Tambores Proibidos

  • June 2020
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  • Words: 1,278
  • Pages: 3
:. Autor: Bàbálórìsà Claudinei de Aganjú * Texto: Vinícius Clay

CRENÇA REBELDE: TAMBORES PROIBIDOS Toque do atabaque foi condenado à clandestinidade no período do Estado Novo. Os instrumentos musicais usados nos cultos eram apreendidos pelos policiais. Elemento fundamental nos rituais de candomblé, os atabaques sempre foram alvo da polícia baiana e estavam terminantemente proibidos durante o Estado Novo. Para tocar os instrumentos, somente na clandestinidade, já que a Delegacia de Jogos e Costumes não costumava dar sopa. Mas um encontro nos bastidores mudaria essa história. Aproveitando uma viagem ao Rio de Janeiro, mãe Aninha, fundadora do Ilê Axé do Opô Afonjá, em São Gonçalo do Retiro, usou de sua influência e conseguiu uma audiência com o presidente Getúlio Vargas. Ela só queria cultuar a religião dos seus antepassados e Getúlio não teria como resistir ao pedido legítimo de uma criatura tão doce. O encontro de Aninha com o presidente do Brasil resultaria no Decreto 1.202, que permitiu o uso dos atabaques nos terreiros. O acontecimento é considerado um passo importante para a liberação definitiva do controle policial sobre os candomblés, o que só ocorreu em 1976, no governo de Roberto Santos. Na ocasião, a notícia foi recebida com entusiasmo pelo povo de santo da Bahia, em plena festa da Lavagem do Bonfim. A história do encontro entre Aninha e Getúlio Vargas, narrada inclusive pela atual Ialorixá do Opô Afonjá, Mãe Stella de Oxossi, reserva alguns detalhes curiosos, que revelam o prestígio que os candomblés mais antigos da Bahia já detinham nesse período. Tudo teria começado com uma exceção. Certa feita, o comandante da VI Região Militar, general Onofre Pinto Aleixo, liberou os atabaques para uma festa no candomblé de mãe Menininha, pois "a senhora de um capitão do Exército necessitava fazer um trabalho no Gantois", de acordo com a versão de Esmeraldo Emetério de Santana e Ana Maria Morales. Diante disso, um Ogã do Afonjá, Jorge Manuel da Rocha, fiscal do Ministério do Trabalho, teria procurado a polícia para pedir licença para bater os atabaques numa festa do Opô Afonjá. Diante da resposta negativa, ele teria dito: "Não está mais proibido, foi concedido ao Gantois". E o delegado teria retrucado: "O Gantois tocou por ordem do comandante da VI Região Militar. Vá a ele, se ele lhe conceder conforme feito com o Gantois, você toca". Foi aí que Jorge resolveu entrar em contato com Aninha para que ela fosse diretamente ao homem mais poderoso do país. E assim ela o fez, através da influência de Osvaldo Aranha, então chefe da Casa Civil. Permissão Mas somente quase quatro décadas mais tarde os candomblés da Bahia ficariam livres da permissão policial para funcionar. Nesse dia, 15 de janeiro de 1976, às vésperas da Lavagem do Bonfim, o governador Roberto Santos levou filhas-de-santo ao Palácio da Aclamação para assinar a Lei 25.095, que pôs um fim definitivo às perseguições em Salvador. No mesmo dia, ele recebeu uma homenagem da Federação Baiana do Culto afro-Brasileiro, um opaxorô de Oxalá (cajado que o orixá utiliza em seus rituais). Em seguida, Roberto Santos e sua esposa, Maria Amélia, participaram de uma festa no Ilê Tomin Bokun, no Beiru. Quando o casal entrou, os filhos-de-santo bateram os atabaques ao mesmo tempo em que dezenas de pombas brancas se soltaram em revoada pelo terreiro. No dia seguinte, dia de Senhor do Bonfim, dia em que os baianos também reverenciam Oxalá, pai de todos os orixás, o povo de santo festejou a liberdade definitiva da polícia. A semente da luta pela liberdade religiosa na Bahia seria plantada ainda por Nina Rodrigues, em seus estudos pioneiros sobre a cultura africana, no final do século XIX,

quando denunciava as perseguições policias de seu tempo. Mas a mesma semente germinaria com Edison Carneiro, na década de 30, antes de florescer nos anos 70. Edison Carneiro pode ser considerado o principal articulador de um movimento importante, desencadeado durante um dos períodos mais violentos. Edison era jornalista, escritor e folclorista. Como jornalista, organizou uma série de reportagens no jornal O Estado da Bahia, que contribuiu significativamente para uma mudança, ainda que lenta, da forma preconceituosa como a mídia noticiava o candomblé e outros signos africanos. Como escritor e pesquisador, deixou obras clássicas como Religiões negras, Negros bantus e Candomblés da Bahia. Como folclorista, realizou pesquisas sobre a capoeira e o samba, dentre outros temas. Mas foi no seu papel de articulador de acontecimentos marcantes como o 2º Congresso Afro-Brasileiro e a criação da União das Seitas Afro-Brasileiras, que Edison Carneiro se revelaria um dos principais personagens da luta pela liberdade religiosa na Bahia. No dia 12 de dezembro de 1936, o famoso pai-de-santo Joãozinho da Goméia and his orchestra se preparavam para uma apresentação no luxuoso Cine Teatro Jandaia, que seria transmitida ao vivo pela Rádio Comercial. Era uma revolução para a época, um "negro feiticeiro", acompanhado de suas filhas-de-santo, apresentando sua "cultura primitiva" para a sociedade baiana dos anos 30. Infelizmente, o homem responsável pela transmissão, o radialista Oswaldo Bernardes, não está mais entre nós e levou consigo os detalhes dessa história. Mas, no dia seguinte, os jornais divulgavam o sucesso do espetáculo, criado especialmente para anunciar a realização do 2º Congresso Afro-Brasileiro, que em janeiro de 1937 teria lugar na capital baiana. E foi durante o congresso que, pela primeira vez, membros da sociedade baiana e outros grandes nomes da cultura nacional se sentaram ao lado de mães e pais-de-santo para discutir a liberdade religiosa. Preconceito Criticado por apresentar uma visão por vezes preconceituosa - influenciada pelas teorias raciais que se disseminavam no seu tempo - Edison Carneiro tinha, ao mesmo tempo, um bom trânsito nos candomblés e no meio intelectual baiano. No Opô Afonjá, por exemplo, ele chegou a passar alguns dias quando o cerco contra o comunismo era apertado. E assim, somente ele conseguiria reunir nomes como Menininha do Gantois, Aninha, Martiniano do Bonfim, que desconfiavam das boas intenções de gente branca, ao lado de pesquisadores de renome internacional interessados em estudar "o problema afro", como se dizia. Mas sem a presença de representantes do povo-de-santo, o congresso não teria legitimidade. Aliás, era o que preconizava todo o tempo Gilberto Freyre, responsável pela organização do 1º Congresso Afro-Brasileiro, em Recife. Gilberto Freyre parecia estar torcendo contra e concedeu várias entrevistas que acabaram por se transformar em embates nos jornais. Já prestigiado, Freyre tinha moral de sobra para contestar, enquanto Edison Carneiro, ainda começando, ficou mais tímido. Mas o fato é que no dia 11 de janeiro de 1937 lá estava Martiniano do Bonfim, de paletó e gravata, presidindo a seção inaugural do congresso na Bahia, no salão do Instituto Histórico e Geográfico. Anunciado como "o sábio babalaô" que viveu em Lagos, na Nigéria, e "tanto contribuiu para os estudos de Nina Rodrigues", Martiniano já estava velho e cansado, mas não desiludido. E foi até lá para dizer a todos que "religião de negro é igual a de branco". Hoje, 60 anos depois, ainda se discute a questão da intolerância religiosa na Bahia de todos os santos. No Arquivo Público, os registros das batidas nos terreiros sumiram, enquanto as ocorrências contra a prostituição e o jogo do bicho - freqüentes no mesmo

período - podem ser encontradas com facilidade. Das peças apreendidas que foram encaminhadas ao Instituto Histórico e Geográfico e ao Museu Estácio de Lima hoje restam poucas. Tais fatos até hoje não foram devidamente explicados e só fazem aumentar o mistério em torno do assunto. Ainda resta muito para que esse quebracabeça seja montado e a história devidamente contada. Pois somente quem viveu aqueles tempos sabe ao certo o que acontecia naquelas noites escuras e distantes, em que festas religiosas tinham seu desfecho nas delegacias da cidade.

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