Rodrigo Gelamo Unesp

  • October 2019
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REFLEXÕES KANTIANAS SOBRE A FUNÇÃO SOCIAL DO ENSINO E DO ENSINO DE FILOSOFIA Rodrigo Pelloso Gelamo* [email protected]

Nossa intenção neste texto é analisar quatro momentos da obra de Kant, nos quais ele se dedica ao tratamento do problema da educação e do ensino, de maneira explícita ou implícita: Sobre a pedagogia1 (1995), O que é o esclarecimento (1985), O conflito das faculdades (1993), e Crítica da razão pura (1989). No primeiro momento, em Sobre a pedagogia, Kant desenvolve seu pensamento acerca da necessidade de se ensinar e de como ensinar as crianças, tendo como objetivo a inserção das mesmas no mundo cultural. Neste sentido, propõe caminhos e problematiza os modos de pensar a educação, tanto pelo viés da “física”, quanto da “prática”. Em O que é o esclarecimento, Kant problematiza seu próprio presente ao analisar a sociedade de seu tempo. A intenção com que Kant escreveu esse artigo foi a de dar uma resposta ao debate que estava ocorrendo sobre o Aufklärung. Em sua contribuição para o debate, Kant analisa o uso da razão pública e da razão privada pelos homens, com vistas à explicitação do que seria o Aufklärung, um aufklërer e sua oposição à condição de menoridade. Agencia financiadora: FAPESP. Instituição: Mestre em Filosofia e Doutorando do PPG em Educação pela Universidade Estadual Paulista 1 Sobre a pedagogia não foi publicado pelo próprio Kant, mas por seu discípulo Theodor Rink. Existe uma polêmica quanto à autoria do texto. Alguns afirmam que o texto não fora escrito por Kant e sim compilado por seus alunos. Outros ainda dizem que eram notas escritas por Kant e que, após sua morte, foram organizadas e levadas a público. Sabemos que Kant ministrou o curso de pedagogia na Universidade de Königsberg em 1776/1777, 1783/1784 e 1786/1787. Apesar da polêmica, o Sobre a pedagogia encontra-se nas Obras Completas de Kant, tomo IX, publicado pela Real academia Prussiana de Ciências em 1923. Pensamos que o presente texto apresenta de forma simplificada seu pensamento sobre a educação, o que facilita a entrada na obra kantiana especificamente nos temas da educação, do ensino e do ensino de filosofia. *

Nessa discussão, Kant apresenta problemas com relação à atitude do homem, tendo em vista aquilo para o qual deveria estar preparado: usar sua razão livremente. Assim, podemos inferir, a partir da exposição de Kant, alguns problemas que estariam atrapalhando ou que teriam atrapalhado, ou até mesmo impedido, a formação do homem. Em O conflito das faculdades, Kant apresenta a polêmica em torno das faculdades superiores e da Faculdade inferior, visando a mostrar a defasagem da Faculdade inferior e, ao mesmo tempo, apontar um caminho de conciliação entre as mesmas, tendo como objetivo a formação do homem. Kant discute nessa obra de que modo elas cooperam e, muitas vezes, impedem que o homem seja formado para que se torne um Aufklärer. Além disso, apresenta caminhos para que os conflitos existentes sejam superados. Por ultimo, na Critica da razão pura, Kant apresenta, ainda que secundariamente, a função da educação na formação do sujeito. No entanto, podemos entender essa obra como uma “metodologia” de como usar bem a razão e de como a filosofia, entendida como uma critica do conhecimento, é essencial para a formação crítica do sujeito. A partir dessas obras, podemos dizer que, para Kant, a máxima do ensino de filosofia é ensinar a pensar, melhor dizendo, ensinar a cultivar o espírito, cultivar o pensamento e a capacidade reflexiva do sujeito. Pensamos que, com isso, Kant pretende criar condições para que o sujeito possa ter e fazer bom uso da sua razão, condições necessárias para que tenha uma vida autônoma e livre. Para Kant, a formação cultural do homem se dá pela preparação critica do sujeito, fundada no aprendizado do uso da razão, única capaz de possibilitar ao homem a humanização e a conseqüente culturalização. A filosofia, para ele, tem um papel central nesse processo, pois ela é capaz de formar o homem moral e culturalmente, promovendo-o de seu estado natural de menoridade para um estado de liberdade. Neste sentido, nosso objetivo

é cotejar as obras mencionadas com o intuito de verificar de que modo Kant propõe que o processo formativo do sujeito deva se dar. Para atingir tal objetivo, vamos, apesar da dificuldade, propor uma síntese do pensamento kantiano, particularmente no modo como ele diagnostica o ensino e o ensino de filosofia. Partimos da hipótese de que, para Kant, o ensino de filosofia visa à formação do sujeito no uso de sua razão para que este se torne um aufklërer e, consequentemente, possa usar a razão com liberdade e autonomia. Em Sobre a pedagogia, Kant parte da constatação de que “O homem é a única criatura que precisa ser educada.” (1995, p. 11). Neste momento preciso de sua obra, Kant está considerando a educação como o cuidado despendido à criança para a sua formação intelectual e disciplinar. Kant centra a discussão sobre a formação, a princípio, nestes dois elementos (ou funções) formativos. A primeira delas - formação intelectual - tem um sentido positivo, uma vez que tem a intenção de dar condições de autonomia e liberdade ao homem, enquanto que a segunda - formação disciplinar - tem um caráter negativo, pois busca impedir que as forças naturais humanas, ou seja, de seu estado inicial de selvageria, se tornem um empecilho para o uso da razão. Neste sentido, o homem se diferencia dos animais, uma vez que os animais não precisam desse cuidado e aprendem por imitação, enquanto que o homem precisa de cuidados especiais que seriam indispensáveis, uma vez que precisa aprender, dentre outras funções importantes, a conviver em sociedade, a se disciplinar e a entrar no mundo cultural a que pertence a humanidade. Assim, a disciplina tem a função de transformar aquilo que é “animal” ou selvagem no homem em humanidade e, além disso, potencializar aquilo que lhe é natural: a disposição ao pensamento e ao aprendizado. O sentido de humanização é aqui empregado porque a disciplina tem a função de possibilitar que o homem possa domesticar em si mesmo algo que lhe é próprio e

transformar isso em socialização. A disciplina teria a função de direcionar a predisposição humana e afastar o educando das tendências indesejáveis. Assim, nas palavras de Kant “A disciplina submete o homem às leis da humanidade e começa a fazê-lo sentir a força das próprias leis.” (1995, p. 12-13). Poderíamos supor que a submissão às leis e à cultura não direcionariam o homem à autonomia e à liberdade, uma vez que o aprisionariam e o condicionariam. Essa problematização faz sentido. No entanto, para Kant, a autonomia e a liberdade só poderiam se efetivar quando o homem fosse humanizado, ou seja, quando passasse pelo processo de humanização e pelo aprendizado do uso livre e autônomo da própria razão como oposição ao aprisionamento ao estado selvagem e irracional em que vivia anteriormente. Deste modo, aquilo que, a princípio, poderia ser um indicativo de limitação da liberdade e da autonomia é, para Kant, condição necessária para sua efetivação. O estado natural do homem não se constituiria apenas de selvageria, mas traria desde o princípio todas as condições para que o uso da razão fosse desenvolvido. No entanto, o uso da razão, diferentemente do estado de selvageria, se desenvolveria e se efetivaria mais rapidamente se o homem passasse pelo processo formativo que prepararia o homem para o bom uso da razão. A condição para a formação do homem estaria, então, na educação dada por meio de seus preceptores, ou seja, por aqueles que já passaram pelo processo educacional. Nas palavras de Kant (1995), “O homem não pode tornar-se um verdadeiro homem senão pela educação. Ele é aquilo que a educação dele faz.” (p. 15). Por isso a importância de se pensar a educação no processo formativo do homem, apesar do pressuposto kantiano de que o homem já nasce predisposto ao pensamento. Sem a educação, o homem teria de trilhar todo o caminho rumo à humanização sozinho. Fato este muito complexo, uma vez que a humanidade já adquiriu valores e bens

culturais durante sua história, cuja apropriação por si só, seria algo, senão impossível, ao menos improvável. Kant imputa à educação e àqueles responsáveis pela educação uma grande responsabilidade, qual seja: a de bem educar. Assim, os bons educadores seriam aqueles que são disciplinados e fazem bom uso da razão. Caso o educador não tenha essas características, não pode instruir o homem de forma adequada, uma vez que, se não faz bom uso da disciplina e da razão, não pode ensinar como utilizá-la bem. Durante o processo educativo, o homem pode ser simplesmente treinado ou, aquilo que é plenamente desejável, ser ilustrado. No primeiro caso, o educando aprenderia apenas a usar mecanicamente tudo aquilo que lhe foi transmitido pela educação que recebeu: ser educado, culto, moralmente correto e disciplinado, porém, não atingiria o ideal que Kant almejará para a formação do homem: que este seja um ilustrado, um Aufklärer, ou seja, que faça uso autônomo e livre de sua própria razão. O educador não poderia ser qualquer pessoa, uma vez que precisa ser alguém que tenha passado pelo processo formativo e que tenha condições de instruir seus educandos para além do puro treinamento. Assim, mesmo um educador bem formado na disciplina e na cultura pode não ser necessariamente um educador completo e desempenhar os dois papéis previstos por Kant no processo educacional: o de instruir e o de formar para a vida. Nessa diferenciação entre o instruir e o formar para a vida, está a complexidade do pensamento kantiano acerca da formação do homem. No primeiro caso, o educador seria o responsável por formar o educando desde uma educação privada, ou seja, formar o sujeito para que este seja capaz de seguir regras, leis e de se inserir na cultura. No segundo caso, na formação para a vida, além da educação privada, o educador teria de ter condições de formar o sujeito, também desde uma educação para o uso público da razão, ou seja, pensar livremente para o engrandecimento de si e da humanidade.

Aí está, para Kant, a diferença entre a instrução, oferecida por um informator, e a educação, oferecida por um Hofmeister. O primeiro seria apenas um professor que transmitiria alguns conhecimentos e que prepararia o sujeito disciplinar e culturalmente, enquanto o segundo seria o responsável por preparar o educando para a vida, ou seja, para usar bem a razão tanto particularmente quanto publicamente. (1995, p. 31). Parece que o papel do Hofmeister é, ao contrário do informator - que se limitaria ao treinamento e à instrução dos preceitos - criar condições para propiciar ao educando uma formação na qual esteja preparado para fazer uso livre de sua razão e, assim, encontre sua autonomia para fazer “a verdadeira reforma do modo de pensar” (Kant, 1985, p. 104) – fato que nenhuma revolução, por si só, seria capaz de produzir no homem (Kant, 1985, p. 104). Para que o homem tenha condições de usar sua liberdade e autonomia, para ele se tornar um Aufklärer e abandonar seu estado de menoridade (Kant, 1985), ele não pode ser apenas um instruído, uma vez que, “Preceitos e fórmulas, estes instrumentos mecânicos do uso racional, ou, antes, do abuso, de seus dons naturais, são os grilhões de uma perpétua menoridade.” (1985, p. 102). O que afastaria o homem da menoridade e, consequentemente, o tornaria esclarecido, seria o próprio bom uso da razão. Isso porque, para Kant, “Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado” (1985, p. 100). Culpado porque apenas dele dependeria fazer a transposição do uso privado da razão para o uso público, ou seja, a culpa do sujeito estaria na falta de atitude em usar a razão na qual foi instruído. A responsabilidade do Hofmeister terminaria, então, no preparo do sujeito para a vida. No entanto, compete ao próprio sujeito se tornar um Aufklärer e não ao Hofmeister fazer desse sujeito um Aufklärer, porque, segundo Kant (1985), apenas o homem, por ele mesmo, é quem

poderia sair do seu estado de menoridade, de não esclarecimento. Não basta treinar ou condicionar o homem, mas, instruí-lo no uso público de sua própria razão, ou mesmo prepará-lo para a vida. Neste sentido, O aprender a pensar, pressuposto pela pedagogia kantiana, requer que esse aprendizado e esse pensar ocorram conforme as regras da razão, que, subjetivamente, o homem pode adquirir por meio do processo educativo, digamos assim, inspirado no próprio processo do Iluminismo (Aufklärung). (PAGNI, 2002, p. 117).

Assim, o treinamento e a instrução seriam condições necessárias para tal, porém, não suficientes. Precisamos lembrar que, para Kant (1985), “A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo” (p. 100), e continua, “O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem.” (1985, p. 100). Ou seja, para além de toda educação possível no uso público e privado da razão, imputaria ao próprio sujeito fazer uso da mesma. Concordamos com Pagni, para quem A maior dificuldade no processo para a formação do Aufklärer seria conciliar a submissão ao constrangimento das leis com o exercício da liberdade. Afinal a liberdade só seria plena quando, ao final desse processo de moralização e de educação, o homem fosse capaz de pensar livremente, reconhecendo os limites do uso público da razão e do entendimento, segundo um ponto de vista universal, superior, porque referente ao destino da própria humanidade e não de sua própria vontade singular. (2002, p. 117). Para compreendermos isso melhor, precisamos retornar aos conceitos de uso privado e público da razão. Para Kant, o uso privado e o uso público da razão se complementariam e, ao mesmo tempo, entrariam em conflito. O uso privado da razão, segundo Kant (1985), é aquele que “o sábio pode fazer de

sua razão em um certo cargo público ou função a ele confiado” (p. 104). Nesse sentido, o sujeito não pode problematizar as regras e as leis a que está submetido, restando-lhe apenas obedecer e fazer obedecer-lhas. Um exemplo utilizado por Kant é o do sacerdote, que, no uso privado de sua razão, deve cumprir seu ofício de modo a seguir as normas de seu ministério sem fazer questionamentos ou problematizações. No entanto, enquanto sábio, cidadão livre, [...] tem completa liberdade, e até mesmo o dever, de dar conhecimento ao público de todas as suas idéias, cuidadosamente examinadas e bem intencionadas, sobre o que há de errôneo naquele credo, e expor suas propostas no sentido da melhor instituição da essência da religião e da igreja.” (Kant, 1985, p. 106).

Procedendo assim, estaria fazendo o uso público de sua razão. O caminho para o esclarecimento, segundo Kant, seria a diminuição da tensão entre a razão privada e a pública, diminuindo o peso daquela e criando condições de se fazer o uso esclarecido desta. Isso se dá pelo fato de a razão pública não estar vinculada a nenhuma obrigatoriedade de cumprimento de ofício e de obrigatoriedade outra, que não a de si mesma, com a busca da verdade. Por isso, para Kant, vivemos em uma sociedade em esclarecimento, uma vez, além dessa tensão ainda não ter sido superada, os homens muitas vezes não fazem uso da razão autonomamente. Segundo Pagni (2002), A liberdade de pensar e esse bom uso público da razão, do mesmo modo que o respeito à ordem civil e o uso privado da razão, responsáveis pelo Aufkärung, seriam plenamente apreendidos nas Faculdades e, justamente, por meio do conflito das faculdades superiores com as faculdades inferiores, responsáveis por proporcionar esse movimento. (p. 117).

Este é o problema que se instaura na busca pelo esclarecimento, uma vez que, para nos tornarmos esclarecidos, temos de fazer uso público de

nossa razão. No entanto, somos coagidos a cumprir as leis e as normas imputadas pela razão privada. Para compreendermos a superação deste conflito, precisamos adentrar na obra O conflito das faculdades (Kant, 1993). Segundo Kant (1993), as Faculdades em geral são divididas em: (1) superiores, que compreendem a Teologia, Direito (Jurisprudência) e Medicina e seriam responsáveis pela doutrinação e pelo ensino das doutrinas ao homem, e (2) inferior, que compreende a filosofia. Kant explica que o título de inferior ou superior das Faculdades foi dado por uma decisão governamental, não havendo consulta aos eruditos para se chegar a uma melhor deliberação dos títulos a elas atribuídos, mas apenas à deliberação do governo. Desse modo, [...] entre as Faculdades superiores contam-se somente aquelas em cujas doutrinas o governo está interessado, se elas devem ser constituídas assim ou assado ou publicamente expostas; pelo contrário, aquela que unicamente tem de velar pelo interesse da ciência diz-se inferior, porque pode lidar com suas proposições como lhe aprouver. O que interessa ao governo é o meio de ele manter a mais forte e duradoira (sic) influência sobre o povo, e desta natureza são os objetos das Faculdades superiores. (Kant,1993, p. 21)

Neste sentido, a Faculdade inferior é responsável por buscar, pelo uso da razão, o caminho à liberdade, cabendo a ela “a modéstia de ser livre, e também de deixar livre, de descobrir apenas a verdade para vantagem de cada ciência e de pôr à livre disposição das Faculdades superiores” (Kant, 1993, p. 32)2. A Faculdade inferior, assim, não estaria cerceada Esta discussão podemos encontrar na obra O conflito das faculdades, publicada por Kant em 1798. A obra compreende três dissertações escritas por Kant em circunstâncias distintas nas quais polemiza cada uma das faculdades superiores com a de filosofia. A intenção do autor na reunião das dissertações, segundo ele, é a de criar uma unidade sistemática. No prefácio à edição do livro, Kant deixa claro seu desacordo com a obrigatoriedade a ele imputada de não tratar de assuntos religiosos em suas aulas. Segundo o autor, em 1788 foi feito um edito de religião seguido de uma censura pública, os quais limitavam 2

pela doutrina imposta pelo governo e teria a liberdade de julgar, de buscar a verdade e a proferir publicamente, liberdade sem a qual não seria possível trazer a verdade à luz. (1993, p. 22). No entanto, essa liberdade não poderia ameaçar ou colocar em risco a ordem instaurada. Segundo Pagni (2002), a Faculdade de Filosofia não interferiria nos negócios do Governo e não colocaria em risco a ordem civil instaurada, pois a ela caberia exercer o papel “da crítica dos objetos das outras ciências na interlocução com os práticos formados nas Faculdades Superiores, fazendo-os rever suas doutrinas e a instrução do povo” (2002, p. 118). Fazendo a relação entre o uso público da razão e o uso privado com as Faculdades, podemos aproximar as Faculdades superiores, com seu ensino voltado para a doutrinação do povo, da preparação do homem para o uso privado da razão. Por outro lado, à Faculdade inferior da filosofia caberia o ensino do uso da razão pública, preparando o homem para usá-la autonomia e liberdade. Neste sentido, apesar de a filosofia ser colocada no rol inferior das Faculdades, Kant entende que Reside, porém, na natureza do homem a causa por que semelhante vantagem (da liberdade), é denominada inferior; com efeito, quem pode mandar embora seja um humilde servo de outrem, imagina-se superior a outro que é, sem dúvida, livre, mas a ninguém tem de dar ordens. (1993, p. 22).

O titulo de inferior e a suposta inferioridade da filosofia estariam apenas no poder que esta tem em relação ao povo. As Faculdades superiores teriam o poder de ingerência sobre as decisões e sobre o que é transmitido aos educandos, enquanto que a filosofia não teria poder a expressão literária e docente a fim de normalizar a ação dos filósofos. Kant foi questionado pelo Rei Frederico II sobre sua ação pedagógica e literária. As acusações foram feitas em dois sentidos: (1) na utilização da filosofia para a degradação e deformação das doutrinas religiosas e (2) no não cumprimento de seu dever de obediência no que dizia respeito a suas obrigações como mestre da juventude.

algum, nem de mando nem de ingerência ou decisão. Deste modo, as Faculdades superiores teriam autorização governamental para se expor publicamente, uma vez que sua função seria a de manter a ordem estabelecida. No entanto, a exposição pública de seus pensamentos não faz dessas Faculdades detentoras do uso público da razão, nos termos kantianos. Para Kant, o problema maior não está na autoridade das Faculdades superiores em relação ao público, mas na desautorização da filosofia em proferir publicamente seus resultados, restando a esta apenas um debate com seus pares ou com os eruditos das Faculdades superiores.

Neste

esclarecimento

às

sentido,

Kant

predileções

localiza

dos

a

problemática

governantes

pelas

do

não

Faculdades

superiores com a finalidade de controle social. Esse controle social inibiria o homem de fazer uma problematização dos pressupostos doutrinários

enunciados

pelos

doutos

das

Faculdades

superiores,

gerando, assim, o apaziguamento do uso da razão para apenas corroborar ao instituído como verdade sem nunca questioná-la. A solução desse problema, para Kant, se daria quando [...] acontecer um dia que os últimos se tornem os primeiro (a Faculdade inferior a superior), não decerto no exercício do poder, mas no aconselhamento de quem o detém (o governo), que depararia assim na liberdade da Faculdade filosófica e na sabedoria que daí lhe adviria, bem mais do que na sua própria autoridade absoluta, com meios para a obtenção de seus fins. (1993, p. 41).

Neste sentido, Kant reivindica a possibilidade de a filosofia não ficar restrita ao debate interno ou com as outras Faculdades, mas ser utilizada publicamente por todos e ensinada a todos, inclusive como conselheira nos problemas enfrentados pelo governo, a fim de as decisões não serem tomadas a partir das dogmatizações das Faculdades superiores, mas a partir do uso da razão da Faculdade inferior.

Kant, assim, aponta para a existência da desigualdade no uso e na divulgação da razão privada (divulgada pelas Faculdades superiores) em relação à razão pública (ensinada pela filosofia). Isso faz com que sejamos instrumentos de dominação e, por não termos acesso ao uso razão pública, nos tornemos escravos do pensamento produzido por outros. A conciliação entre as razões dar-se-ia apenas quando fosse permitido e divulgado o uso da razão pública, quando as pessoas fossem formadas para utilizá-la livre e autonomamente. O problema, então, não estaria nas normas, nas regras, nas leis, mas no modo como estas são transmitidas sem que o sujeito possa submetêlas ao crivo da razão e problematizá-las para estar ciente e convencido das mesmas.Neste sentido, Kant afirma que Não nos admiramos de sermos seres sujeitos às leis morais e determinados pela nossa razão à sua observância, inclusive com sacrifícios de todos os confortos da vida a elas antagônicos, porque obedecer a tais leis radica objetivamente na ordem natural das coisas como objecto da razão pura: sem correr sequer alguma vez ao comum e são entendimento inquirir de onde nos possam vir essas leis, a fim de adiar porventura a sua observância, até conhecermos a sua origem, ou duvida da sua verdade. (1993, p. 71).

Assim, a obrigatoriedade estaria no uso da razão, no uso público e privado, e na observância dos resultados alcançados pelo uso correto desse bem da humanidade. Para Kant, a filosofia não é uma ciência das representações, conceitos e idéias, ou ainda uma ciência de todas as ciências, ou ainda algo de semelhante, mas uma ciência do homem, do seu representar, pensar e agir; - deve apresentar o homem em todas as suas partes constitutivas, tal como é e deve ser, i. e., tal como suas determinações naturais como também segundo sua condição de moralidade e liberdade. Ora era aqui que a antiga filosofia assinalava ao homem um ponto de vista inteiramente incorreto no

mundo, ao fazer dele, neste último, uma máquina que, como tal, deveria ser de todo dependente do mundo, ou das coisas exteriores e das circunstâncias; fazia, portanto, do homem uma parte quase simplesmente passiva do mundo. – Apareceu agora a Critica da Razão Pura e atribuiu ao homem no mundo uma existência plenamente activa. (1993, p. 85-86).

Assim, Kant reverte o sentido dado à filosofia de seu tempo e atribui a ele um outro caráter, qual seja: a de ser uma crítica do pensamento. A filosofia, então, teria um papel central na formação do homem e no ensino de como utilizar bem seu pensamento. À filosofia caberia a função de ser a Hofmeister da sociedade. Tendo em vista a passagem acima, podemos entender a máxima kantiana: não se ensina a filosofia, mas se ensina a filosofar. Isso quer dizer que não se deve ensinar a história da filosofia como um conteúdo que levaria o aprendiz a filosofar. Ao contrário, deve-se ensinar a usar corretamente a razão, que, para ele, é sinônimo de filosofar. Neste sentido, para Kant, o ensino de filosofia é o oposto daquilo que seria formulado futuramente por Hegel: o ensino da história da filosofia. Segundo Horn (2006, p. 2), Kant defende a tese de que se deve ensinar a filosofar e Hegel defende a tese oposta de que se deve ensinar os conteúdos da história da Filosofia. Estas posições estão alicerçadas em pressupostos filosóficos que ambos construíram a partir de suas práticas como pensadores e professores de Filosofia. Kant tomou como princípio que não se deve aprender pensamentos, conteúdos, mas aprender a pensar. Há neste entendimento uma influência clara e evidente de Rousseau e do pensamento pedagógico de sua época.

Deste modo, se pudéssemos supor um programa educativo kantiano, este estaria fundado nesta máxima: não ensinar a filosofia como um acúmulo de conhecimento, mas ensiná-la como um modo de formação

do homem para filosofar, para fazer um uso do pensamento crítico. Neste sentido, segundo Pagni, [...] pode-se dizer que o ensino de filosofia enquanto um aprender a filosofar estaria suposto em todo programa educativo elaborado pela pedagogia kantiana, mas só seria plenamente apreendido nos termos supra-expostos na Faculdade de filosofia [...] Porém, isso só seria possível pela aquisição da cultura e pelo cultivo da própria razão, dependendo de um método, que em muitos aspectos seria semelhante ao método da filosofia, a partir do qual as crianças e os jovens aprenderiam a pensar o que fosse necessário à sua vida prática e, quem sabe, ao próprio pensar [...]” (2002, p. 120). Poderíamos dizer, então, que pensar não implica ser um erudito ou ser um profundo conhecedor de toda a história do pensamento. Assim, para Kant, o ensino de filosofia deveria se concentrar no exercício e no exercitar o uso da razão. Exercício este que possibilitaria ao homem fazer o uso correto de sua razão com autonomia para a liberdade. A discussão kantiana não está focada no aspecto formativo ou na discussão sobre a educação, a não ser, especificamente, em Sobre a pedagogia. Notamos, assim, que a preocupação kantiana com a formação do sujeito não se limita ao preparo para o convívio social e para a obediência às leis, mas no preparo para a autonomia no uso de sua razão. A preocupação kantiana reside no preparo de fundamentos filosóficos para que seja possível a utilização da razão, por isso se dedica em toda a Critica da razão pura a problematizar quais seriam os limites da razão, ou seja, determinar até que ponto a razão seria um instrumento para se encontrar a verdade. Não obstante, como pudemos notar, os escritos kantianos dão margem para que possamos pensar juntamente com ele os problemas que buscava enfrentar em seu cotidiano e que nos auxiliam a pensar os

nossos próprios problemas. Se atualizarmos o pensamento kantiano e o utilizarmos para problematizar a nossa sociedade, notaremos que a crítica feita por ele é plenamente possível de ser aplicada aos problemas que enfrentamos contemporaneamente. A filosofia, apesar de todo esforço de Kant no sentido de torná-la algo importante para a sociedade, continua no mesmo lugar, para não dizer em um lugar ainda mais inferior. A preguiça filosófica que encontramos atualmente é de constatação inegável. Hoje podemos dizer que as Faculdades superiores são, além daquelas já apontadas por Kant e que não perderam seu Status, a de informática, a de comunicação social (jornalismo televisivo), a de economia e a de administração de negócios. A sociedade tornou-se cada vez mais tecnicizada e doutrinada pelos saberes instituidores de uma racionalidade técnica (para utilizar uma expressão adorniana). A

função

crítica

está

cada

vez

mais

encarcerada

dentro

das

universidades que, ao invés de problematizar a sociedade, o poder instituído, de fazer uma crítica ao mercado, colocam-se ornadamente sentadas diante do Olimpo, esperando que aqueles que se interessarem por aprender a utilizar a Faculdade do pensamento se aproximem e recebam as bênçãos sacerdotais que os doutos filósofos podem oferecer. Bênçãos que, ao invés de serem um preparo para o uso da autonomia do pensamento, funcionam como uma doutrinação filosófica, produzindo igrejas, cujos missais são as obras filosóficas. Talvez com isso tenhamos conseguido fazer da filosofia uma Faculdade superior aos moldes das Faculdades superiores do período em que Kant viveu. Referências HORN, G. B. Do ensino da filosofia à filosofia do ensino: contraposições entre Kant e Hegel. In:

http://www.anped.org.br/reunioes/26/trabalhos/geraldobalduinohorn.rtf Acesso em: 10/dez/2006. KANT, I. (1784) Que é o esclarecimento? (Aufkalärung). In: CARNEIRO LEÃO, E. (org). Immanuel Kant: Textos seletos. Petrópolis: Vozes, 1985. pp. 100-117. KANT, I. (1787) Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Kalouste Gulbenkian, 1989. KANT, I. O conflito das faculdades. Lisboa: edições 70, 1993. KANT, I. Sobre a pedagogia. Piracicaba: editora da Unimep, 1996. PAGNI, P. A. O ensino de filosofia nas obras de Kant, de Hegel e de Nietzsche: uma breve análise histórico-filosófica. In: Reflexão e ação. Revista do departamento de educação. UNISC: Santa Cruz do Sul. v.10, n.2, jul./dez. 2002. pp. 111-135.

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