Sobre UM POEMA
Sérgio Alcides
Sobre UM POEMA
Edições Quem Mandou? São Paulo
C 2006, Sérgio Alcides. Edição eletrônica livre.
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2006 Edições Quem Mandou?
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UM POEMA age sobre a linguagem. Não é “da linguagem” senão neste sentido. Talvez ele não saiba (porque não precisa saber, e é bom que voe meio cego), mas sua missão é conturbar a linguagem, atrapalhar a verticalidade dela, obrigá-la a se lembrar de si, aquecê-la com a nossa humanidade. Até queimá-la, se necessário.
UM POEMA fala ao mesmo tempo com o que refere e com o que fabrica. Para ele, dá no mesmo. Se não fabrica nada, não serve. Se não refere nada, serve para nos oprimir.
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MAS o chamado de um poema acena com a liberdade. Ele é responsável por isso diante de cada um.
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QUANDO não é escavação, um poema é relâmpago. Raramente ocorre de outro modo. Mas ocorre, porque o mais próprio dele é trocar de forma.
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A MATÉRIA de um poema é proteína pura.
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“DECERTO, é uma matéria maravilhosamente vã, diversa e ondulante, o homem: é difícil nele fundar julgamento constante e uniforme”, escreveu Montaigne. Cito-o como argumento para provar que um poema não é desumano.
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UM POEMA, lido, mancha do jeito que cair a mancha.
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UM POEMA se dirige à linguagem porque nela transcorre a sua vida. Ele vai por ela a fim de viver. Isto significa um conflito, não uma sujeição.
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UM POEMA está fingindo que é um poema. Como forma de o ser.
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DO PONTO de vista do poeta, um poema é sempre outro.
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O CHATO de um poema é o poeta. É pena que só um poeta possa fazer um poema. Se um leitor se equivoca, e toma por um poema algo que não pretende sê-lo, isso pode até projetar o fantasma de um poema, como efeitos. Constatado o equívoco, o fantasma desvanece – e se instala um constrangimento ridículo. Um poeta não é nada, mas a poesia não desvanece. Um poema requer autoridade, e vai nisso mais mistério do que regra.
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A PRESCRIÇÃO repele. Um poema é, desde sempre, escrito contra o prescrito. Estão iludidos os que pensam que a “poética” já é poesia: nunca foi. Basta escrever um poema para violar a “poética”. Mesmo quando se quer “aplicá-la”.
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DIZEM que, de boas intenções, o inferno está cheio. De “intenções autorais”, mais ainda.
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UM POEMA pode ser um bom poema ou não. Nem sempre um bom poema é mais poema do que um ruim. Mas, é claro: sempre o será melhor.
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QUEM vem dizer o que é um bom poema corre o risco de ajudar a produzir ainda mais poemas ruins.
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A POESIA tem horror aos caga-regras.
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O MAIOR dos inimigos de um poema é o controle. (Isto significa, entre outras coisas, que não é o poeta o maior dos inimigos de um poema).
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EROS andou nas quebradas onde se escreveu um poema.
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UM POEMA é livre. Um poeta, não. Poemas geralmente são melhores que poetas, e mais bravos.
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UM POEMA resiste.
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AMOR e morte. O repertório de um poema é muito limitado. Ânsia, medo, alegria, sexo, nunca, linguagem, nada, perda, si próprio, tédio, celebração, essas coisas.
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ALIÁS, um poema se lança às coisas. Compreende a realidade, o real: “relativo ao concreto”, de “res = coisa material, corpo, criatura” (eis todo o seu latim). Por isso, o que não caiba num poema não existe.
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CONTRADIÇÕES estalam crocantes na boca de um poema.
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SER ERRANTE, um poema não pode dizer nada a quem, de errar, não saiba nem deseje nada.
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UM POEMA viaja, tem uma vida própria. Está desamarrado. É um objeto do desejo. Primeiro, porque sua existência testemunha um desejo – mesmo que este não pertença a ele e não seja da conta de ninguém. Segundo, porque toda a linguagem deseja através dele. Terceiro, porque ele deseja o seu destino de coisa a ler. Quarto, porque ele é desejado como poucas coisas neste mundo. É uma avidez.
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Edição eletrônica livre.
Terminou-se de gerar em 31 de dezembro de 2006, na oficina da Rua Bocaina, em São Paulo.
‘As Edições Quem Mandou? praticamente não existem!’