Peça de Teatro 3º E.M –
CONCERTO CAMPESTRE
NARRADOR: Thiago Ramalho PERSONAGENS: Major Eleutério Fontes – Mateus Perez Clara Vitória – Bruna Lauermann Maestro – Cássio Souza Dona Brígida – Simone Schuck Silvestre – Mateus Castro Vigário – Pedro Rossini – Fernanda Alves Siá Gonçalves – Djulie Ferreira Capataz – Olavo Barcellos Parteira – Bruna Costureira – Glenda Fauth ORQUESTRA: Artur Trapp, William Costa, Josué Verdejo e PARES DE DANÇA: Sofia Sandri, Vanessa Lopes, Jonata, Henrique Sasso. 1º ATO (Abrissem as cortinas, Major Eleutério se encontra sozinho no meio do palco, “paralisado”) NARRADOR: - Ignorando seu aspecto físico, seria possível imaginar – e errar – que Major Antônio Eleutério dedicava paixão antiga pela música, protegido pelos vagares que lhe davam a imensidão dos bens. Mas nem sempre fora rico. Sua história era conhecida de todos: construíra fortuna aproveitando a sorte e armando situações irreversíveis para seus devedores. O contrabando de gado foi seu meio de vida por duas décadas, o que lhe deu o posto de Major Honorário da Guarda Nacional. Durante a Revolução farroupilha ampliou os haveres vendendo para ambos os lados em luta, com o término do conflito dedicou-se a charqueada, e enfim porque começa a envelhecer, à amizade dos padres. (Entram em cena Dona Brígida e Vigário) VIGÁRIO: Mas me conta Major, é verdade ou é só mais um causo essa história de tempestade que levantou o sangue dos seus bois? MAJOR: Não meu padre, o pior de tudo é que é verdade, a “chuva de sangue”. Naquele dia deu um pé de vento furioso, ergueu todo o sangue dos bois que tava no tanque, e girou todinho no céu. DONA BRÍGIDA: Girou e foi desabar em cima da casa da estância, olha meu padre, ainda tem as manchas ali nas telhas. Falando nisso, que vagabundagem, já pedi para os escravos limparem!E aqueles músicos de merda em Eleutério? Já que não fazem nada o dia inteiro poderiam ajudar os negros na lida da casa. (Brígida sai de cena) MAJOR: Falando em música, o senhor bem soube que meus dois índios fugiram? VIGÁRIO: Mas como? Mesmo com proposta de salário e moradia? Lembro-me bem deles beijando suas mãos. Pobres criaturas, pareciam anjos ao cantar. MAJOR: Agora ao invés de anjos tenho um bando de vagabundos, que de vinho e farra entendem bastante, mas de música nada. Bando de vagabundos, ei de mandá-los embora hoje mesmo. VIGÁRIO: Acho que tenho uma solução para o caso. MAJOR: Mas me diga logo homem de Deus! VIGÁRIO: Um homem, um Maestro, de Minas Gerais. Veio pra cá e foi preso no lance mais ridículo da revolução, mas como artistas são inofensivos, foi solto. Tem bastante experiência e posso assegurar ser o melhor músico da Província. Tem seu passado de indolência, com algumas criadas das casas em que passou, mas vem bem avisado e o senhor major, mantenha os olhos abertos, sabe como é, é homem. MAJOR: Fechado então! (Os dois saem de cena) Música como se fosse anoitecer, depois amanhecer.
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2º ATO (Estão em cena Brígida, Major e Clara Vitória. Entra o Vigário) VIGÁRIO: Bom dia! MAJOR, BRÍGIDA, CLARA VITÓRIA: Bom dia vigário! VIGÁRIO: Minha doce menina, dando muito trabalho pros seus pais? Está cada dia mais linda e mais crescida! (Clara Vitória sorri) VIGÁRIO: Aqui está Major, esse é seu novo Maestro! MAESTRO: Major, o senhor não terá motivo de queixas. MAJOR: Severidade e virtude meu guri, apenas isso. Então vamos testá-lo agora mesmo! (Clara e Brígida bordam. Ouve-se uma barulheira ensurdecedora.) BRÍGIDA: Seu pai anda ficando velho e gagá, não agüento mais essa barulheira, incomoda meus ouvidos. CLARA: E que idéia foi essa de trazer esse desconhecido aqui para dentro de casa, só por que o padre pinta-o como um Santo da música? Tenho que concordar com a senhora mamãe, papai está ficando louco. BRÍGIDA: Então borde minha filha, que quando se casares com Silvestre livra-se de tudo isso, já eu... (Os homens voltam sala) BRÍGIDA (puxando o marido e cochichando): É para isso que vais pagar esse macaco? MAESTRO: Sinto muito Major, mas com esses músicos, se é que posso chamar isso de músicos, sua orquestra não terá sucesso. Peço permissão para escolher meus próprios companheiros, posso ir a Porto Alegre, mas só se permitires? MAJOR: Pelo bem de nossos ouvidos, pode ir, mas amanhã. (DJULIE ENTRA COM UMA BANDEJA DE UVAS) VIGÁRIO: Se já está tudo acertado, peço-lhe uma retribuição Major. MAJOR: Pode falar meu bom e velho padre, depois que me arrumaste esse guri não há nada que eu possa negar ao amigo. VIGÁRIO: Pois bem, peço que me leve até o boqueirão, onde o senhor cultiva essas uvas maravilhosas, as uvas do fantasma , tão famosas por esses pampas. MAJOR: Está ficando louco padre? Não... Não, jamais. O boqueirão é um lugar asqueroso, de dificílimo acesso. Eu mesmo só estivesse lá uma vez, a uns dez anos atrás. VIGÁRIO: Mas Major, tu entendes meus estudos, preciso verificar as condições cientificas do local, quem sabe possamos fazer vinho com aquelas uvas maravilhosas. O vinho é santo, está nos Salmos, o senhor não vai negar isso a Deus não é Major? MAJOR: Ah diacho! Vou mandar encilhar os cavalos! VIGÁRIO: IREMOS COM A PROTEÇÃO DE DEUS MAJOR. BRÍGIDA comenta com clara: Esses dois caducos vão, mas não voltam. (saem todos de cena)
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3º ATO NARRADOR: Aos primeiros raios de sol tomaram rumo para o fundo da estância, em direção ao boqueirão. Passaram pelas invernadas, abrindo e fechando porteiras, cruzando campos cheios de luz, entretanto, a paisagem começou a se transformar em dobras alcantiladas e pedregosas, crivadas de máricas, que os dois amigos venciam com dificuldade. VIGÁRIO: Estranho não é mesmo, estamos a dois graus Celsius negativo. MAJOR: Isso aqui é um lugar mui triste. VIGÁRIO: Já andamos mais de duas horas. MAJOR: É lá o lugar do fantasma. (vigário empolgado tropeça) MAJOR: Tenha cuidado. (vigário consulta o termômetro) VIGÁRIO: Menos 4 graus. (olha pra cima) nuvens baixas, pesadas... Bárbaro! E dizer que a pouco estávamos no verão, Major. Coisas estranhas acontecem por aqui. (Ouve-se a orquestra, os músicos e o maestro entram no palco) MAJOR: Padre, a orquestra! Vamos embora, vamos assistir ao ensaio. VIGÁRIO: Tudo como no inicio dos Tempos, mas daí surgirá a Ordem. Ou a música. Batizo-a então de Lira Santa Cecília, em homenagem a padroeira da música. Vamos lá! (Chegam à fazenda onde estão o Maestro, Rossini e os músicos) MAESTRO: Senhor Major, aqui estão, Rossini e meus músicos, vieram de Porto Alegre, agora sim tenho o que preciso! MAJOR: Então toque! (A cortina se fecha e torna-se a abrir com Clara Vitória no centro do palco) NARRADOR: Clara Vitória mal entrara na adolescência, já era uma dama. Seus dedos pálidos, quando levados para ajeitar um pouco a cascata dos cabelos, não faziam contraste com a pele do rosto, e os olhos eram tão largos e verdes que ultrapassavam a fronte, projetando ao ar pestanas abundantes e vibráteis. Os filhos dos estancieiros á volta afirmavam que morreria virgem, pois ninguém teria a audácia de macular aquela inocência angélica – e casavam-se com as outras, A ela não mais importavam esses juízos levianos, nem esses matrimônios de varejo: se havia algo de certo na vida, que a empolgava até latejaram as têmporas e doerem os ossos, fazendo com que perdesse a fome e até as palavras, era a sua paixão pelo Maestro. MAS NENHUMA PAIXÃO É SURPRESA PARA SUAS VÍTIMAS. (Pai, mãe e filha na sala) Clara Vitória: Como pode? Um homem com má educação senta-se de pernas cruzadas igual a um carroceiro. É uma tortura essa música, chega a doer nos ouvidos. Major: Vocês não estão escutando está maravilha? Brígida: E quem vai perder tempo escutando essas bobagens? Major: Nós, os vizinhos ora. E toda essa gente que chega por aqui, e se não chegarem, eu convido. Isso um concerto, vou dar um concerto! E deveria me agradecer Brígida, ótima oportunidade de convidar Silvestre, futuro noivo de Clara Vitória. (Clara Vitória levanta pega uma vassoura e começa a varrer a parte da frente da casa.) Brígida: Não confio nesse negro!
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Major: Negro não, mulato! Tudo é mulato, lá pra cima no Brasil. Brígida: Pois pior, muito pior, porque aqui no Sul é como Deus fez: ou é negro, e é escravo, ou é branco, e homem livre. Mulato é uma coisa que não se entende. (ficam em silêncio, Clara Vitória encontra maestro.) MAESTRO: Se não se importasse, poderia varrer em outro lugar, para que possamos ensaiar aqui? CLARA: O serviço não vai parar por sua causa. MAESTRO: Como queira, senhora. (Saem todos de cena) (Barulho de anoitece. Entra Clara Vitória e Maestro, cada um em seu quarto) MAESTRO: (imitando clara vitória) O serviço não vai parar por sua causa! Tenta ser rude, mas és tão doce... Ah menina! CLARA VITÓRIA (lê poesia): ESSA CAMISA DE CASSA TÃO FINA, COBRE-SE O PEITO MORENO. É COMO O JAMBO CHEIROSO QUE PENDE AO GALHO FRONDOSO COBERTO PELO SERENO. (maestro faz xixi e clara vitória fica escutando, adormecem e clara vitória acorda e escuta uma música, curiosa vai ao quarto do maestro) CLARA: Bom dia senhor, eu vi uma música, uma linda música e resolvi vir v... MAESTRO: É uma canção que eu fiz para uma moça. CLARA: E quando vamos escutar a canção? MAESTRO: Logo que a moça me quiser ouvir. (Maestro pega na mão de clara vitória e ela sai correndo, Rossini entra no quarto). ROSSINI: O pão é uma merda, mas o café é ótimo aqui no sul. MAESTRO: hã? ROSSINI: É Maestro, as damas são flores quando acordam. (fecham-se as cortinas) 4º ATO NARRADOR: Aquele era mais um concerto dentre tantos outro que o Major já tinha oferecido a seus amigos e vizinhos. Dona Brígida não reclamava tanto, pois Silvestre comparecia a todos eles, e assim ficava mais perto de sua noiva, Clara Vitória. Marcou-se a data após a morte do tio de Silvestre. Durante a cerimônia de luto Clara Vitória encorajou Silvestre a apresentar seu dito “afilhado”, como filho de uma aventura, sendo assim ficou claro que ela aceitaria tanto a criança como Silvestre como esposo. O que não ficou muito claro, até para você meu caro ouvinte, é que havia tempo, todas as noites, Clara Vitória saía da cama, apagava a vela e como uma sombra entre as sombras, se esgueirava para dentro do quarto de hóspedes e deitava-se com o Maestro, até alta madrugada. (Silvestre e Clara Vitória dançam e conversam)
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Silvestre: Ora meu amor, lhe recorda a lembrança que lhe disse a poucos dias que você estava cada dia mais gorda e sem motivos ficou ofendida com meu elogio? Pois hoje digo-lhe que pareces uma rosa, continuas gorda, mas uma linda rosa gorda. Clara: E você, um tordilho vinagre! (Continuam dançando, silvestre pisa no pé de clara, ela reclama. De longe maestro e Rossini observam.) Rossini: O amor está sempre nos esperando como um animal para nos atacar. O senhor, por exemplo, tem amor pela menina da casa, e acho que enamorou-se sem querer. Maestro: Vou trabalhar. Rossini: Pois bom trabalho. E não esqueça: nos ataca, esse animal, mas não nos devora. (Maestro vai para seu quarto, se despedem todos na cena. Entra clara vitória de camisola e vai para o quarto do maestro, ela se abraça no maestro) Maestro: E serei eu a compor a música para a festa. (Ela ficou como uma louca, arranhou-lhe o rosto e bateu-lhe com os punhos no peito nu, até cansar.) Maestro: Calma era só um modo de dizer. (Se abraçam dão risada, clara dá um beijo na bochecha e sai correndo para seu quarto e se prepara para dormir, vomita.) NARRADOR: Clara Vitória tem de se levantar para ir a janela, sorver o ar fino e engolir aquela espécie de amargor que lhe vem à garganta a qualquer momento, desde que se soube grávida. Clara (vomita): Desgraçada que sou, uma puta, desgraçada, desgraçada, uma puta! (entra em cena sinhá Gonçalves na sala.) Clara: Siá me de um pano e um balde d’água. (dá o balde e espera, Clara limpa tudo e volta) Siá Gonçalves: Você não está se sentindo bem? (Clara faz que não com a cabeça) Gonçalves: Por quê? Clara: Por nada. (Saem de cena, fecham-se as cortinas) 5º ATO NARRADOR: Nascida na estância ao virar do século, a ama foi ganhando tanto vulto que notavam quando ela não estava por perto. O grisalho dos cabelos dava-lhe um ar impecável, todos diziam que era mais limpa que a patroa. Como durante a revolução fora o braço direito de D. Brígida, e por causa de seu sobrenome, ganhou o apelido equívoco de Siá Gonçalves. Jamais alguém explicou como aquelas duas mulheres difíceis se entendiam. Tinha a Siá Gonçalves a qualidade de saber de tudo, desde o alecrim das lingüiças até as dívidas não pagas nos bolichos. E alardeava tudo isso, como se fosse insuportável reter só para si. Mas ninguém a considerava má, era apenas uma mulher que deveria existir. Clara Vitória, que nunca tivera motivos para temê-la, hoje começava a pensar. (abrem-se as cortinas, estão em cena Clara Vitória, Brígida, Gonçalves e a costureira, que já começa a medir e se espanta com o tamanho da cintura.) Clara: Engordei um pouco, perto do verão é sempre assim. (Gonçalves conversa com a Brígida e a costureira aproveita para cochichar)
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Costureira: Vou deixar uma folga na cintura, se por acaso a menina engrossar mais... Clara: Faça isso. (Saem todas de cena, entra parteira e Clara vitória) Clara: Preciso um favor. Parteira: Deite-se. (Examina) Parteira: A menina deixou passar muito tempo. Isso agora só rezando. Clara: Não fale nada pra ninguém! Parteira: Já fiz muito desmancho em guria rica, e alguém ficou sabendo? (Parteira e Clara vitória saem de cena e entra o maestro, depois clara) Maestro: Preciso dizer uma coisa. Está uma linda noite. Não quer ir lá fora? Clara: Podem nos ver. Maestro: Seus irmãos saíram para charqueada. Clara: Os cachorros podem latir. Maestro: Eles nos conhecem vamos. Clara: Por que me trouxe aqui? Maestro: Espere. (Começa a tocar a música de clara Vitória) Clara: Louco, você ficou louco! Maestro: Eu disse para eles que eu precisava da orquestra longe dos ruídos, no campo, para escutar melhor os instrumentos. E para você, uma surpresa de amor. Quero ver você feliz. Clara: Vão ouvir lá em casa. Maestro: Eu avisei a seu pai que iria fazer isso. Clara: é lindo! Maestro: Só para você, a Lira. Clara: Maestro Maestro: Sim? Mas antes que me pergunte (pôs-lhe a mão sobre o ventre) quando vai nascer a nossa criança? Clara: Como ficou sabendo? E agora? Maestro: Agora, é escolher o nome. (ela tapou-lhe a boca) Clara: Não fale isso. Maestro: É preciso, é a vida. Clara: Vamos embora, estou ficando assustada.
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(fecham-se as cortinas)
6º ATO NARRADOR: Decidiu-se a não ir mais ao quarto de hóspedes. O maestro entenderia, amava-a. A proximidade da morte santificava-a em sua gravidez. Na noite seguinte, quando ele bateu atrás da parede, ela se enrijeceu toda, mordendo a ponta do travesseiro até doerem os dentes. Depois pôs-se a fixar com os olhos secos a chama da vela no castiçal, que consumia cera numa voracidade lenta, reduzindo-a a um pequeno toco, que depois se apagava num odor de velórios. Acordou-se como se não tivesse dormido, mas lembrava-se dos pesadelos. Passou a fechar os postigos ao ouvir sua música na capela, e vinha bordar, protegendo-se dos olhares da mãe colocando o pano sobre si. O pai tornou-se sua maior preocupação. Se ele lhe dirigia um olhar mais indireto durante o jantar, ela se julgava perdida e enterrava o rosto no prato, observando a trama da toalha de mesa. (abrem-se as cortinas. Uma mesa está posta e nela estão Clara, Major, Brígida e vigário) Major: Mas o que tem essa menina? Brígida: Nada, é a preocupação com o enxoval. Clara: Não estou me sentindo bem, peço licença. (Clara vai até o quarto) Vigário: Vou conversar com a menina, licença. Clara: Já estou melhor padre. Vigário: Melhor ficará se me contar o que está acontecendo. Clara: Só se for em confissão. Vigário: Espere um pouco. (Vigário sai para pegar a estola sacramental) Brígida: O que ela tem? (vigário esconde a estola) Vigário: Vai ficar boa, não se preocupe. Clara: Eu, eu estou grávida... (chora no colo do vigário) (vigário sai do quarto) Vigário diz a Brígida: A menina está bem, por ora. Major: Estão ensaiando. Vamos lá? Vigário: Quer saber? Ás vezes o Maestro me aborrecer. Passei a me sentir mal quando vejo. Sei, vai me dizer que há pouco eu o elogiava. Mas a gente muda. (Chega Brígida) Vigário: Como está a menina? Brígida: Melhor. Vigário: Sabe o senhor, estive pensando... Eu, se fosse o senhor, casava logo a menina. Quando digo logo, digo daqui a umas duas semanas. Major: As famílias às vezes encurtam o casamento, mas só as famílias sem moral, e quando a noiva já se desgraçou.
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Vigário: Talvez seja o caso. Major: Cuidado, Vigário, o que está me dizendo? Vigário: Não é o que o senhor está pensando. Ela sim si desgraçou, como o senhor diz, mas de puro amor. Tudo o que ela sente, essas perturbações dos humores que o senhor viu no almoço... É preciso que se case já. Major: Jamais. Não vou passar essa vergonha. Filha minha, mesmo com essas tais perturbações dos humores, se casa direito, com proclamas e no tempo certo. Ou é assim ou é nada. Brígida: Concordo, fica feio mexer na data. Não vamos ter como explicar para os vizinhos e depois, ainda faltam umas peças para o enxoval. E não acho que Clara Vitória esteja doente. Major: Peço que o senhor não toque mais no assunto. - Tem certeza que não quer ouvir a orquestra? Vigário: Não, preciso chegar em casa cedo. Major: Volta? Vigário: Assim que puder. Adeus. NARRADOR: Ao voltar para a sala, D. Brígida vinha com as idéias inflamadas. Sentou-se com Clara Vitória e tentou recomeçar uma bainha de lenço de batista finíssima, trabalho frágil demais para seus dedos vulgares. A filha mantinha-se como nos últimos dias, no estado lastimável de quem não dorme, a todo instante lançando um olhar mortiço para fora, para o campo, dando um suspiro que vinha das imensidões da alma intranqüila. Agora bordava, mas ontem cedo trancara-se no quarto, não saindo nem pra comer. Tudo fora pior porque Silvestre Pimentel viera à tarde para saber como ela estava de saúde. Clara Vitória se recusou a aparecer na sala e D. Brígida teve que enfrentar uma tarde péssima. Hoje D. Brígida perdia toda a desenvoltura diante da filha. Aquela conversa do Vigário fora muito estranha, o que ele estaria escondendo? Sentia-se paralisada, como se o céu se abrisse e Santo Antônio lhe soprasse nos ouvidos, um pensamento fantástico passou pela sua cabeça. (Brígida arregala os olhos e joga o lenço pra cima) Brígida: VOCÊ ESTÁ GRÁVIDA! (Clara levanta a blusa e mostra-lhe o ventre) Brígida: Miserável (tapa na cara) Era isso! Enquanto eu ficava aqui como uma boba, vocês se refestelavam como cachorros, você e Silvestre! (Clara cai no chão, e Brígida dava pancadas mais fortes) E eu ainda mandei de fossem para o pomar, louca que eu era! (Entra siá Gonçalves e tenta segurar D.Brígida) Gonçalves: Para Dona! Assim você mata a menina! Brígida: É isso que ela merece! Alguém que eu pari e criei, agora me faz isso! Ainda faço uma loucura. Ah, seu pai vai ficar sabendo! Vá para o quarto, já. Gonçalves chame o Eleutério, já! Major: O que houve? Brígida: Nossa filha GRÁVIDA, GRÁVIDA! (silêncio) Brígida: Vai fazer o que? Major: O que devo. (Sai de cena) Brígida: E você Gonçalves, como pode, como pode esconder isso de mim? Gonçalves: Mas eu não sei de nada de Silvestre com Clara Vitória patroa, eu juro! Só desconfiava que ela estava pesada de filho, mas não tinha certeza patroa, fiquei com vergonha de lhe falar, eu juro! Brígida: Uma vergonha que você não teve quando a cozinheira dormiu com o Maestro.
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Gonçalves: Mas o caso era outro, agora era a menina da casa. Brígida: Uma puta igual a essas negras que ficam se rolando nas macegas. Meu Deus, eu não merecia tanta infelicidade. No fim o Vigário estava certo. Eu embalei-lhe os primeiros sonos, vi crescer, enfeitei-a, preparei enxoval e quis-lhe uma vida decente. E com o que ela me paga? Putinha, pervertida. (Volta o Major) Brígida: O que tu fez? Major: (entrega a arma a Brígida) Fique com ela, matei o infeliz. Agora é só esperar que venham. (Ficam os dois na sala, Brígida caminhando e o major dormindo na cadeira. Batem na porta, Brígida atende, volta e fica olhando o marido que desperta.) Major: Não vieram? Brígida: Vieram. Vieram para dizer que o Silvestre não morreu. Major: Então aquele cachorro ainda teve o desplante de mandar dizer que está vivo? Brígida: Você deve agradecer, se ele não morreu é porque Deus quis livrar você de matar um homem. Major: E Clara Vitória? Brígida: No quarto. (Os dois vão até o quarto.) Major: É a última vez na vida que você me vê. Brígida, arrume as coisas delas. Brígida: Para onde ela vai? Major: Vai para a tapera, lá no boqueirão. (Saem de cena, clara fica no quarto) NARRADOR: E dos recônditos aposentos do major vieram as ordens terríveis que a Siá Gonçalves cumpria com o coração em tiras, já penalizada pela barbaridade que iriam fazer com a menina, e por primeira vez sentia a surpresa das lágrimas inundando a garganta. Providenciou uma cuidadosa cesta com pão, água e fiambres, e imaginando que Clara Vitória não iria vestir-se por si mesma, foi ajudá-la. (Gonçalves tenta vestir a menina) Clara: Quanto tempo alguém consegue ficar vivo no boqueirão? Gonçalves: Antes de perguntar bobagens, você deve contar para D. Brígida que o Maestro é o pai da criança. Pensa que eu não sei? E contando para sua mãe, você salva o Silvestre. O coitado só por sorte escapou de morrer dos tiros do Major. Clara: Então ele está bem, Deus ajudou. Não vou contar para a minha mãe, nem para ninguém. (Segura as mãos da ama) Jure que vai dizer para o Maestro voltar para Minas Gerais. Gonçalves: Que conversa sem fundamento. Você vai logo sair do boqueirão e dizer isso pra ele. Clara: Quanto mais tempo eu ficar, melhor para o meu amor. Gonçalves: Ah menina... Vamos. (Capataz entra em cena, Clara tira a fita dos cabelos, beija-a e dá a ama) Clara: Isso é para ele levar junto quando for embora.
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NARRADOR: Era um sábado de glorioso verão, de céu azul, cruzado pelo vôo dos corvos rondando a charqueada, quando o capataz e clara cruzavam a porteira. Através da fresta da janela D. Brígida assistira à partida. Voltara ao oratório, onde agora dizia uma estropiada Salve Regina, da qual nunca entendera as palavras. Numa esperança, ainda fora à janela - quem sabe mandava dar volta?- mas nada mais enxergou. No íntimo, não queria acreditar que Antônio Eleutério fosse mesmo sepultar a menina naqueles ermos. O marido era desses repentes. Mas logo ouviu um barulho agitado no corredor, vozes, um ruído de coisas sendo arrastadas. Correu, e o que viu deixou atônita: Antonio Eleutério comandava Gonçalves, que levava os baús do enxoval para fora da casa. Brígida: O que está fazendo? Major: Não se meta. Brígida: Como não? Para com isso. Larga isso agora! Major (pegando Brígida pelos ombros): Eu disse para não se meter! Essas imundícies vão para fora. NARRADOR: D. Brígida foi atrás, os passos tolhidos de medo: o marido, já no terreiro, rebentava as tramelas dos baús, abria-os com violência, arrancava dali toalhas de mesa, lençóis, roupas de baixo, e com elas ia fazendo um monte disforme, onde as peças se confundiam. Depois mandou derramar sobre aquilo um cântaro de óleo dos lampiões, e ele mesmo trouxe da cozinha um papel incendiado e aproximou a chama, levantando uma labareda. Major: É ISSO QUE ACONTECE COM AS PUTAS! E DE HOJE EM DIANTE NÃO SE FALA MAIS NELA NESTA CASA! (Saem todos de cena) 7º ATO NARRADOR: Desde a hora em que percebera Clara Vitória desaparecer na porteira, o Maestro entregara-se a um atoleiro de remorsos. Pudera imaginá-la pálida de desespero, a procurá-lo entre aqueles rostos mortificados, a chamar em silêncio pelo seu nome. Tentou ir ao boqueirão, mas o Major havia posto vários de seus homens bloqueando a passagem. Agora o Maestro começava a levar em consideração o pedido de Clara Vitória, porém não ia voltar Minas, iria para Porto Alegre. (Siá Gonçalves e Maestro entram em cena) Maestro: Vou embora, eu amo a menina, mas vou embora.O Major enlouqueceu, não há mais o que fazer,vou para Porto Alegre. Gonçalves: Tu já deverias ter feito isso. E deixe a menina comigo. Ela está bem, e quando acontecer o bom sucesso, vou estar junto dela. (abraça a escrava e vai falar com o Rossini que entra em cena.) Maestro: Vou embora. Rossini: Sim meu caro, é a melhor coisa a ser feita. E afinal, estar em Porto Alegre não é estar no inferno. E sabe o que mais? Me disponho a ir junto. Estou tão amarrado ao senhor, e o senhor a mim. Acho que vamos ter que agüentar um ao outro pelo resto da vida. Maestro: Me acompanha mesmo? Rossini: É como falei. Mas tenho outro motivo: ainda não aconteceu o último ato dessa ópera. E eu preciso estar por perto para saber como termina! Maestro: Perverso. Rossini: Não. Um amante do drama musical. Gonçalves: Maestro, o major mandou te chamar. (Major entra em cena, Gonçalves sai.) Major: Você e sua orquestra vão embora. Já estão pagos, não temos mais nada a acertar.
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(Maestro curva-se e saem todos de cena)
NARRADOR: Enfim, os fatos se resolviam por si mesmo. Rossini comunicou aos músicos que se desfazia a Lira. Á noite, o Maestro escreveu carta apresentando suas razões ao Vigário, confiando-a a Siá Gonçalves. Depois num gesto mecânico, começou a arrumar seu baú, recolhendo tudo o que lhe lembrava os momentos que ali vivera. Hesitou ante a fita do cabelo de Clara Vitoria; mas tremulamente envolveu-a num lenço e guardou-o no bolso junto ao peito. (Entram Vigário e Silvestre.) Silvestre: Não espere nada de mim Padre. Vim só dizer que vou embora. Vigário: E para onde? Silvestre: Tenho ainda campo em São Gabriel e Alegrete , o senhor sabe. E levo junto o Afilhado e minha tia. Vigário: O que aconteceu, como tudo terminou assim? Silvestre: Um homem não pode ser humilhado dessa forma. Só não abati o Major porque não sou covarde de matar um velho. Vigário: E Clara Vitória? Silvestre: Não quero mais ouvir falar nela. Vigário: Ela está sendo vítima de uma injustiça. Silvestre: E cabe a mim reparar? Eu não quero mal a ninguém. Nem a Clara Vitória. Adeus. Padre: Vá em paz. (Fecha-se a cortina) NARRADOR: A lógica era perfeita. Realmente, por mais que o Vigário falasse, por mais que invocasse argumentos agora tardios, ali estava um homem ferido. Sim, deveria convencer-se : como servo de Deus, tinha o dever de esquecer, de sepultar todas as ofensas e contrariedades na vala comum dos créditos celestes. Restava-lhe sempre a certeza da Recompensa, e era fácil perdoar, quase um hábito. Mas com Silvestre, não. Era um homem que pertencia a um mundo no qual a contabilidade divina significava apenas um exercício de fantasia religiosa. Era assim, a lógica dos campos: aqui se faz e aqui se paga. 8º ATO (Abre-se a cortina , Clara Vitória está em cena, e faz as coisas de acordo com que o narrador fala) NARRADOR: Em seu exílio, Clara Vitória, acostumava-se à sucessão poderosa do sol e ao giro delicado da abóbada celeste que, nas noites carregava o silêncio das constelações no rumo das paragens sem fim. Seguia a Trindade religiosa das Três-marias, imaginando quantas mulheres as teriam visto em outras eras, e quantas a veriam depois que ela morresse. Era um instante sem tempo nem lembranças, em que seu destino diluía-se na sorte comum de todos os seres. Clara Vitória: Hoje sou eu, amanhã outra, e assim para sempre. (fica paralisada) Vigário: Bom dia Major. (estende a mão e não obtém resposta.) É uma desumanidade tudo isso, você deve acabar com essa falta de cristianismo. A menina não pode ficar sem os sacramentos. Já nem levo mais em consideração o amor paternal, nem o dever da assistência familiar, nem a caridade pois sei que assim não me escutas, mas é uma questão de códigos canônicos, tu não podes impedir a ação dos ministros da Igreja. Major: Que sacramentos? Que menina? Vigário: Clara Vitória. Sua filha.
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Major: Padre, nossa amizade terminou hoje, proíbo o senhor de voltar aqui. Vigário: Se assim desejas, assim será. Meu dever me obriga a dizer que se acontecer alguma coisa com a menina, o senhor será o culpado. Não se deixa ninguém sem o conforto espiritual. Depois, não me procure para o perdão. (saem de cena) (Clara Vitória volta a se mexer.) NARRADOR: Clara Vitória deu se conta que logo não saberia mais falar e alucinada começou a gritar para o que via. Clara: Passarinho! Árvore! Nuvem! Sol!Sol! NARRADOR: Tentou lembrar-se das coisas de antes, do tempo em que vivia na estância, mas apenas viam à cabeça as formas e cores, e escapavam as palavras. E de repente caiu em si, as coisas iriam continuar existindo mesmo que não gritasse mais nada, e veio a idéia de que ela não importava mais na organização do universo, e que tudo se arranjava bem sem ela. E então decidiu que iria esquecer os nomes de tudo; pelo menos não carregava a angústia de pensar, podendo viver na mais pura existência, no contato da pele com o ar, com a água e com a terra. Lembrava-se de pessoas como o Vigário que sempre queriam conhecer o nome de uma árvore ou de um peixe, e ficava indignado quando não lhe sabiam responder: com isso perdia a ocasião do momento. (Capataz entre em cena) Capataz: Gonçalves, eu...eu.. fui ao boqueirão e ouvi gemidos da menina, entrei e vi que tratava-se de assunto de mulher vim avisar. Gonçalves: Meu Deus, que falta de iniciativa, minha menina pode morrer naqueles cafundó, vou chamar a parteira. 9º ATO CENA DO PARTO Parteira: É uma guria. Gonçalves (com a criança no colo): E pesada. Agora está livre. Vou mandar a criança com a Siá Parteira, tem na estância uma negra que deu à luz e pode dar o peito pra ela. E eu vou ficar aqui com você. (faz gesto de que quer ver a criança, coloca a criança perto de Clara Vitória) Clara: Bonita. Gonçalves: Bobagem. Nenhum recém-nascido é bonito. E vai ter a cor do pai. Gonçalves para parteira: Entregue sem demora a ama-de-leite, e não deixe nem D.Brígida e muito menos o Major desconfiarem. (Faz Clara adormecer e fecha-se a cortina/abre estão em cena Maestro deitado e Rossini.) NARRADOR: O Maestro desde que chegara em Porto Alegre caiu de um mal indecifrável, tinha febres que o prostravam como um moribundo. Recusava-se a sair da cama, Rossini observava seu doente: um lenço de cambraia, encharcado por suor maligno, modelava as formas do rosto, não falava nada, e o peito mal se movia numa respiração curta e angustiada. Maestro: Será que Clara Vitória está vendo isso? Rossini: Ah homem, não vá morrer em minhas mãos que nem dinheiro para o enterro eu tenho. Maestro: O que me diz, será que ela ainda pensa em mim? Será que ainda está viva? Rossini: Decerto. Primo: as mulheres não morrem. E a prova é que no mundo só há viúvas e não viúvos. Secundo: as mulheres não esquecem. Para a alegria e tragédia dos homens. Maestro: Quero voltar não agüento mais.
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(fecha-se a cortina)
10º ATO
NARRADOR: O major piscou muitas vezes ao escutar a notícia que o capataz lhe trazia. E a vida. Que lhe escapava, de imediato começou a fluir de novo em suas veias, e ele correu à porteira, não crendo que enxergava, ali, a sua orquestra. (abre-se a cortina) Gonçalves: Comporte-se, as coisas mudaram muito por aqui, mas não se preocupe, a menina Clara Vitória está bem, está viva. E ver a criança, nem pense nisso. Está bem cuidada. Major: Gonçalves, deixe a casa toda arrumada para o grande concerto de amanhã. A volta da Lira de Santa Cecília e meu aniversário. Mande as cozinheiras preparem as uvas! E maestro, quero um bom repertório, todos os vizinhos vão comparecer. (Saem todos de cena, barulho de anoitecer e amanhecer) (Entra em cena Major tomando vinho) Major: Dia bom, vem bastante gente para o concerto. (Major adormecido, acorda assustado olhando o relógio) Major: MERDA, onde estão todos? (barulho de vento e tempestade) (Paracleto entra em cena, na frente do palco) Paracleto: Não conte mais comigo, nem com os meus. Não se fica aí dando tiros nos outros, nem se faz isso com a filha, que não merece esse castigo de bruto. Major: Estou muito velho para receber lições na minha casa, e se não veio para ouvir a orquestra pode ir embora. Paracleto: É o que eu vou fazer. Se os outros não tiveram coragem de falar eu tive. NARRADOR: O Major veio para dentro de casa e trêmulo bebeu mais vinho. Major: Eles me abandonaram sim, todos eles. Ignoraram tudo que eu já fiz por eles e por suas porcas vidas. Eles não são capazes de entender nada e por isso se vingam agora, usando motivos cretinos. CRETINOS COMO SÃO! NARRADOR: A medida que bebia, ia inteirando-se da realidade de que não teria ninguém para ouvir a Lira, tornou-se uma repentina sombra de si mesmo: os da casa viram-no ir para o terreiro, onde passou a caminhar, fazendo gestos incompreensíveis, cumprimentando convidados imaginários e dizendo palavras que só ele entendia. (Major vai para frente do palco, fecham-se as cortinas) Major: Boa tarde seus cretinos, vieram ouvi da minha boa música seus porcos? Podem sentar, a vontade. Sabe quem é o culpado de tudo isso? Foi Deus que os fez tão medíocres, tão mesquinhos... seu porcos imundos! NARRADOR: Exausto e gotejando de suor, jogou-se na rede, mandou vir mate e sorveu chaleiras enfiadas. Perdendo o pudor, esvaziou os intestinos ali mesmo, recozinhando-se no bafo acre das próprias fezes. D.Brígida com uma alegria feroz julgava-se agora e para sempre liberta daquele homem ao mesmo tempo rude e soberbo, cujas entranhas podres só evacuavam podridão. Deus tudo ouve e tudo perdoa menos um pai que renega a filha, encaminhando-a para a vergonha e a calúnia perpétua. Brígida: E você esperava que viesse gente, depois das coisas que fez? Major: Olha quem está falando... Deixe-me só! Brígida: À vontade.
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NARRADOR: Mas os que deram o Major como louco tiveram de morder a língua. Logo ele se erguia com um outro ânimo, e chegando ao galpão, gritava para os músicos que se aprontassem por haveria concerto de qualquer maneira. Major: Você não vem? Brígida: Vou, mas vou é embora! Major: Pois vá duma vez criatura dos diabos. VAMOS TER CONCERTO! Adiante! (Música) NARRADOR: A música para o Major deixava de ser aquele momento de alegria em que se reencontrava, constituindo agora uma espécie de necessidade, não importando se os músicos tocavam bem ou mal, o que valia é que eles estavam ali, obedientes, batendo os tambores e soprando como demônios. Vigário: Que silêncio, não há quase ninguém. E a orquestra tocando só para a gente da casa. Alguma coisa há de acontecer por essas bandas. (plano do major fica paralisado) (abre-se a cortina) NARRADOR: Clara Vitória olhou pra cima, um gelo percorreu-lhe a coluna vertebral: escutou, fresca e nítida, devassando a distância, a música, a sua música. Não era nada, eram fragmentos esparsos, mas que sua memória apaixonada já unia, já ampliava. Clara: Estou sonhando. Ele voltou, ainda me quer. (plano do major volta a se mexer) NARRADOR: O vento que antes movia apenas as folhas da árvores, agora entrava pelo boqueirão girando, destruindo. Clara apurou o ouvido: ao fundo, bem ao fundo, numa obstinação amorosa a Lira Santa Cecília ainda soava, vencendo a tempestade. (fecha-se a cortina, plano do major volta a se mexer.) Agora o vento revolvia a estância num fragor inaudito, e as partituras, adejando pela espaço, eram solitárias despedidas de quem foge do inferno. Então foi uma pequena gota , que atingiu o rosto do major. Outras gotas vieram, grossas e desparelhas, e logo eram pingos tépidos que molhavam os cabelos, e que rodopiavam conduzidos pelo ar num redemoinho fantástico, numa fieira de cordões serpenteando numa ira enlouquecida. Major: Toquem uma música alegre que eu quero dançar! (Major pega Gonçalves e obriga-a a dançar, caindo, tropeçando...) NARRADOR: Como coisa de outro mundo, começaram a cair gotas escuras e viscosas, que varavam o ar e projetavam-se nos rostos. Vigário: SANGUE! SANGUE! PELO AMOR DE DEUS MAJOR! Major: O senhor fala em Deus, mas a onde ele escondeu os meus convidados? Maestro: A benção padre! Vigário: De que eu o condenaria? Quem é isento de culpa nesse mundo? (Maestro sai correndo) Espere! NARRADOR: Ia ordenar que parasse de correr, mas deteve-se quando entendeu tudo. Quem era ele, um simples padre. Para subverter os planos amorosos de Deus? (MAJOR SE DÁ UM TIRO, o vigário o abençoa, Rossini bate palmas e ri.) Rossini: ... e agora, fecham-se as cortinas. (este plano paralisa-se abre a cortina).
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NARRADOR: No boqueirão, o céu, um cristal translúcido, exibia abertas de luz. Toda atmosfera respirava um novo ar, pássaros de bom tempo giravam nas alturas, descrevendo arcos de felicidade, e o arroio voltava a correr. Ela foi até a margem, tirou a roupa e lavou-se. Estava assim, meio submersa, refrescando-se na delícia da tarde, quando sentiu que alguém vinha em sua direção, atravessando as águas. E logo soube quem era, sempre saberia dali por diante, pelos anos afora: não precisou cobrir-se, nem correr de vergonha, apenas abriu os braços e entregou-se ao primeiro beijo de todos os beijos de sua longa vida.
FIM
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