A Lua Seguinte
A rua estava deserta e os besouros surravam as luzes dos postes. Era noite de lua cheia, seria questão de tempo até a mesma mostrar-se entre as nuvens escuras do céu da cidade. As estrelas estavam ofuscadas pelo breu que predominava a abóbada celeste, onde o globo lunar era o líder absoluto do firmamento. Uma figura sombria esgueirou-se pela calçada de circulação até chegar em um telefone público. De longe, ressoou o motor de um carro, e a pessoa no orelhão deixou que seu cartão telefônico caísse no chão. O vulto negro apoiou-se no telefone com as duas mãos e respirou fundo mais de uma vez. Levantou a cabeça como que se analisasse o interior do telefone. Ficou ali, parado, criando coragem para encarar o cartão que caiu e dar o telefonema. Abaixou-se e pegou o objeto que deixou cair. A mão trêmula mal conseguia segurar a fina lâmina plástica. Ainda agachado, sentiu seus ossos gelarem com a temperatura que caiu bruscamente em dois graus, seguido do aumento na umidade do ar. Talvez chovesse naquela noite. O último mês, desde sua primeira transformação, foram trinta dias de agonia. Um total de seis mortos no sanatório e mais duas vítimas nas ruas. Testemunhas afirmam terem ouvido uivos de lobos nas proximidades dos locais dos crimes. Ele decidira dar o telefonema. Após três tentativas, o cartão encaixou. Os números também foram discados com dificuldade. - Sou... Sou eu. O homem do sanatório. – disse uma voz baixinha. - Mas... Sou eu. - Eu matei toda aquela gente! – a voz dele já se descontrolava. - Eu sou um lobisomem!! – o homem se desesperou de vez.
- Certo! Certo! Me acalmo. – disse ele voltando a falar baixinho. Retirou a cabeça de baixo do orelhão e olhou para ambos os lados para ver se não tinha chamado a atenção de nenhum morador. Mas não, ele ainda estava sozinho. - Eu ten... Tentei... Me escute! Procurei ajuda. Deixa eu falar! Prata!!! – era como se o volume dele oscila-se entre o mínimo e o máximo. – Fiz exame de sangue, procurei Deus e não há cura para mim. E hoje é lua cheia. - Maluco? Não. Se estivesse já tinha tirado minha própria vida. Mas eu não consigo. Prata, prata, prata, prata... O homem soltou o fone e afastou-se do orelhão, deixando a pessoa no gancho falando sozinha. Ninguém podia ajudá-lo a enfrentar a transformação, não havia remédio contra a licantropia. Ele virou-se e contemplou a lua, o satélite natural da terra. Seus olhos fixaram-se nela num transe hipnótico. Parecia admirá-la como um artista admira uma obra-prima. Depois passou de admiração à inquietude, a sentir um calor sobrenatural, a tremer, a suar. E no ápice de tudo, quando sua expressão facial refletia toda a aflição que sentia, ele gritou: Jesus Cristo!!! A mudança começou com uma forte dor de cabeça que derrubou o pobre homem na rua. No chão pavimentado, ele estendeu braços e pernas, e seu peito parecia que ia explodir de tanto solavanco que dava. Um grito ecoou pela noite e os membros dele, tanto superiores como inferiores, alongaram-se. Ele rolou mudando de posição e ficou de quatro, semelhante a um cachorro. Suas vestes rasgaram sendo reduzidas a trapos e a musculatura de suas costas alterou-se completamente, passando de anatomia para fisiologia. A pele fora recoberta por pelos e a cabeça cresceu ganhando um perfil lupino. Os cachorros da vizinhança começaram a latir em uníssono. O
lobisomem içou-se do chão ficando em pé, concentrado nos latidos dos cães. Em seguida, farejou algo e correu saltando por cima de um muro de mais de dois metros de altura. Um uivo propagouse pela vizinhança. A besta farejava e estava faminta. -----------------------------------------------------------------------------O latão flamejante aquecia os corpos maltratados de dois mendigos em um beco imundo e desprezado por tudo aquilo que se julgava social. Eram velhos amigos de rua. Um deles tinha quarenta e cinco anos e era seis anos mais velho que o seu colega. - Essa é uma noite diferente, San. - Diferente por que? Num cumemo nada. Igualzinho as outras noites. - Cale a boca. - Cale a boca você. Eu tô com o maior buraco no estômago e você me vem com esse tipo de conversa fiada. - Nós num cumemo nada e você implica comigo por tentar manter a mente cheia. - Hahahaha! Cheia de merda! Isso sim. A discussão estava indo mais além disso. Insultos de como os fracassos da vida os tinham trazidos a viver em um beco e ter como lareira um latão que emanava fumaça nociva. - Shhhhh! Você ouviu? - Ouvi nada. Tá pedindo arrego, é? - Fi de quenga. É um cachorro no fundo do beco. Vamo lá pegar ele e vender. – disse um dos homens, entrando ainda mais no beco. - Peraí que eu também vou. Vamo dividir como da outra vez.
Os companheiros de noites frias já tinham conseguido dinheiro vendendo cães e gatos para um laboratório clandestino realizar experimentos. - Vai devagar. Cuidado para num ser um dos grande. - Medroso. Da escuridão do beco, surgiu uma criatura incontrolável e sedenta de sangue. Com um salto predatório, caiu por cima do primeiro mendigo, que teve o pescoço rasgado pela mandíbula que a criatura enterrou no ataque. Um grito ecoou no beco, mas não foi do homem que foi atacado e sim do que assistiu ao ataque. - Maaãeeeee!!! – gritou o mendigo fugindo do beco. ----------------------------------------------------------------------------- Foi o ataque de um animal selvagem. As marcas são semelhantes as vítimas do sanatório. Repare no pescoço. - Victor. - Quem? - Victor. Foi internado no sanatório por dizer que a namorada foi morta por um lobisomem. Ele disse também que o ataque ao departamento de polícia no foi obra de um lobisomem. O prisioneiro conhecido como Lixo era o suposto lobisomem. Victor escapou do sanatório durante a chacina no mês passado. Agora a pouco eu soube que alguém ligou para a delegacia alegando ser o homem do sanatório. Essa pessoa disse que era um lobisomem. - Você não ta achando que... - O depoimento do mendigo. - Um cachorro selvagem que anda como gente. Isto não é um fato que deve ser levado em conta.
- Parece que só dessa vez teremos que acreditar no inacreditável. – o policial terminou sua frase encarando a lua cheia.
Márcio Anjo