Sem Titulo

  • Uploaded by: guerra santos
  • 0
  • 0
  • October 2019
  • PDF

This document was uploaded by user and they confirmed that they have the permission to share it. If you are author or own the copyright of this book, please report to us by using this DMCA report form. Report DMCA


Overview

Download & View Sem Titulo as PDF for free.

More details

  • Words: 900
  • Pages: 5
Sentada na cadeira-de-lona que sua avó usava, antes de ir para o céu, à sombra do chapéu-de-sol, que entretanto se perdeu, na cova-dovapor onde costumavam fazer praia; parecia já ter passado muito tempo, embora a sua idade o desmentisse porque ainda era uma menina. lia um bocadinho, parava, cruzava os pensamentos com o que acabara de ler. Gostava de se imaginar personagem nas histórias que se desenrolavam no papel; ser a amada inacessível de um romântico qualquer, o bicho esperto de uma fábula, a fada boa de um conto com princesas. A paixão de ler tornava-a solitária aos olhos dos outros, preocupava os pais as suas ausências junto ao lago, mandado construir a seu pedido, com grande esmero do cota que adorava a sua filha. A menina sentia cada vez mais forte dentro de si a vontade de escrever. mas quando abria o caderno a folha branca apagava-lhe a memória e não se lembrava de nada interessante para dizer, teria de ser algo diferente do dia-a-dia, para isso tinha o diário. Voltava á leitura e cada vez mais admirava a imaginação dos escritores, que de uma insignificância conseguiam mudar o mundo. Estes pensamentos ocupavam-lhe o tempo que sobrava depois da escola e dos afazeres

que lhe estavam destinados pela mãe na lida-da-casa, coisa pouca porque as mães ainda antes de nós sabermos quem somos já nos adivinham o futuro, e a da menina sabia que o destino da sua filha não seria nunca ser dona-de-casa. Certa vez desabafou para o marido “a Constança vai ser poetisa” guardando para si o que isso significava, pelo que conhecia dos poetas, uma vida infeliz. mas podia estar enganada pela versão que a história inventou para quem é diferente da maioria. De tudo isto percebe-se que a senhora era uma boa mãe. Certo dia no seu altar de adoração (dizia o pai) na pedra lisa aquecida pelo sol, olhava para ela um sapo, fixamente, não se mexia, não dizia nada. Do seu olhar só lhe ocorria dizer – eram doces. Abriu o caderno afiou o lápis como ritual de escritor e perguntou “será que todos os sapos são mesmo príncipes encantados? E as rãs princesas amaldiçoadas” não se conformava com a ideia de ser tudo invenção. Aquela calma apesar da presença humana, a sua atenção, era muito diferente de tudo que tinha visto noutros animais; a maioria fugia mal a via, outros corriam para ela demasiado contentes - os domésticos. Observá-la assim, com descaramento, só mesmo aquele sapo. Todos os dias seguintes o sapo lá estava, aumentava a curiosidade,

excitava a imaginação da menina. A folha branca em breve perderia a virgindade... Certa manhã, que o sol decidiu ser primeiro dia de verão, a menina estendeu a mão aberta e o sapo saltou-lhe para cima. As pontinhas das patas (ou devia dizer dedos?) faziam comichão. Aproximou a cara na intenção de o beijar. O sapo fugiu, saltou para a água e não apareceu mais o resto do dia. A menina escreveu: Começa assim a história do sapo que não queria voltar a ser príncipe, muitos anos felizes tinham passado em encantamento e ser príncipe hoje já não é a mesma coisa que antigamente. Mais importante que isso era a dúvida do sapo que o atormentava “quem me garante a mim que se nos beijarmos na boca (sorriu) em vez de eu virar príncipe não se torna ela numa linda rã” sentia-se num charco sem saída. Constança fechou os olhos e encontrou os do sapo que boiava de braços abertos no meio do lago “és tão linda. Tens mesmo cara de rã” pela primeira vez desde que se lembrava de si, a menina riu ás gargalhadas. Até os pais, distraídos como sempre na bricolage de fimde-semana, vieram espreitar, mais preocupados que felizes, não sabia ela porquê. chamaram-na para almoçar “já volto, espera por mim”.

Quando voltou, atrasada por culpa dos pais, já o sol se alaranjava e o sapo tinha recolhido a casa que ela imaginava gruta encantada. Rasgou uma folha de papel do caderno onde escreveu convence-me que é melhor ser sapo que pessoa. Volto amanhã. Fez um barquinho de papel e deixou-o a flutuar nas águas paradas do lago. Durante alguns dias os pais fizeram tudo para a afastar do lago, até foram passear, coisa rara, mas a sua imaginação o mais longe que ia era a um centro comercial. A menina não lhes perdoava estarem a afastá-la do seu “amado” ideia que mantinha o sorriso nos lábios apesar da gravidade da situação. Na primeira noite de lua-cheia a que deu importância, Constança escapuliu-se pela janela do quarto e aproximou-se do lago, o barco já lá não estava “ou o vento o levou ou o sapo fugiu nele.” Na pedra onde costumava observá-la estava uma flor que a menina percebeu logo ser um presente de despedida. Dos headphones que trazia na mão saía baixinho a voz de uma canção que dizia “converteste-te em parte de mi alma / já nada me conforma / se não estás tu também / amada / minha alma..” na presença do luar e do olhar na janela do quarto dos pais as lágrimas comovidas caíram dos seus olhos grandes.

A mãe disse a voltar para a cama onde ressonava o marido “logo o seu primeiro amor tinha de ser uma relação impossível” e suspirou da certeza que a sua filha nunca mais pararia de escrever...

ADUA

sem titulo

Related Documents

Sem Titulo
October 2019 31
Sem Titulo
October 2019 26
Titulo
June 2020 16
Titulo
April 2020 22
Titulo
May 2020 14
Titulo
July 2019 39

More Documents from ""

Sem Titulo
October 2019 26
November 2019 12
April 2020 53
Eiffel Bridge
November 2019 50