Edgar Wallace ou Dez Quase-Constantes do Autor
Policial Paulo Mendes Campos As dez quase-constantes aqui sugeridas não são dogmáticas, mas só resultam de minha experiência no gênero. As dez podem ser modificadas ou acrescentadas pelos outros leitores. É um jogo que proponho.
Há
exceções evidentes. Mas acredito que os mais tamosos novelistas policiais quase sempre sofrem as compulsões de certos fatores existenciais. Diziam os gregos: as coisas que acontecem são intrinsecamente semelhantes às pessoas às quais acontecem. Este preceito luminoso nos serviria: 1) para penetrar no âmago da própria natureza das personagens duma intriga policial; 2) para penetrar no próprio karma do novelista policial. Aqui vão: 1.") O novelista policial nasce em condições pobres ou adversas. Edgar Wallace nasceu no esplendor da Londres vitoriana (1875) sob o signo de Áries. Mas o luxo britânico serviu-lhe apenas de contraste: era filho ilegítimo de atores e foi criado por um casal de comerciantes de peixe, que já possuía dez crianças. Depois de 12 anos de idade, o menino não se sentou mais em banco de escola, embora jamais largasse seu dicionário de bolso. Foi jornaleiro, tipógrafo, como Machado de Assis e Mark Twain,
entregou leite, curvou-se aos pés de adultos numa loja de sapatos. Fugiu de casa, sobrevivendo cora pães furtados. '2.°) O novelista policial desafia uma adolescência humilde com invulgar intrepidez. . Wallace meteu o bico em toda parte, foi sempre um quebra-galho, um desses donos do mundo de bolsos vazios. 3.") O novelista policial faz de tudo, mas não se dá bem com qualquer profissão, permanecendo uma criatura na expectativa do escalo do destino. Depois de múltiplas ocupações, Wallace sentou praça no exército e acabou na guerra dos boêres, na África do Sul, onde passa pela ponte incontornável do jornalismo. Outra experiência inevitável: a literatura pra valer. EW publicou um livro de poemas, à Kipling, e alguns romances decerto mais ou menos dickensianos. 4.°) O novelista policial faz da existência jovem um desafio de aventuras, EW só, comporia sua imagem de maneira até certo ponto conspícua depois de escritor célebre. 5.°) O novelista policial tem uma capacidade microscópica de observação (como um entomologista) para os pormenores concretos, para as causas aparentemente mínimas que geram efeitos grandes ou confusos. Este desvio da atenção, do macro para o micro, induz o autor policial a uma fria isenção ou amoralismo. Para ele, o importante não é a letra da lei, a sociedade agredida pelo crime, a punição do criminoso. O essencial é a inteligência do criminoso e a inteligência do detetive. O Ulisses de Homero é o primeiro romance policial. O encanto, culposo e delicioso, da novela policial reside nesta encruzilhada: o leitor é mantido imantado ao enredo pela ação de duas fantasias chocantes. Uma: "Eu, se me fosse necessário matar, ninguém descobriria!" Como contrapartida moral, reflete o mesmo leitor: "Eu, se fosse detetive-, seria capaz de descobrir os crimes mais misteriosos!" EW sabe apelar bem para esta encantadora ambivalência do leitor. 6.°) O novelista policial tem uma imaginação de sangria desatada. Não poderia ser diferente. De todas as faculdades criadoras a mais imperfeitamente cartografada pelos críticos é a imaginação. Nos autores policiais
ou de aventuras, trata-se de terra incógnita, de mar tenebroso. Essa qualidade é que faz EW universal: ele foi traduzido para 15 idiomas, inclusive para as linguagens pictóricas do Extremo Oriente. 7.°) O novelista policial tem pela lógica um escrúpulo de matemática, mas cultiva simultaneamente a intuição de que todo sistema racional pode sofrer de repente a intervenção do sobrenatural, do inexplicável, surgindo então em cena o que os trágicos gregos denominavam peripécias, ou seja, as incríveis reviravoltas do destino.
EW foi um mestre do suspenso, atmosfera adequada às reviravoltas humanas. 8.°) O novelista policial é capaz de suportar trabalhos de escravos, e de executá-los em prazos de tempo inacreditáveis. EW ditou uma vez uma novela completa entre a noite duma sexta-feira e a manhã do domingo. O autor sempre ofereceu 1.000 libras de.prêmio a quem provasse que ele se utilizava de auxilia-res na composição de suas histórias: nunca apareceu candidato à nota. 9.°) O novelista policial tem faro para dinheiro, isto é, pelo assunto que compra o entusiasmo popular. Fora disso seu faro comercial é zero ou quase zero. EW por volta de 1928 ganhava 50.000 libras por ano! Escreveu 150 novelas em 27 anos! Diz-se que, em certa época, um de quatro livros ingleses vendidos era de sua autoria. 10.°) O. novelista policial tem admirável capacidade de não praticar a sabedoria da poupança. EW, excelente pai de família, era excessivamente chegado às cercas dos prados de cavalinhos e à mesa do pôquer. Ao morrer de pneumonia dupla (1932), deixou dívidas! Dois anos depois, entretanto, gordos direitos autorais reaprumavam os herdeiros. Apêndice A — O novelista policial adora escrever autobiografia. EW escreveu People. Apêndice B — O novelista policial não recusa a sedução da tela e do palco. EW teve peças encenadas e morreu em Hollywood, onde, entre outros, escreveu o roteiro do filme King Kong. Prova dos Nove — Uma novela policial tem de prender, da primeira à última página, qualquer leitor que não goste do gênero, caso o mesmo seja apanhado, sem outra leitura, em ônibus, avião ou casa de campo. EW sempre passou neste teste definitivo.