser considerados portadores de desenvolvimento mental incompleto, o que deve ser apurado mediante perícia técnica. No segundo caso, encontram-se os oligofrênicos, os idiotas, imbecis e débeis
mentais.
Os
surdos-mudos
podem
apresentar
deficiência
intelectual
considerável e, conforme as circunstâncias, ser considerados com desenvolvimento mental retardado. Nem todo doente mental, portador de desenvolvimento mental incompleto ou retardado, é inimputável. É necessário que, em conseqüência do pressuposto biológico, seja ele inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Para que o sujeito seja inimputável, a doença mental ou o desenvolvimento incompleto ou retardado deve causar a absoluta incapacidade de entendimento do indivíduo ou sua completa incapacidade de determinação. 4
JESUS, Damásio E. Direito penal: parte geral. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. v. 1, p. 441.
5
Ac. do TJSP, Rel. Silva Leme. Revista dos Tribunais, nº 419, p. 102.
6
Revista dos Tribunais, nº 591, p. 319.
10 – Direito Penal – Ney Moura Teles Tal situação deve ter existido no momento em que foi realizada a ação ou a omissão típica, no momento da conduta, e sua verificação será feita mediante exame pericial, a ser realizado por técnicos – psiquiatras e psicólogos. Examinando-o, indagar-se-á, primeiramente: o agente, ao tempo do fato, era doente mental, tinha desenvolvimento mental incompleto ou retardado? Se a resposta for NÃO, a conclusão é de que o agente é imputável, e a operação estará concluída. Se a resposta for SIM, passa-se à segunda pergunta: ao tempo do fato, o agente era inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato? Se a resposta for SIM, a conclusão é de que ele é inimputável e a operação estará encerrada. Se for NÃO, passa-se à terceira e última pergunta: o agente, ao tempo do fato, era inteiramente incapaz de determinar-se de acordo com aquele entendimento do caráter ilícito do fato? Se a resposta for SIM, a conclusão é de que ele é inimputável; se for NÃO, então ele é imputável, terminada a verificação. Se o indivíduo que cometeu o fato típico e ilícito não era imputável, se não tinha capacidade de entendimento, de saber que sua conduta era proibida, ou, mesmo capaz de entender, não tinha capacidade de se autogovernar, não poderá sofrer a sanção penal. Não pode ser punido, não pode ser responsabilizado. Verificada a inimputabilidade do agente do fato típico e ilícito, deverá o juiz aplicar-lhe uma medida de segurança, conforme manda o art. 97 do Código Penal, que pode ser a internação em hospital de custódia, com tratamento psiquiátrico, ou a sujeição a um tratamento ambulatorial. As medidas de segurança serão estudadas no Capítulo 21 deste manual.
11.2.2.2
Inimputabilidade por menoridade
A Constituição Federal, em seu art. 228, dispõe: “São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.” O art. 27 do Código Penal: “Os menores de dezoito anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial.” A lei brasileira presume que todo menor de 18 anos tem desenvolvimento mental incompleto; por isso, considera-o inimputável, independentemente da verificação de sua capacidade de entendimento ou de determinação. Aqui, a lei adotou um critério puramente biológico. Basta que seja menor e será inimputável. Trata-se de uma presunção absoluta, não se admitindo prova da capacidade de entendimento ou de
Culpabilidade - 11 determinação. A Lei nº 8.069, de 13-7-1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente, cuida dos menores que vierem a cometer fatos típicos. Para a lei especial, são crianças as pessoas com até 12 anos de idade incompletos e adolescentes aquelas entre 12 e 18 anos. Para as crianças que cometerem fatos típicos e ilícitos, será aplicada uma das seguintes medidas: encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade; orientação, apoio e acompanhamento temporários; matrícula e freqüência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; abrigo em entidade; ou colocação em família substituta, conforme as necessidades do caso. Se o adolescente cometer fato típico ilícito, sofrerá uma das seguintes medidas, ditas socioeducativas: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade; internação em estabelecimento educacional, ou uma das medidas aplicáveis às crianças, com exceção das duas últimas. Ultimamente, com o aumento da criminalidade, e, ao lado dela, o incremento da delinqüência juvenil, não são poucas as vozes que se levantam no sentido de que a menoridade penal seja modificada, para que somente sejam considerados inimputáveis os menores de 16 anos, e, alguns mais radicais, defendem a redução para abaixo dos 14 anos. Mostram estatísticas que revelam grande número de ilícitos praticados por menores a mando, ou sob o controle, de adultos, que se utilizam da menoridade de crianças e adolescentes para assegurar a impunidade. Propostas como essas, longe de resolver qualquer problema da espécie existente no país, constituem verdadeiro engodo, e só podem ser compreendidas dentro da ideologia da corrente da lei e da ordem. As crianças e os adolescentes que cometem fatos típicos e ilícitos, que são usados por delinqüentes adultos, são, em verdade, filhos de uma sociedade injusta, assentada em bases econômicas e sociais perversas. A eles não foram proporcionadas oportunidades de vida digna, com habitação, família, educação, saúde, lazer, formação moral, enfim, não tiveram oportunidades de apreender os valores ético-sociais importantes e, por isso, quando atuam contra o direito, estão, na verdade, simplesmente, respondendo aos “cidadãos de bem” com o gesto que aprenderam: a
12 – Direito Penal – Ney Moura Teles violência e o desrespeito à lei. Nunca se pode esquecer que não é o Direito Penal o purificador das almas, nem sua missão é a de combater a violência, adulta ou juvenil. Sua tarefa é proteger os bens jurídicos mais importantes, das lesões mais graves. Querer modificar a menoridade penal para encarcerar adolescentes é, infelizmente, querer transformá-los, mais cedo e mais eficazmente, em verdadeiros delinqüentes, perigosos, pois encaminhá-los aos presídios, ao convívio com delinqüentes formados, experimentados, é abdicar de qualquer possibilidade de educálos para uma vida digna. Soa, por fim, como piada a proposta, uma vez que o Estado brasileiro não tem sido capaz de construir estabelecimentos prisionais para atender às necessidades atuais de vagas para os condenados a penas privativas de liberdade. Se a capacidade penal alcançar os adolescentes, como se propõe, então a falência do sistema penitenciário será ainda mais estrondosa.
11.2.2.3
Inimputabilidade por embriaguez completa, proveniente de
caso fortuito ou força maior O § 1º do art. 28 do Código Penal contém o seguinte dispositivo: “É isento de pena o agente que, por embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.” Trata-se aqui de outra espécie de inimputabilidade, que difere da primeira, do art. 26, apenas pelo requisito causal. O requisito conseqüencial é o mesmo: a inteira incapacidade de entendimento ou de determinação. Na primeira hipótese, o pressuposto é a doença mental, o desenvolvimento mental incompleto ou retardado. Aqui, é a embriaguez. Não qualquer embriaguez, mas apenas a completa e, mais, proveniente de caso fortuito ou força maior. Embriaguez é “a intoxicação aguda e transitória causada pelo álcool, cujos efeitos podem progredir de uma ligeira excitação até ao estado de paralisia e coma”7.
7 MANZINI.
447.
Apud JESUS, Damásio E. de. Direito penal: parte geral. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. v. 1, p.
Culpabilidade - 13 DAMÁSIO E. DE JESUS ensina que a embriaguez apresenta três fases. A primeira é a chamada fase da excitação, em que o sujeito apresenta enorme euforia, torna-se loquaz, brinca, diverte-se, fala com tom de voz elevado, tem diminuída sua capacidade de autocrítica. Todos conhecem essa fase, em festas e ambientes sociais, e certamente apenas os que jamais ingeriram bebida alcoólica não experimentaram essa situação. Geralmente, nessa etapa, o sujeito não passa de um inconveniente, falando o que não devia ou podia ser dito. A segunda é a da depressão, em que o indivíduo já experimenta certa confusão mental, não se localizando, com precisão, no tempo e no espaço, perdendo a capacidade de coordenar seus movimentos corporais e, em decorrência desse déficit, irritando-se com facilidade. Aqui, qualquer contrariedade, por menor que seja a dúvida que se apresenta, faz com que o sujeito reaja com violência ou agressividade. A terceira e última fase é a da letargia, quando o sujeito já ultrapassou todos os limites do autocontrole físico e mental, atingindo o sono, a anestesia, o relaxamento dos esfíncteres, culminando com o coma. A embriaguez é completa quando atinge pelo menos a segunda fase. O primeiro requisito para essa inimputabilidade é que a embriaguez seja completa. Mas não basta; é preciso, ainda, que ela tenha sido decorrente de um caso fortuito ou de força maior. Embriaguez por caso fortuito é a acidental, que ocorre sem que o sujeito desejasse embriagar-se, nem a decorrente de negligência. Nem é voluntária, nem é culposa. Às vezes, o sujeito ingere determinada substância sem conhecer seu efeito embriagante, ou uma sua condição fisiológica que, interagindo com a substância, conduz à embriaguez. Embriaguez proveniente de força maior é a resultante de força física externa imprimida sobre o sujeito, no sentido de obrigá-lo a ingerir a substância embriagante. Se o sujeito, no momento da ação ou da omissão, estiver completamente embriagado, em razão de caso fortuito ou força maior e se, por isso, for absolutamente incapaz de entender a ilicitude do fato ou inteiramente incapaz de determinar-se de acordo com esse entendimento, será ele inimputável. Se a embriaguez for patológica, como já dito quando se abordou a interpretação da lei penal, a inimputabilidade será verificada nos termos do art. 26 e não do § 1º do art. 28.
11.2.3
Embriaguez
voluntária,
preordenada
ou
não,
e
14 – Direito Penal – Ney Moura Teles
embriaguez culposa. A actio libera in causa O art. 28, II, do Código Penal, estabelece que não exclui a imputabilidade a embriaguez voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos. Será o agente considerado imputável, plenamente capaz de ser culpado. São duas as modalidades: a voluntária, em que o sujeito tem consciência e vontade de se embriagar, e a culposa, em que ele, apesar de não querer, continua, negligentemente, ingerindo a substância até se embriagar. A embriaguez voluntária pode ser, ainda, preordenada, quando o sujeito ingere a substância inebriante voluntariamente e com o fim de cometer determinado fato típico, caso em que, no momento da aplicação da pena, será considerada como circunstância agravante. A norma do art. 28, II, do Código Penal, leva à punição de agente por fato cometido numa situação em que ele pode não ter consciência dos fatos praticados – o que implica a responsabilização da pessoa num dos casos de verdadeira ausência de conduta – ou em que lhe falte capacidade de entender a ilicitude ou de se determinar –, o que resulta na punição de alguém na condição igual à do inimputável. Essa seria uma exceção ao princípio segundo o qual a capacidade de ser culpado deve ser aferida no momento da conduta, e é chamada actio libera in causa, definida como “os casos em que alguém, no estado de não-imputabilidade, é causador, por ação ou omissão, de algum resultado punível, tendo se colocado naquele estado, ou propositadamente, com a intenção de produzir o evento lesivo, ou sem essa intenção, mas tendo previsto a possibilidade do resultado, ou, ainda, quando podia e devia prever”.8 Trata-se, na verdade, de responsabilidade penal objetiva, pois, nesses casos, o agente, no momento em que realiza a conduta, muitas vezes não tem consciência do fato, ou, então, da ilicitude. Sem consciência, não se pode afirmar tenha ele cometido algo ou se omitido voluntariamente, pois que a vontade depende da consciência. Muitas vezes, há verdadeira ausência de conduta, por encontrar-se ele em estado de inconsciência. Noutras, apesar da consciência fática, não tem, todavia, consciência da ilicitude, nem mesmo capacidade para atingir tal consciência.
8
QUEIRÓS, Narcélio de. Teoria da actio libera in causa e outras teses. Rio de Janeiro: Forense, 1963. p. 37.
Culpabilidade - 15 O preceito do inciso II do art. 28, todavia, é taxativo: não fica excluída a imputabilidade penal, o que significa dizer que o indivíduo é capaz de ser culpado e será, certamente, condenado. A teoria da actio libera in causa faz transferir, por ficção, o juízo que se faz acerca da imputabilidade, do momento da conduta, para o momento em que o agente ingeriu a substância embriagante. Chega-se ao absurdo de dizer: se o agente, ao se embriagar, previu a possibilidade de cometer crime, e o quis ou não se importou com essa possibilidade, então responderá pelo fato a título de dolo, e se, não o prevendo, ou prevendo e não aceitando o resultado previsível, responderá por culpa, stricto sensu. Dolo e culpa, em sentido estrito, são categorias que exigem, necessariamente, a previsibilidade, que só pode ocorrer quando o indivíduo tem consciência. A solução do Código é infeliz e colide, frontalmente, com o princípio da presunção da inocência, insculpido na Carta Magna, no art. 5º, LVII, ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, que limita a atividade do legislador, impedindo-o de estabelecer a responsabilidade com base em presunções de culpabilidade9. Não se pode, portanto, presumir a culpabilidade, que deve restar demonstrada no momento em que o sujeito realizou o comportamento proibido e reprovável. A teoria da actio libera in causa, na verdade, colide com outros princípios constitucionais.
ALBERTO
SILVA FRANCO
observa-o
violando o princípio
da
personalidade da pena, uma vez que, “se a pena não pode passar da pessoa do delinqüente, é fora de dúvida que deva ter, com ele, estreita correlação, deve pertencer-lhe, deve atingi-lo como pessoa, enquanto centro de agir e de decisão. Desta forma, ninguém poderá, em verdade, responder por fato delituoso que não seja expressão de seu atuar, que não seja uma afirmação sua. Isto significa, nessa perspectiva, que todo agente deverá ser punido apenas e exclusivamente por fato próprio, por fato seu, enfim, por fato de sua responsabilidade pessoal”10. A actio libera in causa importa em agressão à harmonia do sistema penal. Com efeito, dispõe o parágrafo único do art. 18 do Código Penal que, em regra, somente serão
punidos
fatos
definidos
como
crime
cometidos
dolosamente,
e,
excepcionalmente, aqueles cometidos culposamente. Admitida a punição de
9
GOMES, Luiz Flávio. Direito de apelar em liberdade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 39.
10
Código penal e sua interpretação jurisprudencial. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 333.
16 – Direito Penal – Ney Moura Teles comportamentos realizados sem dolo e sem culpa, atinge-se, igualmente, por extensão, o princípio da legalidade, ao qual se incorporou o princípio da criação dos tipos dolosos e culposos. Já não se pode aceitar a responsabilidade penal objetiva; daí que cabe ao legislador brasileiro trilhar caminhos próximos aos de seus irmãos portugueses. ALBERTO SILVA FRANCO dá notícia que o art. 282 do Código Penal português assim estabelece: “Quem, pela ingestão voluntária ou por negligência, de bebidas alcoólicas ou
outras substâncias
tóxicas, se colocar em
estado de completa
inimputabilidade e, nesse estado, praticar um acto criminalmente ilícito, será punido com prisão até um ano e multa de 100 dias” e, “se o agente contou ou podia contar que nesse estado cometeria factos criminalmente ilícitos, a pena será a prisão de um a três anos e multa até 150 dias.” 11 Esse é o caminho. Deve-se eliminar a responsabilidade penal objetiva, e buscar a implantação da reprovação do comportamento do sujeito que se embriaga, preordenada, voluntária ou culposamente, e acaba por cometer fato típico ilícito.
11.2.4
Capacidade diminuída
Ao lado dos casos de inimputabilidade, o ordenamento penal prevê certas situações intermediárias, em que o sujeito, apesar de imputável, não tem a plenitude de sua capacidade de entendimento ou de determinação, denominadas de casos de “capacidade diminuída”. A lei prevê duas hipóteses: a menor capacidade decorrente de perturbação da saúde mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado, prevista no parágrafo único do art. 26 (“a pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”), e a decorrente de embriaguez incompleta, definida no § 2º do art. 28 (“a pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, por embriaguez, proveniente de caso fortuito ou força maior, não possuía, ao tempo da ação ou da omissão, a plena capacidade de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”).
11
Op. cit. p. 333.
Culpabilidade - 17 Nas duas hipóteses, o agente é imputável; tem capacidade de entendimento e de determinação. Ocorre que essa capacidade não é plena, completa, integral, mas sofre diminuição em razão de perturbação da saúde mental, de desenvolvimento mental incompleto, retardado, ou de embriaguez incompleta. É pacífico que entre o estado de plena e total saúde mental, de completa normalidade psíquica, e os estados de deficiência psíquica não há uma “linha precisa de demarcação”, na expressão do sempre importante DAMÁSIO E. DE JESUS. Existem estados psíquicos que se situam numa zona intermediária entre a doença e a normalidade, entre a plenitude das faculdades psíquicas e a insanidade. É um terreno impreciso situado entre a zona da inimputabilidade e o território da imputabilidade. Entende o ordenamento que em tais situações o indivíduo é capaz, pois reúne condições psíquicas para compreender a ilicitude de seu comportamento e para se governar, para escolher o caminho a trilhar. É capaz, é imputável; todavia, sua capacidade não é plena, total, como a que tem o homem completamente sadio mentalmente. Diz-se nesses casos que, apesar de imputável, sua capacidade é reduzida, é menor do que a do plenamente imputável. Por essa razão, determina a lei que, numa situação dessas, tendo o sujeito realizado um fato típico e ilícito, será considerado capaz, imputável; todavia, na hipótese de ser considerado culpado, o juiz, ao aplicar a pena, deverá, em atenção a sua menor capacidade de entendimento ou de determinação, reduzi-la, de um a dois terços, impondo, pois, uma reprovação menor do que a que seria imposta ao plenamente capaz. Para uma capacidade menor, menor reprovação. O art. 98 do Código Penal prevê, no caso da capacidade diminuída prevista no parágrafo único do art. 26, a possibilidade de o juiz substituir a pena privativa de liberdade por uma medida de segurança, de internação ou de tratamento ambulatorial, conforme as circunstâncias.
11.2.5
Emoção e paixão
O art. 28, I, do Código Penal explica que a emoção e a paixão não excluem a imputabilidade penal, pelo que todo aquele que vier a cometer um fato típico ilícito em estado de emoção ou de paixão não será considerado inimputável, o que significa será ele considerado imputável, capaz de ser culpado. A emoção, dizem os doutrinadores, é um estado afetivo, que atinge e perturba o
18 – Direito Penal – Ney Moura Teles equilíbrio psicológico do indivíduo, alterando-lhe a maneira de pensar e, de conseqüência, de agir, não retirando, todavia, a capacidade de entendimento e de determinação. A ira, o medo, a alegria, a surpresa, a vergonha, dizem, são situações emocionais, que são intensas e de duração limitada no tempo. A paixão, ao contrário, é um estado crônico, duradouro e, por isso, estável, revelando crise psíquica profunda, substancial, que atinge de modo grave não só a psique, mas também o próprio estado físico do homem. É o amor, é o ódio. Esses estados não implicam a perda da capacidade de entendimento ou de determinação; apenas alteram o estado psicológico do sujeito, que, apesar de emocional ou mentalmente alterado, continua com capacidade de entender e de se determinar. Tais estados podem funcionar como circunstâncias atenuantes, ou causas de diminuição de pena, conforme estejam associados a outras circunstâncias. É o que acontece com o indivíduo que mata, a pedido, o amigo doente, em estado terminal, praticando a eutanásia. Na verdade, encontra-se numa situação em que a emoção lhe domina o pensamento e interfere em sua liberdade de agir. Por isso, no ordenamento penal encontram-se normas como as do § 1º do art. 121: “Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz poderá reduzir a pena de um sexto a um terço”, e a do art. 65, III, c, que manda o juiz atenuar a pena quando o agente tiver cometido o fato “sob a influência de violenta emoção, provocada por ato injusto da vítima.” A emoção e a paixão não excluem a capacidade penal, não tornam o agente inimputável, mas, em determinadas circunstâncias, podem constituir situações que impõem menor reprovação penal, tendo em vista a modificação do estado psíquico do sujeito, o que mostra que o Direito Penal coloca, no centro de suas atenções, o estado interno do agente do fato.
11.2.6
Conclusão
Verificada a inimputabilidade do agente do fato, se maior de 18 anos, ser-lhe-á aplicada medida de segurança, se menor, medida socioeducativa. Concluindo o julgador pela imputabilidade – capacidade de entender a ilicitude do fato e de determinar-se de acordo com o entendimento –, deverá, então, ser analisada a culpabilidade, verificando se seus dois elementos estão presentes: a
Culpabilidade - 19 potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa, caso em que será reprovável a conduta do agente.
11.3 ELEMENTOS DA CULPABILIDADE A culpabilidade é a reprovabilidade da conduta do agente imputável que, com potencial consciência da ilicitude, poderia, nas circunstâncias, ter agido conforme o Direito. Será culpado, de conseguinte, o agente do fato típico que, imputável, tiver atuado com possibilidade de conhecer a ilicitude de sua conduta, e que poderia ter-se comportado de outro modo. Estudou-se o pressuposto da culpabilidade – a imputabilidade. Agora: seus dois elementos.
11.3.1
Potencial consciência da ilicitude
Consciência é conhecimento. Conhecer é dominar, é apreender, é ter consigo, é assenhorear-se do conhecimento de algo. Ter consciência de alguma coisa é ter penetrado em suas entranhas, desvendando todas as suas características, todas as suas particularidades, todas as suas nuanças. É conhecer, é saber, é discernir. A ilicitude é a relação de antagonismo entre um fato típico e todo o ordenamento jurídico. É a relação de contrariedade do fato com o Direito. Potencial é o que exprime a possibilidade de algo. Potencial consciência da ilicitude é a possibilidade de se conhecer que o fato é contrário ao Direito, ilícito, proibido, choca-se com a ordem jurídica. Para que se possa reprovar o comportamento de alguém, é necessário e indispensável que ele, quando atuou, tivesse, pelo menos, a possibilidade de saber que sua conduta era proibida, pois, se não lhe fosse possível atingir esse conhecimento, não tinha, então, nenhum motivo, nenhuma razão para deixar de realizar o que realizou. Quem age sem possibilidade de saber que fere o direito atua na certeza de que sua conduta é de acordo com a ordem jurídica e, assim sendo, não pode merecer qualquer censura, que só é possível quando se possa exigir do homem conhecer que seu gesto é proibido. Se ele tinha a possibilidade de conhecer a ilicitude e, mesmo assim, realizou a conduta contrária ao direito, deve, por isso, ser censurado, já que, tendo possibilidade de atingir a consciência da ilicitude, mesmo assim não a alcançou, quando devia, e por
20 – Direito Penal – Ney Moura Teles isso vai ser reprovado. A consciência potencial da ilicitude é a razão de ser da culpabilidade, do juízo de reprovação que recai sobre o comportamento do sujeito, pois, quando este ignora, desconhece, não sabe e nem pode saber que está contrariando o direito, não pode ser culpado. Não se deve confundir a ausência da consciência da ilicitude com a ignorância da lei, esta inescusável. FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO ensina: “Fixemos isto: lei, em sentido jurídico estrito, é a norma escrita editada pelos órgãos competentes do Estado. Ilicitude de um fato é a correlação de contrariedade que se estabelece entre esse fato e a totalidade do ordenamento jurídico vigente. Se tomarmos, de um lado, a totalidade das leis vigentes e, de outro, um fato da vida real, não será preciso muito esforço para perceber que a eventual ilicitude desse fato não está no fato em si, nem nas leis, mas entre ambos, isto é, na mútua contrariedade que se estabeleceu entre o fato concreto, real, e o ordenamento jurídico no seu todo. Assim, pode-se conhecer perfeitamente a lei e não a ilicitude de um fato, o que bem revela a nítida distinção dos conceitos em exame.”12 Desconhecer a ilicitude de um fato é completamente diferente de desconhecer a lei. Todas as pessoas, mesmo as analfabetas, que jamais viram um exemplar do Código Penal, sabem que matar é crime, e a alegação de desconhecimento da lei para se escusar da responsabilidade penal não é aceita pelo Direito. De nada adiantará, portanto, a alegação do sujeito de que realizou o fato porque não sabia que era típico, definido como crime. Mesmo tendo pleno conhecimento da lei, o sujeito pode realizar um comportamento ignorando que ele é proibido, ou acreditando que ele é permitido. Certa feita, um cidadão, perseguindo ladrões que ingressaram na casa de uma pessoa sua amiga, com o fim de recuperar os objetos subtraídos, acabou por alvejá-los, matando um e ferindo outro. Chamado à delegacia de polícia, espantou-se diante da notícia de que seria indiciado e processado, perguntando, indignado: “mas, doutor, matei um ladrão e ainda vou responder processo?” Este homem, rude, simples, ignorante, apesar de saber que matar é crime, agiu na certeza de que seu comportamento era lícito. Dentro de sua experiência de vida, sua cultura, seus valores, 12
Op. cit. p. 263
Culpabilidade - 21 entendia permitido matar aquele que acabara de furtar. Faltou-lhe, portanto, consciência da ilicitude. Não desconhecia a lei, mas ignorava a ilicitude. Para a reprovação da conduta do sujeito, não se exige tenha ele a consciência real da ilicitude, mas potencial. Exige-se que lhe tenha sido possível, nas circunstâncias em que atuou, atingir o conhecimento da ilicitude, mesmo que não a tenha alcançado. É um elemento puramente normativo, uma valoração que o juiz fará sobre o fato do agente, buscando verificar se era possível a ele, com o esforço devido de sua inteligência, com um juízo de seu próprio pensamento, conhecer que sua atitude era proibida. Concluindo-se que o agente podia ter conhecido a proibição que recaía sobre seu comportamento, ou a falta de permissão para realizar a conduta, deverá ele, então, ser reprovado. Se não, não merecerá censura penal, excluída sua culpabilidade. “A consciência da ilicitude é uma valoração paralela do agente na esfera do profano (Mezger), bastando, para que seja atingida, que cada um reflita sobre os valores ético-sociais fundamentais da vida comunitária de seu próprio meio (Welzel)”13, existente quando tiver sido fácil para o agente, nas circunstâncias em que atuou, com algum esforço de inteligência e com os conhecimentos que tinha na vida social, atingila.
11.3.2
Exigibilidade de conduta diversa
Em algumas situações, o sujeito realiza uma conduta típica e ilícita, com pleno conhecimento de sua ilicitude, mas, em circunstâncias tais que não lhe era possível realizar comportamento diferente. A realidade impõe-lhe atuar contra o Direito, e ele, mesmo sabendo proibido, realiza o comportamento. Veja-se a seguinte situação. O gerente de um banco comercial chega, ao fim do expediente de trabalho, em sua casa e encontra sua mulher e seus filhos sob a mira de poderosas armas de fogo, empunhadas por marginais que exigem dele retorne ao estabelecimento bancário e daí lhes traga certa importância em dinheiro. Se não atender à exigência, seus familiares sofrerão graves conseqüências. O gerente, então, retorna ao banco, retira o numerário e o entrega aos bandidos. O fato típico doloso por ele realizado é, a toda evidência, ilícito, uma vez que não se encontra justificado por nenhuma das excludentes de ilicitude – legítima defesa, estado de necessidade etc. O gerente é
13
TOLEDO, Francisco de Assis. Op. cit. p. 262.
22 – Direito Penal – Ney Moura Teles imputável e agiu com consciência da ilicitude, pois é indubitável que sabia não poder apropriar-se do dinheiro alheio e dá-lo a terceiros. Seu comportamento é reprovável, merece censura penal? Para que o sujeito imputável seja reprovado, não basta que tenha a possibilidade de conhecer a ilicitude do fato típico e ilícito realizado, é preciso que, nas circunstâncias, tivesse a possibilidade de comportar-se de acordo com o Direito e não como se conduziu. Ainda que tivesse conhecimento real, ou, pelo menos, a possibilidade de entender a ilicitude, é necessário verificar se era possível agir de outro modo. Esta possibilidade, de agir de outro modo, é outro juízo de valor que o juiz faz acerca da conduta do agente, e denomina-se exigibilidade de conduta diversa. Só pode merecer censura penal quem podia ter realizado outro comportamento, aquele do qual pode ser exigida a realização de conduta diferente, conforme o Direito. É outro elemento normativo. Em algumas circunstâncias, como no caso do gerente do banco, não se pode exigir comportamento conforme o Direito. Ninguém pode exigir que, em vez de retirar e entregar o dinheiro, procurasse a polícia a fim de libertar seus familiares. Ninguém pode exigir do pai e marido que aja criando a possibilidade de enormes riscos para seus entes queridos. A exigibilidade de conduta diversa é o segundo elemento da culpabilidade, sem o qual não se poderá reprovar a conduta do agente. Não sendo possível ao agente ter agido de outro modo, a culpabilidade será excluída. Imputável o agente, sua conduta somente será reprovada, censurada, será ele culpado, quando estiverem presentes os dois elementos da culpabilidade: a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa. Faltando um dos elementos, ou ambos, exclui-se a culpabilidade. O fato será típico, ilícito, mas não será culpável, inexistindo o crime, e o agente será absolvido.
11.4 CAUSAS LEGAIS DE EXCLUSÃO DA CULPABILIDADE O ordenamento jurídico-penal brasileiro contém algumas normas penais permissivas exculpantes, que excluem a culpabilidade, outras a diminuem. Tais normas contêm as chamadas causas de exclusão da culpabilidade ou dirimentes, que são: o erro de proibição inevitável, as descriminantes putativas, a coação moral irresistível e a obediência hierárquica.
Culpabilidade - 23
11.4.1
Erro de proibição
O erro é uma falsa ou inexata representação da realidade. O sujeito, laborando em erro, compreende ou apreende mal os fatos e suas circunstâncias, formando em sua consciência uma inexata representação do que é. O erro de proibição é o que recai sobre o caráter ilícito do fato, sobre a ilicitude, sobre a proibição que incide sobre seu comportamento. Errando, imagina ou supõe que seu comportamento é lícito, permitido ou não proibido, quando, em verdade, ele o é. Certo cidadão, encontrando sua mulher em flagrante de adultério, mata-a, supondo ser lícito matar a adúltera encontrada nos braços do amante, quando, na verdade, tal comportamento não é permitido pelo Direito Penal. Realizou um fato típico e ilícito, por ter incorrido em erro de proibição. Imaginou que existisse uma excludente de ilicitude, ou que a legítima defesa alcançasse também o caso no qual se viu envolvido, ou, ainda, que o direito lhe autorizasse tal reação, enfim, que era justo matar. Incorrendo em erro de proibição, falta, ao sujeito, a consciência da ilicitude. Não tem consciência de que seu comportamento é proibido pelo ordenamento jurídico.
11.4.1.1
Erro de proibição inevitável
O erro de proibição inevitável, ou invencível, é aquele no qual qualquer pessoa prudente e de discernimento incorreria. É a situação em que falta ao sujeito a consciência da ilicitude, e em que não havia possibilidade de, mesmo com todo o esforço, com todo o empenho de sua inteligência, alcançar ou atingir aquela consciência. Trata-se de uma situação em que, nas circunstâncias em que se encontrava o agente, não lhe era possível conhecer o caráter proibido de seu comportamento, por mais que tivesse adotado medidas para bem apreciar a realidade. Atuando o homem em circunstâncias que tais, em que é absolutamente impossível conhecer a proibição que incide sobre seu comportamento, é absolutamente impossível fazer, sobre ele, qualquer juízo de censura, qualquer valoração de reprovação pelo que realizou. Ausente a possibilidade de conhecer o injusto de seu gesto – ausente a potencial consciência da ilicitude –, fica excluída a culpabilidade. Nesse caso, não há crime, o sujeito deve ser absolvido.
24 – Direito Penal – Ney Moura Teles O erro de proibição inevitável é, portanto, escusável, e sua conseqüência é a exclusão da culpabilidade. Está assim escrito na primeira parte do art. 21 do Código Penal: “O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena.” Interessantes decisões dos tribunais reconhecem o erro de proibição inevitável nesses dois casos. Na cidade de Rancharia, os filhos de uma mulher de 18 anos de idade encontravam-se sob a guarda de outra pessoa. A mãe, que costumava passear com as crianças, resolveu, certo dia, levá-los consigo, quando foi obstada no entroncamento da rodovia Raposo Tavares. Interrogada na polícia, alegou não saber que seu comportamento era crime, pois era a mãe das crianças. Foi denunciada pela prática do fato definido no art. 249 do Código Penal: “Subtrair menor de 18 (dezoito) anos ou interdito ao poder de quem o tem sob sua guarda em virtude de lei ou de ordem judicial.” Julgando recurso de apelação formulada pelo Ministério Público, o Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, em acórdão relatado pelo juiz Walter Theodósio, assim decidiu: “Tratando-se a mãe do menor de pessoa de pouca idade e simplesmente alfabetizada, a quem pareceu não estar cometendo ilícito penal ao levar o filho consigo, é de se reconhecer o erro sobre a ilicitude do fato em termos inevitáveis, justificando a absolvição com fundamento no art. 386, V, do CPP.”14 Em Paraibuna, uma médica de nacionalidade portuguesa, que trabalhava no Posto de Saúde da cidade, resolveu adotar uma criança recém-nascida abandonada na unidade de saúde pela mãe, e foi ao cartório de registro civil onde a registrou como se fosse sua filha. Assim, realizou uma das figuras típicas insertas no art. 242 do Código Penal: “registrar como seu o filho de outrem”. Instaurado Inquérito Policial destinado a instruir futura ação penal, o Tribunal de Justiça de São Paulo, entretanto, julgando pedido de habeas corpus impetrado com o fim de trancar o procedimento policial, assim decidiu: “Se o registro de menor abandonado como filho próprio foi praticado por motivo de reconhecida nobreza e não ocultado pelo agente que tinha a plena convicção de estar atuando licitamente, pode-se aplicar o denominado erro
14
Revista dos Tribunais, nº 630, p. 315.
Culpabilidade - 25 sobre a ilicitude do fato, afastando-se a culpabilidade, nos termos do art. 21, caput, do CP.”15 Nas duas situações, como se vê, os agentes realizaram fatos típicos e ilícitos supondo estarem agindo conforme o Direito, ou não estarem agindo com violação de qualquer preceito legal, errando sobre a proibição que pairava sobre aqueles comportamentos, em circunstâncias em que não lhes era possível alcançar a consciência da ilicitude. Houve, portanto, nos dois casos, erro de proibição inevitável, que excluiu a culpabilidade.
11.4.1.2
Erro de proibição evitável
Erro de proibição evitável é o decorrente da displicência, aquele em que o agente incide, quando podia, se tivesse realizado um pouco de esforço, alcançar a consciência da ilicitude. Agindo sem consciência da ilicitude, mas com possibilidade de atingi-la, presente está a potencial consciência da ilicitude. Esse erro deriva de leviandade, de descuido, de negligência do sujeito. O erro de proibição evitável, ou vencível, é inescusável, não exclui a culpabilidade do sujeito; todavia, tendo ele atuado sem consciência real da ilicitude, sua reprovabilidade deve ser menor, razão por que manda a última parte da norma do art. 21 do Código Penal que sua pena seja diminuída: “O erro sobre a ilicitude do fato, (...); se evitável, poderá diminuí-la (a pena) de um sexto a um terço.” O parágrafo único do mesmo art. 21 define o erro de proibição evitável: “Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência.” Agiria sob erro evitável o marido traído que mata a esposa adúltera, quando a encontra com o amante. Imaginando ser lícito defender a honra maculada com o sangue da “traidora”, age sem a consciência da ilicitude, quando lhe é exigível ter essa consciência, com razoável esforço de inteligência. O mesmo se diga daquele que matou um ladrão e quase matou o outro. Reconhecido o erro evitável, fica diminuída a culpabilidade, mediante a diminuição da pena entre 1/6 e 1/3.
15
Revista dos Tribunais, nº 680, p. 339.
26 – Direito Penal – Ney Moura Teles
11.4.2
Descriminantes putativas
Descriminantes putativas, ou excludentes imaginárias, são modalidades de erros que incidem sobre as causas de justificação, sobre as excludentes de ilicitude. A expressão putativa quer dizer imaginária. São assim excludentes de ilicitude irreais, porque não excluem a ilicitude do fato. Existem apenas na cabeça do sujeito, em razão de erro por ele cometido. É o caso do professor que, tendo reprovado por três semestres consecutivos o mesmo aluno, passa a ser por este perseguido, empurrado, xingado, nutrindo o estudante, depois de certo tempo, um ódio mortal pelo professor. Na quarta reprovação, o aluno resolve matar o professor, compra a arma e, em conversa com um colega, manifesta seu intento criminoso. O colega, preocupado, avisa o professor para que evite ir à aula no dia seguinte, pois será vítima do atentado. O professor apenas se prepara para o desfecho, indo para a aula armado. Na noite anterior, todavia, a namorada do estudante, depois de muita conversa, consegue convencê-lo a desistir do intento homicida, aconselhando-o, ao contrário, a fazer as pazes com o mestre. Sugere, e o aluno aceita, que dê de presente uma caneta, como mimo para o reatamento das relações. Na manhã seguinte, o professor entra na sala de aula, avista o aluno que, ao vêlo, levanta-se e vai em sua direção, levando a mão ao bolso interno do paletó, para tirar a caneta e entregá-la; vendo esse gesto, o professor o interpreta como o de levar a mão para tirar a arma; incontinenti, o professor saca da sua e dispara um tiro mortal contra o estudante, que morre instantaneamente. Nesse caso, o professor realizou o tipo de homicídio doloso, ilícito, porque não existia nenhuma agressão. Todavia, reagiu apenas por supor a existência de uma agressão que, se existisse, tornaria sua reação absolutamente legítima. Houve um erro sobre um pressuposto fático da legítima defesa. Além disso, plenamente justificável pelas circunstâncias, pelos antecedentes do momento do fato, o aviso etc. Trata-se, pois, de legítima defesa putativa, imaginária, irreal, que só existia na mente do professor. É uma descriminante putativa. Toda vez, portanto, em que o agente errar sobre um pressuposto de fato de qualquer das excludentes de ilicitude – legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular de direito – e este erro estiver plenamente justificado – inevitável, portanto –, será o caso de uma descriminante
Culpabilidade - 27 putativa. Age em estado de necessidade putativo o indivíduo que, no estádio de futebol, ouvindo um barulho estranho e imaginando que a arquibancada está prestes a ruir, sai apressadamente, e acaba por causar lesões corporais em outra pessoa. Verifica-se, posteriormente, que não houve nenhum perigo de desabamento. O sujeito errou sobre um pressuposto do estado de necessidade, a situação de perigo atual. O policial que, de posse de um mandado de prisão expedido contra João Antônio, encontra-se com o irmão gêmeo univitelino deste, Antônio João, e o prende, por engano, estará agindo no estrito cumprimento do dever legal putativo. Estão assim definidas no § 1º do art. 20: “É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo.” A propósito das descriminantes putativas, duas correntes divergem quanto a sua conceituação. Para a teoria extremada da culpabilidade (WELZEL, MAURACH, ARMIN KAUFMANN, MUNHOZ NETO, HELENO FRAGOSO, HEITOR COSTA JÚNIOR, LUIZ LUISI, LEONARDO LOPES, WALTER COELHO), as descriminantes putativas são sempre modalidades de erro de proibição, pouco importando venha recair sobre um pressuposto de fato da justificativa, ou sobre sua existência ou seus limites – pois, em qualquer caso, o sujeito age com dolo –, com a exclusão ou diminuição da culpabilidade, conforme seja inevitável ou evitável. Para a teoria limitada da culpabilidade (DAMÁSIO E. DE JESUS, MANOEL PEDRO PIMENTEL e FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, entre outros), as descriminantes putativas podem constituir erro de tipo ou erro de proibição. Quando o erro do sujeito incidir sobre um pressuposto de fato da justificativa, por exemplo, sobre a existência da “agressão”, que justificaria a legítima defesa, será erro de tipo, e, como todo erro de tipo, ficará excluído o dolo e a culpa, se inevitável, e apenas o dolo, se evitável, respondendo, nessa hipótese, o sujeito por crime culposo, se previsto. Errando o agente sobre os limites da eximente – a necessidade dos meios, na legítima defesa – ou até mesmo sobre sua própria existência – a eutanásia, por exemplo –, então trata-se de erro de proibição, inevitável ou evitável, com exclusão ou diminuição da culpabilidade.
28 – Direito Penal – Ney Moura Teles Os adeptos da teoria limitada da culpabilidade afirmam que, quando o sujeito erra sobre um pressuposto fático, por exemplo, sobre a existência da agressão, e esse erro podia ter sido evitado, nesse caso, fica excluído apenas o dolo, e permanece a culpa, stricto sensu. Por exemplo, no final da tarde, um cidadão encontra-se em sua casa, quando escuta o barulho do portão da frente de sua casa, significativo de sua abertura e fechamento bruscos; imediatamente, olha em direção à rua e avista um vulto entrando na casa, quando, sem muito pensar, dispara contra o mesmo, ferindo-o, na certeza de tratar-se de um ladrão. Verifica, em seguida, que era sua sogra que vinha visitar sua mulher. Trata-se de um erro sobre um pressuposto fático da legítima defesa. Se a casa estivesse sendo invadida, poderia ele repelir essa agressão. Não estava. O sujeito errou, supôs uma situação de fato que, se existisse, tornaria sua ação legítima. Como se observa no exemplo, o erro derivou de culpa, em sentido estrito, da precipitação do agente, que, negligentemente, sem nenhum cuidado, sem procurar verificar exatamente quem entrava em sua propriedade, atirou contra o vulto. Nesse caso, para os adeptos da teoria limitada da culpabilidade, há um crime estruturalmente culposo, tanto que o § 1º do art. 20 manda puni-lo com a pena do crime culposo. ALCIDES MUNHOZ NETTO, um dos mais ardorosos defensores da teoria extremada da culpabilidade, mostra que só pelo fato de a lei mandar punir o erro vencível com a pena do crime culposo não se pode concluir ter havido culpa, stricto sensu: “Esta forma de punição não significa, com efeito, que em tal hipótese a falta de consciência da antijuridicidade exclua o dolo, deixando, se evitável, subsistente a culpa em sentido estrito. Reflete apenas o critério de tratar um comportamento doloso como se culposo fora, em decorrência da diminuição da censurabilidade pessoal. É óbvio ser menor a reprovação sobre quem age sem conhecimento da perceptível ilicitude, do que a incidente sobre quem atua com representação da antijuridicidade do fato. O texto do citado dispositivo legal não leva a que se considere, substancialmente culposo, o crime cometido por vencível erro de fato sobre descriminante. Ao estatuir que se o erro deriva de culpa, a esse título responde o agente, quando o fato é punível como crime culposo, a lei só estabelece a forma de punição de tais comportamentos, o que não equivale a declará-los revestidos de culpa em sentido estrito.”16
Culpabilidade - 29 Então, para a teoria extremada, mesmo no erro vencível, derivado de culpa, o que falta ao agente é a consciência real da ilicitude, por negligência, razão por que resta diminuída a culpabilidade e não excluído o dolo. O problema é que o legislador da reforma de 1984 situou a norma permissiva exculpante das descriminantes putativas, no interior do art. 20, cujo caput cuida do erro de tipo, que exclui o dolo. Em razão disso, os que defendem a teoria limitada encontraram suporte para demonstrar que as descriminantes putativas seriam erros de tipo. É claro que a colocação topográfica da norma não tem o poder de mudar a realidade. Quem, negligentemente, imaginou a existência de uma agressão e, por isso, disparou uma arma de fogo contra o suposto agressor agiu, à toda evidência, com dolo, com previsão e vontade, com consciência de que com sua conduta causaria o resultado, e com vontade de que ele ocorresse ou, pelo menos aceitando-o se ele, eventualmente, acontecesse. É o caso do cidadão que matou a sogra. Atirou dolosamente, com consciência de que disparava contra uma pessoa, e com vontade de fazê-lo. Faltou-lhe consciência de que não havia agressão. Dizer que o agente, por ter, negligentemente, suposto uma agressão inexistente e disparado contra quem imaginava estar agredindo-o, atuou sem dolo – sem previsão do resultado e sem vontade ou pelo menos sem aceitar o resultado –, mas com culpa stricto sensu é, isto sim, criar um ente mitológico e monstruoso: um crime em que o agente prevê e quer o resultado, ou o aceita, chamado de crime culposo. Se a lei preferiu punir o agente que cometeu um erro evitável com a pena do crime culposo, não significa tenha ela considerado tal crime culposo, mas apenas que optou por uma fórmula diferente – e equivocada, é verdade – de impor-lhe menor reprovação. Assim, correto é o entendimento de MUNHOZ NETTO e tantos outros, de que as descriminantes putativas, seja o erro incidente sobre pressuposto fático da justificativa, seja incidente sobre limites ou existência da causa de justificação, será sempre um erro de proibição, porque falta ao agente, em qualquer dessas hipóteses, a consciência da ilicitude. O erro, se derivado de sua desatenção, de sua negligência, de culpa stricto sensu, era evitável; por isso ele apenas terá a culpabilidade diminuída. Seu comportamento é doloso, mas não tem consciência de ser injusto, pois, em face do erro,
16
A ignorância da antijuridicidade em matéria penal. Rio de Janeiro: Forense, 1978. p. 116.
30 – Direito Penal – Ney Moura Teles crê estar realizando a vontade do Direito, amparado por uma causa de justificação que, na realidade, não ocorre.
11.4.3
Coação moral irresistível
O art. 22 do Código Penal contém norma penal permissiva exculpante que contém duas causas distintas de exclusão da culpabilidade: a coação moral irresistível e a obediência hierárquica. A coação moral irresistível está assim definida: “Se o fato é cometido sob coação irresistível (...) só é punível o autor da coação”. Trata-se, como já se disse, de coação moral, de uma violência moral imprimida contra o sujeito, a chamada vis compulsiva. A coação de natureza física impede o sujeito de ter vontade, de modo que fica excluída a própria conduta (ausência de conduta), pois exclui integral e totalmente a liberdade do sujeito, que, por isso, não tem possibilidade de ter vontade. A coação moral é o emprego de uma grave ameaça contra alguém, a fim de que ele faça ou deixe de fazer alguma coisa. Se este fizer ou deixar de fazer, se a ação ou omissão realizadas sob coação constituir um fato típico e ilícito, não será, entretanto, culpável. A força moral é tamanha que o sujeito não tem possibilidade de atuar como desejava. Trata-se de força tal que não é possível a ele resistir e agir conforme desejava. Na hipótese, fica suprimida a exigibilidade de conduta diversa, um dos elementos da culpabilidade e, de conseqüência, o coagido não pode ser reprovado, não merece censura, devendo ser desculpado. O pressuposto é a existência de alguém que coage o sujeito, de um coator, que será punido, como se fosse o executor do fato típico e ilícito. A coação deve ser, necessariamente, irresistível, daquelas capazes de atuar sobre a vontade do sujeito de modo insuperável, invencível, tal a violência moral e o perigo que significa. Algo tão poderoso ou perigoso que ao sujeito não resta outra alternativa senão atender aos anseios do coator, para evitar a concretização da ameaça. É o que acontece quando o coator ameaça familiares do sujeito, mantendo-os sob a mira de armas poderosas, ou amarrados em armadilhas que, a qualquer gesto, dispararão dispositivo que causa a morte, enfim, situações em que o sujeito tem sua liberdade de escolha colocada sob verdadeiro e total domínio dos desejos do coator. O agente não tem outra alternativa, não se podendo exigir dele um
Culpabilidade - 31 comportamento conforme o Direito; por isso, fica excluída a culpabilidade. A jurisprudência, inclusive do Supremo Tribunal Federal, tem entendido que, para a configuração da coação moral irresistível, é necessário que haja o concurso de três pessoas: o coator, o coagido e a vítima, aniquilando o primeiro a vontade do coagido por meio da colocação do terceiro – vítima – em perigo concreto, a fim de obrigar o sujeito a realizar a conduta que não realizaria normalmente. Se a coação for resistível, daquelas que o sujeito podia vencer, em face de sua menor eficiência, ou do grau inferior de perigo, permanece íntegra a culpabilidade, podendo incidir, todavia, uma circunstância atenuante da pena, prevista no art. 65, III, c, primeira parte, do Código Penal.
11.4.4
Obediência hierárquica
No mesmo art. 22, do Código Penal, está prevista outra causa de exclusão da culpabilidade, a obediência hierárquica, que é uma espécie de erro de proibição, assim: “Se o fato é cometido (...) em estrita obediência à ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor (...) da ordem.” Ordem de superior hierárquico é um comando emanado de uma pessoa que exerce determinado cargo ou uma função de natureza pública, para outra pessoa que lhe seja, hierarquicamente, subordinada, contendo a determinação de realizar essa ou aquela conduta, positiva ou negativa. O pressuposto é que exista, entre o que ordena e aquele a quem se dirige a ordem, uma relação hierárquica de subordinação, relacionamento este, é claro, de direito público, o que leva à conclusão de que só é possível a ocorrência dessa dirimente que envolve servidores ou agentes do serviço público. A norma afirma que não será reprovado, culpado, aquele que realizar um fato típico e ilícito em estrita obediência a uma ordem de um seu superior hierárquico, desde que seja uma ordem não manifestamente ilegal. Para a verificação da ocorrência ou não desta causa de exclusão da culpabilidade, o primeiro passo é descobrir-se o que é uma ordem não manifestamente ilegal. Há ordens de superior hierárquico que são legais. Estas, é de todo claro, não interessam aqui, pois nenhuma ordem legal pode ensejar a realização de qualquer fato típico ilícito. Restam, então, as ordens ilegais. Entre estas existem as que são manifestamente ilegais, clara, indiscutível,
32 – Direito Penal – Ney Moura Teles insofismável, total, límpida, inexorável, absurdamente ilegais. Por exemplo: ordenar o Delegado de Polícia, ao agente da carceragem, que mate o preso da cela nº 3, porque ele é portador do vírus da Aids, ou que estupre a presa da cela feminina, porque ela o ofendera. Essas ordens são, claramente, manifestamente ilegais, de modo que, se o carcereiro cumprir qualquer delas, não poderá alegar ter agido ao amparo da exculpante da obediência hierárquica, que só contempla, somente ampara, aqueles que realizarem um tipo ilícito no estrito cumprimento de uma ordem não manifestamente ilegal de superior hierárquico. Ordem não manifestamente ilegal é a de ilegalidade discutível, que não é patente, nem resplandece à primeira vista, deixando dúvidas na avaliação de quem a recebe. Por exemplo, um Promotor de Justiça determina ao secretário recém-empossado no gabinete da promotoria que – antes de iniciar-se a audiência – vá à sala das testemunhas e determine a uma delas que venha a falar-lhe e, caso ela se recuse, tragaa presa em flagrante de crime de desobediência. Esta ordem, à primeira vista, não parece ilegal, apesar de sê-lo. O promotor de justiça, todos sabem, não tem poder para mandar vir a sua presença quem quer que seja, mormente por meio de um chamado verbal, por um simples funcionário burocrático, e fora de qualquer processo ou procedimento legalmente instaurado. Para o servidor público recentemente ingressado no serviço público, sem qualquer conhecimento das regras processuais e, mesmo, de Direito Administrativo, contudo, aquela ordem recebida é legal. Recebendo-a de seu superior, um promotor de justiça – alguém que lhe parece ser um “homem da lei”, aliás, é o fiscal dela –, jamais pensaria ser uma ordem contra a lei, de sorte que, em sua consciência, a ordem recebida é perfeitamente legal. Se ele vai à sala das testemunhas, emite a convocação e a testemunha, recusandose a acompanhá-lo, é trazida coercitivamente, terá havido, à toda evidência, um fato típico de constrangimento ilegal, definido no art. 146 do Código Penal, quando não o de seqüestro, definido no art. 148, Código Penal. Ilícito o fato, não será, todavia, culpável, amparado que estava o agente pela dirimente da obediência hierárquica. Trata-se, como se pode perceber, de verdadeiro erro de proibição, pois faltou ao agente a consciência da ilicitude. Era-lhe, ademais, nas circunstâncias, impossível alcançar a consciência da proibição. Fica, em razão disso, excluída a culpabilidade. Se a ordem não fosse não manifestamente ilegal, permaneceria a culpabilidade,
Culpabilidade - 33 podendo incidir, contudo, a circunstância atenuante prevista no art. 65, III, c, do Código Penal. Para que se possa reconhecer essa dirimente, é indispensável que haja relação de direito público entre o superior e o subordinado. Entre empregador e empregado, patroa e empregada doméstica, a relação é de direito privado, logo, não se pode falar em exclusão de culpabilidade do empregado que realiza fato típico obedecendo à determinação do empregador. A ordem, que deve, como se demonstrou, ser não manifestamente ilegal, precisa, ainda, preencher seus requisitos formais, emanar da autoridade competente, e ser cumprida dentro da mais estrita obediência, não se admitindo qualquer excesso do subordinado. Faltando qualquer desses requisitos, não incide a exculpante, mantida a culpabilidade do sujeito. Quando se aplicar a dirimente, somente o autor da ordem responderá pelo fato e, por ele, será punido.
11.5 CAUSAS SUPRALEGAIS DE EXCLUSÃO DA CULPABILIDADE Culpabilidade é a reprovabilidade da conduta do agente imputável que, com possibilidade de conhecer a ilicitude, podia, ainda, nas circunstâncias, ter agido de outro modo. Faltando um dos elementos da culpabilidade, está ela excluída, não se podendo reprovar o agente do fato típico e ilícito. Ausente a potencial consciência da ilicitude – haverá erro de proibição inevitável, descriminante putativa escusável, ou obediência hierárquica, expressamente previstas no Código Penal como dirimentes –, não há o crime. Sem exigibilidade de conduta diversa – há coação moral irresistível –, igualmente não há reprovação, não há culpabilidade, o fato típico e ilícito não é crime. Sempre, portanto, que não estiver presente um dos elementos da culpabilidade, esta não existe e, conseqüentemente, não se aperfeiçoa o crime. Até aqui, foram vistos casos em que, para a ausência de um dos elementos da culpabilidade, existia uma causa expressamente prevista numa norma penal permissiva exculpante, que previa a isenção da pena para o agente – fórmula encontrada pelo legislador para distinguir a excludente de ilicitude da de culpabilidade. Para que a culpabilidade seja excluída, não é, entretanto, indispensável a
34 – Direito Penal – Ney Moura Teles existência de norma penal permissiva que expressamente mande isentar o agente da pena criminal. Basta que sobre o fato típico e ilícito realizado não incida o juízo de reprovação – pela ausência de, pelo menos, um dos elementos da culpabilidade. Se isso ocorrer, haverá causa de exclusão da culpabilidade que não se encontra expressamente prevista no Código Penal. São duas as causas: o excesso de legítima defesa exculpante e a inexigibilidade de conduta diversa.
11.5.1
Excesso de legítima defesa exculpante
Muitas vezes, o sujeito ultrapassa intensivamente os limites da legítima defesa – usando meio além do necessário, ou o meio necessário desproporcionalmente, imoderadamente – por medo, susto, perturbação, ou confusão de que se vê acometido em razão da injusta agressão sofrida. Não tem, nas circunstâncias, capacidade de dominar as reações psicológicas desencadeadas, rapidamente, com base na agressão e na expectativa do perigo para o bem jurídico atingido, e acaba por exceder os estreitos limites da legítima defesa. Ao fazê-lo, é claro, realiza comportamento ilícito, em face da ausência da moderação ou do uso de meios além do necessário. Deve, apesar da ilicitude da conduta, ser esse agente reprovado, censurado, considerado culpado e, como tal, sofrer a sanção penal? É certo que não, pois nas circunstâncias não podia comportar-se de modo diverso, ausente um dos elementos da culpabilidade: a exigibilidade de conduta diversa. FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO mostra que o Direito Penal alemão contempla, expressamente, o excesso de legítima defesa exculpante: “Diz o Código Penal alemão, no § 33, sob a rubrica ‘excesso de legítima defesa’: ‘Ultrapassando o agente os limites da legítima defesa por perturbação (Verwirrung), medo ou susto, não será ele punido.’” Explica o mestre que “não se pode igualmente censurar o agente pelo excesso, por não lhe ser humanamente exigível que, em frações de segundos, domine poderosas reações psíquicas – sabidamente incontornáveis – para, de súbito, agir, diante do perigo, como um ser irreal, sem sangue nas veias e desprovido de
Culpabilidade - 35 emoções.”17 A exculpação não é possível no excesso extensivo de legítima defesa, pois, nesses casos, houve o exaurimento da defesa, e já não há agressão, sendo o comportamento do sujeito não apenas ilícito, mas também realizado com plena consciência da ilicitude, e longe de qualquer razão psíquica que lhe afete a liberdade de escolha. Concordando com ASSIS TOLEDO, é de ver que a falta de dispositivo expresso que preveja o excesso exculpante como excludente da culpabilidade não constitui empecilho para sua aplicação pelos juízes, cuja missão é distribuir a justiça, dizendo o direito, e não se apegar à letra fria da lei.
11.5.2
Inexigibilidade de conduta diversa
Só há culpabilidade quando, além da consciência potencial do injusto, é possível exigir, do agente, comportamento conforme o Direito, quando podia ter agido de outro modo. Para a expressão da reprovabilidade do fato típico e ilícito, é indispensável a exigibilidade de conduta diversa, sem a qual o sujeito será desculpado. Não será crime. A propósito, ASSIS TOLEDO, em sua obra que muito tem inspirado este modesto manual, apesar de divergências salutares, traz a mais importante de suas lições, que aqui se transcreve: “Não age culpavelmente – nem deve ser portanto penalmente responsabilizado pelo fato – aquele que, no momento da ação ou da omissão, não poderia, nas circunstâncias, ter agido de outro modo, porque, dentro do que nos é comumente revelado pela humana experiência, não lhe era exigível comportamento diverso. A inexigibilidade de outra conduta é, pois, a primeira e mais importante causa de exclusão da culpabilidade.”18 A lição não pode deixar dúvidas: a mais importante das causas que excluem a culpabilidade não é o erro de proibição, nem as descriminantes putativas, nem a coação moral irresistível, e tampouco a obediência hierárquica – todas constantes de normas legais. A mais importante das excludentes da culpabilidade não está escrita no ordenamento jurídico. E não está, em verdade, porque não é uma simples causa de exclusão da culpabilidade. É, como diz ASSIS TOLEDO, um “princípio fundamental que
17
Op. cit. p. 330.
18
Op. cit. p. 328.
36 – Direito Penal – Ney Moura Teles está intimamente ligado com o problema da responsabilidade pessoal e que, portanto, dispensa a existência de normas expressas a respeito”. 19 Como tal, não precisa estar contido em norma penal permissiva, mas tem plena incidência sobre os casos concretos. Não apenas porque diz respeito à responsabilidade pessoal, à liberdade de agir, que é o fundamento da culpa, mas também porque é muito mais ainda do que um princípio de exclusão, é um verdadeiro princípio geral de direito, excludente não só da culpabilidade, mas, igualmente, da ilicitude e da tipicidade, princípio que preside e fundamenta toda e qualquer causa de exclusão do crime. Todas as condutas humanas não tipificadas na lei penal, todas as condutas atípicas, assim são consideradas pelo Direito, porque não se pode exigir dos homens comportamentos diversos delas. A legítima defesa é a realização de um fato lícito, também porque não se pode exigir daquele que atua a seu amparo um comportamento diferente. É lícito agir em estado de necessidade, porque também não é possível exigir do que age sob sua égide outra conduta. A inexigibilidade de conduta diversa é princípio geral de direito que impede a tipificação dos fatos normais da vida, que obstaculiza a proibição dos fatos não lesivos ou não expositivos a perigo de lesão dos bens jurídicos e, como não poderia deixar de ser, que exclui a reprovabilidade de certas condutas típicas e ilícitas. De conseqüência, sempre que, nas circunstâncias em que tiver alguém realizado um comportamento típico e ilícito – ainda que não incida uma causa legal de exculpação –, mas não se puder dele exigir conduta diversa da que realizou, deve ele ser desculpado, excluída a culpabilidade. Não é necessário, de conseguinte, que haja regra expressa de exclusão de culpabilidade, basta que o juiz verifique, nas circunstâncias, a impossibilidade de exigir, do agente, conduta conforme o Direito. Se tal ocorrer, deve ser desculpado.
11.6 CONCLUSÃO Chega-se aqui ao final do estudo do conceito analítico do crime. Verificou-se o fato típico, com todos os seus elementos, analisou-se a ilicitude, compreendeu-se a culpabilidade.
19
Idem.
Culpabilidade - 37 Nos tempos atuais, entre os estudiosos do Direito Penal, avança-se no rumo da construção de uma nova concepção de culpabilidade, o chamado conceito moderno ou complexo de culpabilidade que levaria em conta também certa atitude interna juridicamente defeituosa do agente. Essa teoria está, ainda, sendo discutida, debatida, elaborada, maturada, e, enquanto não consolidada, não pode neste momento ser trazida para este primeiro contato do estudante com a teoria do crime. É possível, por enquanto e por aqui, dizer que se conseguiu conhecer o crime, com todas as suas características, ou suas notas essenciais, como preferem alguns importantes doutrinadores, ou, ainda, seus elementos estruturais, como dizem outros. A tipicidade é a relação de adequação entre o fato concreto e o tipo, que é modelo de conduta proibida. Dado um fato com essa qualidade, há um fato típico. Tudo indica que tal fato será ilícito, mas é preciso verificar se está presente uma causa que o justifique e que afaste a ilicitude, descaracterizando-o como crime. A ilicitude é a relação de antagonismo entre o fato típico e o ordenamento jurídico, é a lesão ou o perigo de lesão do bem jurídico. Sem ela, não há crime. Se estiver presente, falta ver, ainda, se o fato será culpável. Culpabilidade – terceira característica do crime –, cujo pressuposto é a imputabilidade, é um juízo de reprovação da conduta típica e ilícita, que só pode ser feito quando o agente tiver atuado com possibilidade de saber que agia contra o direito, e que podia, naquelas circunstâncias, ter agido de outro modo. Eis o crime.