Literatura Portuguesa 2
Um Auto de Gil Vicente, de Almeida Garrett (1838) 1. Reforma do teatro nacional A revolução de Setembro de 1836 colocou no poder Sá da Bandeira e Passos Manuel, ambos admiradores e amigos pessoais de Garrett. Pensaram os hábeis políticos em reorganizar o teatro nacional, quase sem vida desde o tempo de Gil Vicente. Criaram a Inspecção Geral dos Teatros, nomeando primeiro inspector Almeida Garrett. Investido no cargo, tratou logo o eminente escritor de estudar as causas da decadência do teatro em Portugal e de o ressuscitar em seguida. 2. Decadência e reorganização do teatro nacional, segundo o prefácio de «Um Auto de Gil Vicente» a) Causas da decadência.No prefácio do drama Um Auto de Gil Vicente, indica Garrett as causas que contribuíram para a decadência do teatro nacional. A primeira e mais importante foi a falta de gosto no público. Não havendo poder de compra, ninguém se arrisca a fabricar artigos. A acção dos governantes é que criou este estado de coisas, o que prova com meia dúzia de factos: 1. D. Sebastião, que só sabia «brigar e rezar», cortou a planta logo à nascença, desprezando as representações teatrais; 2. D. João IV tinha certa inclinação para a arte, mas não passou de músico de igreja; 3. os filhos desse monarca não tinham gosto por coisa nenhuma; D. João V, mecenas das Letras e Artes, só apreciava os grandes livros in folio das Academias; 4. no tempo de D. José, acabaram de estragar o gosto do público com a ópera e, além disso, mataram o Judeu; 5. no reinado de D. Maria I, as mulheres estavam proibidas de pisar o palco; 6. embora depois as Academias tenham estabelecido prémios para os bons autores dramáticos, só se traduziram peças de Racine, Voltaire, Crebillon e Arnaud. b) O trabalho que se impôs Garrett. Depois de ter analisado bem estas causas da decadência do teatro, expõe Almeida Garrett o que pretende fazer para melhorar o gosto do público e reorganizar a arte dramática. O seu programa está patente numa carta que escreveu a D. Maria II. Como não vê casas de espectáculos decentes (o teatro do Salitre e o da rua dos Condes são impróprios), nem actores, nem dramas (as obras de Gil Vicente e as óperas do Judeu são obsoletas), propõe à Soberana que se crie um edifício condigno para as representações; que se funde uma escola dramática; que se escrevam dramas românticos, as únicas peças capazes de interessar o público do século XIX. Fez-se o drama, criou-se o Conservatório e levantou-se o Teatro de D. Maria II. Não se pode dizer que fosse improfícuo o trabalho de Garrett. Teoria do drama romântico A estética ao drama romântico, tal qual a concebeu Garrett, põe em confronto as normas clássicas e as românticas:
Teatro clássico 1. Absoluta separação do trágico e do cómico. 2. Linguagem selecta e majestosa, sobretudo na tragédia. 3. As personagens são figuras de psicologia geral e abstracta. 4. Exigem-se as unidades de acção, tempo e lugar.
Paula Cruz
Teatro romântico 1. Inclusão do sublime e do grotesco na mesma obra. 2. Frases conformes à índole dos protagonistas, alheias a preconceitos e a preocupações com o sublime. 3. As personagens devem ser tipos individualizados, revivendo nas cenas a verdade dramática da vida comum. 4. A mesma acção desenvolvida num só dia e num mesmo lugar não convém à agitação passional que fermenta no Romantismo. Só a unidade de acção se admitirá no teatro romântico.
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Não esqueçamos que o drama «é a luta entre personagens, ou luta dentro da mesma personagem — luta cujo desfecho incerto traz suspensa a curiosidade e a simpatia do espectador». Na tragédia «não há tanto a luta como a expectativa terrífica de um desfecho que se aproxima a passos fatais, e contra o qual não vale astúcia humana, como diria Camões.(A. J. Saraiva, Para a História da Cultura em Portugal, II, Lisboa, 1961, pág. 35).
Assim, enquanto os protagonistas da tragédia, por mais que esbracejem, nos surgem impotentes para evitar o desencadear da desgraça, os protagonistas do drama, pelo esforço, inteligência ou manha, podem mudar o curso dos acontecimentos, levando a acção, se calhar, a terminar em apoteose.
Contexto histórico-cultural Obra com o objectivo de criar ou restaurar um teatro nacional, reatando a tradição vicentina, assenta no auto de Gil Vicente Cortes de Júpiter, aparecendo assim uma peça dentro de outra peça. Acção/intriga Constrói-se à volta da representação das Cortes de Júpiter comemorativa do casamento da Infanta D. Beatriz com Carlos de Sabóia. A partir dessa tragicomédia - Cortes de Júpiter -, Garrett dá corpo ao conflito sentimental de Bernardim Ribeiro e da princesa e ao amor silencioso, mas não correspondido, de Paula Vicente pelo poeta. Personagens Além das personagens antes referidas, destacam-se, de entre as muitas outras, Garcia de Resende, Gil Vicente e o rei D. Manuel que aparecem para evocar um passado de grandezas, embora a peça deva considerar-se pouco movimentada. Além disso, as personagens e os seus problemas não constituem mais do que motivos decorativos de um espectáculo exterior. Na existência de algumas personagens, mistura-se o cómico e o grotesco (Bernardim no papel de Joana Taco e Pêro Sáfio) e o trágico e o sublime (Bernardim e D. Beatriz). Estrutura A obra divide-se em três actos e cada acto em cenas. Tem, como fio condutor, um assunto nacional de uma época grandiosa reforçado com a apresentação de personagens verdadeiramente relevantes. Enquadramento estético-literário Definem Um Auto de Gil Vicente como um drama romântico: - a falta de unidade de tempo e de lugar; - um historicismo pretensamente espectacular; - o sentido crítico pessoal na fala de Paula a propósito do pai e de D. Beatriz; - D. Beatriz casa com o pensamento noutro homem como acontece no Frei Luís de Sousa, - Bernardim, no ousado encontro do galeão, reflecte a psicologia do Carlos das Viagens na Minha Terra: - Oh Beatriz, eu sou um monstro, eu não te mereço.', - o subjectivismo disseminado pelas várias cenas; - o sentimentalismo de muitas personagens.
Paula Cruz
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