Peça de Teatro 3º E.M –
CONCERTO CAMPESTRE
NARRADOR: Thiago Ramalho PERSONAGENS: Major Eleutério Fontes – Mateus Perez Clara Vitória – Bruna Lauermann Maestro – Cássio Souza Dona Brígida – Simone Schuck Silvestre – Mateus Castro Vigário – Fernanda Alves Rossini – Fernanda Alves Siá Gonçalves – Djulie Ferreira (Major Eleutério encontra-se sozinho no palco, contando dinheiro) NARRADOR: - Ignorando seu aspecto físico, seria possível imaginar – e errar – que Major Antônio Eleutério dedicava paixão antiga pela música, protegido pelos vagares que lhe davam a imensidão dos bens. Mas nem sempre fora rico. Sua história era conhecida de todos: construíra fortuna aproveitando a sorte e armando situações irreversíveis para seus devedores. O contrabando de gado foi seu meio de vida por duas décadas, o que lhe deu o posto de Major Honorário da Guarda Nacional. Durante a Revolução farroupilha ampliou os haveres vendendo para ambos os lados em luta, com o término do conflito dedicou-se a charqueada, e enfim porque começa a envelhecer, à amizade dos padres. (Entram em cena Dona Brígida e Vigário) VIGÁRIO: Mas me conta Major, é verdade ou é só mais um causo essa história de tempestade que levantou o sangue dos seus bois? MAJOR: Não meu padre, o pior de tudo é que é verdade, a “chuva de sangue”. Naquele dia deu um pé de vento furioso, ergueu todo o sangue dos bois que tava no tanque, e girou todinho no céu. DONA BRÍGIDA: Girou e foi desabar em cima da casa da estância, olha meu padre, ainda tem as manchas ali nas telhas. Falando nisso, que vagabundagem, já pedi para os escravos limparem! E aqueles músicos de merda em Eleutério? Já que não fazem nada o dia inteiro poderiam ajudar os negros na lida da casa. Só decepção! Vou continuar com meus bordados! MAJOR: Falando em música, o senhor bem soube que meus dois índios fugiram? VIGÁRIO: Mas como? Mesmo com proposta de salário e moradia? Lembro-me bem deles beijando suas mãos. Pobres criaturas, pareciam anjos ao cantar. MAJOR: Agora ao invés de anjos tenho um bando de vagabundos, que de vinho e farra entendem bastante, mas de música nada. Bando de vagabundos, ei de mandá-los embora hoje mesmo. VIGÁRIO: Acho que tenho uma solução para o caso. MAJOR: Mas me diga logo homem de Deus! VIGÁRIO: Um homem, um Maestro, de Minas Gerais. Veio pra cá e foi preso no lance mais ridículo da revolução, mas como artistas são inofensivos, foi solto. Tem bastante experiência e posso assegurar ser o melhor músico da Província. Tem seu passado de indolência, com algumas criadas das casas em que passou, mas vem bem avisado e o senhor major, mantenha os olhos abertos, sabe como é, é homem. MAJOR: Mas é claro que eu aceito! VIGÁRIO: Vamos buscá-lo! (Os dois saem de cena para buscar o Maestro. Dona Brígida continua bordando. Clara Vitória entra em cena) CLARA VITÓRIA: Bom dia mamãe! BRÍGIDA: Quase atrasada para teus bordados! (Entram em cena Major e Vigário trazendo o Maestro)
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MAJOR: Esposa, filha, aqui está o Maestro que contratei para fazer música nos nossos pampas! (Clara Vitória e Maestro olham-se e sorriem) MAESTRO: Major, o senhor não terá motivo de queixas. MAJOR: Severidade e virtude meu guri, apenas isso. Então vamos testá-lo agora mesmo! (Major e Maestro saem de cena. Clara e Brígida bordam. Ouve-se uma barulheira ensurdecedora.) BRÍGIDA: Seu pai anda ficando velho e gagá, não agüento mais essa barulheira, incomoda meus ouvidos. CLARA: E que idéia foi essa de trazer esse desconhecido aqui para dentro de casa, só por que o padre pinta-o como um Santo da música? Tenho que concordar com a senhora mamãe, papai está ficando louco. BRÍGIDA: Então borde minha filha, que quando se casares com Silvestre, um fazendeiro rico que teu pai arranjou, livra-te de tudo isso! Já eu... (Os homens voltam sala) MAESTRO: Sinto muito Major, mas com esses músicos, se é que posso chamar isso de músicos, sua orquestra não terá sucesso. Peço permissão para escolher meus próprios companheiros em Porto Alegre... MAJOR: Pelo bem de nossos ouvidos, podes ir amanhã! (Siá Gonçalves serve uvas, Vigário prova e diz:) VIGÁRIO: Se já está tudo acertado, peço-lhe uma retribuição Major. MAJOR: Pode falar meu bom e velho padre, depois que me arrumaste esse guri não há nada que eu possa negar ao amigo. VIGÁRIO: Pois bem, peço que me leve até o boqueirão, onde dizem que o senhor cultiva essas uvas maravilhosas, as uvas do fantasma, tão famosas por esses pampas! MAJOR: Está ficando louco padre? Não... Não, jamais. O boqueirão é um lugar asqueroso, de dificílimo acesso. Eu mesmo só estivesse lá uma vez, há uns dez anos! VIGÁRIO: Mas Major, tenho estudado muito esses pampas! Preciso verificar as condições cientificas do local, quem sabe possamos fazer vinho com aquelas uvas maravilhosas? O vinho é santo, está nos Salmos, o senhor não vai negar isso a Deus não é Major? MAJOR: Ah tchê! Vou mandar encilhar os cavalos! VIGÁRIO: IREMOS COM A PROTEÇÃO DE DEUS MAJOR. (Brígida e Clara Vitória levantam) BRÍGIDA comenta com clara: Esses dois caducos vão, mas não voltam. (Brígida e Clara Vitória saem de cena) (Major e Vigário caminham com muita dificuldade pelo palco, SENTINDO MUITO FRIO) SOM DE VENTO VIGÁRIO: Estranho não é mesmo, estamos a dois graus Celsius negativo. MAJOR: Isso aqui é um lugar mui triste. VIGÁRIO: Já andamos mais de duas horas. MAJOR: É lá, a tapera onde fica o fantasma! (vigário consulta o termômetro)
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VIGÁRIO: Menos 4 graus. (olha pra cima) nuvens baixas, pesadas... Bárbaro! E dizer que a pouco estávamos no verão, Major! Coisas estranhas acontecem por aqui. SOM DE ORQUESTRA MAJOR: Padre, a orquestra! Vamos embora, vamos assistir ao ensaio. VIGÁRIO: Tudo como no inicio dos Tempos, mas daí surgirá a Ordem. Ou a música. Batizo-a então de Lira Santa Cecília, em homenagem a padroeira da música. Vou-me embora Major, vá apreciar tua música! (Vigário e Major saem do palco, entra Maestro lendo partituras, com uma cara de dúvida) MAESTRO: ROSSINI! (entra Rossini apressado com muitas partituras, entrega algumas ao Maestro) MAESTRO: Ah! Aqui estavam as partituras que me faltavam! (Entra o Major) MAJOR: Buenas Maestro! Já de volta? MAESTRO: Sim, senhor. Aqui estão, Rossini e meus músicos, vieram de Porto Alegre, agora sim tenho o que preciso! MAJOR: Então toque! (Risadas de felicidade) SOM DE ORQUESTRA (Saem Major, Maestro e Rossini) NARRADOR: Clara Vitória, a filha do Major, mal entrara na adolescência, já era uma dama. (Clara Vitória entra em um lado do palco e começa a bordar) NARRADOR: Seus dedos pálidos, quando levados para ajeitar um pouco a cascata dos cabelos, não faziam contraste com a pele do rosto, e os olhos eram tão largos e verdes que ultrapassavam a fronte, projetando ao ar pestanas abundantes e vibráteis. Os filhos dos estancieiros á volta afirmavam que morreria virgem, pois ninguém teria a audácia de macular aquela inocência angélica – e casavam com outras. Para ela não mais importava esses juízos levianos, nem esses matrimônios de varejo: se havia algo de certo na vida, que a empolgava até latejaram as têmporas e doerem os ossos, fazendo com que perdesse a fome e até as palavras, era a sua paixão pelo Maestro. (Maestro entra em outro lado do palco, escrevendo partituras. Clara fica olhando para ele) NARRADOR: MAS NENHUMA PAIXÃO É SURPRESA PARA SUAS VÍTIMAS. (Entram Brígida e Major) Clara Vitória: Como pode? Um homem com má educação ser Maestro! Senta-se de pernas cruzadas igual a um carroceiro. É uma tortura essa música, chega a doer nos ouvidos. Major: Vocês estão gostando essa maravilha? Brígida: Que maravilha? Quem vai perder tempo escutando essas bobagens? Major: Nós, os vizinhos, ora. E toda essa gente que chega por aqui, e se não chegarem, eu convido. Isso! Um concerto! Vou dar um concerto! E deveria me agradecer Brígida, ótima oportunidade de convidar Silvestre, futuro noivo de Clara Vitória. (Clara Vitória levanta pega uma vassoura e começa a varrer a parte da frente da casa.) Brígida: Mas e com essa música? Com esse Major insolente? Não confio nesse negro... Major: Negro não, mulato! Tudo é mulato, lá pra cima no Brasil.
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Brígida: Pois pior, muito pior! Aqui no Sul é como Deus fez: ou é negro e é escravo, ou é branco e homem livre. Mulato é uma coisa que não se entende. (Ficam em silêncio. Clara Vitória, varrendo, encontra maestro.) MAESTRO: Se não se importasse, poderia varrer em outro lugar, para que possamos ensaiar aqui? CLARA: O serviço não vai parar por sua causa! MAESTRO: Como queira, senhora. (Saem Major e Brígida de cena, Clara Vitória volta para o outro lado, senta-se emburrada) MAESTRO: (imitando clara vitória) O serviço não vai parar por sua causa! Tenta ser rude, mas és tão doce... Ah menina! (Maestro começa a tocar uma música no violão, Clara Vitória vai até o quarto dele) CLARA VITÓRIA: Senhor, eu ouvi uma música, uma linda música e resolvi vir v... MAESTRO: É uma canção que eu fiz para uma moça. CLARA: E quando vamos escutar a canção? MAESTRO: Logo que a moça me quiser ouvir. (Maestro pega na mão de clara vitória e ela sai correndo do palco. Rossini entra no quarto). ROSSINI: O pão é uma merda, mas o café é ótimo aqui no sul. MAESTRO: hã? ROSSINI: É Maestro, as damas são as estrelas do anoitecer... (Apagam-se as luzes) SOM DE ORQUESTRA (esmaecendo) MAJOR: Venham dançar com minha orquestra! Venham! (Todos dançam, menos Clara que fica parada à frente, pensando) NARRADOR: Aquele era mais um concerto dentre tantos outro que o Major já tinha oferecido a seus amigos e vizinhos. Dona Brígida não reclamava tanto, pois Silvestre comparecia a todos eles, e assim ficava mais perto de sua noiva, Clara Vitória. O que não ficou muito claro, até para você meu caro ouvinte, é que havia tempo, todas as noites, Clara Vitória saía da cama, apagava a vela e como uma sombra entre as sombras, se esgueirava para dentro do quarto ao lado e deitava-se com o Maestro, até alta madrugada. (Silvestre pede a mão de Clara para dançar) SILVESTRE: Ora meu amor, lembra que eu te disse a poucos dias que tu estavas cada dia mais gorda e sem motivos ficaste ofendida com meu elogio? Pois hoje digo que pareces uma rosa, continuas gorda, mas uma linda rosa gorda. CLARA: E tu, um tordilho vinagre! (Continuam dançando, silvestre pisa no pé de clara, ela reclama. De longe maestro e Rossini observam.) (A música acaba e todos batem palmas e saem. Permanece Clara no palco, nervosa e enjoada) NARRADOR: Clara Vitória tem de se levantar para ir à janela, sorver o ar fino e engolir aquela espécie de amargor que lhe vem à garganta a qualquer momento, desde que se soube grávida. CLARA (vomita): Desgraçada que sou! Uma puta, desgraçada, desgraçada, uma puta! (vomita)
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(entra em cena discretamente Siá Gonçalves) SIÁ GONÇALVES: A senhora está bem, moça? (Clara faz que não com a cabeça) SIÁ GONÇALVES: Por quê? CLARA: É o Maestro... (passa a mão na barriga) SIÁ GONÇALVES: (com a mão na barriga de Clara) A menina deixou passar muito tempo. Isso agora só rezando... CLARA: Está bem, mas não conte para ninguém! (Sai Siá, entra Brígida, Major e Vigário. Clara continua com cara de enjoada) MAJOR: Mas o que tem essa menina? BRÍGIDA: Nada, é a preocupação com o enxoval. CLARA: Não estou me sentindo bem, peço licença. (Clara vai mais para frente do palco e Vigário segue-a) CLARA: Já estou melhor padre. VIGÁRIO: Melhor ficará se me contar o que está acontecendo. CLARA: Eu, eu estou grávida... (chora no colo do vigário) Do Maestro padre, do Maestro! (Vigário fica espantado e consola Clara) (Clara sai de cena e Vigário volta para o centro do palco onde estão Brígida e Major) VIGÁRIO: A menina está bem, por ora. MAJOR: Estão ensaiando. Vamos lá? VIGÁRIO: Quer saber? Ás vezes o Maestro me aborrecer. Passei a me sentir mal quando vejo. Sei, vai dizerme que há pouco eu o elogiava. Mas a gente muda. Sabe, estive pensando... Quem sabe casemos logo a menina. Quando digo logo, digo daqui a umas duas semanas. MAJOR: As famílias às vezes encurtam o casamento, mas só as famílias sem moral, e quando a noiva já se desgraçou. VIGÁRIO: Talvez seja o caso. MAJOR: Cuidado, Vigário, o que está me dizendo? VIGÁRIO: Não é o que o senhor está pensando. Ela sim si desgraçou, como o senhor diz, mas de puro amor. Tudo o que ela sente essas perturbações dos humores que o senhor viu no almoço... É preciso que se case já. MAJOR: Jamais. Não vou passar essa vergonha. Filha minha, mesmo com essas tais perturbações dos humores, se casa direito, com proclamas e no tempo certo. Ou é assim ou é nada. Peço que o senhor não toque mais no assunto. - Tem certeza que não quer ouvir a orquestra? VIGÁRIO: Não, preciso chegar cedo em casa... MAJOR: Eu acompanho o senhor... (Vigário e Major saem de cena. Clara entra e entrega os bordados para mãe. As duas bordam)
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NARRADOR: D. Brígida estava com as idéias inflamadas. A filha mantinha-se como nos últimos dias, no estado lastimável de quem não dorme, a todo instante lançando um olhar mortiço para fora, para o campo, dando um suspiro que vinha das imensidões da alma intranqüila. Hoje D. Brígida perdia toda a desenvoltura diante da filha. Aquela conversa do Vigário fora muito estranha, o que ele estaria escondendo? Sentia-se paralisada, como se o céu se abrisse e Santo Antônio lhe soprasse nos ouvidos, um pensamento fantástico passou pela sua cabeça. (Brígida arregala os olhos e joga o lenço pra cima) BRÍGIDA: VOCÊ ESTÁ GRÁVIDA! (Clara levanta a blusa e mostra-lhe o ventre) BRÍGIDA: Miserável (tapa na cara) Era isso! Enquanto eu ficava aqui como uma boba, vocês se refestelavam como cachorros, você e Silvestre! (Clara cai no chão, e Brígida dava pancadas mais fortes) E eu ainda mandei de fossem passear, louca que eu era! (Entra siá Gonçalves e tenta segurar D.Brígida) GONÇALVES: Para Dona! Assim você mata a menina! BRÍGIDA: É isso que ela merece! Alguém que eu pari e criei, agora me faz isso! Ainda faço uma loucura. Ah, seu pai vai ficar sabendo! Saia daqui! Gonçalves chame o Eleutério, já! (Clara sai correndo. Siá Gonçalves sai. Entra Major) MAJOR O que houve? BRÍGIDA: Nossa filha GRÁVIDA, GRÁVIDA! O que vais fazer? MAJOR: O que devo. Clara Vitória! (entra Clara apoiada da Siá) MAJOR: É a última vez na vida que tu me vê. Brígida arrume as coisas dela! BRÍGIDA: Para onde ela vai? MAJOR: Vai para a tapera, lá no boqueirão. (Major e Brígida ficam num canto do palco. Siá e Clara vão para outro) CLARA: Quanto tempo alguém consegue ficar vivo no boqueirão? GONÇALVES: Antes de perguntar bobagens, a senhora deve contar para D. Brígida que o Maestro que é o pai da criança. E contando para sua mãe, a senhora salva o Silvestre! CLARA: Não vou contar para a minha mãe, nem para ninguém. (Segura as mãos da ama) Jure que vai dizer para o Maestro voltar para Minas Gerais. GONÇALVES: Que conversa sem fundamento. A senhora vai logo sair do boqueirão e dizer isso pra ele. CLARA: Quanto mais tempo eu ficar, melhor para o meu amor. GONÇALVES: Ah menina... Vamos. (Siá passa com Clara e uma maleta) BRÍGIDA: O que está fazendo? MAJOR: Não se meta! BRÍGIDA: Como não? Para com isso. Largue ela! MAJOR (pegando Brígida pelos ombros): Eu disse para não se meter!
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(Sai Siá e Clara do palco) MAJOR: É ISSO QUE ACONTECE COM AS PUTAS! E DE HOJE EM DIANTE NÃO SE FALA MAIS NELA NESTA CASA! (Sai Major e Brígida) NARRADOR: Desde a hora em que percebera Clara Vitória desaparecer na porteira, o Maestro entregara-se a um atoleiro de remorsos. (entra Maestro com Siá) NARRADOR: Pudera imaginá-la pálida de desespero, a procurá-lo entre aqueles rostos mortificados, a chamar em silêncio pelo seu nome. Tentou ir ao boqueirão, mas o Major havia posto vários de seus homens bloqueando a passagem. Agora o Maestro começava a levar em consideração o pedido de Clara Vitória, porém não ia voltar Minas, iria para Porto Alegre. MAESTRO: Vou embora, eu amo a menina, mas devo ir. O Major enlouqueceu, não há mais o que fazer, vou para Porto Alegre. Rossini irá comigo. GONÇALVES: Tu já deverias ter feito isso. E deixe a menina comigo. Ela está bem, e quando acontecer o bom sucesso, vou estar junto dela. (abraça a escrava e os dois saem de cena.) (Entram Vigário e Silvestre.) SILVESTRE: Não espere nada de mim Padre. Vim só dizer que vou embora. Tenho ainda campo em São Gabriel e Alegrete , o senhor sabe. VIGÁRIO: O que aconteceu, como tudo terminou assim? SILVESTRE: Um homem não pode ser humilhado dessa forma. Só não abati o Major porque não sou covarde de matar um velho. VIGÁRIO: E Clara Vitória? SILVESTRE: Não quero mais ouvir falar nela. VIGÁRIO: Ela está sendo vítima de uma injustiça. SILVESTRE: E cabe a mim reparar? Eu não quero mal a ninguém. Nem a Clara Vitória. Adeus. VIGÁRIO: Vá em paz. (Sai Silvestre, entra Major) VIGÁRIO: Bom dia Major. (estende a mão e não obtém resposta.) É uma desumanidade tudo isso, você deve acabar com essa falta de cristianismo. A menina não pode ficar sem os sacramentos. Tu não podes abandonála! MAJOR: Que sacramentos? Que menina? VIGÁRIO: Clara Vitória. Sua filha. MAJOR: Padre, nossa amizade terminou hoje, proíbo o senhor de voltar aqui. VIGÁRIO: Se assim desejas, assim será. Meu dever me obriga a dizer que se acontecer alguma coisa com a menina, o senhor será o culpado. Não se deixa ninguém sem o conforto espiritual. Depois, não me procure para o perdão. (Saem de cena Major e Vigário. Clara Vitória entra, atira-se no chão e começa a ter as dores do parto. Siá entre em cena)
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GONÇALVES: Menina, vim trazer comida e... SENHORA!! (ajuda no parto) GONÇALVES: (com a criança no colo): É uma menina! E pesada. Agora está livre. Vou levar a criança para estância, pois uma negra que deu à luz e pode dar o peito pra ela. (Clara faz gesto de que quer ver a criança. Siá mostra a menina.) CLARA: Bonita. GONÇALVES: Bobagem. Nenhum recém-nascido é bonito. E vai ter a cor do pai. Venha, te ajudo a voltar para a tapera. (Sai Clara e Siá. Entram Maestro e Rossini) NARRADOR: O Maestro desde que chegara em Porto Alegre caiu de um mal indecifrável, tinha febres que o prostravam como um moribundo. Recusava-se a sair da cama, Rossini observava seu doente: um lenço de cambraia, encharcado por suor maligno, modelava as formas do rosto, não falava nada, e o peito mal se movia numa respiração curta e angustiada. MAESTRO: Será que Clara Vitória está vendo este céu lindo? ROSSINI: Ah homem, não vá morrer em minhas mãos que nem dinheiro para o enterro eu tenho. MAESTRO: O que me diz, será que ela ainda pensa em mim? Será que ainda está viva? ROSSINI: Decerto. Primeiro: as mulheres não morrem. E a prova é que no mundo só há viúvas e não viúvos. Segundo: as mulheres não esquecem. Para a alegria e tragédia dos homens. MAESTRO: Quero voltar Rossini, não agüento mais... Vamos voltar! (Rossini dá um tapinha nas costas do Maestro. Os dois saem. Entra Major e Gonçalves) MAJOR: Gonçalves, meus músicos voltaram! Deixe a casa toda arrumada para o grande concerto de amanhã: a volta da Lira de Santa Cecília e meu aniversário. Mande as cozinheiras preparem as uvas! Todos os vizinhos vão comparecer. MAJOR: Dia bom, vem bastante gente para o concerto. Traga mais vinho Siá! (Major bebe e aguarda...) MAJOR: MERDA, onde estão todos? SOM DE TEMPESTADE MAJOR: Eles me abandonaram sim, todos eles. Ignoraram tudo que eu já fiz por eles e por suas porcas vidas. Eles não são capazes de entender nada e por isso se vingam agora, usando motivos cretinos. CRETINOS COMO SÃO! (Major vai para frente do palco) MAJOR: Boa tarde seus cretinos, vieram ouvi da minha boa música seus porcos? Podem sentar, à vontade. Sabe quem é o culpado de tudo isso? Foi Deus que os fez tão medíocres, tão mesquinhos... Seus porcos imundos! BRÍGIDA: E tu esperavas que viesse gente, depois das coisas que fez? MAJOR: Olha quem está falando... Deixe-me só! BRÍGIDA: À vontade. MAJOR: Tu não vens? BRÍGIDA: Vou, mas vou é embora!
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MAJOR: Pois vá duma vez criatura dos diabos. VAMOS TER CONCERTO! Adiante! MAJOR: Toquem uma música alegre que eu quero dançar! (Major pega Gonçalves e obriga-a a dançar, caindo, tropeçando...) NARRADOR: Como coisa de outro mundo, começaram a cair gotas escuras e viscosas, que varavam o ar e projetavam-se nos rostos. GONÇALVES: SANGUE! SANGUE! PELO AMOR DE DEUS MAJOR! MAJOR: Tu falas em Deus, mas a onde ele escondeu os meus convidados? Apreciem, seus porcos! SOM DA MORTE DO MAJOR (MAJOR SE DÁ UM TIRO. Maestro segura Major, apavorado. Rossini bate palmas.) ROSSINI: ... Final feliz! Vá meu amigo! Antes que as cortinas desse amor se fechem! (Apagam-se as luzes, todos saem de cena) NARRADOR: No boqueirão, o céu, um cristal translúcido, exibia abertas de luz. Toda atmosfera respirava um novo ar, pássaros de bom tempo giravam nas alturas, descrevendo arcos de felicidade, e o arroio voltava a correr. (Acende-se a luz com Clara no meio do palco) NARRADOR: Ela foi até a margem, tirou a roupa e lavou-se. Estava assim, meio submersa, refrescando-se na delícia da tarde, quando sentiu que alguém vinha em sua direção, atravessando as águas. E logo soube quem era, sempre saberia dali por diante, pelos anos afora: não precisou cobrir-se, nem correr de vergonha, apenas abriu os braços e entregou-se ao primeiro beijo de todos os beijos de sua longa vida. SOM ALEGRE DE REENCONTRO (Entra Maestro e abraça Clara. Fecham-se as cortinas) NARRADOR: A história da moça abandonada no boqueirão me foi contada por uma amiga, a escritora Hilda Simões Lopes, e aconteceu no século passado, nos campos de sua família. É, portanto uma história real, o que lhe dá certa nota picante; mas aqui, como em todas as realidades, a fantasia ocupa lugar do trivial e do desconhecido – e isso é apenas uma homenagem a literatura. (Abrem-se as cortinas, todos agradecem) FIM
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