A VIDA TAL COMO ELA É
Num dia muito quente do ano de 3113 D.C., num planeta relativamente próximo e que tão bem (ou não?) conhecemos. Entro no Centro Comercial (num dos muitos que foram inaugurados na última semana celeste) e tento não me deixar arrastar no melancólico movimento da multidão. A minha desacompanhada e corajosa atitude leva-me à 66ª sala de cinema, existente no 33º piso desse colossal bloco de betão. O filme em cartaz prometia uma autêntica viagem no tempo para o passado e longínquo ano de 1999D.C. Compro um bilhete e pipocas (que só se vendiam nessa sala devido ao filme em exibição, pois já há algumas décadas que tinhas sido substituídas por qualquer coisas a que chamam Apnodix). Entro na gigantesca sala que é o mundo, sento-me sozinho com a sociedade e vejo a vida como um autêntico filme, que me remete para o papel de actor. Todos somos actores. É-nos dado um “guião” em cada dia que acordamos, que não é mais que o conjunto de regras e leis que, de uma certa forma, nos limita e condiciona o nosso comportamento/actuação. O género de filme é uma questão de momento. Toda a nossa vida passa por diversos géneros de cinema, em que na maioria das vezes não temos qualquer controlo sobre o fantasma que, através daquela minúscula janela por cima de nós, vai colocando as fitas com a palavra “DESTINO” na sequência mais absurda e inesperada. E, tal como nos filmes, há actores que desempenham melhor o seu papel, ou aqueles que têm papeis mais difíceis que outros. As pessoas que pertencem ao mesmo círculo social encontram-se a contracenar no mesmo palco e plano de actuação.
«Não permitais que o mundo em vosso redor vos comprima em seu próprio molde.» Romanos 12:2, Phillips
É uma sociedade em que todos somos obrigados a usar máscaras e a fazer sorrisos forçados, caso contrário, desempenhamos um papel sem importância ou passamos por idiotas. Por isso, os comportamentos exteriores não se encaixam nos desejos interiores, que a maioria das pessoas guardam para si próprias ou para uma intimidade já tão difícil de alcançar. Cada pessoa tem um mundo no seu interior, e cada vez mais se esquecem de exteriorizá-lo. Temos de começar a pensar de dentro para fora e não de fora para dentro, como se tornou habitual. Nós é que construímos o mundo que nos rodeia, não pode ser ele a exercer esse poder sobre nós. Cada dia que passa as pessoas tornam-se mais superficiais, menos sincera, menos verdadeiras, … , menos pessoas.
«O essencial é invisível para os olhos.» Antoine de Saint-Exupéry
As pessoas assemelham-se a uma casa, casa essa que só visualizamos a fachada e não conseguimos penetrar no seu interior porque todos os acessos estão bloqueados, todas as entradas estão meticulosamente fechadas. E, finalmente, quando conseguimos descer pela chaminé ou trepar por alguma das janelas da traseira, só conseguimos entrar em algumas divisões, pois existem outras que se encontram sempre fechadas a sete chaves, uma chave para cada pecado capital. E mesmo nas divisões que dispomos há sempre uma gaveta ou baú que não conseguimos abrir…
«És feliz porque és assim, Todo o nada que és é teu. Eu vejo-me e estou sem mim, Conheço-me e não sou eu.» Fernando Pessoa
A máxima “conhece-te a ti próprio” está fora de moda, cada dia que passa as pessoas acordam mais confusas e pouco tempo têm para pensar nisso. A hipoteca da casa, as prestações do carro, o aparecimento do Euro… Estas são as verdadeiras preocupações das pessoas nos tempos que correm. E correm cada vez mais depressa.
«Sou como sou, e não como pareço.» Vergílio Ferreira
Ninguém sabe quem verdadeiramente é. Por vezes as pessoas são o que não parecem, parecem o que não são. Cada vez mais se orgulham de serem artificiais, cada vez mais se conformam ao ver o ovo da serpente da sociedade a crescer e a sua casca ficar cada vez mais dura e espessa. E essa mesma casca começa a envolver cada vez mais as pessoas e a fazer com que os sentimentos não consigam penetrar no seu interior, nos seus corações. E que também não consigam sair deles para o exterior. Porque é que não vivemos num mundo onde pudéssemos ser o que somos e não aquilo em que a vida nos tornou? Será que algum dia iremos ser/mostrar o que verdadeiramente somos? Essa é a essência da vida…
«A revolução verdadeiramente revolucionária realizar-se-á não no mundo exterior, mas na alma e na carne dos seres humanos.» Aldous Huxley
É uma sociedade violenta e, por vezes, intolerante para as pessoas que a habitam. É uma sociedade em que o “partilhar” foi substituído por o “ter”, em que Shakespeare em vez de escrever “ser ou não ser…”, escreveria “ser ou parecer, eis a questão…”. Lá, todos os sentimentos estão condicionados, mesmo os mais primitivos. Precisamente os mais primitivos. E é assim o filme das nossas vidas…
Este texto foi publicado no jornal Diário de Notícias na data de 18 de Julho de 1999.
Hugo Silva