Uma Gota

  • June 2020
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  • Words: 975
  • Pages: 3
UMA GOTA

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Uma gota d´água sobe os degraus da escada. Está ouvindo? Estendido em minha cama, no escuro,ouço-lhe o misterioso caminhar. Como será que ela faz? Saltita? Tic, tic, ouve-se intermitentemente . Depois a gota pára e oxalá pelo resto da noite não dê mais sinal de vida. No entanto, ela continua a subir. De degrau em degrau vai ascendendo, diferentemente das outras gotas que caem na perpendicular, em obediência à lei da gravidade, e no final dão um pequeno estalido, bem conhecido no mundo todo. Esta não: devagar, devagarzinho se alça ao longo da caixa da escada até o patamar E do imenso edifício. Não fomos nós, adultos refinados, sensibilíssimos, que a percebemos. E sim uma criadazinha do primeiro andar, esquálida, miúda, ignorante criatura. Deu pela gota certa noite, em hora tardia, quando todos já tinham ido dormir. Após algum tempo não conseguiu mais conter-se, pulou da cama e correu a acordar a patroa. - Senhora – sussurrou - , senhora! O que foi? – exclamou a patroa, assustada - , o que aconteceu? – É uma gota, senhora, uma gota que vem subindo a escada! - O quê? – perguntou a outra atônita. - Uma gota que está subindo os degraus! – repetiu a criada, já quase aos prantos. – Ora vamos – ralhou a patroa -, você ficou louca? Volte para a cama, vamos! Andou bebendo, isso sim, semvergonha. Há tempos que de manhã tem faltado vinho garrafa! Sua porcalhona, se pensa que... Mas a meninota fora refugiar-se sob as cobertas. “ Sabe-se lá o que veio à cabeça daquela tonta”, pensava em silêncio a patroa, que a essa altura tinha perdido o sono. E, pondo-se involuntariamente a ouvir a noite que dominava o mundo, escutou ela também o curioso ruído. Uma gota vinha subindo a escada, sem dúvida alguma. Ciosa da ordem, a senhora pensou por um instante em ir ver lá fora. Mas o que teria podido discernir à miserável luz das lâmpadas veladas pendentes sobre o corrimão? Como rastrear uma gota em plena noite, com aquele frio, ao longo das rampas tenebrosas? Nos dias subseqüentes, de família em família, o rumor se espalhou lentamente e agora todos do edifício sabem dele, se bem prefiram não falar a respeito, como se se tratasse de coisa disparatada de que se envergonham. Agora muitas orelhas

ficam atentas no escuro, quando a noite desce para oprimir o gênero humano. E este pensa numa coisa, aquele noutra. Certas noites a gota emudece. Outras vezes, ao contrário, não pára de deslocar-se horas a fio para cima, para cima; dir-se-ia que nunca mais vai deter-se. Palpitam os corações no momento em que o leve passo parece tocar o umbral. Menos mal, não parou. Ei-la que se afasta , tic, tic, encaminhando-se para o andar de cima. Sei com certeza que os inquilinos da sobreloja pensam agora estar seguros. A gota – crêem – já passou diante da porta deles, não mais terá oportunidade de perturbá-los; outros, a exemplo de mim que estou no sexto andar, têm agora motivos para inquietar-se, não mais eles. Mas quem lhes garante que nas próximas noites a gota, em vez de retomar o caminho do ponto a que chegara da última vez, não irá reiniciar a viagem desde os primeiros degraus, sempre úmidos e escuros devido à sujeira acumulada? Não, nem eles podem considerar-se seguros. De manhã, ao sair de casa, os inquilinos olham atentamente a escada para ver se não ficou algum sinal. Nada, como seria de se prever; nenhuma pegada, por mínima que seja. Outrossim, de manhã, quem vai levar essa história a sério? Ao sol da manhã o homem é forte, é um leão, ainda que poucas horas antes estivesse aterrorizado. Ou será que os inquilinos da sobreloja têm razão? Nós , do restante do prédio, que antes não escutávamos nada e nos mantínhamos isentos, há já algumas noites ouvimos alguma coisa. A gota, na verdade, ainda está longe. Até nós chega apenas um estalido muito ligeiro, um débil eco que atravessa as paredes. Todavia, é sinal de que ela venha subindo e se aproxima cada vez mais. De nada adianta dormir num aposento interno, longe da caixa da escada. Melhor ouvir o ruído do que passar a noite na dúvida de se ela está lá ou não. Quem mora nesses aposentos retirados não consegue então resistir: esgueira-se em silêncio pelo corredor e fica no vestíbulo gelado, atrás da porta, de respiração suspensa, à escuta. Se a ouve, não mais ousa afastar-se, escravo de indecifrável temor. Mas pior ainda se tudo estiver tranqüilo: nesse caso, como excluir a possibilidade de, tão logo volte o ouvinte a deitar-se, o ruído começar? Que estranha vida, essa. E não poder fazer reclamações, nem tentar remédios, nem encontrar uma explicação que serene os espíritos. E não poder sequer persuadir os outros, dos outros prédios, que não sabem. Mas o que seria essa gota, afinal? – perguntam com exasperante boa-fé - , um rato talvez? Um sapinho saído das caves? Não , decerto.

Seria então por acaso- insistem – uma alegoria? Que simbolizaria, por assim dizer, a morte? ou algum perigo? ou os anos que passam? Nada disso, senhores: é simplesmente uma gota que sobe as escadas. Ou , mais sutilmente, intenta representar os sonhos e as quimeras? As terras almejadas e remotas onde presumivelmente mora a felicidade? Algo de poético, em suma? Não , absolutamente. Ou quiçá os lugares ainda mais distantes , nos confins do mundo, aos quais jamais chegaremos? Mas não, eu lhes digo, não é uma brincadeira, não é uma questão de duplo sentido; tanto quanto é dado presumir, trata-se mesmo, ai de mim, de uma gota d´água que de noite sobe as escadas. Tic, tic, misteriosamente, de degrau em degrau. E é por isso que dá medo. AS MONTANHAS SÃO PROIBIDAS Dino Buzzati Cia das Letras 1993

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