Sou Uma Velha Comunista! - (romance), Dan Lungu

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Sou uma velha comunista! - Dan Lungu 1

Há uma semana... Há uma semana que não tenho sossego, c’um caneco! Desde que ligou a Alice... Alice – belo nome, não é? Fui eu que lho escolhi. Claro, pois é minha filha. Isto é, quero eu dizer, o meu marido queria pôr-lhe outro nome. Cristina, acho. Ou, se calhar, Maria. Já não me lembro. Nomes desses há às centenas. Pelo menos, na nossa cidade. Nomes de cabeleireira ou de contabilista. Não, meu caro, vamos chamar-lhe Alice, nome de princesa, insisti eu. Tinha-me metido assim uma coisa na cabeça como que quem tem um nome belo só pode ter uma vida à medida. Não chegou a princesa, mas a engenheira. Isto porque insisti eu, com a ideia louca que se vai empregar na fábrica onde eu também trabalhava naqueles tempos e pensando em como iriam todos cochichar pelas esquinas: «Conhecem a Emília Apostoae? Eh, bem, a engenheira Alice é a filha dela». Mas entretanto o comunismo sucumbiu e a fábrica onde trabalhava foi à falência. E que beleza de fábrica, meu Deus! Agora é uma ruína onde crescem as ervas daninhas e se abrigam os cães rafeiros. Até lhe roubaram a caixilharia e lhe arrancaram as tomadas. Quando passo às vezes pelas redondezas, viro a cabeça. Dói-me a alma, palavra. Tenho a sensação que, lá, na secção, os nossos esqueletos continuam em posição de trabalho, prontos para, a qualquer momento, começarem a mover-se, que houve apenas um corte de energia. Sei que é uma estupidez do tamanho do mundo, sei que aqueles tempos nunca mais voltam, mas é isso que eu sinto. Corre o boato que a Coca-Cola comprou tudo para abrir uma linha de engarrafar. Não percebo como é possível, mas há quem se alegre com isso. A mim não me apanham, não vou gastar o meu dinheiro naquele veneno. Que comprem os idiotas! Eu, eu preparo todos os anos o meu suminho de flores de sabugueiro, que os americanos nem nos seus mais maravilhosos sonhos beberam. Gente alguma entre eles, do macaco para cá, como diria o seu Mitu. Ele é cá uma personagem, mas isso depois conto-vos. Num belo dia, a Alice apanhou o avião, e lá se foi para o Canadá. Diz-se que os Canadianos estão desesperadamente à procura de pessoas inteligentes. Não se tire disso a conclusão que seriam eles mais tolinhos, não, mas parece que têm um país do tamanho da China e tão pouquinha gente. Se os espalhassem por todo o território, teriam de olhar com os binóculos para se verem uns aos outros. Por isso, atraem miolos espevitados de todos os continentes e dãolhes casa, mesa e trabalho. Querem tornar-se num povo esperto e superar os americanos. Eu só repito o que ouvi de outros... Se me desse ouvidos, eu não queria que ela se fosse embora. Queria que ficasse perto de mim, que eu tomasse conta da sua ninhada e lhe cozinhasse aos Sábados os seus bolinhos preferidos com queijo fresco. Mas também não me senti capaz de a demover. O que haveria eu de lhe dizer? Fica aqui, minha menina, nesta terra que está a ir por água abaixo. Fica aqui a trabalhar até rebentares para receberes no fim do mês uma miséria. Por isso, calei-me. Verdade seja dita, ela também não atropelou ninguém para me perguntar. Era tão entusiasmada por poder safar-se que quase se esqueceu de nós. E porque me admiraria? Não agi eu de igual modo quando saí daquele buraco de aldeia onde nasci? Pensando bem, até tinha sido mais descarada. Pouco tempo depois ligounos para dizer que se queria casar. Com um tal Alain. – Alain Delon? – Ai, mãe, não exageres! Esse já é senil... – Bom, isso é verdade, mas pelo menos conhece-o toda a gente por aqui... – Aliás, aquele é francês, mãe. – Ah, é de outra aldeia – disse eu a brincar. Disse-nos que no Verão vinha com ele para no-lo apresentar. Para os pais verem o moço, não é assim que se faz? Não sei quais serão os hábitos por aquelas paragens, mas na nossa terra é assim. Os pais devem avaliar o noivo e apreciar se merece ou

não a noiva. – É mais para ver se não lhe falta alguma orelha – disse o meu marido –, porque o que ele diz é grego para nós. Isto foi há uns dois ou três anos. Alguns dias antes da chegada falámos ao telefone. – Não entrem em pânico, porque ele é bom rapaz – disse a Alice lá para o fim da conversa. Ai, meu Deus, a limpeza que nós fizemos! Até se podia lamber sementes de papoila do chão. Comprámos cortinados novos. Havia panelas em todos os bicos do fogão. Saltaricavam as tampas como nos velhos bons tempos. Canja, sarmale , carne de porco assada. Bolos, pastéis, folhados. Também me ajudou uma vizinha. Assim, para a Alice. Ainda por cima, nunca tinha visto na vida um canadiano em carne e osso e não queria perder a ocasião. Ţucu , o meu marido, pintou todo o nosso patamar, para o canadiano não achar que entrou numa caverna. Até queria pintar todos os patamares, mas ninguém quis contribuir com dinheiro para uma limpeza geral. Às vezes nem para pagar o condomínio tinham dinheiro. Um vizinho do segundo andar até troçou de Ţucu, dizendo-lhe que, se hoje pede para a pintura, amanhã vai pedinchar para o bilhete de avião. Um asno! Mas o meu marido também é um tagarela! Gabarola, como sempre, e tagarela. No lugar dele, teria dito à besta para não se inquietar, porque os noivos vinham a nado, pois era mais barato. Na véspera estive no cabeleireiro, coisa que não fazia há já não me lembro quanto. Entretanto as cabeleireiras eram outras, já não conhecia nenhuma. Não sei porquê, mas vieram-me as lágrimas. Aliás, sei. Porque antes da revolução passava para arranjar o cabelo pelo menos uma vez por mês. Ao voltar, olhei com mais atenção para o prédio onde morávamos. Como serão os do Canadá, será que ficamos ridículos ao lado deles? Já não é novo como era quando mudámos para cá, loucos de felicidade. Tinham passado mais de trinta anos desde a última pintura. Estava todo lascado e, nas arestas, roído pela chuva. No primeiro andar, via-se no muro, a subir de uma janela, um rasto grosso de fumo. Tiveram provavelmente durante o Inverno um fogão a lenha, cuja chaminé saia pela janela. As escadas da entrada estavam todas quebradas e os corrimãos tortos, a abanar com qualquer movimento. Uma criança magricela e de sobrolho franzido brincava sozinha. Atirava um gorro contra a superfície rugosa da parede da frente. Quando conseguia fazê-lo ficar colado por alguns segundos, dava gritos de alegria. Depois recomeçava. Entrei em pânico... Era esse o palácio onde morava a princesa Alice? Não, apenas um dos seus apartamentos. Estávamos estafados. Eu, pessoalmente, já nem sentia os braços, nem as pernas. Coloquei uma almofada debaixo do pescoço para não amachucar o penteado. Antes de adormecer ficámos um bocado na tagarelice. Ţucu estava a provocar-me. – Qual quê! Terias tu alguma vez sonhado vir a ter genro canadiano... – E tu? Se calhar tu sonhaste! – Bem, não. Mas também não ando todo empertigado como tu... Quem é que foi hoje ao cabeleireiro? Mas se quiseres mesmo conquistá-lo, acho melhor comprares uma peruca loira, daquelas com caracóis roliços! – É a Alice que tem de o conquistar, não eu, tolo! – A Alice já o tem no papo. Apanhou-o como às perdizes. Bum! Vejam só, ele vir até à Roménia... – Este nosso prédio tem um aspecto... – Eh, bem, não dá p’ra fazer outro até amanhã. – Pois, não, mas não posso tirar da cabeça o feio que ele é... – E se lhe falta uma orelha, o quê fazemos? – O quê estás p’raí a dizer? – Ao genro, minha nossa. Se lhe falta uma orelha? – Poupa-me! Dizes cada coisa! Qual quê, não ter uma orelha? – E se for preto? – ... – Se tiver labiozitos de trompetista? – Vamos lá dormir, é melhor.

Ţucu com as suas piadas parvas pôs-me em alvoroço. «Não entrem em pânico, porque ele é bom rapaz» –, ainda me ressoam nos ouvidos as palavras da Alice. Porque haveríamos de entrar em pânico? Haveria algo que nos poderia fazer entrar em pânico? Porque insistiu ela em dizer que era bom rapaz? O facto de ser bom rapaz estava a contrabalançar algum defeito? Ţucu roncava aos assobios, e eu, ao lado, tinha o coração aos pulos. Já não conseguia adormecer. Na nossa cidade, um preto é mais exótico do que um extraterrestre. No bairro, nem quero pensar. No prédio, é inimaginável. Na nossa família... Preferi simplesmente não pensar nisso. Afinal de contas, não passava de uma piada, tentei animar-me. Levantei-me e, sorrateiramente, fui para o quarto da Alice. O globo terrestre estava no seu lugar, na secretária. Coloquei os óculos e comecei a procurar. Não, decididamente não, o Canadá não se situava em África. Logo de manhã, fui à loja de electrodomésticos mais próxima e comprei uma ventoinha. No quarto andar, o nosso, faz um calor insuportável. Durante todo o dia o sol aquece o telhado e de noite assa-nos em lume brando. Levei emprestado do dinheiro para o funeral. Do fundo “A Amizade”, como gosta Ţucu de lhe chamar. Após uma certa idade a morte faz parte da família. Fala-se dela à mesa, na cama, antes de adormecer, fazem-se contas. Ţucu experimentou-a e funcionava perfeitamente. Pegámo-nos um pouquinho, pois não estávamos de acordo sobre o lugar onde a iríamos colocar. Fizemos as pazes, dizendo que a podíamos mudar de um lado para o outro, em função das necessidades. Lá para a hora do almoço, ligou a Alice. Estavam já instalados no hotel e convidavam-nos para ir ao restaurante. Fiquei pior que estragada. Ralhei com ela. – Oh, mãe, tens de compreender, são assim os hábitos lá de onde ele vem. – Mas aqui estamos em nossa casa, não na dele. Até fiz bolinhos com queijo fresco... –, tentei aliciá-la. – Vamos ter tempo para isso também, mãe. Mmm..., já estou com água na boca. – Tens vergonha de o trazer cá? – Tu és o cúmulo! Porque teria vergonha? – A casa está um brinco. O pai até pintou o patamar... – Ufa, mãe, que teimosa! Já te disse que ir ao restaurante é uma questão de hábito. – Então, promete-me que vêm dormir cá a casa. – O Alain já pagou o quarto no hotel. – Então adeus. Fiquem sozinhos, a arrulhar como dois pombos! – Calma, mãe! Não te enfureças assim! – Ah, não, como não? Vens cá e ficas no hotel? Diz lá, tu achas isso normal? Alice, nós somos os teus pais... Ainda te lembras disso? Sabes o que isso quer dizer? Quer dizer que te trouxemos ao mundo e te criámos. – Sim, mas... – Nenhum “mas”, faz favor! – OK, vou falar com o Alain, vamos ver o que... – Podes falar agora mesmo?! Preparámo-nos para ir ao restaurante. Era exactamente o que não tinha tomado em conta. Enfiei-me nos armários à cata de roupas. Antes da revolução, quando nadava em dinheiro, ia a muitas festas, por isso era impossível não encontrar uns trapos. Já não me lembro de todas as vezes em que fui madrinha de casamento e de baptizado. Era uma moda, uma maneira de esbanjar o dinheiro, que, de outro modo, não tínhamos em que gastar. Mas os afilhados serviam para uma coisa. Se se tivesse um azar e se precisasse de uma cunha na polícia ou no hospital, corria-se a viasacra e encontrava-se a pessoa certa. Os afilhados eram praticamente os meus parentes da cidade, pois os restantes estavam quase todos na aldeia. Para Ţucu desencantei um fato azul-escuro às riscas brancas, dos tempos em que a avó era virgem, e, para mim, um vestido às pintas, algo mais recente, dos tempos em que o lobo era cachorrinho e o avô rapazinho. Tínhamos os dois um ar esquisito, parecíamos empalhados. É o que acontece às roupas elegantes; se não se vestem

durante muito tempo, esquece-se de como é que se usam, já não se está à vontade dentro delas. Ou, pelo menos, que foram elegantes em tempos imemoriais. Chapéu nunca tive. Tenho a pretensão de ser citadina, mas não uma madame. trad. Tanty Ungureanu

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